A escrita de si e do outro: Luzia Senna e Antônio Torres

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ANAIS DO VI SENALIC – TEXTOS COMPLETOS | ISSN – 2175-4128 Organizadores: Carlos Magno Gomes; Ana Maria Leal Cardoso; Maria Lúcia Dal Farra São Cristóvão: GELIC, Volume 06, 2015

A ESCRITA DE SI E DO OUTRO: LUZIA SENNA E ANTONIO TORRES Gislene Alves da Silva (Pós-Crítica/UNEB) Os estudos culturais emergem com uma perspectiva plural, possibilitando aos estudos literários uma releitura, reposicionamento, do modelo canônico, a partir de uma visão de mundo descentrado, operando a partir de múltiplos pontos de vista, abarcando as literaturas não canônicas, como o movimento das mulheres, negros, índios, etc. Assim, as pesquisas sobre os grupos minoritários passam a ser desenvolvidas e, a partir de questões como as de gênero, os discursos hegemônicos são questionados e desestabilizados. Nelly Richard (2002, p. 131), no texto "A escrita tem sexo?", questiona a crítica em relação a especificidade e a diferença do "feminino" no sentido de ampliar o debate acerca da "marca de sexo e de gênero na escrita". Afirma a autora que a neutralidade do discurso de que não há diferenças entre a escrita e a linguagem genérico-sexual, "equivale a reforçar o poder estabelecido, cujas técnicas consistem, precisamente, em levar a masculinidade hegemônica a se valer do neutro, do im-pessoal, para falar em nome do universal". A partir de Derrida (2001), da noção de différance que abala as oposições binárias (homem/mulher; presença/ausência etc.), da "tensão entre o que pode ser uma coisa e seu contrário" (ARFUCH, 2012, p. 15), é possível questionar o significante (as representações) e desestabilizar os sentidos. Ao funcionar como um sistema aberto, a diferença cultural, ou melhor, o espaço intervalar entre eu/outro abala a autoridade do signo (do código patriarcal, por exemplo), fazendo emergir as diferenças, as margens, as vozes silenciadas da sociedade. Desse modo, a escrita canônica patriarcal passa a ser questionada, inclusive os seus espaços arbitrários, de dominação (instituições literárias, mercado do livro, Academia de Letras etc.). Emergem no “espaço intervalar” os textos memorialísticos que refutam o modo de escrever do código patriarcal, e empodera o "eu" sujeito que agora pode escrever/narrar as suas experiências. 1

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Contudo, para que o discurso dominante não se reinscreva ou continue se reinscrevendo nesses textos, torna-se imprescindível questionar tais escritas. Assim, pensar as relações de gênero implica pensar na desterritorialização dos sentidos fixados os quais atribuíram aos sujeitos femininos um “segundo lugar”. Pensar este jogo de desterritorialização. Para tanto, estudaremos cenas literárias dos escritores Luzia Senna e Antônio Torres e relatos autobiográficos, cenas de escritas de si construídas muitas vezes pela via da memória, na perspectiva de gênero, através da abordagem da crítica comparada e cultural, que certamente considera a crítica biográfica contemporânea, uma vez que o “espaço biográfico” transforma-se em um “vetor analítico crítico da sociedade”, que requer diferentes olhares disciplinares e político (ARFUCH, 2012, p. 07). Nesses termos, a “escrita de si” para além das tipificações, emerge nos estudos literários como um “texto vivo” que traz diversos significados tanto da subjetividade do “ser vivente” (AGAMBEN, 2009) quanto das suas relações intersubjetivas. Esses textos memorialísticos, que narram escritas de si, trazem as marcas de vida não só de um “eu”, mas de toda uma coletividade. A violência simbólica contra pobres, negros, mulheres não ocorre por acaso, nada é natural, as relações são construídas. As interdições nas formas de viver do sujeito feminino não são inocentes. Desse modo, os discursos que atuaram nos contextos coloniais, por exemplo, continuam em plena atividade nos tempos atuais. O que requer cada vez mais: estudar, relacionar, confrontar e construir uma política que afirme a vida em suas diferenças. Para Klinger (2008, p.13), “A escrita de si é um sintoma da época atual” assim as experiências dos autores tem servido como pano de fundo para os romances contemporâneos. A narrativa (auto) biográfica, conforme Pérez (2006) é um texto “vivo” de um sujeito inserido em um dado contexto histórico e social, que nos revela os seus princípios, a sua forma de agir, criar, transformar constantemente o mundo, um texto carregado de sentidos concretos e subjetivos. Nessa perspectiva, os sentidos são construídos por uma coletividade, ele traz 2

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outras vozes, posições, narrativas, etc que precisam ser questionadas e também visibilizadas. Neste embalo da escrita memorialista tecerei um estudo comparativista de cenas literárias de dois escritores do interior da Bahia que fazem uso da escrevivência nas suas construções literárias: Luzia Senna e Antônio Torres pondo-os em relação e dando enfoque, nesta relação, às tensões de gênero. Luzia das Virgens Senna escritora, nasceu em 1946, na cidade de Queimadas- Ba e reside em Alagoinhas, seu pai era vaqueiro e lavrador e sua mãe era filha de fazendeiro. Quando criança aprendeu a escrever na folha de palmas, uma planta típica sertaneja. Suas obras publicadas são: Te Amo Brasil (poesia, 1995); O Casamento (prosa 1997); A Estrada por Onde Passei (autobiografia, 2011); Tudo Passa (cordel); Rio Catu (cordel); Mandacaru (cordel); O casamento de João Sem Braço e Mikilina (cordel). Membro da Casa do Poeta de Alagoinhas CASPAL e Academia de Letras e Artes de Alagoinhas – ALADA. Antonio Torres, escritor, nasceu em 1940, natural de Sátiro Dias-Ba, na época a cidade era um povoado conhecido por Junco. Tem dezessete romances publicados, vencedor de vários prêmios literário, recentemente foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Assim, iremos refletir sobre as relações de poder que perpassam os discursos, as condições de vida da escritora Luzia Senna, a “vivência do gênero feminino”, as interdições dos seus desejos de estudar, ler, escrever dentre tantas outras interdições que era/é submetida. As marcas discursivas, sejam elas, a marca que o sujeito nordestino carrega, e em Senna a marca desta mulher, que duplamente sofreu exclusões. Assim, percebe-se que há diferenças entre eles tanto no que tange a textualização da escrita feminina, quanto à questão socioeconômica e cultural dos escritores. Nesse intertexto, a diferença cultural de gênero muito nos interessa. Segundo Soledade Bianchi, citada por Richard: "É necessário romper o gueto do sexo, pois se trata de situá-los (os textos de mulheres) junto aos 3

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outros, produzidos por homens e mulheres contemporâneos, considerando semelhanças e diferenças, reconhecendo conquistas e aportes, mas também limitações." (BIANCHI apud RICHARDS, 2012, p. 135). Essa crítica evidencia que é preciso reconhecer também os limites dos textos das mulheres, para evitar certas armadilhas do signo e manutenção do discurso oficial de unificação do texto através de certos reducionismos e determinismos. Assim, a crítica é obrigada a pensar o "feminino em tensão com o marco da intertextualidade cultural e não como uma dimensão a ser isolada". O SERTÃO DE SENNA CANTADO POR TORRES? Os escritores compartilham suas vivências, suas opiniões, seu processo de criação de uma verossimilhança fictícia com o leitor. Assim, traremos duas cenas das obras literárias dos escritores Antônio Torres e Luzia Senna. Sendo os dois escritores nascido no sertão da Bahia, vejamos como estes descrevem o lugar que nasceram nas suas obras literárias. O Junco: um pássaro vermelho chamado Sofrê, que aprendeu a cantar o Hino Nacional. Uma galinha pintada chamada Sofraco, que aprendeu a esconder os seus ninhos. Um boi de canga, o Sofrido. De canga: entra inverno, sai verão. A barra do dia mais bonita e o pôr-do-sol mais longo do mundo. O cheiro do alecrim e a palavra açucena. E eu, que nunca vi uma açucena. Os cacos: de telha, de vidro. Sons de martelo amolando as enxadas, aboio nas estradas, homens cavando o leite da terra. O cuspe do fumo mascado da minha mãe, a queixa muda do meu pai, as rosas vermelhas e brancas da minha avó. As rosas do bem-querer: – Hei de te amar até morrer. Essa é a terra que me pariu. – Lampião passou por aqui. – Não, não passou. Mandou recado, dizendo que vinha, mas não veio. – Por que Lampião não passou por aqui? – Ora, ele lá ia ter tempo de passar neste fim de mundo? (TORRES, 2008, p.14)

Senna então nos afirma:

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Mesmo sendo um lugar deserto a fazenda São Joaquim era divertida […] O sertão é escasso de chuva, nesse período não é alegre nem bonito. mas, quando chove tudo é diferente, as árvores renovam as folhas, os pássaros parecem entender que é o motivo de muita alegria, todos os seres vivos demonstram seus agradecimentos à natureza. Nos tempos das trovoadas era uma grande felicidade! Na malhada havia um enorme tanque que servia de bebedouro para os animais! Nossa casa ficava ao final da malhada de onde partia o gado, que se juntava e procurava sombras das árvores para descansar, as vacas davam mamar aos bezerros, a vegetação exalava seu aroma, nos galhos os pássaros exibiam seus contos, os bodes pulam sobre a trincheira do tanque, os porcos fuçavam os terreiros, os sapos coaxavam nas águas barrentas e as borboletas esvoaçavam, deslumbrando com seus coloridos. (SENNA, 2011, p. 19)

Antônio Torres e Luzia Senna reconstroem através da criação ficcional o sertão em que nasceram. Uma representação de um lugar que traz beleza e tristeza, as imagens guardadas da infância se misturam traduzindo a terra. A realidade se constitui como um terreno fértil para o fazer literário. “A escritura, nesse caso, assume, quase sempre, um tom laudatório e saudosista, retrata épocas, costumes e cenários de lugares importantes para os memorialistas” (LACERDA, 2003, p. 77). Senna embora situe que o sertão é um deserto, escasso de chuva, que não há beleza na seca, nem tampouco alegria, escolhe descrever de forma poética os momentos raros de chuva e prosperidade na fazenda. Assim, observase que a escritora busca em sua narrativa ocultar as mazelas dos tempos de seca para contemplar os dias felizes sem estiagem, "nos tempos das trovoadas". O sertão de Torres é um lugar esquecido no tempo. Ao relatar o Junco como “A barra do dia mais bonita e o pôr-do-sol mais longo do mundo” faz o uso de uma linguagem simbólica para descrever a situação de seca constante deste lugar, onde o sol se faz presente por mais tempo, seria como se o dia se arrastasse. Assim, nos mostra tanto por meio de metáforas quanto por meio de termos mais diretos a vida difícil dos sertanejos, por exemplo, elementos como: “sofrê”, “sofraco”, “sofrido”, “enxadas”, “homens cavando” etc. Desta forma, o 5

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escritor vai desenhando o seu lugar compartilhados por tantos outros, inclusive por Luzia Senna. Na sua construção textual podemos notar que Torres se utiliza também da intertextualidade ao trazer elementos do folclore nordestino para a sua narrativa, na passagem em que diz: “as rosas vermelhas e brancas da minha avó. As rosas do bem-querer: – Hei de te amar até morrer.” Fazendo referência às cirandas, cantigas presentes na cultura popular, essa referência também pode ser percebida na música do cantor e compositor pernambucano Alceu Valença, Ciranda da rosa vermelha, no trecho em que segue: “A rosa vermelha/ É do bem querer/ A rosa vermelha e branca/ Hei de amar-te até morrer”. Desta forma, podemos entender o texto literário como um sistema de conexões múltiplas, onde um texto absorve um outro e se reinventa. Operando

assim

o

conceito

de

intertextualidade

que

os

estudiosos

comparativistas entendem como o arcabouço que renova as formas de abordagens metodológicas dos estudos comparados. O sertão de Senna é seco, escasso assim como a sua “escritura” que esconde o sofrimento, mas quer acreditar em novas perspectivas de vida. Esse sertão nos diz das vidas das mulheres nordestinas, que carregam consigo uma carga altíssima de sofrimento e dor representada na vida, nos sonhos, na busca da palavra como instrumento de resistência e luta. O texto de Torres traz também novos elementos, faz relações outras, pois Torres teve as oportunidades que faltaram a Senna. Conheceu outras literaturas, outros lugares; a sua escrita estará impregnada com esses lugares, rostos, cheiros, sabores, etc. que Torres conheceu. As mulheres não tiveram a mesma vivência que os homens, ao serem educadas para tornarem-se mães e donas de casas, na escrita dessas mulheres essas marcas sociais, culturais estarão em evidências interferindo na sua construção literária. As mulheres não foram educadas para escrever, ou seja, não tiveram as mesmas oportunidades que os homens, por isso é preciso construir condições para que as mulheres se apropriem das várias formas de dizer. 6

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Porém, não podemos deixar de perceber que a escrita de voz feminina autobiográfica ganha à cena na atualidade, abalando os obstáculos enfrentados pelas mulheres no exercício da escrita e desativando os processos de silenciamento impostos por um pensamento hegemônico que determinava a forma de ser e de viver do sujeito feminino. Estas formas, ou marcas culturais, como já dissemos, nos interessa como denotação de um tempo que, com diferença, pode ainda se repetir. Essa terra, o grande sucesso de Antônio Torres publicado em 1976, é um romance com grandes pinceladas autobiográficas que retrata o êxodo rural dos nordestinos ao sairem de suas terras em busca de uma vida melhor nas grandes cidades do sul do país, tendo com preferência a cidade de São Paulo. Situação esta vivenciada pela família de Luzia Senna, pois diante da seca que matava o gado, muitos moradores e familiares foram para São Paulo tentar uma vida melhor, só o seu pai que resolveu trazer a família para Alagoinhas. Nesta época Alagoinhas era vista como uma cidade que tinha importante posição para os moradores dos povoados, era tida como uma cidade moderna e para onde os pais mandavam os filhos para estudar. Assim, apresento a segunda cena que selecionei para esse texto para mostrarmos como a experiência individual do escritor Antônio Torres transfigurase em experiência de um grupo ao qual ele pertence, a memória que por ora era individual converte-se em memória coletiva. A seguir vejamos um trecho da obra Essa terra do autor, em seguida um trecho da entrevista da escritora Luzia Senna, um relato da experiência vivida pela escritora, que de alguma forma Antônio Torres narra em sua obra. Moças na janela, olhando para a estrada, parecem concordar: isto aqui é o fim do mundo. Estão sonhando com os rapazes que foram para São Paulo e nunca mais vieram buscá-las. Estão esperando os bancários de Alagoinhas e os homens da Petrobrás. Estão esperando. Tabaréu, não: rapazes da cidade. […] – Até as casadas enlouqueceram, e arrastaram os seus homens e suas filhas para as cidades – reclama-se na venda de Pedro Infante, o abrigo de todas as queixas. – Muitos maridos

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vão e voltam, sozinhos, com uma mão adiante e outra atrás. Sina de roceiro é a roça. (TORRES, 2008, p.14) Pensei: eu não vou ficar na roça eu vou me casar com um rapaz da cidade [Alagoinhas] e eu vou estudar e eu vou ser professora. Aos 16 anos arrumei o meu primeiro namorado da cidade e o mundo desabou em minha cabeça, porque não só os pais [não aceitam o namoro], mas também os rapazes da cidade não quer meninas da roça, só quer explorar e pronto, mas eu acreditei nele meu primeiro namorado da cidade foi escolhido, também não foi assim chegou, apareceram outros também quando encontrei esse eu disse é esse. Enfrentei muitas dificuldades meu pai só faltou me colocar no quarto e me trancar a chave, mas não adiantou me casei com ele (SENNA, 2010)1

Alagoinhas sempre foi o sonho de uma vida melhor no imaginário dos moradores dos povoados sertanejos. Se hoje os jovens vêm para a cidade em busca de uma educação formal, naquela época mais ainda, os jovens sonhavam com a vida que poderiam ter após terminar os estudos. Isso fica evidente na trajetória nômade desses escritores em busca do estudo. Se os homens poderiam ir para a cidade e morar em pensionatos, as mulheres dependiam da tutela de um parente responsável. No caso de Luzia Senna, o seu grande impedimento era o discurso patriarcal que naufragava o seu sonho de ser professora, restando-lhe à alternativa do casamento. Com isso, Torres parece que canta o sertão de Senna, mas não consegue imprimir as marcas da textualidade de gênero, ou melhor, as experiências compartilhadas por tantas mulheres sertanejas são ficcionalizadas sem desestabilizar os sentidos fixos (mulher que espera o homem para realizar os sonhos). Percebe-se, que a escrita literária de Torres permeia pelo conceito de autoficção apresentado por Klinger (2008) em que o escritor contemporâneo sente a necessidade de falar de si, ao mesmo tempo em que se percebe a impossibilidade de impor uma “verdade” ao texto escrito, desta forma as suas

1Informações

concedidas pela escritora no encontro realizado em novembro de 2010, na UNEB campus II, durante o 2° Fórum de Critica Cultural e II Seminário Sobre Modos de Violência Contra Mulheres e de Lutas a Favor dos Direitos Humanos.

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vivências são ficcionalizadas. Mas ao retratar a mulher, recai no limite de reproduzir marcas de gêneros, conceitos que colocam a mulher na condição de passividade, sempre na espera do homem que vai mudar o seu destino. No entanto, Senna realiza outro jogo, ela busca estratégias para mudar a sua vida, não aceita ser trancafiada. Não podemos deixar de falar acerca do lugar do sujeito feminino, do seu modo de dizer posicionado que não é cantando pelo outro, pois este por mais que se sensibilize não tem como trazer as marcas do corpo feminino. Trata-se de um modo de dizer múltiplo, mas que se singulariza a partir do lugar que esse sujeito ocupa, das relações de forças que se estabelecem e do modo como as subjetividades vão sendo tecidas diante das interdições e enfrentamentos patriarcais. Senna e Torres, de alguma forma, tematizam a questão do feminino, mas as marcas na textualidade singularizam o masculino e o feminino. A mulher nordestina em Torres, no sertão poetizado\cantado por ele é uma mulher reprodutora, uma mulher que fica acomodada esperando pelo homem que se foi ou esperando por homens de melhores condições financeiras vindos de Alagoinhas. É uma mulher dependente que, em certo sentido, se conforma com a vida que o destino traçou. A mulher narrada por Senna joga com a alternância do poder, ao ir em busca de um casamento com um rapaz da cidade, usa isto como estratégia para galgar os seus sonhos de estudar e ser professora. Senna traz uma outra imagem da mulher sertaneja que não aceita o lugar predestinado a ela. Esta diferença cultural, percebida nesta relação comparativa não pode ser desconsiderada, pois a mesma tem transformado as relações sociais. PARA NÃO ENCERRAR O DEBATE A diferença entre a "escrita de si" dos escritores, seus traços memorialísticos, suas ficções e relatos autobiográficos, nos mostram que não há uma forma discursiva fixa que particulariza essas narrativas, mas uma pluralidade de modos de dizer sobre o "eu" e "outro" compartilhados de um contexto 9

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histórico, social e econômico. Ao por em diálogo a escrita de Luzia Senna e de Torres, percebemos as proximidades e diferenças entre a escrita feminina e masculina, a multiplicidade dos modos de dizer sobre si mesmo e o outro, o que nos leva a continuar ampliando o debate sobre as marcas de gênero na escrita. É importante ressaltar que Torres, apesar de trazer a temática do feminino, não textualiza as marcas do feminino, tais marcas aparecem no “corpo vivo”, inventivo, escrito por Senna. Até o modo como ela constrói a sua narrativa revela os dispositivos que lhe impedem de ter acesso a outras possibilidades de luta com e contra o signo. A ausência do direito à educação, o discurso paterno, a escrita oficial, a literariedade, a dificuldade para publicar, a não circulação dos seus textos nas escolas, dentre tantas interdições revelam que os dispositivos ainda continuam impondo limitações a sua "batalha" com e contra o código. Com base em Agamben (2009, p. 40), o qual amplia a noção de dispositivos de Michael Foucault, os dispositivos podem ser "qualquer coisa que tenha de algum modo à capacidade de capturar, orientar, determinar, interpretar, modelar, controlar e assegurar os gestos, condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes". Portanto, a vida humana pode estar sendo capturada por qualquer coisa: a literatura, as redes sociais, a caneta, o computador, celular etc. Então, como desarmar esses dispositivos que controlam o nosso modo de dizer e ler o mundo e nossas experiências? Em suma, a “escrita de si” dos escritores baianos contemporâneos mostra o quanto são carregadas de sentidos e falam de uma coletividade. No entanto, a “escrita de si” feminina se singulariza, pois traz a marca da “diferença cultural”, a forma de viver dos corpos femininos que não são narrados por outros sujeitos. Desse modo, a escrita de si feminina é uma arma política que tensiona as questões de gênero. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinicius N. Honesko. Chapecó: Argos, 2009. 10

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ARFUCH, Leonor. Antibiografias? Novas experiências nos limites. In: MARTINS, Anderson Bastos; SOUZA, Eneida Maria; TOLENTINO, Eliana da Conceição (orgs) O futuro do presente: arquivo, gênero e discurso. Belo Horizonte: UFMG, 2012. DERRIDA, Jacques. Semiologia e gramatologia – Entrevista a Julia Kristeva. In. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p.23-43. KLINGER, Diana. Escrita de si como performance. Disponível em: http://www.abralic.org.br/revista/2008/12/25/download. Acesso em 12 de dez. de 2013. LACERDA, Lilian de. Álbum de leitura: memórias de vida, histórias de leitoras. São Paulo: UNESP, 2003. P. 38-86 PERÉZ, Carmen Lúcia Vidal. Histórias de escola e narrativas de professores: a experiência do GEPEMC. Memória e cotidiano. In. SOUZA, Elizeu Clementino; 94 ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto. Autobiografias, histórias de vida e formação: pesquisa e ensino. (Orgs.). Prefácio, Marie-Christine Josso. Porto Alegre: EDIPUCRS: EDUNEB, 2006. P.177-187. RICHARD, Nelly. A escrita tem sexo? In: Intervenções crítica: Arte, cultura, gênero e política. trad. Romulo Monte Alto. Belo Horizonte: UFMG, 2002, P. 127-141. RUFFATO Luiz, Minhas memórias dos outros. In: MARTINS, Anderson Bastos; SOUZA, Eneida Maria; TOLENTINO, Eliana da Conceição (orgs) O futuro do presente: arquivo, gênero e discurso. Belo Horizonte: UFMG, 2012. SENNA, Luzia das Virgens. A estrada por onde passei. São Paulo: Scortecci, 2011. TORRES, Antônio. Essa Terra. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008.

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