A escrita diarística de Memorial de Aires - Versão 2016-1.pdf

May 31, 2017 | Autor: Danillo Macedo | Categoria: Languages and Linguistics, Literature
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A ESCRITA DIARÍSTICA DE MEMORIAL DE AIRES

Prof. Me. Danillo Macedo Lima Batista

GOIÂNIA 2016

SUMÁRIO

1.

INTRODUÇÃO ......................................................................................... 2

2.

O GÊNERO DIÁRIO.................................................................................... 4

3.

2.1.

REPERTÓRIO .............................................................................. 4

2.2.

MEMORIAL DE AIRES: DIÁRIO ÍNTIMO E MEMORIAL ...... 5

CONSIDERAÇÃO FINAIS ....................................................................... 13 REFERÊNCIAS .......................................................................................... 14

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1. INTRODUÇÃO Memorial de Aires faz parte da segunda fase da produção literária de Machado de Assis, a fase realista, a partir da qual ele insere um novo estilo em seus textos, assim como passa a abordar temas mais sóbrios, profundamente concentrados na sua fina ironia, no seu pessimismo sobre as questões que envolvem o amor entre o homem e a mulher, assim como sobre Deus e a vida humana transitória. Outrora romântico e mais idealista; agora, realista, mais desiludido e crítico; menos subjetivo, influenciado pelo cientificismo de teorias positivistas, deterministas e evolucionistas. Machado de Assis começou essa postura realista com o que nele, talvez, seja sua grande marca, a ironia. O livro que deu início a essa nova fase começa com a história de um homem que já morreu: Memórias póstumas de Brás Cubas. A mesma ironia literária se repete no Memorial, quando compartilha com o mundo aquilo que ele chama de “diário íntimo”. Além de demonstrar, ao longo da narrativa, tratar-se de um projeto de escrever um “diário”, Aires, personagem principal deste romance, também o denomina de “memorial”, como pode ser observado na declaração “Não me lembra se já escrevi neste Memorial que o Campos foi meu colega de ano em S. Paulo” (ASSIS, 2010, p. 23) Um memorial que concatena lembranças de tal forma evocando cenas, episódios, descrições físicas e psicológicas, apreciações de um narrador-escritor, que fazem dele um autêntico romance. Tem-se, pois, tanto na forma quanto no conteúdo, ao mesmo tempo, diário, memorial e romance. Para um espírito objetivo e realista, nada mais apropriado que o diário como molde da sua fantasia criativa; uma vez que é atribuída a este gênero a propriedade de ser autenticamente verdadeiro, fiel aos fatos, próximo das verdades mais sinceras, das revelações mais cruas, honestas e inesperadas; é claro que se trata aqui de um diário “ficcional”, mas o diário íntimo como tal, na sua constituição mais pura, é tido como a própria vida de quem o escreveu, não sendo, portanto, literatura no sentido de imitação da vida, mas a própria vida reproduzida nas suas páginas, e esta é mais uma ironia. Portanto, a escolha de Machado de Assis nos permite exatamente esta simulação: da vida fluindo naturalmente. Destarte, poderíamos admitir que a escolha do respectivo gênero não fosse meramente aleatória, mas sim resultado da subjetividade consciente (Hegel) de

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Machado de Assis, do seu empreendimento artístico, uma vez que de outra forma, usando outro modelo para o seu romance, talvez não fosse possível por em prática todas as reflexões instigantes, os comentários irônicos, os pontos de vista políticos, e até mesmo as veleidades mais banais dos personagens. Neste ensaio, analisei algumas características do gênero diário no Memorial de Aires com base em alguns teóricos tendo em vista apresentar a destreza de Machado de Assis na simulação deste gênero e o quanto ele contribui para a formação do seu romance de maneira única, com efeitos próprios do diário íntimo.

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2. O GÊNERO DIÁRIO 2.1.

REPERTÓRIO

O diário íntimo serve ao texto literário de Machado de Assis como repertório. Entende-se por repertório literário os elementos, lingüísticos e não lingüísticos, de que lança mão o escritor de ficção, seu leitor e outros agetnes sociais envolvidos, para a redação, divulgação e consumo do seu texto como podemos articular das palavras de Itamar Even-Zohar, criador da Teoria dos Polissistemas (1990, p. 39): "Repertoire" designates the aggregate of rules and materials which govern both the making and use of any given product. These rules and materials are thus indispensable for any procedure of production and consumption1.

Assimilando a ideia de repertório proposta por Even-Zohar como conjunto de elementos textuais que de maneira orgânica dão forma ao conteúdo do texto, atribuímos o gênero diário a um desses elementos repertoriais, dentro de um dos níveis propostos por ele ao repertório, o subnível do gênero no nível dos modelos. A saber, são pelo menos três os níveis propostos por ele: 1º) o nível dos elementos individuais, os quais incluem lexemas e morfemas; 2º) o nível dos sintagmas, que é quando estes elementos se organizam de modo a produzir enunciações que façam o sentido mais ínfimo, as sentenças; 3º) o nível dos modelos, que é o resultado da habilidade criativa do escritor na composição do seu texto como um todo e, exatamente aqui, entra a questão do uso de elementos linguísticos diversos para a composição do gênero a partir do qual far-se-á a obra como um todo.

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"Repertório" designa o conjunto de regras e materiais que regem tanto a elaboração quanto a utilização de um determinado produto. Essas regras e materiais são, portanto, indispensáveis para qualquer processo de produção e consumo (Tradução minha).

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2.2. MEMORIAL DE AIRES: DIÁRIO ÍNTIMO E MEMORIAL Há indícios no texto de que trata-se, ao mesmo tempo, tanto de um diário quanto de um memorial. Machado de Assis demonstrou ser perfeitamente possível essa simbiose. Como vimos na introdução deste ensaio, o próprio Aires denomina seu diário de memorial. E não é só o fato do autor chamá-lo de memorial que faz dele ser tal qual é denominado. A peça chave está especificamente no seu conteúdo, isto é, um diário feito de registros da própria vida no intuito de eternizar para si mesmo e para os outros a própria existência: Meu velho Aires, trapalhão da minha alma, como é que tu comemoraste no dia 3 o ministério Ferraz, que é de 10? Hoje é que ele faria anos, meu velho Aires. Vês que é bom ir apontando o que se passa; sem isso não te lembraria nada ou trocarias tudo. (ASSIS, 2010, p. 61)

Como é observável na estrutura textual do livro, com as entradas diarísticas que respeitam rigorosamente uma ordem cronológica que vai de 9 de janeiro de 1888 a um dia sem data em meados do mês de setembro do ano de 1889, podemos, mais uma vez, afirmar que o livro em questão tem tanto na forma quanto no conteúdo características de diário, de memória e de ambos, em simbiose artística, se origina um autêntico romance. E a autenticidade diarística atribuída ao gênero, dentro dos limites da ficção, tem essa idéia de diário íntimo corroborada por ASSIS, 2010, na voz de seu Aires, na p. 22, nos seguintes termos “Não sei se me explico bem, nem é preciso dizer melhor para o fogo a que lançarei um dia essas folhas de solitário”. Memorial de Aires é, pois, um autêntico diário íntimo. Algumas delas seriam, por exemplo, o fato de que Aires escreve para si mesmo, sem deixar explícita alguma expectativa de que algum dia seria, verdadeiramente, lido; mas, isso persiste incólume apenas até a p. 30 e, depois dela, revela que o “íntimo” do seu diário é um íntimo comprometido, e, passa a não ser “tão íntimo”. O que não é, todavia, um problema para o caráter de íntimo do diário, mesmo que o diário em questão não fosse ficção, uma vez que nenhuma “intimidade” é, verdadeiramente, idônea, pois o escritor do diário tem consciência de que pode morrer a qualquer momento e que será, portanto, lido por quem quer que seja. Nessa página, ele (Aires) então, deixa isso bem claro, na parte que começa assim (idem, ibidem):

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Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia. Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque se acontecer que eu me vá desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem depois da missa de sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, podem cuidar que te confio cuidados de amor.

Alguns autores, como o alemão Wolfgang Kayser (1906 – 1960), defendem a ideia de que o diário íntimo (não ficção) representa o resultado imediato da reprodução da vida de quem o compõe, diferente das obras de ficção que são inventadas e, portanto, passam por um longo processo de análise e estruturação, de retirada de fatos e inserção de outros, o que não poderia ocorrer no registro de um diário autêntico, o qual testemunha a vida tal como ela é, e, dessa maneira, os fatos tal como ocorreram, bons ou ruins, interessantes ou não, embora a maneira como são narrados pode torná-los mais ou menos interessantes, ainda que nada do que ocorreu possa, simplesmente, ser mudado ou inventado. A literatura, portanto, não “reproduz” a vida, nessa concepção, ela a “imita”, encerrando um novo mundo em si mesma. O diário já não imitaria a vida, ele seria a própria vida, que, por fim, poderia converter-se em literatura se se tratasse de um diário “fictício”, de uma simulação, ou de um diário que se tornou “ficção”, que entrou no sistema literário por ter abandonado sua propriedade de “particular”. Machado de Assis, neste jogo de ironias literárias, fugindo da exacerbação romântica e ironizando a própria condição monótona da vida, tinha plena consciência de tudo isso, o que se evidencia na entrada do dia 30 de setembro, na p. 81, do seu Memorial de Aires (idem, ibidem): Já lá vão muitas páginas falei das simetrias que há na vida, citando os casos de Osório e de Fidélia, ambos com os pais doentes fora daqui, e daqui saindo para eles, cada um por sua parte. Tudo isso repugna às composições imaginadas, que pedem variedade e até contradição nos termos. A vida, entretanto, é assim mesmo, uma repetição de atos e meneios, como nas recepções, comidas, visitas e outros folgares; nos trabalhos é a mesma coisa. Os sucessos, por mais que o acaso os teça e devolva, saem muita vez iguais no tempo e nas circunstâncias; assim a história, assim o resto.

O diário íntimo já existia na Idade Média, porém nessa época era um gênero restrito e o que, na realidade, predominava eram as leituras coletivas guiadas pelos detentores religiosos e culturais do poder. Na fase romântica da literatura, o diário ganhou mais força até o ponto de termos hoje os diários de ficção. Isso se deu pelo fato

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do Romantismo ter sido marcado pelo seu espírito libertário, de inovação, que atravessou diversos campos: da ciência, da religião, da política. A confissão, o diário, a crônica são, ainda no final da Idade Média, fontes de informação em que o indivíduo apresenta, por vezes, sua vida privada, isto é, seu corpo, suas percepções, seus sentimentos e suas concepções das coisas do mundo, apanhados sinceros, tanto quanto pode sê-lo uma memória redescoberta que pretende “pintar o ser de frente e não de perfil”. (DUBY, 1990, p. 533) Machado de Assis deixa essa relação leitura solitária / escrita solitária bastante clara em seu último romance: Hoje, que não saio, vou glosar este mote. Acudo assim à necessidade de falar comigo, já que o não posso fazer com outros; é o meu mal. A índole e a vida me deram o gosto e o costume de conversar. A diplomacia me ensinou a aturar com paciência uma infinidade de sujeitos intoleráveis que este mundo nutre para os seus propósitos secretos. A aposentadoria me restituiu a mim mesmo; mas lá vem dia em que, não saindo de casa e cansado de ler, sou obrigado a falar, e, não podendo falar só, escrevo. (ASSIS, 2010, p. 97)

Há várias outras características do diário-íntimo que gostaria de distribuir em nove seções, separadas pelas citações que exemplificam as últimas definições de cada uma destas seções. Características baseadas em textos de três autores: o primeiro texto abordado trata-se de um livro, O pacto autobiográfico, de Philippe Lejeune; o segundo texto é de autoria de Roland Barthes, intitulado deliberação e o terceiro e último texto dessa abordagem mais prática é de autoria de Maurice Blanchot, intitulado O diário íntimo e a narrativa. 1. Atividade íntima; regular, mas não necessariamente “diária”; pode perdurar ou não; para escrever um diário é preciso gostar de escrever e ter preocupação com o tempo, com a passagem dele; além de acuidade para observar os contrastes das mudanças várias entre umas páginas e outras; sugere uma escrita cotidiana, “vestigial” e com a demarcação do tempo; o diarista não pode avançar ao futuro, tampouco modificar o que já passou; é possível, no entanto, fazer “erratas” ou “observações”.

Quando escrevi há dias (duas ou três vezes) que "a moça Fidélia foge a alguma cousa, se não foge a si mesma", tinha em mira o afastamento em que ela vinha estando da casa da amiga. Ei-la que continua a lá ir, e a se deixar ver do irmão que a

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amiga lhe deu. Ou não lhe quer fugir - ou (cousa mais grave) não quer fugir a si mesma. Mas ainda não vi nada claro; parece antes perdoar. (ASSIS, 2010, p. 99) Aquele dia 18 de setembro (anteontem) há de ficar-me na memória, mais fixo e mais claro que outros, por causa da noite que passamos os três velhos. Talvez não escrevesse tudo nem tão bem; mas bastou-me relê-lo ontem e hoje para sentir que o escrito me acordou lembranças vivas e interessantes, a boa velha, o bom velho, a lembrança dos dous filhos postiços... Continuo a dar-lhes este nome, por não achar melhor... Principalmente aquela felicidade média ou turva de pessoas que vão perder um de dous bens do céu, essa expressão que vi em D. Carmo mais forte ainda que no Aguiar... (idem, ibidem, p. 79) Reli também este dia de hoje, e temo haver-lhe posto (principalmente no fim) alguma nota poética ou romanesca, mas não há disso; antes é tudo prosa, como a realidade possível. Esqueceu-me trazer um elemento para a viuvez definitiva da moça, a própria lembrança do marido. Daqui a cinco anos, ela mandará transferir os ossos do pai para a cova do marido, e os conciliará na terra uma vez que a eternidade os conciliou já. Aqui e ali toda a política se resume em viverem uns com outros, no mesmo que eram, e será para nunca mais. (idem, ibidem, p. 70)

2. Público mais jovem e mais feminino; pode ser, ainda, que o mundo aparentemente real do diarista seja fruto da sua imaginação; as relações interpessoais podem ser falácias, as reflexões facécias etc.; a originalidade é muito importante, não é bom que o diário seja, por exemplo, “fotocopiado”; poder de seleção; sensibilidade para abrir mão de excessos, do prescindível. O mais que a mana me disse não vai aqui para não encher papel nem tempo, mas era interessante. Vai só isto, que jantou lá e Fidélia também, a convite de D. Carmo. (idem, ibidem, p. 71) Sobre isto (que não tinha sentido claro nem intenção) dissemos cousas que não importa escrever aqui.(idem, ibidem, p. 119)

3. O diário se aproxima (e faz quem dele tem acesso se aproximar) da vida privada das pessoas; o ato da escrita do diário pressupõe um “momento bolha”; existe uma relativa restrição guiada pela mínima cogitação da possibilidade de que alguém o leia um dia.

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Repito, não me custou ser discreto; é virtude em que não tenho merecimento. Algum dia, quando sentir que vou morrer, hei de ler esta página a mana Rita; e se eu morrer de repente, ela que me leia e me desculpe; não foi por duvidar dela que lhe não contei o que já escrevi atrás. (idem, ibidem,p. 112) Lembrava-se, sorrimos, e entramos a falar dos noivos. Eu disse bem de ambos, ela não disse mal de nenhum, mas falou sem calor. Talvez não gostasse de ver casar a viúva, como se fosse coisa condenável ou nova. Não tendo casado outra vez, pareceu-lhe que ninguém deve passar a segundas núpcias. Ou então (releve-me a doce mana, se algum dia ler este papel), ou então padeceu agora tais ou quais remorsos de não havê-lo feito também... Mas, não, seria suspeitar demais de pessoa tão excelente. (idem, ibidem,p. 116)

4. O diário é uma espécie de espelho, em virtude da faculdade do autoconhecimento; o diário serve também para pensar, por exemplo, o processo de criação. Explico o texto de ontem. Não foi o medo que me levou a admirar o espírito de D. Cesária, os olhos, as mãos, e implicitamente o resto da pessoa. Já confessei alguns dos seus merecimentos. A verdade, porém, é que o gosto de dizer mal não se perde com elogios recebidos, e aquela dama, por mais que eu lhe ache os dentes bonitos, não deixará de mos meter pelas costas, se for oportuno. Não; não a elogiei para desarmála, mas para divertir-me, e o resto da noite não passei mal. (idem, ibidem,pp. 120-121)

5. O diário, geralmente, aborda assuntos banais reverenciados pelo puro prazer da escrita; é um gênero que pode ser escrito por qualquer um, mas não foram apenas quaisquer pessoas que se dedicaram a ele; o diário pode ser encerrado com a morte do diarista (Quando parar?); é considerado um gênero, pelo senso comum, egoísta, ensimesmado, escrito por pessoas anti-sociais, inter-relacionalmente perturbadas; geralmente, há um destaque ao começo e que, também de maneira geral, está fundamentado num “momento crise”; pode ser que não haja mais o que ser escrito no diário em processo, restando algumas alternativas como destruição, interrupção e publicação; não há previsão de desfecho no diário íntimo; são raros, inclusive, os diários que possuem desfecho, pois o mesmo sugere a própria morte de quem o escreve; o diário seria, portanto, o gênero da “escrita sem fim”; somente tem um relativo fim os diários programados (diário de viagem, de férias etc.); a auto-biografia já tem um fim, um final proposto; outro fim possível é pelo fim do suporte, fim do caderno etc.; assim,

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o diário “digitado” poderia render bilhares de páginas; o diário é um depoimento pessoal; escrever no diário é um hábito vicioso, aparentemente volitivo; mas, para quem sente prazer nesse momento de intensa singularidade, pode tornar-se um hábito quase “fisiológico”; é prazeroso, porém, a princípio, não tem valor literário; o diário enquanto estiver restrito ao domínio íntimo não deve possuir compromisso algum com a ficção ou com a literatura, mas pode pertencer a esta, se inserido no domínio público; compromisso com a sinceridade: dizer de mim e julgar. Aires amigo, confessa que ouvindo ao moço Tristão a dor de não ser amado, sentiste tal ou qual prazer, que aliás não foi longo nem se repetiu. Tu não a queres para ti, mas terias algum desgosto em a saber apaixonada dele; explica-te se podes; não podes. (idem, ibidem, p. 102)

6. A sinceridade, apesar do diário íntimo, na sua origem, não ter nenhum compromisso com a ficção, poderia ser melhor alcançada justamente em matéria de ficção; há a busca daquilo que é peculiar ao indivíduo; há o caráter do registro histórico; demonstra-se interesse pela própria vida ou pela vida de quem mantém ou manteve um diário; é uma oficina de frases (o diário, nesse sentido, possui forte lirismo meditativo, como em “As teses escolares dedicam-se a pais, a parentes, a amigos; o amor é tese para uma só pessoa” (idem, ibidem, p. 100).

Apesar de não ser dado a melancolias, nem achar que o ofício de banqueiro vá com tais lástimas, separei-me dele com simpatia. Vim pela Rua da Princesa, pensando nele e nela, sem me dar de um cão que, ouvindo os meus passos na rua, latia de dentro de uma chácara. Não faltam cães atrás da gente, uns feios, outros bonitos, e todos impertinentes. Perto da Rua do Catete, o latido ia diminuindo, e então pareceu-me que me mandava este recado: "Meu amigo, não lhe importe saber o motivo que me inspira este discurso; late-se como se morre, tudo é ofício de cães, e o cão do casal Aguiar latia também outrora; agora esquece, que é ofício de defunto. Pareceu-me este dizer tão sutil e tão espevitado que preferi atribuí-lo a algum cão que latisse dentro do meu próprio cérebro. Quando eu era moço e andava pela Europa ouvi dizer de certa cantora que era um elefante que engolira um rouxinol. Creio que falavam da Alboni, grande e grossa de corpo, e voz deliciosa. Pois eu terei engolido um cão filósofo, e o mérito do discurso será todo dele. Quem sabe lá o que me haverá dado algum dia o meu cozinheiro? Nem era novo para mim este comparar de vozes vivas com vozes defuntas. (idem, ibidem, pp. 78 – 79)

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Leia, e leia também esta outra confissão que faço das suas qualidades de senhora e de parenta. Talvez eu, se vivêssemos juntos, lhe descobrisse algum pequenino defeito, ou ela em mim, mas assim separados é um gosto particular ver-nos. Quando eu lia clássicos lembra-me que achei em João de Barros certa resposta de um rei africano aos navegadores portugueses que o convidaram a dar-lhes ali um pedaço de terra para um pouso de amigos. Respondeu-lhes o rei que era melhor ficarem amigos de longe; amigos ao pé seriam como aquele penedo contíguo ao mar, que batia nele com violência. A imagem era viva, e se não foi a própria ouvida ao rei de África, era contudo verdadeira. (idem, ibidem, p. 112) Aquele drama de amor, que parece haver nascido da perfídia da serpente e da desobediência do homem, ainda não deixou de dar enchentes a este mundo. Uma vez ou outra algum poeta empresta-lhe a sua língua, entre as lágrimas dos espectadores; só isso. O drama é de todos os dias e de todas as formas, e novo como o sol, que também é velho. (idem, ibidem, p. 120)

7. O diário seria um discurso e não um texto, a ideia de texto inacabado; o diário não é, como a maioria das obras literárias, uma espécie de “missão”; a ideia de gênero livre é sempre falsa, com o diário não é diferente; há quem diga ainda que é agradável de se escrever e decepcionante de se ler. Antes de me deitar, reli o que escrevi hoje ao meio-dia, e achei o final demasiado cético. A mana que me perdoe. (idem, ibidem, p. 112)

8. O diário é um mero relato, não pode ser uma narrativa, propriamente dita; o relato do dia-a-dia não alcança a profundidade da narrativa verdadeiramente literária; as entradas diárias, diz-se que ficam presas a datas, numa ordem cronológica, mas, nada impede que o diário resgate lembranças de outras épocas. Antigamente, quando eu era menino, ouvia dizer que às crianças só se punham nomes de santos ou santas. Mas Fidélia...? Não conheço santa com tal nome, ou sequer mulher pagã. Terá sido dado à filha do barão, como a forma feminina de Fidélio, em homenagem a Beethoven? (idem, ibidem, p. 31) Na Europa tinha assistido ao trabalho de alguns artistas homens; era a primeira vez que uma senhora pintava diante de mim. Fidélia dispôs-se e continuou. (idem, ibidem, p. 95)

9. O diário pode se aproximar do memorial (como já é o evidente caso do Memorial) e se aproxima muito da autobiografia, o que só contribui para as

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interpretações críticas autobiografistas tão questionadas por pesquisadores mais recentes; no diário íntimo há a possibilidade de vários “eus”; muitos deles latentes no mundo real concreto, como é o caso mesmo de Aires, o qual amava Fidélia e relatava isso em seu diário, mas preferia ter a postura de um senil sério e, contra as próprias veleidades, apoiar a união dos jovens (O jovem estudante Tristão e a recém viúva Fidélia).

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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS O gênero diário íntimo serve ao Memorial de Aires como o repertório do modelo de criação, ou seja, como o material modelar para a construção de uma narrativa de ficção, o qual possibilita, pela engenhosidade do autor, fazer com que as “confissões” do respectivo diário façam concatenar, em primeira e terceira pessoa, as ações observadas daqueles que se tornam, finalmente, personagens de uma estória criada nesses relatos diários. Logo, a escolha do diário foi proposital, como instrumento de reflexões e como estratégia para a construção de um romance. Temos, todavia, uma paradoxal escolha bivalente: de um lado, poderíamos perfeitamente admitir o diário como mero recurso substituível para a criação de um romance e, dessa forma, reconhecemos que o romance poderia ter sido escrito com base em quaisquer outros moldes, ou seja, fossem através de cartas, depoimentos etc.; por outro lado, o gênero diário íntimo foi peça imprescindível para narrativas despretensiosas e reflexões intimistas de cunho político e filosófico. Creio ter cumprido o objetivo de demonstrar que uma obra literária pode ser analisada sob diversas perspectivas, a partir das quais se obtém, contudo, a apreensão de seu valor como um todo. No caso deste ensaio, Memorial de Aires foi brevemente analisado a partir da definição de Itamar Evan-Zohar sobre repertório de gênero. O gênero optado por Machado de Assis para a escrita do seu último romance foi o diárioíntimo-memorial, que acabou reforçando o contraste com seus romances românticos que narravam histórias de amores idealizados, muito diferentes da história de um viúvo recém aposentado que nada mais podia esperar da vida a não ser lembranças de um tempo que não mais voltaria e fantasias com pessoas que jamais poderia ter.

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REFERÊNCIAS Ariès, Philippe - Duby, Georges - História da Vida Privada: da Europa feudal à Renascença - Editora Companhia das Letras, São Paulo, 1990, vol.2 ASSIS, Machado de. Memorial de Aires. São Paulo: Escala, 2010. BARTHES, Roland. Deliberação. In: ______. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988. BLANCHOT, Maurice. O diário íntimo e a narrativa. In: ______. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. EVEN-ZOHAR, I. Polysystem Studies. In: ______. Poetics Today, vol. 11, 1, 1990. Disponível em . HEGEL, G. W. F. A poesia lírica. In: ______. Cursos de Estética, vol. IV. Trad. Marco Aurélio Werle, Oliver Tolle. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: 2004. KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Coimbra: Armenio Amado, 1970. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Trad. Jovita M. G. Noronha, Maria Inês C. Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

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