A escultura em terracota de Jorge Vieira: a abordagem da figura (3D) como metamorfose e sinédoque

July 22, 2017 | Autor: M. Lambert | Categoria: ESCULTURA, Estética, História da arte, Arte Portuguesa, Escultura Portuguesa
Share Embed


Descrição do Produto

1 Maria de Fátima Lambert A escultura em terracota de Jorge Vieira: a abordagem da figura (3D) como metamorfose e sinédoque

Preâmbulo Na escultura sentiam-se mais dificuldades ainda do que na pintura para prosseguir essa definição convincente e razoavelmente original; faltavam as condições favorecedoras para assumir a renovação sólida e concretizadora. Apesar de mais dependente de viabilização externa do que a pintura, vivenciou momentos extremamente simbólicos, espécie de enclave na expressão global das artes, contrastando com a remanescência da estatuária — e de figuras na escultura — ao serviço de uma arquitectura subsistente. Enquanto que o Neo-realismo se afirmava já desde 1935 como corrente conotada a uma ideologização semi-ocultada (sob a própria designação) — através de artigos manifestos e polémicos — o Surrealismo tivera a primeira manifestação pública apenas em 1940, na 1ª exposição colectiva de pintura de António Pedro, António Dacosta e Pamela Boden. O Surrealismo impôs-se como facto cultural emblemático, de vanguarda e marginalidade na moderada vida cultural portuguesa — Grupo Surrealista de Lisboa

em 1949; fruto de

posicionamento colectivo, donde constavam alguns elementos artisticamente insatisfeitos provenientes do Neo-realismo.

(1947)

As peças de cerâmica realizadas já tardiamente por António Pedro — então radicado

2

em Moledo do Minho — revelam uma faceta do artista pluridisciplinar que dominou também a plasticidade manual do barro e libertou seres, não raro monstruosos, de invulgar qualidade criativa. Esses seres, quase informalizados, cujas feições deformadas acentuavam a intervenção directa do autor possuem um valor pulsional, de uma tal intensidade que integram uma classe de motivações que viria a repercutir na abordagem de Jorge Vieira, no respeitante aos seus trabalhos de vertente mais surrealista. Ao lado de vasta produção pictural, por parte dos artistas surrelistas, há a considerar significativas incursões na escultura, se bem que de carácter isolacionista no contexto global. Datada de 1951 foi uma das obras paradigmáticas da "escultura-objectual" portuguesa possível: o objecto surrealista de Vespeira — espécie de opção criativa livre e "mágica" — O Menino Imperativo. O valor da peça deve ser analisado em função directa (e proporcional) aos princípios explicitadores, e na generalidade aos objectos-obras existentes na obra tridimensional dos surrealistas em Portugal.

A apropriação de objectos feitos para as artes plásticas era um procedimento com passado nas vanguardas europeias — ready-mades + objects trouvés — que cumpria intenções estéticas iconoclastas, como no caso de Marcel Duchamp. No caso português o facto de se recorrer a objectos vulgares, de funcionalidade explícita, desregularizando-a para subversão plástica, implicou a intensificação do aspecto artístico eventual, por associação de elementos alheios, quanto a decorrências polissémicas laterais, o que acontecia cá pela primeira vez. Descobriam-se sentidos para além da racionalidade e da lógica consciente nos objectos do Surrealismo (tardio?) português. O pretexto para-estético do manequim comercial serviu diferentes resoluções criativas: o manequim, ao qual faltavam os braços e a cabeça, viu incorporado um búzio, colocado sobre o pescoço e inundado por uma escorrência, informal, de cera derretida que o recobria até aos orgãos genitais. Recriava-se assim, enquanto portador, um objecto transacional que convencionalmente simula a figura humana — com propósitos consumistas —, por conformidade sobrecarregada de ilusão, passando o objecto a

usufruir de uma presencialidade inclassificável até então na arte feita em Portugal. O

3

seu impacte social e psíquico visava transpor os objectivos desveladores da carga pulsional sintética, transportada (e manietada) pelos constrangimentos éticos e sociais vigentes. Nos finais da década de 40 pressentia-se a identidade de alguns escultores, Jorge Vieira, Lagoa Henriques e Fernando Fernandes que deram continuidade à escultura necessária, demonstrada a viabilidade e coexistência de linguagens diferentes, o que até então não se verificara.

I. Dados biográficos, percurso artístico - uma explicitação sumária:

Jorge Vieira nasceu em 1922. Fez a sua formação na ESBAL. A partir de 1945 trabalha no atelier do arqtº Frederico George; modela as 1ªs esculturas em barro; António Pedro que é visita assídua do atelier, apresenta-o a outros surrealistas. Em 1947 começa a trabalhar com António da Rocha Correia: ambos trabalham o barro e na realização de pequenas esculturas mostra-se a intenção de veicular a memória do arcaísmo grego. Exigências, decorrentes de procedimentos técnicos, leva-os a usar a técnica dos engobes: * Engobes = técnica primitiva, originária da cerâmica; pintar a cor sobre o barro em determinado momento da sua secagem e seguidamente levá-lo ao forno a cozer. * Cores: - preto chumbo - dióxido de manganês; - vermelho - óxido de ferro; - branco - barro branco de Leiria (caulino).

4

(1947) Em 1948 trabalha no atelier de Francisco Franco; viaja até Paris e Londres, onde lhe é possível contactar obras marcantes de: - Victor Brauner e Max Ernst; - Picasso; - artes primitivas (Museu do Trocadero); - Henry Moore, Arp e Cesar.

Em 1949 realiza a 1ª exposição individual na SNBA: 1. Figuração de teor neo-classicizante: mulheres de anatomia estereometrizada; 2. Pequenas figuras >>> metáfora da memorialidade primitiva diversa; portadoras de valores simbólicos >>> escultura. de variante surrealista. 3. Peças abstractas: síntese orgânica de espaços cheios e vazios. O autor apresentou trabalhos, nesta sua 1ª exposição individual, organizados na paridade e compromisso a três direcções fundamentais, de grande nitidez aliás, e sob influência de uma figura tutelar — que se fará sentir ao longo da sua produção: Picasso.

Jorge Vieira trabalhou, como antes se referiu, nos ateliers de António Duarte e de Francisco

Franco. Já nos anos 50, realizou a maquette para O Monumento ao Prisioneiro Político

5

Desconhecido. (finais de 1952) que viria a ganhar um "Prémio de concurso" no Concurso Internacional do Prisioneiro Político Desconhecido realizado em Londres (1953). Com esta peça, onde cedo se reconhece um valor simbólico único — também no contexto português — obteve ainda o 2º prémio de Escultura na I Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian (1957) e uma medalha de prata na Exposição Universal de Bruxelas (1958). Contudo apenas em 1992 a obra seria construída para Beja, concretizando-se assim a colocação pública há muito desejada.

A obra distingue-se — formalmente — pela marcação das linhas que constituem a sua estrutura de sustentação, encadeando-se num articulado simbólico que apela à solidariedade entre os homens. A adequação abstraccionista realizada entre a estrutura e a referência, não explorava a leitura figural dicotómica, mas pretendia a unidade da obra, na ordem respeitante à colocação espacial que permitia o envolvimento cúmplice entre o espaço interior e o exterior. A peça surgiu na sequência de obras prévias do autor — de 1947 — que mostravam reminiscências figurais (de cariz surrealizante) mais explícitas e em onde o escultor explorava já a triplicidade dos pontos de apoio para a configuração ulterior do touro estilizado.

Partindo deste trabalho como marco e referência, pela sua relevância plástica e ideológica, a presença de Jorge Vieira na escultura dos anos 50 foi, sem margem para dúvida, um caso

paradigmático — e necessário — dadas as singularidades criativas sem par a que

6

endereçava. Aliás, a obra confirmada ao longo dos anos, cumpriu sempre um ideal pessoal, de experienciação de linguagens díspares — referências à arte ibérica primitiva e aos arquetípos, Surrealismo e Abstraccionismo — a que a versatilidade do autor soube conferir unidade exemplar, estendendo-se a sua produção até à actualidade, cada vez mais imprescindível e pertinente na sua singularidade.

(1948) Em 1954 viaja para Londres onde estagia na Slade School: contacto com Reg Butler e Henry Moore. Trabalhando a pedra e o bronze, propiciou-se o afastamento do Surrealismo; realiza, então, trabalhos mais abstractos, reveladores da superação da dimensão simbólica, até então determinante para a constituição substancial das suas criações. Estas passam a ser dominadas pela: "...positividade sígnica onde vagas formas córneas ou hastes aparecem com alguma insistência mas já sem atributos simbólicos".1 Na altura do seu regresso a Portugal expõe ainda na galeria Hannover com Paolozzi e Cesar: "Contemporary Sculptures". A obra distingue-se — formalmente — pela marcação das linhas que constituem a sua estrutura de sustentação, encadeando-se num articulado simbólico que apela à solidariedade entre os homens. A adequação abstraccionista realizada entre a estrutura e a referência, não explorava a leitura figural dicotómica, mas pretendia a unidade da obra, na ordem respeitante

1Pedro

Lapa, "O imemorial e o corpo na escultura de Jorge Vieira", p. 23

à colocação espacial que permitia o envolvimento cúmplice entre o espaço interior e

7

o exterior. A peça surgiu na sequência de obras prévias do autor — de 1947 — que mostravam reminiscências figurais (de cariz surrealizante) mais explícitas e em onde o escultor explorava já a triplicidade dos pontos de apoio para a configuração ulterior do touro estilizado. "Esta obra ao evocar inevitavelmente o corpo produz um efeito de estrangulamento e constrangimento orgânico deveras curioso".2 Partindo deste trabalho como marco e referência — a maquette para O Monumento ao prisioneiro político desconhecido — pela sua relevância plástica e ideológica, a presença de Jorge Vieira na escultura dos anos 50 foi, sem margem para dúvida, um caso paradigmático — e necessário — dadas as singularidades criativas sem par a que endereçava.

Nos anos 60 realiza peças de teor abstracto marcadas pela influência de Lynn Chadwick: núcleo ovóide: pequenas chapas soldadas donde irradiam membros lineares >>> denotadoras de certo esquematismo infantil.

2Idem,

ibidem, p. 21

8 Nos anos 70 volta a utilizar o barro + engobes: respeitando uma tradição popular portuguesa combinada às metamorfoses antropormofizadas de Bosch, revendo o pendor descritivo nas anatomias. (Afirmação da autonomização sígnica que pretende tornar positiva a sintagmática.)

II. a abordagem da figura (3D) como metamorfose e sinédoque:

A criação escultórica de Jorge Vieira surge profundamente enraizada na consciência dos valores mágicos dos antigos ídolos, próprios da iconografia proveniente das culturas míticas e primitivas: traduz-se essa aportação arcaizante na: "recuperação de modelos icónicos de culturas antiquíssimas da bacia do Mediterrâneo, de África e de fragmentárias memórias ameríndias."3

Nesse sentido, Jorge Vieira revisitou de forma prioritária — e certamente recorrente — as formulações do corpo humano e animal, nomeadamente do touro, porventura por referência ao caso de Picasso, influência acima referida: arte ibérica primitiva. Assim se contextualiza, em termos fundadores, a recorrência a uma simbologia concordante — de fusão mitémica (Gilbert Durand), sob designação do que pode entender como uma "Arqueologia Imaginária" 4 se bem que radicada em formações figurais de valor plural, uma vez que sabiamente — e demonstrando uma aguda sensibilidade estética — elaborou figurações combinadas sob 3Raquel 4

Henriques da Silva, texto introdutório Catálogo Exp. Museu do Chiado, p.1 Cf. Catálogo da Exposição Jorge Vieira no Museu do Chiado, patente a esta data - Março 1995

manifestações figurais da realidade a outras de nítida disponibilidade surrealista

9

subsumada sob auspícios fantasmáticos próprios.

As figuras de terracota de Jorge Vieira (com recurso à técnica de engobes nalguns casos) são uma constante na sua produção global e validam a organização intrínseca do seu trabalho. Sublinham o valor que o escultor atribui ao trabalho do barro — material dito pobre — portador de profundo valor simbólico na tradição popular portuguesa, se bem que ausente da tradição clássica europeia.

Trata-se de peças — que de acordo com a sua própria matéria constitutiva — possuem uma significação directa à terra: substancialidade terrestre e ductilidade sensual que se apresenta acentuada dadas as conformações que lhes são infligidas e que as identificam. O acto de modelar implica um envolvimento directo do artista; é um modo rápido integrado por momentos genésicos de criação, da mais autêntica dedicação do artista e impregnados da sua ligação corpórea que integra a concretização da peça em si. O barro — de referências fundamentais para a assunção e génese do ser humano segundo a Bíblia — refaz o mundo intencionalizado pelo criador: povoa-o com rostos e corpos — dispersos e anónimos que configuram a sua visão da humanidade: na sua bestialidade, na sua espiritualidade, complementarizando e traduzindo aquilo que é precisamente uma das mais constitutivas realizações e condição do humano. As peças de referência figural atravessam a obra de Jorge Vieira: mesmo quando realiza incursões no terrenos da abstracção, a radicação de matriz figural evocadora da presença do

corpo mantém-se. O corpo transposta para a escultura refere-se quer ao humano,

10

quer ao animal. Num e outro caso não se trata de representação, tampouco de apresentação directas ou de propósitos explicitadores.

O universo escultórico de Jorge Vieira é povoado por seres imaginários — animais e homens a que inflige uma outra existência; constitui um bestiário (touro e cavalo sobretudo) evocativo das grandes figuras míticas e arquetípicas ibéricas que respondem às intenções mais cruciais e prevalecentes.

A. O corpo animal: prioritariamente refere-se à configuração anatómica do touro, mas também do cavalo nalguns casos, não tão frequentes ou inevitáveis. O corpo animal não é enunciação apenas da sua condição de animalidade: transporta a memória conformadora da condição humana naquilo que esta possui de mais primordial: a individualidade; apresenta-se consubstancializado em resoluções imaginativas de uma modernidade e liberdade expressiva quase sem paralelo na escultura portuguesa. O animal comporta a essência genitalizada da sua assunção geradora: o dinamismo erotizante é conformado em superfícies arredondadas e de terminações ponteagudas, usufruindo de valores orgânicos e biomórficos explícitos que assumem uma identificação sexual combinatória: fêmea e macho.

As configurações mais abstraccionalizadas do touro agudizam os elementos

11

anatómicos que melhor serviram a sua própria constituição simbólica na cultura ibérica. Levam-nos a evocar os pictogramas da arte primitiva que pretendiam representar visualmente as imagens dos animais com intuito de um reconhecimento — conceptualizador — cuja mensagem se tornava explícita quando associada a ideogramas, numa combinatória que assegurava tendencialmente as condições de sobrevivência dos grupos de homens em migração.

B. O corpo e a figura humana:

Jorge Vieira realiza figuras de referência humana desde 1950 e fê-lo com extrema necessidade e frequência. As peças que se podem conhecer cumprindo a abrangência do período compreendido entre 1950 e 1980's apresentam-se como visitações inventivas de uma temática que respeita — em síntese — a liberdade do corpo assumida através da sua condição de figura. A explicitação figural pode ser abordada em dois sentidos para uma mesma direcção. O escultor desenvolve a sua criatividade quanto à questão, realizando-a recorrendo a uma sinédoque — por analogia e incursão literária: apresentação da parte para representação do todo e apresentação do todo para convergência da parte. Ainda uma outra determinação criativa leva o escultor à duplicação fragmentarizada de um elemento constitutivo do corpo, portanto por repetição, concentrando ou dispersando-o.

12

(1947) O processo de radicação respeita a desconstrução do corpo - através das diferentes soluções figurais: desmembrado, isolados os elementos, dispersos para configuração globalizadora da escultura. Apresentação apenas de um elemento específico - perna/pé ou cabeça/pescoço.

(1952) O movimento de concentração — posterior ao desmembramento — permite a reinstalação do próprio corpo — por via uma outra associação conjunta dos elementos — porventura desajustados quanto à funcionalidade e anatomia próprias da constituição corpórea comum. As transformações infligidas ao corpo podem-se associar a uma organização — consciência do

corpo que não o real. Somos levados a pensar que neste caso se trata da assunção

13

exteriorizada do corpo imaginário: naquilo que esse é portador dos fantasmas, fantasias, obsessões, desejos ou medos do indivíduo — neste caso anónimo, representativo de um tipo.

(1947) O universo escultórico de Jorge Vieira é povoado por seres imaginários — animais e homens a que inflige uma outra existência; constitui um bestiário (touro e cavalo sobretudo) evocativo das grandes figuras míticas e arquetípicas ibéricas que respondem às intenções mais cruciais e prevalecentes. Mesmo quando realiza incursões de dimensão abstraccionalizadora, a referenciação de matriz figural, a presença do corpo mantém-se. O corpo animal transporta a memória da condição humana naquilo que tem de mais primordial, apresentando-se em resoluções imaginativas de uma modernidade e liberdade expressiva quase sem paralelo na escultura portuguesa.

O escultor conseguiu, com toda a coerência e investimento, explorar uma via criativa na escultura que também se apropria do espaço público, se bem que renegando os valores convencionais da estatuária tradicional anterior. Os modelos de integração no exterior, e não apenas as peças de pequeno formato, correspondem a uma necessidade conciliadora entre as vertentes estilísticas mais consentâneas da época, vindo a prolongar-se a opção surrealistaabstraccionalizante nas décadas seguintes e confirmando-se a primazia do imaginário na sua criação.

Exceptuando o caso de Jorge Vieira, os autores, adstritos a uma possível

14

caracterização da escultura portuguesa nos anos 50, deveriam ser analisados, tendo em consideração uma axiologia da ambiguidade, na medida em que se movimentam entre a prevalência ainda da hesitação e recuo, a indeterminação ou persistência, salvaguardados os factos equívocos e as possibilidades renovadoras apresentados mas nem sempre cumpridos.

Maria de Fátima Lambert * Setembro 1996/ Junho 2012

* Excertos de Lambert, Mª de Fátima - Acerca das Tendências Actuais da Escultura Portuguesa, Museu de Santa Maria da Feira, 1996 e da Comunicação: “A escultura em terracota de Jorge Vieira: a abordagem da figura (3D) como metamorfose e sinédoque”, Caldas da Rainha, Encontro de Escultura e Cerâmica, 1992.

Maria de Fátima Lambert A. Alves de Sá Monteiro

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.