A Espacialidade na Obra de Vergílio Ferreira: Deambulações a partir de Nítido Nulo

May 25, 2017 | Autor: Maria João Simões | Categoria: Space and Place in Literature, Vergílio Ferreira
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Ozíris Borges Filho e Sidnei Barbosa (orgs.) *

O ESPAÇO LITERÁRIO NA OBRA DE VERGÍLIO FERREIRA

OZÍRIS BORGES FILHO SIDNEI BARBOSA (Orgs.)

O ESPAÇO LITERÁRIO NA OBRA DE VERGÍLIO FERREIRA

U EDIÇÃO SÃO PAULO TODAS AS MUSAS 2016

Editor: Flavio Felicio B otton S u p erv isão E ditorial: F e rn a n d a V e rd asca B otton C a p a e d iag ram ação : S tu d io V intage Br O ziris B orges Filho ® S idnei B a rb o sa ® C onselho editorial: M aria Im a c u la d a C avalcante (UFG) L u cian a M o u ra Colucci de Camargo(UFTM) C arlos A ndré P inheiro (UFPI) É p ro ib id a a re p ro d u ç ã o to ta l ou p a rc ia l d e s ta o b ra sem a prévia a u to riz a ç ão do au to r.

D ados In te rn a c io n a is de C atalogação n a P ublicação (CIP) K átia A guilar CRB - 8 /8 8 9 8 E sp 6 2

O esp aço literário n a o b ra de Vergílio F e rre ira /o rg a n iz a ç ã o de: O ziris B orges Filho; S idnei B a rb o sa. São Paulo: T odas a s M u sa s, 2 0 1 6 , 202p. B ibliografia ISBN 9 7 8 -8 5 -6 4 1 3 7 -7 9 -0 1. E stu d o s lite rá rio s 2. E sp aço literário 3. O b ra de Vergílio F e rre ira I. B orges Filho, Oziris; II. B a rb o sa, Sidnei; III. Sim ões, M aria Jo ão ; IV. G am a-K halil, M a risa M artins; V. M arq u es, Jo rg e; VI. Lopes, F e rn a n d o A lexandre de M atos P ereira; VII. Lopes, A na M aria M arq u es d a C o sta P ereira; Vili. R ossoni, Igor; IX. M endonça, M árcia R ejany; X. B onafim , A lexandre.

CDD 8 0 1 .9 5 4 C atálogo Sistem ático E stu d o s lite rá rio s 8 0 1 .9 5 4 ; E sp aço literário 8 0 1 .9 5 4 ; O b ra de __________Vergílio F e rre ira 8 0 1 .9 5 .____________________________________________

D ireitos de edição: E d ito ra T odas a s M u sas C .N .P.J. 1 2 .6 5 0 .4 6 2 /0 0 0 1 -3 3 www. to d a s a s m u s a s . org to d asasm u sas@ g m ail.co m

S um ário E sp aço s V ergilianos Ozíris B orges F ilh o ......................................................................................3 A E spacialid ad e n a O bra de Vergílio F erreira: D eam bulações a p a rtir de Nítido Nulo M aria Jo ã o S im õ e s ......................................................................................5 O E spaço Insólito em C ontos F a n tá stic o s de Vergílio F erreira M arisa M artins G am a-K halil................................................................. 35 Por u m a L eitura T opoanalítica de Nítido Nulo Jo rg e M a r q u e s ........................................................................................... 59 A Liricização do E spaço em Aparição, de Vergílio F erreira F e rn an d o A lexandre de M atos P ereira L o p e s .................................. 71 Cântico Final, de Vergílio F erreira, ou a Insondável e Inverosím il F in itu d e do Ser A na M aria M arques d a C osta P ereira L opes.....................................93 A utonom ia e Subversão: o E spaço D iscursivo no Conto de Vergílio F erreira Igor R o s s o n i............................................................................................. I l l Vergilio F erreira: E sp aço s são Para Sem pre M árcia R ejany M e n d o n ça ..................................................................... 135 Reflexões sobre o E spaço em N a Tua Face, de Vergílio F erreira A lexandre B o n a fim ................................................................................ 159 Um L abirinto C ham ado E strela Polar Ozíris B orges F ilh o ................................................................................ 175

A Espacialidade n a O bra de Vergílio Ferreira: D eam bulações a partir de Nítido Nulo Maria João Simões P ro fesso ra d a F a c u ld ad e de L etras d a U niversidade de C oim bra. Inv estig ad o ra do C entro de L ite ra tu ra P o rtu g u e sa d a m e sm a U niversidade (m jsim oes@ fl.uc.pt).

A E sp ac ia ü d a d e n a O b ra de Vergílio F e rre ira

É freq u e n te m en te citado o excerto autobiográfico, d a tad o de m aio de 1977, em que Vergílio F erreira a ssu m e a p re g n â n c ia do espaço d a “pro v ín cia” n a s u a o b ra em d etrim en to do espaço cosm opolita Lisboeta: Lisboa é u m sítio onde se está, n ã o u m lu g a r onde se vive. M esmo que se lá viva h á dezoito a n o s com o eu. E u o disse, aliás, a alguém , n a im in ên cia de vir: q u a n d o for p a ra Lisboa, levo a província comigo e in stalo -m e nela. E a ssim se fez. Os livros que aq u i escrevi são afinal d a província d o n d e sou. (apud G odinho e F erreira, 1993).

E s ta afirm ação, porém , n ã o significa que o tra ta m e n to do esp aço n a s o b ras de Vergílio F e rreira d e p e n d a a p e n a s d e s ta dicotom ia, pois a esp acialid ad e n e la s e n c o n tra d a é obviam ente m a is com plexa. Com efeito se h á n a s o b ra s de Vergílio F erreira u m a pulverização do tem po ou, pelo m e n o s, u m a m u ltip licação de tem p o s, h á ta m b é m u m a g ran d e proliferação de e sp aço s e, m a is do que isso, u m en trelaçad o jogo de espaços. Um dos objetivos a q u i s e rá e n tão e s tu d a r a lg u n s elem en to s e a sp e to s d esse jogo com o in tu ito de p o n d e ra r e p e n s a r a relev ân cia do espaço n a s u a obra. P od er-se-á, e n tre ta n to , p e rg u n ta r: s e rá que é im p o rta n te e s tu d a r o esp aço n u m e scrito r c u ja o b ra é p ro fu n d a m e n te d e p en d e n te do tem po, ou seja, u m a o b ra que te m com o u m a d a s tra v e s m e s tra s com positivas o tem p o ? A p e rg u n ta é, evidentem ente, re tó ric a e falaciosa, p o rq u e, p o r u m lado, h á m u ito que E in ste in m o stro u a n e c e ssid a d e de c o n sid e ra r a ligação e n tre espaço e tem po, m o stra n d o que, ao e s tu d a r o m ovim ento de u m objeto, s e rá n e ce ssá rio c o n sid e ra r n ão só a trid im en sio n alid ad e 7

M aria Jo ã o Sim ões

do espaço, m a s ta m b é m o tem po e n q u a n to q u a rta d im en são n e sse c o n tín u o espaço-tem po ; p o r o u tro lado, em te rm o s a n alítico s ou em teoria, s e rá possível se p a ra r, espaço e tem po e d a r-lh e s a ten ç ã o se p a ra d a m e n te . A ssim , se B ergson n o s e n sin o u a p e n s a r a d u ra ç ã o do tem po — e s s a durée de u m alarg ad o tem p o psicológico — , S a rtre , ao valorizar a “ex istên c ia ” em si n ã o d eix a de valorizar o espaço, pois é lá que o se r “é”. Vergílio F e rreira refletiu sobre e ste s a sp e to s no célebre en saio de “D a fenom enologia a S a rtre ”, escrito em 1961, que serviu de prefácio à s u a tra d u ç ã o do texto de S a rtre “O E x istencialism o é u m H u m a n ism o ”, como se pode verificar n a seg u in te p assag em : A ssim

a

p ro b le m á tic a

do

«tempo»



essa

form a

nova

(fu n d a m e n ta lm en te d esd e o século XIX) do n o sso interro g arm o n o s no m u n d o . C e n tra d o s, u m a vez m ais, no sujeito, o tem po rev ela-se-n o s ag o ra com o a e s tr u tu r a do q u e som os. O tem po com o o espaço; q u e este, co n tra p o sto à q u ele p o r u m B ergson, m a n tin h a p a ra o filósofo fra n c ê s [Sartre] u m a a u to n o m ia objectiva q u e se lh e re c u sa . Porque o esp aço é fu n d a m e n ta lm e n te u m a fu n ç ã o espa cia liza n te do «ser-aí». (su b lin h ad o aduzido; F erreira, 1978, p. 99).

E ste “se r-a í” in d ic a e s s a p re s e n ç a d o /n o esp aço que Vergílio F erreira co m p reen d eu e explica. E is p o rq u e n o s p a re ce fu n d a m e n ta l este texto p a ra a b a rc a r os sen tid o s que o espaço g a n h a n a s o b ra s do a u to r, sen tid o s e sse s que d ep en d em , logicam ente, do m odo com o o esp açq é percebido no seu próprio p e n sa m e n to . C o n sid eran d o e ste texto como u m a a ju d a p re c io sa p a ra e q u ac io n a r a p ro b le m á tic a do espaço no a u to r, a reflexão filosófica n e la c o n tid a (tam bém pelo seu co n fessad o didatism o) irá servar aq u i de ponto de p a rtid a p a ra v á ria s observações que, u m a vez colocadas p e rm itirão , talvez, 8

A E sp acia lid ad e n a O b ra de Vergflio F e rre ira

u m a c o m p reen são m ais p ro fu n d a d a s u a o b ra Nítido Nulo, a q u al, p o r s u a vez, c o n d u zirá a o u tra s observações sobre a o b ra vergiliana. A ssim , voltando à p a ssa g e m a n terio rm e n te referida, p o d e r-se -á ver como, Vergílio F e rreira e n te n d e o espaço, b a se a n d o -se n a fenom enologia de H u sse rl e p a rtin d o de o u tro s filósofos que cita, m a s, a c re sc e n ta n d o -lh e a s s u a s reflexões: O tem p o com o o espaço; q u e este, c o n tra p o sto àquele por u m B ergson, m a n tin h a p a ra o filósofo fra n c ê s [Sartre] u m a au to n o m ia objectiva q u e se lh e re c u s a (1). P orque o espaço é fu n d a m e n ta lm e n te u m a função espacializante do «ser-aí». É u m a e s tr u tu r a do n o sso e s ta r n o m u n d o . A ssim ele é «qualitativo e n ão geom étrico. É feito de direcções e n ã o de d im ensões, de lugares e n ão de p o n to s, de percursos e n ã o de lin h a s, de regiões e n ão de plan o s. R eferenciam os nele ca m in h o s, n ão se m edem nele d istâ n c ia s. A sua topografia releva exclusivam ente da preocupação». Nós não e sta m o s no espaço; som o-lo fu n cio n alm en te no m odo original de n o s relacio n arm o s com o que n o s cerca. N inguém pode p e n s a r o se u corpo ou a s p a rte s do seu corpo com o se re s q u e e x ista m no esp aço (Ferreira, 1978, p. 100). (Itálico acrescen tad o ).

E ste en ten d im en to d a relação do sujeito com esp aço é cru cial p a ra p erceb erm o s a configuração d a s p e rso n ag e n s v erg ilianas n o m e ad a m e n te a d a s o b ra s e sc rita s a p a rtir d a d é c a d a de 60. A ssim , se a fenom enologia e se a co n cep tu alização d a relação do sujeito com o tem po de H eidegger (esp elh ad a n a fa m o sa e x p ressão “se r e te m p o ”) in flu en ciam o m odo de p e n s a r de Vergílio F erreira, a e sta p ro b lem atização se vem ju n ta r a in flu ên cia de S artre, cujo p e n sa m e n to o p e ra u m salto ou u m a m u d a n ç a que o ro m a n c ista p o rtu g u ê s identifica e explica do seg u in te modo: 9

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U m sim p les exem plo do pred o m ín io do «eu»: a «intuição», que é p a ra S a rtre , H eidegger e H u sserl, o tipo b ásico do co n h ecim en to , define-se p a ra H u sse rl com o «a p re s e n ç a d a p rò p ria «coisa» à consciencia»; p a ra S a rtre , com o a p re s e n ç a d a co n sciên cia à coisa. (F erreira , 1978, p. 57).

O bviam ente e s ta posição filosófica liga-se a esse p rim ad o d a ex isten c ia p ro p o sto p o r S a rtre, ao dizer que o h o m em prim eiro existe e depois é, prim eiro age e depois define-se a p a rtir de ta l ação. A ssim sen d o e n ten d e -se m elh o r a ideia de o espaço ser fu n d a m e n ta lm e n te u rn a fu n ção e sp a c ializa n te do “ser-ai”. Se o h o m em prim eiro existe, ele existe n u m lu g a r, e esse lu g a r faz p a rte do m odo com o o hom em nele existe. A ssim , p a ra além d a a ten ç ã o d a d a ao tem po g a n h a ta m b é m im p o rtâ n c ia a esp a c ialid ad e im p licad a n o existir. Porém , e s ta im p o rtâ n c ia é m a is in tu íd a e p la sm a d a n a s o b ra s do que c o n sc ie n tiz ad a pelo a u to r e n q u a n to p ro b le m á tic a em si, u m a vez que a s u a p re o c u p aç ão m aio r é o tem po — u m a p re o c u p aç ão que atinge a s ra ia s d a o b sessão , n u m a to rtu ra a que o a u to r a lu d iu re p e tid am en te . Logo a seg u ir a e s ta s reflexões sobre o esp aço, Vergílio F erreira, e n q u a n to e n sa ís ta , afirm a: Se o espaço, porém , pelo equívoco se r do n o sso corpo, im p o rtá n d o ­ n o s talvez m en o s, te n d e m ais facilm ente p a ra a «objectividade», o tem po, p o d en d o m ais m e d ia ta m e n te s e r sen tid o com o n o sso e p e la s im plicações do devir, d a p re s e n ç a d a m orte, fa sc in a -n o s m u ito m a is com o pro b lem a. (Ferreira, 1978: 100).

M as se o fascínio pelo tem p o é p e rc u cie n te em Vergílio F erreira, o e sc rito r ta m b é m in tu iu (e sentiu) o m odo -como o c a rá c te r o b sid ia n te do tem po se to rn a opressivo p a ra o hom em , m a rc a n d o in exoravelm ente a vida do h o m em m oderno. 10

A E sp acia lid ad e n a O b ra de Vergilio F e rre ira

O ra é c o n tra este p o d er in v aso r do tem p o que o filòsofo J e a n -L u c N ancy se rebela, la n ç a n d o u m “A lerta c o n tra a po lu ição te m p o ra l”: S eg u n d o s, m in u to s, a n o s, sécu lo s, a p re sse m o -n o s em direcção à virag em do século, e n q u a n to o ú ltim o m al se p e rd e u de v ista. A p a s s o s forçados, o tem po c o m a n d a o p e n sa m en to . (...) ap ressem o n o s, (...) sem p re em d irecção a m a is tem po. (...). (Nancy, 20 0 8 , p. 93)

P a ra re s p o n d e r a e s ta p re ssã o , o filósofo co n trap õ e “O esp acp livre c o n tra o tem po que força, que a rra s ta , que p a s s a sem n a d a d eix ar” — esse tem po “sem espaço p a ra , sem re sp ira ç ã o ” (Nancy, 2008: 93). Propõe e n tão u m a “n o v a lógica do e sp aço ” (a p u d M onteiro, 2012: 35), la n ç a n d o ao seu leitor o seg u in te repto: “E se o p e n sa m e n to fosse esp a ç o so ? ” (Nancy, 2008: 94). M ais a in d a, p a ra o filósofo fran cês, p a ra além de esp aço so , o p e n sa m e n to tem peso: O acto do p e n sa m e n to é u m a p esag em efectiva: a p ró p ria pesagem do m u n d o , d a s co isas, do real e n q u a n to sen tido. (...) Os corpos são p e s a n te s . O peso de u m corpo localizado é a v e rd a d e ira condição sensível p u r a a priori do exercício d a razão: u m a estética tra n s c e n d e n ta l d a p esa n te z . (Nancy, 2 0 0 8 , p. 16-17).

Em c e rta m edida, Vergilio F erreira in tu iu este e sp e ssa m e n to , este a d e n sa m e n to do espaço q u a n d o retém como im p o rta n te s e s ta s noções re le v an te s p a ra o p e n sa m e n to existen cialista. V oltando ao excerto, pode v er­ se que Vergilio F e rreira s a lie n ta se r preferível p e n s a r em p e rc u rso s e n ã o em lin h a s e em direções e n ã o em d im en sõ es, no que diz re sp eito à relação do sujeito com o m u n d o 11: 1 A pro p ó sito d e s ta ideia de “s e r no m u n d o ”, é o p o rtu n o a q u i le m b ra r 11

M aria Jo ã o Sim ões

Vergílio F e rreira n ã o deixou de p erceb er o v an g u ard ism o d a d esm o n tag em d a s convenções ro m a n e sc a s realizado pelo “novo ro m a n c e ”. N a v erd ad e, ele in co rp o ro u n a s s u a s o b ra s a lg u n s dos s e u s p ro ced im en to s, n o m e a d a m e n te o jogo de diferentes p e rc u rso s , lu g a re s e direções que se su b lin h o u n e s s a frase alvo, e s c ru tin a d a e e sm iu ç a d a aq u i p a ra servir como p o n to de p a rtid a h erm e n êu tico , p re c isa m e n te p o rq u e ela parece g a n h a r u m valor em blem ático do tipo de com posição ro m a n e sc a p e rse g u id a p o r Vergílio F erreira. A ssim , por exem plo, o esc rito r põe em c a u s a o “tem po lin ear, b ra n c o ” (Ferreira, NN, 1983: 235), c o n te sta n d o a c a u sa lid a d e ou a lógica de u m destin o c o m an d ad o p o r D eus, como coisa a n tig a que p erten ce ao p a ssa d o : “A im o rtalid ad e a n tig a e sta v a cheia. (...) E sta v a lá D eu s, e o H om em , e a C a u s a e a G lória” (idem, 235), m a s a g o ra n ão e s tá “lá n a d a ” (idem, 236) — dai que o h o m em se en co n tre irrem ediavelm ente só. É e s s a a s u a condição. R esta-lh e, pois, a tra v e ssia do “s e r-a í” — e e s s a tra v e ssia faz-se em p e rc u rso s, lu g a re s regiões. Daí a n e c e ssid a d e de referen ciar cam in h o s. S in to m atica m e n te a s p e rso n ag e n s v ergilianas falam dos s e u s p e rc u rso s, so p esa d o s e n q u a n to tra v e ss ia s no m u n d o . A ssim se pod erão 1er Sofia e C ristin a, m a s, so b re tu d o , A lberto, em Aparição, M ário, em Cântico Final, D aniel, no ro m an ce Na Tua Face, en tre o u tra s figuras. O ra, ten d o em c o n ta que o ro m an ce Apelo d a Noite, em b o ra p u b licad o n a d é c a d a de 60, foi escrito em 19542, 2 No final do ro m an ce Apelo d a Noite Vergílio F erreira in d ica o an o de 1954 e É vora com o local de e sc rita . A p u b licação d a o b ra n a d écad a de 60 inclu i u m posfácio, com d a ta de 19 5 8 , com a inform ação do a u to r de que foi escrito p a ra a c o m p a n h a r n e s ta d a ta a su b m issã o a u m c o n cu rso do referido ro m an ce. 14

A E sp acia lid ad e n a O b ra de Vergilio F e rre ira

s e rá em Alegría B reve e Nítido Nulo que a in flu ên cia do “novo ro m a n c e ” se to m a m a is visível. Nítido Nulo é u m ro m a n c e n ã o p ro p riam e n te lab irin tico à m o d a de Robbe Grillet, m a s sim , feito de diferen tes p e rc u rso s e de lu g a re s que se c ru z am e e n tre cru za m , n u m enovelam ento que cabe o leitor d e sd o b ra r e ap reciar. O ro m a n c e inicia-se com a visão de u m a p ra ia d e s e rta a p a rtir d a s g rades de u m a p risã o , com u m posto d a g u a rd a , n u m fortim , onde alguém se interroga: “C o n d en ad o à m o rte — q u a n d o m e e x e c u ta rão ? — e sto u a q u i à e sp e ra n e s ta p risã o ju n to à p ra ia .” (Ferreira, NN, 1983: 11).

Porém , só m u ito m ais a d ia n te no ro m a n c e o leitor vem a s a b e r que este co n d en a d o à m orte é Jo rg e, o p ro ta g o n ista , e só no c ap ítu lo XIII s a b e rá que Jo rg e veio p a ra a c ap ital tra b a lh a r com o D iretor Literário “n a D afne, a m aio r e d ito ra do p a ís ” (p. 148) e, a in d a, só m u ito m ais a d ia n te no ro m an ce, no c ap ítu lo XVIII (p. 199) p o d e rá sa b e r que ele vai p a rtic ip a r n u m le v an tam e n to revolucionário p a ra a co n cretização do q u al ele a p e la ra (pela força d a palavra) à ação c o n ju n ta , m ovido p ela c re n ç a de m u d a r o m u n d o . N a v erd ad e, a visão d a p ra ia , colocada n a a b e r tu ra do ro m a n c e c ru za-se, logo a seg u ir, com im ag en s de o u tra s vivências de p ra ia , n o m e a d a m e n te com reco rd açõ es a u to b io g ráficas de u m n a rra d o r que se cola ao au to r: a s id a s a b a n h o s n a p ra ia com a Tia M atilde, to m a d o s como rem édio, a visão do esbelto corpo de M arta irrad ia n d o m a is q u e o doirado d a a re ia e m u ita s o u tra s reco rd açõ es. E n tre c o rta d a m e n te ta m b é m su rg e m no ro m an ce d iv ersas p e rso n a g e n s fem ininas: S a ra com q u em o p ro ta g o n ista d iscu te, V era que faz‘ p a rte d a e q u ip a d a 15

M aria Jo ã o Sim ões

D afne ou L úcia que a c o m p a n h a o p ro ta g o n ista , no seu m om ento de revolucionário. M as e s ta s p e rso n a g e n s cru zam -se, sem aviso prévio, com o u tra s e x istên cias a n c o ra d a s o u tro s lu g ares: a reco rd ação do e s c rito r /n a r ra d o r sobre a s u a aldeia, a p re s e n ç a de L ucinho, o g arotinho órfão de pai, criado com a a ju d a d a s u a Tia M atilde, a voz de D olores que g rita que j á se pode te n d e r o pão ou os bolos, o d iscu rso apostólico revolucionário do m endigo doido que a tro a a ald eia c h am a n d o os m ortos, a esc u rid ã o dos co rred o res d a c a s a g ran d e dos p a is, etc. . Por to d o s e ste s a sp e to s, a in trig a do ro m a n c e é p a rc a, d isse m in a d a por e n tre co n sid eraçõ es, reflexões e rem em orações. Só n a p a rte final do ro m an ce se vai esclarecer a p artic ip a çã o rev o lu cio n ária de Jo rg e, realizad a a tra v é s do seu d iscu rso “subversivo ”, co n citad o r de ad ep to s, co n sid erad o com o “elem ento de d isso lu ç ã o ” d a ordem e sta b e lec id a pelos políticos d o m in a n te s, e só no final se d a rá a co n h ecer ta m b é m a c u r ta ação in terv en tiv a do p ro ta g o n ista . Porém , a n a rra ç ã o é feita re tro sp e tiv am en te a tra v é s do o lh ar de Jo rg e sobre ele próprio — sobre “esse que [ele] fora” (p. 254) e do q u al já e s tá d ista n te . A n a rra tiv a in s titu i-s e n e s s a d u p la tem p o ralid ad e re c o rre n te n a n a rra tiv a auto b io g ráfica, com u m ligeiro tom de n a rra tiv a p ic aresc a, pois Jo rg e é u m an ti-h e ró i em b o ra n ã o te n h a nem a au to -b en ev o lên cia n em a a u to co m ise ra çã o do picaro. B em ao co n trário d a ligeireza cóm ica d a p ic aresc a, aqui a s á tira é c á u s tic a e niilista. Nelly Novaes Coelho sin te tiza a in trin c a d a te ia do ro m an ce relativ a ao p ro ta g o n ista , d e ste modo: ... o n ú cleo n arrativ o re d u z -se à s divagações do prisioneiro [que 16

A E sp acia lid ad e n a O b ra de Vergílio F e rre ira

tenta] c o m p re e n d e r a s razõ es d o s s e u s g esto s (...). Id ealista revolucionário, ele serv ira de su p o rte ideológico p a ra u m a revolta que, v itoriosa, im p la n ta u m novo governo. E s s a vitória, porém , não p u d e ra s e r “p u ra ”. C o nsolida-se, afin al à c u s ta d a deform ação (...) d a V erdade q u e a im p u lsio n a ra (...) e te rn iz a d a em p ra ç a p ública, n u m a e s tá tu a de se u criador. (...) Jo rg e , n ã o su p o rta n d o a visão d a p ró p ria im agem p etrificad a em m e n tira , [destrói e s s a im agem com d u a s b om bas.] C o nsiderado, p o r isso, u m tra id o r ao regim e que n a s c e ra do se u so n h o id ealista, é c o n d e n a d o à m orte. (Coelho, 1982: 273).

E s ta in trig a é, c o n tu d o , d im in u ta re la tiv am en te à to ta lid a d e d a n a rra ç ã o , pois, em b o ra o jogo d u a l do tem po seja u m elem ento e s tr u tu ra n te no ro m an ce, o su p o sto tem p o p re s e n te alarg a-se, à m a n e ira p ro u s tia n a , a tra v és de u m alo n g am en to do fim d a ta rd e e do final do dia, n a s v é sp e ra s d a execução, d an d o azo a que se d esd o b rem to d a s a s rem em orações e reco rd açõ es onde o esp aço é fu n d a m e n ta l. D este m odo, como a rg u ta m e n te a p o n to u Nelly N ovaes Coelho (1983: 277), “são p rin c ip a lm e n te os elem en to s do espaço (...) que no ro m a n c e vergiliano re sp o n d e m p ela e ssen cialid ad e d a “m e n sa g e m ” a ser tra n s m itid a e pelo sim bolism o la te n te n a n a rra tiv a .” Se, rela tiv a m en te ao ro m a n c e Alegria Breve, a a u to ra e le n c a ra a Neve, a M o n tan h a, a C asa, a M adeira, o Frio, o Grito, o Cão e a M orte com o p rin c ip a is elem en to s sim bólicos, j á re la tiv am en te a Nítido Nulo, m o s tra com o a Luz n ítid a s u b s titu i sim b o licam en te a E sc u rid ã o de Alegria Breve. E, c o n q u a n to se m a n te n h a o te m a d a a n g ú s tia e d a q u e stio n aç ão do ser no “p lan o m etafísico ”, d e sta vez é d a d a a c re sc id a im p o rtâ n c ia ao “p lan o do e x isten te ”, ao p lan o d a h isto ric id a d e h u m a n a . (Coelho, 1983: 276). N este sen tid o , Jo rg e é m a is u m dos p ro ta g o n ista s de* Vergílio F e rreira configurado como “h o m em c o n flitu an te e n tre a racionalização e a vivência 17

M aria Jo ã o Sim ões

d a s re a lid ad e s, ou e n tre a ideia e a ação. O u a in d a (e acim a de tudo), o hom em em face a b so lu to N ad a que a m e a ç a a s u a p re c aried a d e h u m a n a (Coelho, 1983: 274). D entro d e s ta lógica, em Nítido Nulo, é possível id entificar v ários e sp a ç o s sim bólicos que são ta n g en c ia is a elem entos sim bólicos ou que com eles se in te rc e p ta m ou com binam . De en tre eles, so b re p u ja a espacialidade sim bólica d a solidão fruto (ou consequência) d a condição do hom em com o ser p e n sa n te . E s ta esp acialid ad e é re p re s e n ta d a por m ú ltip lo s espaços: a p risão , d esd e logo, m a s, ta m b é m , a s c a s a s g ra n d e s s e n tid a s com o in ó sp ita s pelo h o m em (seja ele crian ça, h o m em m a d u ro ou j á m a is velho), m a s so b re tu d o a solidão no m eio de m u ita gente — solidão que atinge o p ro ta g o n ista Jo rg e e ta m b é m o n a rra d o r, os q u a is, no m eio de m u ita s p e sso a s veem o esp aço que os ro d eia de m odo a b ism al e diferente: Abro a ja n e la p a ra o esp aço n o c tu rn o . Um m om ento quedo-m e a o lh a r a cidade, s u s p e n s o do se u ru m o r. R u m o r confuso, a la s tra p o r sobre o s p réd io s ilu m in ad o s, u m céu a g a sa lh a com o u m cobertor. Solidão p ro teg id a — o segredo d a s g ra n d e s m etrópoles. Solidão ag rav ad a. Perto e longe, os o u tro s, p re se n ç a an ó n im a, a u s ê n c ia m aior. Suplício de T àn talo (...). (Ferreira, NN, 1983: 73).

É e s ta condição de isolam ento que im prim e a to n alid ad e trá g ic a a o s ro m a n c es vergilianos, onde o hom em , cônscio de si próprio, se e n c o n tra só e n tre os h o m en s. Por isso a im p o rtâ n c ia sim bólica do grito que vem d a s p ro fu n d ez as do ser. É a ssim que Jo rg e, m a rc ad o pelo “signo do [seu] destin o de solidão” (idem, 290), grita: “ — Q uero e s ta r só ! atroo o m u n d o todo com o m eu u rro . — Q uero e s ta r só. SÓ! SÓ! (idem, 242). No caso do p ro ta g o n ista , a solidão é, pois, co n se q u ê n cia d a fa lta de 18

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e n ten d im en to dos o u tro s a c e rc a d e ste seu a u to q u e stio n a m e n to , m as ta m b é m a n e ce ssid a d e in d iv idual de c o n sta n te interrogação. Daí o anseio de u m o u tro espaço — o espaço aberto (em c e rta m e d id a sem e lh a n te à noção de “re sp ira ç ã o ” de J e a n Luc Nancy). A m a rc a r este espaço su rg em vários elem entos: a ja n e la (seja ela a do c a sa rã o de Melo, de onde se vê a s e stre la s, seja ela a d a p risã o que, e m b o ra com g rad es lhe perm ite ver o m ar) e a p ra ia . O espaço d a p ra ia a b re -se a m últip lo s elem entos: A p ra ia e s tá d e s e rta n a e x te n sã o d a a re ia b ra n c a , n a solidão a b s o lu ta , a n te rio r à H istória. A nterior e p osterior, no fechado círculo de silêncio — u m a tro m p e te no a r. O m a r e sp elh a-se em m iría d e s de reflexos, m ultíplice aleg ria tré m u la , sin a is n u lo s, irrita e n u la , os m e u s olhos trem em . (Ferreira, NN, 1983: 114)

No e n ta n to , o m a r tem em Vergílio F e rreira u m sim bolism o dúplice, pois ta n to pode significar a larg u eza d a lib erd ad e, como a m o n o to n ia d a re c o rrê n c ia d a s o n d as, ou, n a s p a lav ras do n a rra d o r, “a agitação infatigável e e s tú p id a d a s o n d a s ” (F erreira, NN, p. 259). O próprio a u to r se in te rro g a sobre e s ta duplicidade: “O ru m o r do m ar, como frém ito do e sp a n to — com o coro d a tra g é d ia? (idem, 178) Por isso m esm o, o m a r e a p ra ia , so b re tu d o pelo facto de p o derem ser in alcan çáv eis, podem c o n d u zir ao vazio e ao n a d a . O espaço do n a d a av o lu m a-se, então. Com efeito, h á em Vergílio F e rreira o s e n tir opressivo d a c o n sta n te in terro g ação sem re s p o s ta s definitivas e d a deso lação a d v in d a do facto de, p a ss a d o o breve fulgor de u m a possível ilu m in ação ou de u m a “a p a riç ã o ”, su rg ir, de novo, o o b scu recim en to d a ig n o râ n c ia e d a in terro g ação . 19

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A ssim se vai d e se n h a n d o esse o u tro topos, e sse o u tro lu g a r-a s su n to que é o espaço do ‘n a d a ’, q u e vem d a co n sciên cia do a b su rd o d a vida, do esg o tam en to do ser. “É u m a p le n itu d e do avesso feita do próprio vazio” {idem, 278), pois “É preciso c h eg a r ao fim p a ra s a b e r de tu d o ”, sab e n d o que j á n ã o se tem fu tu ro e que tu d o se esgotou (idem, 283). É e ste o po n to a que chega o n a rra d o r fundido in te rm ite n te m e n te com o a u to r j á que a si m esm o se c h a m a Vergílio F erreira, m esclan d o - se com a situ a ç ã o do p ro ta g o n ista preso. O ra, este e m b u tid o g era a identificação com o p ro ta g o n ista q u e vê o seu fim ap ro x im a r-se e fica o lh ando a p ra ia d e se rta ; de m odo sem e lh a n te ta m b é m o n a rra d o r vê esfu m arem -se a s s u a s reco rd açõ es deixandolhe a p e n a s u m la stro a b su rd o d a vida vivida e a solidão onde cam p eia a p e n a s o “eu e a luz” e tu d o fica “Nítido N ulo”, n u m a “alegria n u la ” (idem, 283). P a ra este niilism o concorre o espaço fech a d o , o espaço do e n c la u su ra m e n to . O espaço fechado e asfix ian te, que, em m u ito m o m en to s, pode se r o esp aço d a “a b s u r d a ” cidade na sua “irred u tib ilid a d e geom étrica, na previsibilidade a rtic u la d a do se u m e ca n ism o ”3 (Ferreira, NN, 1983: 179), é, no ro m an ce, so b retu d o , o espaço d a p risão , m a s, m a is gen ericam en te, é o esp aço do sufoco, onde fa lh a a re sp ira çã o . A p risão , com a s u a sim bólica grade, é, como F o u c a u lt a c e n tu o u , u m espaço de poder. Como explica D eleuze, n a n o v a abordagem sobre o p o d er e s u a relação com o espaço 3 S o b retu d o Lisboa em d ia de nevoeiro, pois n o rm alm en te “a cidade é cla ra ”, n a s u a irre d u tib ilid a d e geom étrica, n a previsibilidade a rtic u la d a do se u m e c a n ism o ” e fica “a b s u r d a ” e fa n ta sm á tic a no nevoeiro, m o stra n d o “a s faces e s tr a n h a s d a s p e s s o a s q ue p a ssa m , co rro íd as de fan tá stic o , in c e rta s, p a s s a m n u m jogo de d esen co n tro , e sc o a d a s de alu cin a ç ão , cegas, flu tu a m , c o ta d a s n a s raízes do certo e do provável.” F erreira, NN: 179-180) 20

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real c o n cretiz a d a em Vigiar e Punir, F o u c a u lt m o s tra que o p o d er “é m en o s u m a p ro p ried a d e do que u m a e stra té g ia ”, sen d o os se u s efeitos atrib u ív eis “a d isp o siçõ es, a m a n o b ra s, a tá c tic a s, a té c n ic a s, a fu n c io n a m e n to s”, u m a vez que, p a ra F o u cau lt, “m ais do que se p o s su ir o p o d er exerce-se, n ão é privilégio adq u irid o ou co n serv ad o d a classe d o m in a n te , m a s o feito to ta l d a s s u a s posições e stra té g ic a s” (apud D eleuze, 2005: 41). U m a form a de lib ertação ou de fuga à asfixia do e n c la u s u ra m e n to é a rem em o ração de c en a s, m o m en to s que se p resen tificam e se to rn a m p re s e n te s q u a n d o se m o s tra u m a “re p re se n ta ç ã o ” do espaço do in sta n tâ n eo ou q u a n d o se d e se n c ad e ia u m espaço do in sta n te recriado. O prim eiro su rg e p ela utilização d a re p re se n ta ç ã o fotogràfica, freq u en te n a s o b ra s do escrito r, a q u al serve p a ra m a rc a r u m a p re s e n ç a q u e p e rd u ra p a ra além do p a s s a r do tem po e que p e rseg u e o n a rra d o r, ro n d a n d o fa n ta sm a tic a m e n te de m odo obsessivo p a ra depois se im por com o lam pejo p resen tificad o r. Isso aco n tece em Nitido Nulo com a s fotografias dos avoengos e n g ala n a d o s n o s s e u s tra je s dom ingueiros ag o ra a n tiq u a d o s. E s ta u tilização d a fotografia re a p a re c e depois em v á ria s o b ra s v erg ilianas com u m a fu n ção id ê n tic a que é a de m o s tra r e de expor, com o sa lie n ta J e a n -L u c Nancy: In sta n tâ n e o : foto: u m espaço de tem p o exposto. Aqui, o tem p o é ele m esm o espaço. E sp aço de tem po: a b e rtu ra de u m topos n o p re se n te . O p re se n te é o desvio, a a b e rtu ra . Não h á sen ã o p re se n te , ou a n te s , n ã o h á sen ão e ste a fa sta m e n to do p re se n te , d a s u a v in d a ex te m p o râ n e a. N ada p a s s a , a m en o s que te n h a j á p a ssa d o , ou e ste ja a in d a p o r vir, e que, p o r co n seq u ên cia n ão seja. S om en te a p ró p ria vinda tem lu g ar. E la tem lugar, ela esp a ç a . E sp aço de u m a vin d a, e de u m a ida. V ai-e-vem no e sp a ç a m e n to do p resen te: é todo o p e n sa m e n to , to d a a existência. 21

M aria Jo ã o Sim ões

(Nancy, 2008: 95)

M as em Vergilio F erreira o in s ta n tâ n e o pode m a n ife sta r-se a in d a com o im agem g ra v a d a n a m em ória, ou, dito de o u tra form a, com o a m em ó ria de u m a im agem a d s trita a u m espaço, pois n e la a s fig u ras e stã o re tid a s n u m d eterm in ad o esp aço re ite ra d a m e n te relem b rad o , d e se n h a n d o u m a espécie de espaço do in sta n tâ n eo evocado ou recriado. A ssim acontece com a evocação tra u m á tic a d a p a rtid a dos p a is — e s s a ferida a b e rta o b sessiv am en te re c o n ta d a em Nítido Nulo, m a s q u e re s s u m a em m u ita s o u tra s o b ras com o u m leitm otiv obsessivo. E m Nítido Nulo, e sta m em ó ria é a s s u m id a explícitam en te com o um in s ta n tâ n e o , pois o a u to r diz: “T enho este in s ta n tâ n e o fotográfico n a m in h a com oção”, descrevendo-o d este m odo: E m N ovem bro (...) m e u p ai lá p a rtiu . Ia à frente (...) p a ra depois m in h a m ãe se in s ta la r. E a m in h a irm ã — n u n c a os am ei. O u foi h á ta n to tem po, q u e é com o se n u n c a . N unca am ei n in g u ém — q u em é q u e m e a m o u ? Amei sem p re to d a a gente. M as de longe (...). M as a v e rd a d e é q u e p o r N ovem bro ou D ezem bro — revejo-o d esd e a m in h a a ltu r a de e n tã o q u e n ã o chegava a u m m etro, creio. E a ssim , o q u e m e le m b ra é só o b a ú de la ta e a m ão dele a seg u rá-lo su sp e n s o . D evia h a v e r sol. (...) M as u m a c e rta ligeireza do m eu p ai tra n s p o n d o o p o rtão do q u in tal. Aí o vejo. Só, só aí. E u m certo a r tolhido em m im , devia e s ta r frio. T enho este in s ta n tâ n e o fotográfico n a m in h a com oção. V êem -se im óveis a s p e rn a s do m e u pai, a b e rta s n a p a s s a d a , o bocado inferir de u m b raço e a m ão a p a n h a n d o a arg o la do b aú . (vejo-o n e sse in s ta n tâ n e o e depois n ã o vejo m a is n a d a . Podia vê-lo m a is a d ia n te no ân g u lo d a ru a . E não . H á a p a s s a d a a d o b ra r o po rtão .e depois n ã o h á m a is n a d a . E n tre a p a rtid a dele e a de m in h a m ãe, h á u m esp aço vazio. (Ferreira, NN, 1983: 138-9)

Há, n e s ta im agem , u m a com posição em que até o 22

A E sp ac ia lid a d e n a O b ra de Vergílio F e rre ira

m ovim ento do p a rtir su rg e re p re se n ta d o n a p a s s a d a , como n u m q u ad ro . A p a s s a d a , sím bolo d a “id a ” e d a “p a rtid a ” e o p o rtã o sím bolo d e ss a diferença do que e s tá ‘p a ra lá ’ do m u ro do q u in ta l d a c a s a rela tiv a m en te ao que e s tá ‘p a ra c á ’ do p o rtã o — a casa, sím bolo de abrigo e de in tim id ad e, de acordo com a co n h ecid a p ro p o s ta in te rp re ta tiv a de B ach elard . P a s s a r o p o rtão c o n stitu i u m rito de p a ssa g e m que o em ig ran te (neste caso, o pai) te m de tra n s p o r — rito do q u a l o filho, d e m asiad o p eq u en o , a p e n a s a lc a n ç a o sen tid o d a p a rtid a , fixando-a tra u m a tic a m e n te como instante. D este m odo, “O in s ta n te n ã o é tem po: m a s tópica, topografia, c irc u n stâ n c ia , circ u n sc riç ã o de um a g en ciam en to p a rtic u la r de lu g a re s, a b e rtu ra s , p a ssa g e n s. Fotografia e sc rita de lu z ”, conform e a c e n tu a Je a n -L u c N ancy (2008: 95). Não s e rá p o r acaso, en tão , que os p ro ta g o n ista s de Cântico Final e de N a Tua Face são p in to res, pois os p in to res são fixadores de in s ta n te s . Aliás, como d e sta c o u Luís M ourão, o escrito r afirm a: “As ‘h is tó ria s ’ dos m e u s livros são d esd e h á m u ito d a d a s p o r m a n c h a s com o u m a p in tu r a .” (apud M ourão, 2003: 289). E s ta s im ag en s, que se im põem ao escrito r, deflagram a u m estím u lo evocativo q u e pode se r u m a s e m e lh a n ç a de lu z ou u m a h o ra do dia, ou o som de u m tro m p ete, ou a p e n a s u m a voz, fazendo com que e ss a s im ag en s “d e sç a m ” im a g in a ria m en te à re tin a e se so b re p o n h a m à visão do n a rra d o r. Vergílio F e rre ira e stá , aliás, bem co n scien te de como a evocação se im põe su b ita m e n te (num fenóm eno que se re ite ra , su rg in d o este excerto, p o r exem plo, em 1983, em Conta-Corrente III, e n o v am en te n u m texto de m aio de 1990, em Conta-Corrente - n o v a série - II) : 23

M aria Jo ã o Sim ões

S ábado, 17 - setem b ro C ontei h á d ia s (ou n ã o contei?) a sú b ita im agem que m e assaltou de u m a ta rd e em Évora, de o liceu à ta rd e, já p erto do N atal, e os cân tico s claro s de ra p a z e s re p e rc u tin d o no espaço do clau stro . M as já de o u tra s vezes eu referi o p o d e r d e evocação que têm p a ra m im , c e rta s h o ra s do d ia em c e rta s esta ç õ es do an o , com o P ro u st refere o s a b o r d a m ad elein e e o u tro s m otivos. E rep aro ag o ra que é fu n d a m e n ta lm e n te isso q u e m e d e se n c a d e ia o evocar. Lem bro a ssim d a in fân cia em Melo so b re tu d o do Verão à h o ra de u m a g ran d e lu a n a sc e r. O u n a G u a rd a , co b erta de neve, o a r co alh ad o e gélido n a face ou a s m a n h ã s su b ita m e n te d esco b ertas n u m g ran d e nevão. O u em C oim bra u m tim b re de g u ita rra ab rin d o u m a névoa de legenda. Ou em Évora, além d a s ta rd e s já referidas, o m orm aço d a s ta rd e s de verão em exam es. Ou no Liceu C am ões de Lisboa, a m a n h ã de O u tu b ro , com u m a luz lím p id a e p e q u e n a e os p lá ta n o s (?) dos p átio s desfazendo-se d a s folhas m o rtas. T oda a v id a a ssim a m a rq u e i de c e rta s h o ra s de c e rta s estaçõ es p a ra o p o d e r evocador de u m dia. M as o q u e é e s tra n h o é que n u n c a eu reg istei e s s a s h o ra s no tem po de aco n tecerem . M as q u a lq u e r co isa d e la s m e m a rc o u e ficou g u a rd a n d o o in sta n te de em ergirem d a h o ra em q u e n a sc e ra m . E u m a vez m ais p en so que u m a vida in te ira se re d u z a b reves m o m en to s de ser. (Ferreira, CC, III, 1983). (Itálico aduzido).

Se u m a lu m in o sid a d e, u m som , u m cheiro podem c o n stitu ir m otivos q u e d e se n c ad e ia m e s s a evocação e a p re sen tificam h á q u e e s ta r aten to a e sse sin a is — ao ‘Signo S in a l’ — e é d e s s a a cu id a d e que se tece a e sp ecialíssim a sen sib ilid ad e vergiliana, cab en d o ao a rtis ta a re c o n stru ç ã o a rtís tic a d e sse s estím u lo s — ta re fa de que o esc rito r te m agudà co nsciência, pois afirm a: 24

A E sp acia lid ad e n a O b ra de Vergili n F e rre ira

“E n tre te n h o -m e disp erso n e s ta rede de sin ais, a m em ó ria p a s s a e n tre eles.” (Ferreira, NN, 1932: 169). Há, a ssim , h o ra s p ro p ícias ao d e se n c a d e a r d a s m em ó rias e e n tre elas so b re ssa i a h o ra do final do dia, p ro p ic ia d o ra d a s evocações e do rem em o rar, que é c o n sid e ra d a u m a “m á h o ra ” p o rq u e este afluir d a s m em ó ria c o n stitu i algo que tra g ic am en te se im põe sem se p o d er evitar: A ta rd e desce, u m a r recolhido. Refluxo d a v id a a si m esm a, é u m a m á h o ra . H ora de a s m em ó rias sa íre m dos b u ra c o s com o a s p ro s titu ta s . (...) E n tã o lem bro-m e de m u ita co isa ao m esm o tem po que n e s s a d eso rd em se estilh a ç a , p u lv erizan d o -se em n eblina. (Ferreira, NN, 1983: 215-216)

P a ra além d a m etáfo ra d a rede a q u i em evidência, n e s ta d eso rd em su rg e ta m b é m a m e tá fo ra do tu rb ilh ã o ou do carrocei, ou, como diz o a u to r, “o que n a le m b ra n ç a vai ro d an d o à m in h a volta com o u m carro cei” (idem, 257). E n tre ta n to , convém s u b lin h a r o m odo como d a cap ta ç ão dos sin a is se p a s s a à a rte de os gravar. T rata -se de u m p ro cesso que co n d u z àquilo que H elder G odinho id en tifica a tra v é s do conceito de ‘p e rm a n ê n c ia ’. E ste e stu d io so d a o b ra do esc rito r p a rte d a afirm ação “O real que s o b ra de todo o re a l é o ú n ico que re a lm en te é ”, in s c rita n a o b ra Em Nom e da Terra, p a ra explicitar esse conceito de ‘p e rm a n ê n c ia ’: Só q u e e sse real q u e so b ra n ã o se deix a a p ris io n a r no tem p o que p a s s a , n a te m p o ralid ad e do q u o tid ian o q u e corre p a ra a m orte. E, p o r isso, n a a n g ú s tia d a m o rte q u e c o ro a rá o d e se n ro la r d a tem p o ra lid a d e e n a certeza de q u e a v ida p e rm a n e c erá p a ra além d a m o rte do indivíduo, V. F e rre ira foi te n ta n d o definir a P erm a n ê n c ia , e n c o n tra r a P alav ra q u e a d isse sse . Ju lg o que e ssa p ro c u ra , q u e vai sen d o c a d a vez m a is co n scien te, foi o v erdadeiro m oto r q u e levou o a u to r a escrever, a te n ta r c ria r n a a rte a 25

M aria Jo ã o Sim ões

P e rm a n ê n c ia q u e se o p o n h a ao d e c u rso p a ra a m orte, u m a vez que defini-la n ã o e ra possível. T en to u , p o r isso, c o n stru í-la a tra v é s d a estética, u m a vez q u e to d a a arte , com o o n o sso a u to r in c a n sa v e lm e n te o rep ete, su p era o quotidiano onde o tem po a p e n a s p a s s a , e abre-o a d im en sõ es d esse real que so b ra de todo o real. (G odinho, 1995: 126). (Itálico acrescen tado).

Não a d m ira pois que o escrever e a e se n ta b em como o p e n s a r o cu p em u m lu g a r p ro em in en te n a o b ra vergiliana. A im p o rtâ n c ia que lh es é con ced id a rev ela-se logo a p a rtir dos títu lo s escolhidos p a ra a s s u a s o b ras, com o ap o n to u in icialm ente M aria Alzira Seixo e como a p ro fu n d o u depois F e rn a n d a Irene F onseca, afirm ando que o e scrito r n ã o só a trib u ía u m a g ran d e im p o rtâ n c ia aos títu lo s com o tin h a a a rte de os e n c o n tra r. S egundo F e rn a n d a Irene F o n seca, o e sc rito r cultivou até ao p o rm en o r gráfico a e sté tic a dos títu lo s, algo que se to rn a evidente no c u id a r d a form a de divulgação editorial, n o m e a d a m e n te no a lin h a m en to dos títu lo s p e rte n c e n te s género diarístico, observável atrav és do seg u in te gráfico dos títu lo s a p re se n ta d o p o r e s ta a u to ra (Fonseca, 2003: 496): DIÀRIO CONTA-CORRENTE 1 (1980) CONTA - CORRENTE 11( 1981 ) CONTA- CORRENTE 111(1983) CONTA- CORRENTE IV (1986) CONTA- CORRENTE V (1987) PENSAR (1992) CONTA- CORRENTE - nova serie l (1993) CONTA- CORRENTE - nova série lí ( 1993) CONTA-CORRENTE-nova sene Ü1I (1994) CONTA- CORRENTE- nova serie IV (1994)

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A E sp acia lid ad e n a O b ra de Vergílio F e rre ira

A o b ra Escrever, p u b lic a d a p o s tu m a m e n te p o r H elder G odinho, irá o c u p ar aquele espaço vazio, pois, seg u n d o este estu d io so , o escrito r colocou incialm en te como h ip ó tese o título P ensar II, m a s, depois, su b stitu iu -o p o r Escrever, co n seguindo a ssim u m m ais in te n so p aralelism o sim bólico. O espaço d a escrita a b u n d a em Vergílio, pois, a reflexão sobre a e sc rita e sobre o escrever é u m te m a o b sid ian te n a s s u a s o b ras, onde o e sc rito r d e c a n ta to d a s a s fases d a e sc rita , põe a n u o sofrim ento e o p ra z er g erad o s p ela e sc rita e m o s tra a s h e sita ç õ e s e a s d ú v id as que ela a rra s ta consigo. Há, p o r isso, a d e m o ra n a s p a lav ras, p e rg u n ta s sobre o seu próprio significado (não “in ó cu o ”, lem bre-se), ab rin d o a ssim espaço p a ra o sa b o re a r d a escrita. Por isso se revelam em Vergílio F e rreira a s c a ra c te rístic a s que Jea n -L u c N ancy n e la identifica q u a n d o n o s diz: ... eis a escrita, eis o gesto esp acial, esp açoso, e sp a ç a n d o por excelência, e n treg u e ao tra b a lh o forçado d a o b ra m o n u m en tal: a a rte com o m em orial — em vez de se r e te rn id a d e. (Nancy, 2008: 94)

D ra m a tica m e n te viveu Vergílio F e rreira este tra b a lh o de escrito r que, p a ra ele, é m u ito m a is que u m oficio — é u m a fo rm a de viver: 17 - setem b ro (sábado) P orq u e a q u e stã o é esta: u m d ia em q u e n ão escreva, p arece-m e u m d ia e sb a n ja d o , u m d ia q u e n ã o p ag u ei, p o r se r u m dia de vida, em q u a lq u e r coisa q u e isso equilibre e q u e n o m eu caso é escrever. E todav ia, a p a rte m aio r d esse d ia vivido é u m a fracção in ú til do viver. N essa fracção in ú til o q u e vivem os e p e n sa m o s é b aix am en te ridículo. (Ferreira, CC, I, 1998)

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A inda que p a rte in te g ra n te d a vida, a e sc rita é u m a e sc o lh a s u a , e, a ssim sendo, ela ab re o espaço d a escolha. M ais a in d a, n ã o só a e sc rita fu n c io n a como u m esp aço de e sc o lh a p a ra Vergílio F erreira, como ela ta m b é m é v e rd a d eiram e n te u m a e sc o lh a p a ra c ria r esp aço , é u m a e sc o lh a que abre espaço. M as, esco lh er a b rir o esp aço d a e sc rita é u m a esc o lh a terrível, pois é sem e lh a n te a a b rir u m a caixa de P a n d o ra — n ã o e stã o lá to d o s os m a le s m a s e stã o lá to d a s a s interrogações. S abe-se que a escolha é u m a noção c ru cial no p e n sa m e n to sa rtria n o . Nos s e u s tex to s, a id eia de esco lh a n ã o só se re p e te in c an sa v elm en te como e n g e n d ra todo o raciocínio d e co rren te de u m m u n d o onde o h o m em não c o n ta m ais com D eus e tem de a rc a r com a tre m e n d a re sp o n sa b ilid a d e d a s s u a s esco lh as. Como diz o filósofo: Eu c o n stru o o u n iv e rsa l escolhendo-m e; co n stru o -o c o m p reen d en d o o projecto de q u a lq u e r o u tro hom em , seja q u a l for a s u a época. E ste a b so lu to d a esco lh a n ã o su p rim e a relatividade de c a d a época. O q u e o existen cialism o to m a a peito m o s tra r é a ligação do c a rá c te r ab so lu to do co m p ro m isso livre pelo q u a l c a d a h o m em se realiza, re alizan d o u m tipo de h u m a n id a d e . (Sartre, 1978: 247).

M últiplas p e rso n a g e n s de Aparição, A té ao Fim, Para Sem pre e o u tra s se in te rro g a m sobre a s s u a s esco lh as, a c e n tu a n d o o n a rra d o r a re sp o n sa b ilid a d e in s c rita n e s s a s opções. No caso do ro m a n c e Nítido Nulo, q u e stio n a -se o b sessiv am e n te a esco lh a da ação do h o m em revolucionário, q u e stio n a -se a e sc o lh a de u m a ação que crê im p la n ta r p oliticam en te u m a verdade. M as, u m a vez e s ta verd ad e to rn a d a “u m a m a n e ira ” ou “u m m odo de p e n s a r”, ela inibe u m novo p e n sa r. D ra m a tica m e n te Jo rg e n ã o se revê n a s u a e sc o lh a a p a rtir do m o m en to em que 28

A E sp acia lid ad e n a O b ra de Vergílio F e rreira

ela p a s s a a ser u m a v erdade im p o sta aos o u tro s. O ra, este m odo de p e n s a r que e n g re n d ra a crítica d a ação é a p o n tad o como u m a a titu d e rea cio n á ria , pelo que Jo rg e é a c u sa d o de “reacionário, u to p is ta , s a b o ta d o r”. Porém , n u m in trig a n te e d e sn u d a d o diálogo, o p ro ta g o n ista in te rp e la o a u to r e diz-lhe que, e n q u a n to ele se e stá m a rim b a n d o p a ra este rótu lo “você, Vergílio Ferreira], ra ía ­ se. Tem in s ó n ia s.” (Ferreira, NN, 1983: 298). E scrito em 1969 (em bora p u b licad o em 1971), este ro m an ce pode se r lido como u m a posição c o n tra a ação c o m u n itá ria — j á p a ra n ã o falar d a ação c o m u n ista e, de facto, certo s críticos a ssim o leram . Vergílio F e rreira sen tiu e sta le itu ra e e s ta a cu sa ç ã o de form a d ra m á tic a, n eg an d o que a s u a in te n ç ão fosse re a cio n ária. Na realid ad e, e sta é u m a le itu ra a p re ss a d a , so b re tu d o se se a te n ta r n a am b ig u id ad e e no sen tid o paródico com que se a p re s e n ta o d iscu rso político proferido pelo chefe político re p re se n ta d o p ela p erso n ag em Teófilo. A esco lh a de u m v o cab ulário p ro p o sita d a m e n te arcaico p a ra o seu d iscu rso , e a d e n ú n c ia do c a rá te r m a n ip u la d o r e dem agógico de u m político feito P residente pelos c irc u n sta n c ia lism o s, devem, com efeito, ser v istos como u m a p a ró d ia d isfa rç a d a ao d iscu rso to talitário do regim e vigente em Portugal. A ssim , n e ste ro m an ce, n ã o d o m in a só o conflito ideia - ação, u m a vez que (para além disso e por sobre isso) a v u lta nele o peso de s u s te n ta r e s ta d u a lid a d e como dilem a, de não p re sc in d ir deste n em de q u a lq u e r o u tro dilem a, ou seja, a v u lta a re sp o n sa b ilid a d e de c o n tin u a r a q u e stio n ar. É aq u i que se in s ta u ra esse o u tro espaço: o espaço do p en sa r. Como é conhecido Vergílio F erreira explicita re ite ra d a m e n te a im p o rtâ n c ia do p e n s a r — é u m a d as tra v e s m e s tra s do tipo de ro m a n c e d a s u a p referên cia e 29

M aria Jo a o Sim ões

que ele próprio classifica como ro m an ce-p ro b lem a. No texto “S itu ação a tu a l do ro m a n c e ” esclarece que e ste n ã o é u m ro m a n c e de tese, m a s sim u m ro m a n c e que obriga a p e n sa r: A ssim u m rom ance-problem a n ã o é u m a exposição de id eias e m u ito m e n o s u m rom ance d e tese. P orque u m ro m an ce não d e m o n stra . A d e m o n stra ç ã o fala a p e n a s a voz d a inteligência. M as o ro m an ce rom ance-problem a v io len ta o e sp e c ta d o r no seu in terro g ar, força-o a c o m p a rtic ip a r d a s u a p ro c u ra . Tal p ro c u ra , a ssim , fala à d e n sid a d e h u m a n a e n ã o a p e n a s à tra n s p a rê n c ia m e n ta l ou à q u a se g ra tu id a d e de u m jogo. (Ferreira, EI, I, 1990: 219)

R ep are-se como e s ta a c u d ía n te c o n sc iê n cia d a d e n sid a d e do p e n s a r é algo v e rd a d eiram e n te a tu a l n a m e d id a em q u e im plica a ‘d e m o ra ’ n a p a la v ra que deixa de ser tra n s p a re n te . E, sen d o e s ta d e n sid a d e u m a ‘d e m o ra ’, ela se a ss e m e lh a à noção de ‘d u ra ç ã o ’ visível n a s reflexões so b re o p e n s a r deste n o sso co n tem p o rân eo filósofo que é Je a n -L u c Nancy: P en sar: u m a velocidade de q u e n e n h u m tem po pode d a r co nta. E p o rta n to , n em u m a velocidade. U m desvio, u m a d e s - locação: eis u m o u tro lu g ar, u m o u tro topos. O p e n sa m e n to q u e faz gala do d e se n ro la r do d isc u rso (d iscurso: p a la v ra in s ta la d a n a d u ra ç ã o , q u e in s ta la a d u ração : a lei do d isc u rso é a de n ã o acab ar) fu rta -se à in s ta n ta n e id a d e do seu lu g a r m a is próprio. (Nancy, 2008: 94).

E s ta form ulação filosófica a ju d a a e n te n d e r e ss a c a ra c te rístic a dos ro m a n c e s vergilianos que resid e no facto de o d iscu rso dos n a rra d o re s (quase sem p re p róxim os do au to r) se in s ta la re m n e ste regim e de d u ra ç ã o d a p a lav ra onde os raciocínios se e n ca d e iam u n s n o s o u tro s 30

A E sp acia lid ad e n a O b ra de Vergüio F erreira

in term in av elm en te, pondo a ssim em relevo o p róprio ato de p e n sa r. Ao longo de u m á rd u o cam inho, Vergüio F erreira alcan çou um a v erd a d eira a rte de a rtistic a m e n te re p re s e n ta r o p en sa r, de, em clave en g lo b an te, tra n sfo rm a r o p e n s a r em arte, ou seja, de m o s tra r a a rte de p e n s a r e s im u lta n e a m e n te gravar a rtistic a m e n te o p en sa r. Por isso, o escrito r pode dizer em Nítido Nulo: "... su p o n h o que a Arte é isso, o que so b ra do abalo prim eiro, d a revelação lu m in o sa de tu d o .” (Ferreira, NN, 1983: 257). J á m u ito s críticos se d e b ru ç a ra m sobre e s ta q u e stã o e m o stra ra m como a Arte é p a ra o e scrito r o ponto c u lm in a n te d a a rte de p e n sa r. N este novo século em que to d o s correm os c o n tra o tem po, e onde n em todos a ssu m e m a s e sco lh as feitas ou a fazer, a m en sag em de Vergüio, sem cair n u m p atern alism o m o ralista, pode e n sin a r-n o s, pelo m enos, a te r co n ciên cia d a dificuldade de lu ta r c o n tra u m p o d er c o n tro lad o r e vigilante d a s form as de p e n sa r, u m p o d er que, em b ru lh a d o n a s alegrias do c o n su m ism o , n o s im põe u m a form a de e sta r — e s s a m e n sag em é relev an te p a ra n o s dizer a p re m ê n cia de a b rirm o s u m espaço p a ra o p en sa r. P o d er-se-á concluir, n e s te sentido, que Vergüio F e rreira n ão é só u m ‘m a ître à p e n s e r’, n ã o é só u m artifice d e sse s que a b re m o esp aço -tem p o à p re se n ç a , é ta m b é m u m p ro fesso r no sentido m a is in te n so d a p alav ra, p o rq u e n o s e n sin a (nos e n sin o u a m uitos) com o podem os a b rir esse espaço se à a rte d ed icarm o s a n o s s a efém era vida. BIBLIOGRAFIA Coelho, Nelly Novaes (1983) E stu d o s sobre Vergüio F erreira, Lisboa, IN-CM. D eleuze, Gilles (1986) Foucault, Lisboa, E dições 70, 2005. 31

Maria João Simões

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A E sp acia lid ad e n a O b ra de Vergilio F e rre ira

K aw ara”, Cahier Philosophie de l’art, Cycle de conférences o rg an isées p a r le N ouveau M usée - In s titu t d ’a rt c o n tem ­ p o rain , coordonné p a r J . Cl. C onésa, dirigé p a r J.-L. M au b an t, C ah ier n° 6, 1997. Nancy, J e a n -L u c “T ech n iq u es d u p ré s e n t” - E n tre tie n avec B enoît G oetz, in Le PortiQue, Revue de philo so p h ie et de scien ces h u m a in e s, 3 | 1999 : T echniqu e et e sth é tiq u e h ttp s: / /le p o rtiq u e .re v u e s .o rg /309 S artre, J e a n P aul (1978) O E xistencialism o é um H um anism o, Lisboa, E ditorial P resen ça, 3 a ed. 1978 (trad, de L'E xistentialism e e st u n hum anism e, 1946).

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