A Espanha democrática: concessão do Franquismo ou impulso de sobrevivência da restaurada monarquia

June 1, 2017 | Autor: B. Marinho da Mata | Categoria: Democratic Theory, Political Science, Spain
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A Espanha democrática e o desígnio do Rei

Ensaio Bibliográfico em proposta da disciplina de Sistemas Políticos.

Outubro de 2015

Curso de Ciência Política e Relações Internacionais

Docente: Prof. Doutor Marco Lisi Discente: Bernardo Marinho da Mata

ÍNDICE  Introdução – p. 3  A Espanha democrática e o desígnio do Rei – p. 4  Conclusão – p. 7  Bibliografia – p. 8

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Introdução: O contexto da morte do General Francisco Franco a 20 de Novembro de 1975 espelhava com ironia o próprio estado de manutenção do regime político de cariz autoritário que dirigia ferreamente desde 1939: após intervenções cirúrgicas fracassadas que forçavam Franco à vida, as máquinas desligaram-se e Espanha acordou pelas mãos dos médicos do Franquismo para uma nova realidade política: um regime monárquico e um sistema parlamentar de inspiração ocidental. Com este parágrafo, enceto a introdução do ensaio que versa sobre o regime monárquico espanhol, restaurado em 1976, e parte da seguinte pergunta de partida: de que vontade e “partido” resulta a monarquia parlamentar espanhola: o do regime transacto ou de Don Juan Carlos como figura de uma etapa invariável e inevitavelmente nova? Com base nos autores consultados, é possível traçar duas hipóteses claras para uma resposta a esta questão: 1) a actual monarquia parlamentar espanhola é resultado de uma vontade intrínseca às facções mais brandas do Franquismo de reformá-lo e melhor enquadrar a Espanha no alvorecer europeu da terceira vaga de democratização, temendo pelo seu isolamento internacional, em que a figura do Rei, Don Juan Carlos, foi um mero instrumento político e simbólico que permitiu a condução do processo de transição com fundamento na legitimidade que o próprio Franco lhe tinha concedido ao designálo como seu herdeiro; 2) a opção partiu do próprio monarca como instinto de “sobrevivência tanto pessoal como dinástica”1, contornando as estruturas do regime Franquista com um conjunto de particularidades contraditórias que explorarei adiante. A crítica basilar em que se funda a construção deste Ensaio é a de que, independentemente da vontade que fundou o actual regime, os desafios que se colocam não só à monarquia espanhola como ao próprio conceito de Estado Espanhol são tão ou mais exigentes como aqueles que levaram os actores da transição democrática espanhola a concretizá-la. Isto, porque todos os edifícios políticos, por muito eficiente e conciliatória que seja a sua estrutura inicial, se tornam obsoletos à luz das exigências que são trágica ou ditosamente um dos inputs essenciais, como Almond bem apontaria,

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“(…) el monarca propiciara un cambio de régimen impulsado por su instinto de supervivencia, tanto personal como dinástico (…)”, POWELL, 2006, pp. 11.

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que fazem os sistemas funcionarem e, por seu turno, atribuem solidez aos regimes que os suportam.

A Espanha democrática e desígnio do Rei 1. A democracia em Espanha como vontade das facções mais brandas do Regime. Para compreender o desfecho do Regime Franquista, há necessariamente que compreender o seu início. A ascensão de Franco ao poder por meio da vitória da coligação nacionalista na guerra civil espanhola de 1936-1939 explica-se com, ao contrário do que se verificou na Alemanha com Hitler e na Itália com Mussolini, a convergência dos diferentes sectores conservadores da sociedade anteriormente derrotados pela II República em 1931, como sejam os monárquicos (desde os constitucionalistas aos tradicionalistas ou “carlistas”), os falangistas (herdeiros da concepção autoritária de governo de Miguel Primo de Rivera, a que se juntaram também os grupos de inspiração fascista e nacional-sindicalista, em 1933) e os católicos que viram no programa revolucionário de matriz socialista do governo da “Frente Popular” uma ameaça frontal à preservação dos seus interesses. O General Francisco Franco foi catapultado para a Chefia do Estado Maior do Exército Central por intermédio dos ofícios do Ministro Gil-Robles, líder da CEDA2, após o tumulto revoltoso conhecido como “La revolución de Octubre” de 1934 com a renovação das altas patentes do exército (leais às forças reaccionárias), cujo fim era a conquista do poder na hipótese de se verificar um progresso das forças de esquerda na prossecução do que os dirigentes da CEDA acreditavam ser a reprodução da Revolução Bolchevique Russa de 1917. O prestígio que foi granjeando no seio do exército espanhol e da própria elite financeira, agrária e industrial que eram o sustentáculo dos movimentos de direita supramencionados conduziu-o à posição de líder que reforçou com a oposição clara ao governo da Frente Popular e ao préstimo na condução do esforço de guerra dos nacionalistas ao longo do fratricídio que acabaria por vencer. 2

Confederación Española de las Derechas Autónomas – plataforma política de convergência de movimentos regionais de direita conservadora católica, cuja coligação com o Partido Agrário, Partido Republicano Liberal Democrata e Partido Republicano Radical constituiu o governo que foi deposto pelo Presidente Alcalá Zamora, pelos esforços desenvolvidos em torno da revisão da Constituição de 1931 (moderá-la politicamente e torná-la mais favorável à reversão do processo revolucionário com a inclusão de forças conservadoras no poder) levando à posterior eleição da Coligação de Esquerda, a Frente Popular, em 1936.

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A heterogeneidade política da coligação vitoriosa de que Franco foi orquestrador implicou que o seu regime autoritário, na perspectiva de Juan Linz, fosse forçosamente um “pluralismo limitado”, em que os grupos acima elencados da grande constelação que fazia o sustento do próprio Franquismo tinham um espaço considerado de presença e participação nas decisões do regime, desde que a autoridade do líder e a base da sua legitimidade de “herói de guerra” não fosse directamente questionada. É esta heterogeneidade e esse “pluralismo limitado” que possibilitam que uma facção mais moderada dentro do Franquismo, aquando do seu término com a morte de Franco em Novembro de 1975 possa tomar a vanguarda na transformação do próprio regime a partir do seu interior em virtude do que Felipe Agüero salienta como sendo a crescente burocratização do regime, a partir de meados dos anos 50, que fez com que os civis tivessem preponderância sobre os militares no plano da decisão política e com que estes últimos não tivessem outra hipótese que não a de permitir a transição democrática. Isto, porque constatou-se o fracasso das resistências no seio do regime autoritário português em manter a linha orientadora original de Salazar contra o espírito reformista de Marcello Caetano que, entre outros muitos aspectos, visava uma solução política para o conflito em África, o que atentava contra a matriz original do Estado Novo em que as colónias desempenhavam um papel-chave, com a revolução de 25 de Abril de 1974 e sua consequente radicalização. Somava-se a esta evidência a questão da sucessão de Franco por parte de Don Juan Carlos e da restauração monárquica como uma nova etapa que se observava inevitável. Esta percepção de inevitabilidade no seio do Franquismo permitiu não só a Adolfo Suaréz concretizar a transição pactuada, a partir de 1976, que levaria à constituição de 1978 como ao próprio reforço da intervenção do Rei na condução do processo. 2. A democracia em Espanha como necessidade de sobrevivência política do próprio Rei. Em Julho de 1969, Franco anuncia à Espanha em vias de desenvolvimento económico e de abertura ao exterior como seu sucessor político, Don Juan Carlos de Borbón, na Chefia do Estado como previa a Lei Orgânica do Estado de 1966. Todavia, o que se previa nesta era que Juan Carlos desse continuidade ao projecto de uma “monarquia autoritária, como meio caminho entre as monarquias absolutistas de antes e

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as monarquias parlamentares contemporâneas”3. Para assegurar-se disso, Franco em virtude do agravamento do seu estado de saúde nomeou o Almirante Carrero Blanco como Presidente do Governo em Junho de 1973, homem da sua confiança e da linha dura do regime, com o propósito de, caso falecesse, se cumprisse o seu desígnio de manter os princípios orientadores autoritários do regime, sem que o Príncipe pudesse sequer reagir-lhes. Carrero Blanco seria assassinado pelo ETA nesse mesmo ano, deixando a elite franquista em choque e sem capacidade de reacção perante o desaparecimento súbito e violento de uma das suas figuras-chaves, ao que se seguiu a nomeação menos consensual de Arias Navarro e a gradual deterioração da saúde do ditador. Em Julho de 1974, Juan Carlos é convidado assumir a chefia interina do Estado com oposição de Carmen Polo, a esposa de Franco e o segundo rosto do regime, o que vaticinava uma breve alteração das relações de poder no seio do regime e, sobretudo, uma transferência da real capacidade de influência do núcleo duro que assessorava Franco para os flancos moderados que viam no Príncipe a possibilidade de encetar um processo de transição que se exigia face aos desenvolvimentos desfavoráveis ocorridos em Portugal. A aliança entre Juan Carlos e os sectores moderados do regime franquista era desejável para ambas as partes, porém e mormente, para o Rei que seria aclamado logo em 22 de Novembro de 1975, após a morte do ditador. Isto, porque Juan Carlos tinha consciência de que, não dispondo da legitimidade de que Franco detinha para conduzir o regime que moldou integralmente à sua própria personalidade, tornar-se-ia “refém” 4 da elite franquista e da estrutura do poder que já não conseguir encontrar reflexo na sociedade espanhola de meados dos anos 70 com o aumento da classe média e da reivindicação de mais liberdades e garantias políticas dentro dos altos quadros do próprio regime. Apostar na manutenção do Franquismo seria um erro tão crasso como aquele que conduziu a Espanha a uma Guerra Civil em 1936 com a exclusão deliberada da CEDA do governo por parte do então Presidente da República, Alcalá Zamora. Só a democratização de Espanha permitiria a conservação da integridade territorial e política desta última, ao passo que o próprio Rei garantia, como é tese de Charles Powell, a sua “sobrevivência pessoal e dinástica”. Esta é, contudo, a mesma questão que se coloca na 3

“(…) una monarquía autoritaria, a mitad de camino entre las monarquías absolutas de antaño y las monarquías parlamentarias contemporáneas, (…)” in POWELL, 2006, pp. 11. 4

“De haber aceptado este destino, el joven rey se hubiese convertido en el rehén de una oligarquía renovada mediante cooptación por unas instituciones poco o nada representativas, cuyo fracaso o impopularidad habrían salpicado inevitablementeal propio jefe del Estado.” in POWELL, 2006, pp. 11. 6

actualidade ao seu sucessor, Felipe VI, e ao regime monárquico após a abdicação de Juan Carlos em 2014, sendo que, à semelhança do que aconteceu com Franco, também o regime e a própria transição democrática se estabeleceram muito em torno da personalidade do Rei. Até que ponto faz sentido a manutenção do regime monárquico em Espanha, quando o seu principal actor, Juan Carlos de Borbón, se afastou da sua chefia e contribui para o seu descrédito ao longo dos últimos vinte anos do seu reinado? Conclusão: Arguir que a democracia em Espanha é uma concessão do próprio Franquismo é cometer uma falácia, porque a primeira surge com ímpetos muito mais fortes do que o interesse da facção mais moderada do regime em reformá-lo como a radicalização da revolução em Portugal e a necessária abertura ao exterior que decorria do crescente investimento externo na indústria e agricultura espanholas a partir dos anos 60. O mesmo não se aplica, curiosamente, à restauração da instituição monárquica, porque esta efectivamente foi uma concessão do Franquismo em função do dever que este tinha para com o grosso da massa integrante da coligação que o fez vingar na guerra civil espanhola: os monárquicos católicos. Não teria havido Franquismo, caso não se fizesse sentir a resistência monárquica. Por isso, a transformação natural do regime com a morte do “Caudilho” teria necessariamente que passar por uma restauração da Monarquia, caso este quisesse persistir na vontade das suas elites. Contudo, e respondendo à minha pergunta de partida, a Monarquia só consegue, por sua vez, sobreviver à própria restauração com a reconversão da sua própria imagem e relação com os espanhóis, afastando-se do projecto autoritário que o Franquismo lhe queria impor e com o ímpeto de sobrevivência política pessoal do Rei Juan Carlos, a partir do momento em que coloca a Referendo de Dezembro sobre a Lei para a Reforma Política de Novembro de 1976, no qual estava implícito a própria legitimação não do regime monárquico mas de Juan Carlos como Chefe de Estado. O Rei aceitou referendar a sua legitimidade e não a do regime, como fez explicitamente Humberto II de Itália no referendo de 1945, Hoje, desta opção derivam todas questões que colocam em xeque a continuidade do regime monárquico em Espanha, a que se associa por força do ressurgimento dos nacionalismos catalão, galego e basco a continuidade da própria Espanha. 7

Bibliografia: 

AGÜERO, Felipe, “A Transição Democrática e os Militares em Espanha: Uma Análise Comparativa”, Nação e Defesa, nº 94 – 2ª Série, Instituto da Defesa Nacional, Verão de 2000, pp. 49-69;



COELHO, Mário Baptista, “As clivagens do sistema político espanhol da transição (1975-1985)”, Análise Social, vol. XXIV (101-102), Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1988, pp. 617-620;



JACKSON, Gabriel, “ La Republica Española y la Guerra Civil”, RBA Coleccionables, Madrid, 2005;



POWELL, Charles, “ El camino a la democracia en España”, Cuardernos de la España Contemporânea, nº 1, Instituto de Estudios de la Democracia, Universidad San Pablo, Diciembre 2006, pp. 9-25.

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