A Especificidade do Movimento Sufragista nos Estados Unidos da América

June 24, 2017 | Autor: Manuela Moreira | Categoria: Woman Suffrage, Feminism and Social Justice
Share Embed


Descrição do Produto

A Especificidade do Movimento Sufragista Feminino nos Estados Unidos da América

Manuela Moreira Fevereiro de 2011

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

A Especificidade do Movimento Sufragista Feminino nos Estados Unidos da América O presente trabalho visa explorar e dar a conhecer a Especificidade do Movimento Sufragista feminino, nos Estados Unidos da América. Para tal, é importante contextualizar este movimento no tempo histórico e no espaço geográfico donde ele irá emergir. Não se pretende apenas confinar o nosso trabalho ao movimento sufragista de per si, mas evocar o contexto histórico e geográfico que o antecede, dado que este é produto de um país novo e que ocorre na primeira república do mundo ocidental durante o século XVIII. Por outro lado, o tema em análise será interpretado numa perspectiva de História de Género, isto é, como diz Michelle Perrot : « (…) en prenant à bras-le-corps les événements tels que les révolutions ou les guerres, pour voire comment celles-ci modifient les rapports entre femmes et hommes.» (Perrot, 2004:20) Não se trata, pois, de dar a conhecer apenas as lutas e os movimentos que levaram à conquista do sufrágio feminino e o que este representa no âmbito dos direitos cívicos, conducentes à igualdade de direitos entre homens e mulheres, mas também de reconhecer que as conquistas das mulheres transformam as relações entre os sexos, trazendo para a esfera pública uma mudança de paradigma que alterará definitivamente o statu quo. 1. Contextualização histórica e geográfica O território que é hoje conhecido como os Estados Unidos da América pertenceu aos domínios britânico, francês e espanhol. A parte britânica, constituída por treze colónias, cujo território se estendia entre o que é actualmente o Maine para Norte e a Geórgia para Sul, declara a independência a 4 de Julho 1776, embora esta só seja reconhecida pela Inglaterra em 30 de Novembro de 1783. É sobre a realidade da união das treze colónias (ou destes “Thirteen United States”) que se começará a abordagem do trabalho que se pretende desenvolver, dado que é, também, nesta união, que está a génese do que constitui os actuais Estados Unidos da América, enquanto país livre e independente. Assim, o nosso estudo iniciar-se-á com o papel das mulheres durante o momento histórico que precede a declaração da independência e, a partir do qual, se desencadeia a Revolução Americana, que se desenrola nestas treze colónias, servindo de pano de fundo, para dar a conhecer a história das mulheres americanas e a importância que estas tiveram na construção de uma nação que se foi formando, expandindo e solidificando.

2. O papel das mulheres na Revolução Americana A população feminina no contexto espácio-temporal em que decorre a Revolução Americana, também designada por Guerra Revolucionária e que os historiadores situam entre 1775 e 1783, é constituída por mulheres brancas de origem europeia, maioritariamente de ascendência britânica, mas também oriundas de diversos principados alemães e da Irlanda, por mulheres americanas nativas e por mulheres afroamericanas. Nestas três categorias étnicas, as mulheres, ora são apoiantes da Revolução, ora se colocam do lado do colonizador, ou seja, do lado da potência colonial britânica. Assim, de entre as mulheres de ascendência europeia, designar-se-ão por mulheres patriotas, as que apoiam a independência e por mulheres lealistas, as que defendem a manutenção do domínio colonial britânico. Iniciar-se-á a abordagem do papel das mulheres na Revolução Americana, com as mulheres de origem europeia. Em primeiro lugar, destacar-se-á o papel desempenhado pelas mulheres patriotas e depois aludir-se-á ao papel desempenhado pelas mulheres lealistas, que se colocará em justaposição com as primeiras. Salienta-se que, neste momento da história americana, a população feminina branca constitui metade da população da sociedade colonial. Embora as mulheres patriotas não tivessem tido uma intervenção activa e directa na Revolução, a sua oposição ao domínio colonial traduziu-se em gestos simples, mas significativos, como o rompimento com hábitos de rotina, praticados antes da Revolução, tais como tomar chá ou usar vestuário confeccionado com tecidos vindos de Inglaterra. O cartoon que se transcreve e a legenda que o acompanha constituem prova do que se acaba de dizer.

Philip Dawes’ “A Society of Patriotic Ladies,” 1775 The petition the ladies in the cartoon are signing says: “We the Ladys of Edenton do hereby solemnly Engage not to Conform to that Pernicious Custom of Drinking Tea, or that we the above said Ladys will not promote ye wear of any Manufacture from England untill such time that all Acts which tend to Enslave this our Native Country shall be Repealed.”

The Library of Congress, Washington, D.C. LC-USZ62-12711

Assim, poder-se-á considerar que as mulheres participam na Revolução, boicotando os produtos provenientes de Inglaterra, contribuindo, desta forma, para a manutenção e para a sobrevivência da economia da nova nação, que os homens iam estabelecendo na esfera pública. O Home Spun Movement constitui prova do que acaba de se referir, na medida em que as mulheres passam a fiar e a tecer os seus próprios tecidos, pelo que deixam de comprar e de usar tecidos, fabricados em Inglaterra. As mulheres começam também a criar os tecidos e a confecção dos uniformes, que irão vestir o denominado Continental Army, ou seja, a designação atribuída ao exército que luta pela independência. Ao mesmo tempo, as mulheres começam a intervir mais directamente na arena política, subscrevendo petições e participando em protestos. Em pleno teatro de guerra pela independência travada contra o domínio britânico, salienta-se, também, o papel de contestação das mulheres ao poder colonial, ainda que confinadas à retaguarda, seguindo os exércitos, lavando e cozinhando para os soldados, entregando mensagens secretas e agindo como espias. Algumas mulheres transportavam a cavalo, a partir de território inimigo, informação militar confidencial, escondida no meio da roupa interior e entregavam-na junto dos seus exércitos.

Há relatos de mulheres que tiveram uma intervenção mais activa, lutando disfarçadas de homens. É conhecido o caso de Deborah Sampson, que adoptou tal atitude, tendo assumido nova identidade com o nome masculino de Robert Schurtleff. (Kerber, 1997: 126). O contributo militar feminino, por parte das mulheres patriotas, é indubitavelmente inquestionável, embora a narrativa convencional da História americana quase que o obliterou, já que este não tem sido objecto de análise histórica. Sonya O. Rose refere que o papel desempenhado pelas mulheres, em prol da Revolução, não tem tido o reconhecimento merecido e disso dá exemplo de mulheres famosas : «Notable women such as Abigail Adams and especially Mercy Otis Warren, who wrote anti-British and anti-Loyalist plays, outspokenly supported the movement for independence. But such activities, while important to the conduct of the Revolution, were not of the sort that would qualify them for political citizenship in the nation that resulted from it.» (Rose, 2010: 82). Proceder-se-á, agora, a uma análise sucinta sobre o papel das mulheres lealistas, no âmbito da Revolução Americana. Os historiadores referem que as mulheres de origem europeia apoiantes da Coroa integravam os exércitos britânicos. Segundo os hábitos britânicos, cada companhia tinha direito ao seu lote de mulheres, hábito este já existente desde a Guerra dos Sete anos. Os elementos do sexo feminino, que integravam o exército britânico, eram mulheres ou mães de soldados, o que representava, em termos proporcionais, entre um quinto e um décimo das tropas britânicas. O facto de as mulheres lealistas integrarem os exércitos conferia-lhes um estatuto dentro dos mesmos, o que contrasta com a posição subalterna das mulheres patriotas, a quem era apenas permitido segui-los. George Washington chega mesmo a declarar que as mulheres representam um fardo para o exército continental, embora acabe por reconhecer que, tal como para o exército inglês, as mulheres são necessárias como parte integrante do seu exército e fixa a norma dos regimentos, que estabelece que haja a proporção de uma mulher para quinze soldados. Salienta-se, também o trabalho de espionagem levado a cabo pelas mulheres lealistas. Como diz Linda Kerber: «George Washington se méfiait profondément des femmes des Loyalistes, convaincu qu’elles transmettaient aux Britanniques, par-delà les lignes, des informations sur les mouvements des troupes patriotes. » (Kerber, 1997 : 126). De facto, as desconfianças de George Washington justificavam-se, já que as mulheres lealistas recolhiam informação e entregavam-na aos britânicos.

Rosalind Miles salienta a participação activa das mulheres europeias dos dois lados do conflito, durante a guerra da Revolução Americana, e contrasta-a com o papel desempenhado pelas suas antepassadas durante a Guerra Civil Inglesa (1642 -1651). As razões para essa participação activa prendem-se com a realidade social do Novo Mundo e que se passam a citar: «From any point of comparison it is clear that the greater freedoms in the New World, the breakdown of certain systems and hierarchies, and the necessary solidarity of colonial life, all combined to create conditions in which women’s contribution, both as individuals and as a sex, had a far greater chance to flourish.» ( Miles, 1993:176). A análise da participação feminina na Revolução Americana ficaria incompleta, se não considerássemos a acção das mulheres nativas e das mulheres afro-americanas. Ao contrário das suas congéneres de proveniência europeia, que se viam compelidas a tomar partido, estas em nada beneficiavam com uma guerra que dividia a supremacia branca. Daí que, no caso delas, havia que optar pelo lado que menos as lesasse. No que respeita aos americanos nativos, estes queriam permanecer neutros, ainda que estivessem cientes de que a vitória dos patriotas se equacionaria com a expansão para o Oeste e com a posterior apreensão das suas terras. Esta tomada de consciência levou-os a entrar em guerra ao lado dos britânicos. No que respeita às mulheres, elas ocupavamse da casa, da família e da vida agrícola. A destruição das colheitas em tempo de guerra afectou as suas vidas, dado que, em tempo de paz, algumas delas negociavam com os colonos. A destruição da agricultura conduziu à destruição do seu modus vivendi no pós-guerra e à consequente perda do papel activo de que usufruíam antes da guerra. No que se refere às mulheres afro-americanas, a maioria eram escravas. Por esta razão, é pouco conhecida a sua participação na guerra revolucionária. Sabemos, no entanto, que há mais fugas nesta época do que no período anterior à Revolução. Sabe-se, também, que elas irão apoiar os exércitos lealistas, visto que, na Câmara dos Comuns do Parlamento britânico, tinha sido aprovada um projecto-lei em 1775, a favor da emancipação da escravatura em todos os territórios britânicos. Considerada uma manobra política, com o objectivo de humilhar o espírito aristocrático da Virgínia e das colónias do Sul, esta proposta é acolhida com agrado entre a população negra, o que explica o alinhamento dos afro-americanos ao lado do poder colonial. As mulheres negras encontraram refúgio e acolhimento junto dos Ingleses e até um espaço de liberdade, ao tomarem posição por sua própria conta sobre o sentido da guerra. (Kerber, 1997:131)

3. Depois da independência: 3.1. 1783 a 1800 O período que vai de 1783 a 1800 não concede às mulheres um estatuto de cidadania em pé de igualdade com os homens. No entanto, são dados alguns passos, ainda que insuficientes, que aqui são objecto de análise e que funcionam como antecâmara para o Movimento pelo Sufrágio Feminino. Após negociações entre os dois lados do conflito, a 3 de Setembro de 1783, a GrãBretanha vê-se obrigada a aceitar a independência dos Estados Unidos. A Revolução Americana foi feita pelos patriotas americanos, com o objectivo de fundar uma República. Em República, o povo detém a soberania e o poder executivo tem de lhe prestar contas, pelo que a forma de o povo poder avaliar a acção do poder executivo se traduzir por via do sufrágio. Nos anos que se seguem à Revolução, tinham somente direito de voto os homens brancos. Daí que a sociedade civil posterior à Guerra de Independência fosse profundamente racista e machista. Privadas do direito de voto, as mulheres americanas intervinham, contudo, na vida pública, em função do que a lei lhes permitia. Assim, será importante fornecer alguns dados históricos sobre a nova nação emergente, para poder compreender a acção das mulheres na esfera pública. A Constituição Americana é a primeira constituição escrita do mundo ocidental e, embora sendo o documento que rege a nova nação que, por sua vez, se formou na luta contra o poder colonial britânico, vai inscrever no seu texto, alguns dos princípios prevalecentes nos territórios da coroa britânica. Destes princípios, inscreve-se, o direito de petição “freedom of petition”. As mulheres recorrem a este direito, para comunicarem com as assembleias legislativas ou com os representantes do poder executivo. Depois da guerra, as mulheres invadem as assembleias legislativas de petições, reclamando a reparação pelos prejuízos e danos causados pela Revolução. Um outro avanço, conseguido pelas mulheres, após a Revolução, diz respeito ao divórcio. Antes da Revolução, o divórcio pleno, implicando o voltar a casar, só era possível na Nova Inglaterra, onde a tradição puritana considerava o casamento como um contrato civil. Depois da Revolução, o direito ao divórcio foi liberalizado em muitos outros estados. No entanto, um direito que parece, nos dias de hoje, mais que legítimo, como a atribuição de uma pensão às viúvas dos soldados, mortos em combate, só era concedido

às mulheres dos oficiais. Mais grave parece-nos que, as mulheres que tinham combatido no exército e lutado pela independência fossem, depois dela, reduzidas à mendicidade. Ora se as mulheres gozassem do direito de voto, não permitiriam esta situação de humilhação. Face à falta de influência sobre o poder legislativo e executivo, algumas mulheres da burguesia organizam-se em instituições de beneficência, a fim de angariar dinheiro para as viúvas e órfãos. Será, no seio destas organizações, que as mulheres irão desenvolver competências de falar em público, de gestão financeira e de aliança entre classes. Algumas delas irão tornar-se, duas décadas depois, modelos para as mais importantes associações femininas reformistas. Uma outra característica do início da República é a ênfase na instrução feminina, que advém do facto de esta ter sido formada por povos que professavam as correntes mais díspares do protestantismo e que se tinham refugiado no território norte-americano, devido à perseguição a que tinham estado sujeitos em solo europeu. Segundo a prática religiosa protestante, era dever de todos os crentes, lerem e interpretarem os textos sagrados, o que vai incentivar a escolarização feminina e a consequente necessidade de criação de escolas públicas, facto que dará às mulheres adultas a possibilidade de ganhar a vida e de aí ensinar as filhas a ler e a escrever, criando-se assim um corpo docente feminino. (Nash, 2005:79). A República pretendia que as mulheres fossem cidadãs instruídas e virtuosas e que, enquanto mães, ensinassem os filhos e filhas, não só a ler e a escrever, mas também a transmitir-lhes os valores da moral, da sabedoria e da virtude. Estamos aqui diante duma nova visão de uma maternidade politizada que como refere Linda Kerber: «(…) apportait de l’eau au moulin de ceux qui se penchaient avec une attention accrue sur l’éducation des femmes.» (Kerber, 1997:135). Não obstante ser a educação o veículo para a cidadania instruída e virtuosa da nova república, a crescente alfabetização feminina contribuía, simultaneamente, para que as mulheres ficassem intelectualmente menos dependentes dos representantes da autoridade, dos ministros do culto, dos pais e dos maridos, uma vez que agora podiam ler, e comprar livros e revistas, mesmo nos locais mais remotos. É, também, nesta altura que são publicados romances de autoria feminina que alertam as mulheres contra os perigos da sedução. Charlotte Temple de Susan Rowson ou The Coquette de Hannah Webster Foster ilustram o que acabámos de referir. (Kerber, 1997: 136). A despeito de, na América da pós-revolução, se terem registado progressos no que respeita à posição das mulheres, e de estas terem vindo a desempenhar um papel crucial,

com vista à construção de uma nova ordem social, enquanto iam ganhando autonomia, continuavam m privadas do direito de voto, não exercendo funções nos tribunais e nas assembleias legislativas. Contudo, será, por via da educação, que as mulheres irão ganhar consciência do seu estatuto de menoridade enquanto cidadãs, e irão envidar todos os esforços para ultrapassar esta situação. 3.2. 1800 a 1840 Gerda Lerner refere que, no período das primeiras quatro décadas do século XIX, ocorrem mudanças decisivas no estatuto das mulheres americanas, visto que em 1840, segundo declara esta historiadora, toda a sociedade americana tinha mudado, em resultado das alterações introduzidas pela Revolução (Lerner, 1969:7). Na realidade, a sociedade colonial, que se organizara segundo um modelo hierarquizado, herança do modelo em vigor na potência colonial britânica, dera lugar a uma sociedade igualitária, em que a aquisição de privilégios se conseguia com base na capacidade e não na herança. Os objectivos de mobilidade social estavam agora ao alcance de todos, excepto de um grupo, o das mulheres. Se as mulheres tinham, por um lado, desempenhado um papel fundamental durante a Guerra da Independência e se tinham, depois dela, alcançado pequenas conquistas, não é menos verdade que à medida que a nova nação evolui, se industrializa, enriquece e se aburguesa, o modelo de mulher correspondente a esta nova nação é o de uma feminilidade que se define pela “genteel lady”: isto é, o da dona de casa abastada e ociosa, elegante, requintada e culta. Assim, segundo este modelo, o papel da mulher parecia ser mais restrito que antes, atendendo a que o seu lugar se parecia agora confinar apenas ao espaço do lar. Aliás, este modelo de ociosidade imposto como o paradigma de propaganda da felicidade feminina, nesta época, entra em contradição com o espírito da ética puritana que considerava a ociosidade como pecado e que tinha sido o modelo propagado na América colonial britânica, a fim de construir um território, em que o trabalho era o motor de construção do Novo Mundo, e, no que se refere às mulheres, ele não só era aprovado, mas também encarado como dever cívico. Face ao que se acaba de expor, há que referir, todavia, que de par como a existência da “genteel lady”, se caminha, no espaço público, para a profissionalização de algumas actividades, como a enfermagem e o ensino. A enfermagem é, à época, quase exclusivamente um trabalho feminino, ao passo que o ensino é exercido por ambos os sexos. Apesar do ensino poder ser ministrado por homens e por mulheres, ele vai

gradualmente passar a ser uma actividade quase exclusivamente feminina, atendendo a que os salários, auferidos pelas mulheres, se situavam em 30-50% abaixo do salário masculino (Lerner, 1969:10). Também se deve aqui referir o trabalho feminino exercido no espaço público, à medida que a industrialização se ia realizando. Aos olhos de hoje, poderá parecer-nos estranho que a mão-de-obra fabril estivesse entregue às mulheres e às crianças, enquanto que os homens se ocupavam do trabalho agrícola. Esta mesma mão-de-obra fabril passará posteriormente, a ser realizada pelas novas vagas de imigrantes, o que explica a pouca valorização social deste tipo de trabalho. Como acabámos de ver, a actividade feminina e o seu papel na nova nação americana são distintos e variados, consoante a classe a que se pertence. Todavia, haverá uma questão que irá unir as mulheres de todas as classes e que passa pela consciencialização de que não usufruem do direito de sufrágio e de outros direitos de cidadania. Esta tomada de consciência é adquirida com mais acuidade, à medida que é atribuído o direito de voto aos novos imigrantes, questão que conduz a um sentimento de frustração entre as mulheres. A privação deste direito de cidadania é particularmente sentida junto das mulheres instruídas e com direito de propriedade, que vêem goradas as expectativas que tinham vindo a acalentar, em termos de conquista futura da cidadania plena.

4. O caminho para o sufrágio feminino 4.1. A importância do fenómeno religioso: o protestantismo evangélico na génese da emergência dos movimentos a favor da abolição da escravatura e do movimento anti-alcoólico.

Na génese da emancipação feminina, está um fenómeno religioso, especificamente americano, o protestantismo evangélico, que desempenhará um papel fundamental. Esta corrente religiosa nascera nos séculos XVII e XVIII e desenvolvera-se através de campanhas de conversão, realizadas por pregadores itinerantes, exortando os pecadores ao arrependimento e à consagração a Jesus Cristo. Este clima de fervor místico e exaltação moral vai inspirar a acção filantrópica, nomeadamente o Movimento antialcoólico e o Abolicionismo, movimentos estes que impulsionarão a mobilização feminina. (Basch, 1997: 506). O movimento evangélico dá origem a múltiplas associações de beneficência, onde se incentivam as mulheres para a condição de esposas e mães, legitimando-as e tornandolhes possível o acesso à acção e a uma identidade própria. Assim, a mulher americana

cumpria a sua missão nessas associações, pugnando pela reforma moral, pela luta contra o pecado, contra a prostituição feminina e contra a luxúria masculina. É de notar que a luta contra a prostituição se baseava na certeza da pureza feminina e condenava a sensualidade masculina, o que claramente manifestava uma superioridade moral da mulher em relação ao homem. Na verdade, a sensualidade desenfreada e destruidora do homem americano, contrastava com a moral da mulher, tendo esta por missão educar os filhos homens para a pureza sexual. Na prática, é nas associações de beneficência que as mulheres aprendem a organizar-se, a dirigir reuniões, a fazer deslocações e propaganda. Paradoxalmente, os movimentos que pretendiam confinar os Anjos ao Lar, incitavamnos a sair dele e a manifestar-se publicamente. The temperance movement (movimento de luta contra o alcoolismo) surge dentro do protestantismo evangélico e tem por objecto a reforma dos costumes. (Basch, 1997:507). Poder-se-á definir este movimento como a luta desenvolvida contra o consumo de álcool e contra o espaço público masculino, onde esse consumo se realizava, ou seja, o saloon. Esta luta é particularmente encetada por mulheres e crianças, visto que o consumo exagerado de álcool representava uma ameaça da desintegração familiar e social. Com efeito, atribuía-se ao álcool a culpa pela má gestão das finanças domésticas, pelo aparecimento de doenças e pela propagação do crime. Com o desenvolvimento da instrução e a participação no mundo do trabalho, as mulheres pertencentes ao movimento social de protesto The temperance movement começam a questionar o papel de guardiãs passivas da moral familiar e passam a exigir participação política. Neste movimento milita Susan B. Anthony (1820-1906), que se tornará anos depois, numa das sufragistas da maior importância. Num congresso em 1851, é-lhe recusada a palavra pelo facto de ser mulher, o que a vai levar a criar, em 1952, a New York State Women’s Temperance Society. Anthony era professora, não tolerava as manifestações sexistas e não era a única. Muitas mulheres pertencentes às associações filantrópicas condenavam a misoginia e advogavam a superioridade moral feminina. É também de dentro do movimento evangélico, que surge outra organização filantrópica que almeja abolir a escravatura nos Estados do Sul, ou seja, o abolicionismo. Na verdade, os abolicionistas consideravam a escravatura como um pecado contra Deus e contra o Evangelho. O movimento abolicionista é constituído por homens e por mulheres, embora estas não usufruam dos mesmos direitos que os homens. Porém, é dentro deste mesmo movimento que as mulheres se apercebem da similitude entre a opressão de raça e a opressão de género e, daí que surjam novas associações

abolicionistas, criadas por mulheres, das quais se salienta a Philadelphia Female Anti Slavery Society, criada por Lucretia Mott (1793-1880). Na verdade, a percepção da desigualdade de direitos face ao homem e até de discriminação é particularmente sentida dentro da American Anti-Slavery Society, quando Lucretia Mott e Elizabeth Cady Stanton (1815-1902), da qual falaremos adiante, se deslocaram a Londres como delegadas ao Congresso Internacional Anti-Escravatura, em 1840. A estas duas representantes do Movimento Americano contra a Escravatura foi vedada a presença na sala em que o congresso decorria, pelo que tiveram de acompanhar os trabalhos de pé, escondidas por trás de uma cortina. (Nash, 2005:81). Será esta discriminação que levará Mott e Stanton a convocar uma convenção em defesa dos direitos das mulheres e que se realizará oito anos depois em Seneca Falls, uma aldeia situada a 333 quilómetros da cidade de Nova Iorque.

4.2. A relevância dos movimentos referidos para o surgimento de vários movimentos reivindicativos dos Direitos das Mulheres e do direito ao sufrágio. A Convenção de Seneca Falls, realizada em 1848, ficará na História das Mulheres e na História dos Estados Unidos como a primeira convenção realizada em prol dos Direitos das Mulheres e do direito ao sufrágio feminino. Embora esta convenção se tenha centrado na questão feminina, foi presidida por James Mott, marido de Lucretia. Teve a duração de dois dias e nela participaram cem pessoas. Ao longo de dois dias, os delegados debateram um documento elaborado por Elizabeth Cady Stanton e Lucretia Mott, intitulado Seneca Falls Declaration of Sentiments and Resolutions, documento este que teve por base a Declaração de Independência, redigia por Thomas Jefferson em 4 de Julho de 1776. Dos doze pontos de que consta esta declaração, onze foram aprovados por unanimidade e o que reivindicava o direito de voto para as mulheres foi aprovado por uma pequena margem de votos. Deve-se a Frederick Douglass a aprovação deste ponto, que o defendeu com toda a veemência, pois fora escravo e era agora membro activo do movimento anti-abolicionista, e no qual se declarava o que se passa a citar: «That it is the duty of the women of this country to secure to themselves their sacred right to the elective franchise» (Schneir, 1996: 82). São também dignas de nota as seguintes palavras proferidas por Douglass na sua autobiografia: «When the true history of the antislavery cause shall be written, women will occupy a large space in its pages, for the cause of the slave has been peculiarly woman’s cause.» (Schneir, 1996:83). A partir de então irão organizar-se diferentes movimentos e associações,

muito activos na defesa da causa das mulheres tendo, como objectivo comum, o reconhecimento do sufrágio feminino. Estes movimentos ver-se-ão obrigados a abrandar a actividade durante a Guerra da Secessão (1861-1865). De entre eles, salienta-se uma aliança entre duas mulheres: Elizabeth Cady Stanton e Susan B. Anthony, que se tinham conhecido em 1851. Stanton tinha sentido a discriminação feminina no Movimento Abolicionista e Anthony sentira o mesmo no Temperance Movement. A partir de então, estas duas mulheres trabalharão em conjunto pela causa dos direitos das mulheres e formarão uma união que se prolongará por muitos anos. De perfis diferentes, completavam-se. Stanton era brilhante, instruída e culta e, com a sua escrita acutilante, funcionará como a teórica desta união e Anthony como a organizadora, viajante e oradora, tendo de enfrentar e confrontar a opinião pública que se opunha às ideias sufragistas e feministas. No período posterior ao fim da guerra da Secessão, irão surgir os primeiros movimentos organizados, na luta pelo sufrágio e pela emancipação feminina. Em Maio de 1869, Anthony e Stanton fundam a National Woman Suffrage Association (NWSA), formada essencialmente por mulheres, na sequência do voto atribuído aos cidadãos de cor, que constitui a 5ª emenda à Constituição americana. Opondo-se a esta emenda, a NWSA pretendia que fosse aprovada uma outra que consagrasse definitivamente o direito de voto feminino, o que acaba por não acontecer, atendendo a que as posições de Anthony e Stanton tinham sido consideradas racistas. Também em 1869, Lucy Stone e Julia Howard Howe fundam a American Woman Suffrage Association (ASWA), uma organização mais moderada constituída por mulheres e homens, que não se opunha à aprovação da 5ª emenda. Lucy Stone (18181893) ficará na História como uma abolicionista convicta e uma mulher activa no movimento a favor da luta das mulheres. O que a História realça desta mulher é o facto de ela, ao casar-se com Henry Blackwell em 1855, não ter abdicado do seu nome de solteira, preferindo doravante ser tratada por Mrs. Stone. (Schneir, 1996: 104). Passados quase vinte anos, em 1890, estas duas associações fundir-se-ão e darão lugar à National American Woman Suffrage Association (NAWSA), da qual será eleita presidente Elizabeth Cady Stanton, sendo substituída neste cargo por Susan B. Anthony em 1892. Em 1900, esta organização fixa a sua sede na cidade de Nova Iorque, tendo agora Anthony abdicado da presidência e escolhido Carrie Chapman Catt (1859-1947). Catt era uma mulher pragmática e opunha-se às ideias mais radicais de Stanton, tendo mais tarde centrado a luta das mulheres no direito ao sufrágio, e transformando a

NAWSA na League of Women Voters. (Schneir, 1996: 287). Saliente-se que durante os dois mandatos da presidência da NAWSA dirigida por Catt, de 1900 a 1904 e, de 1915 a 1920, ficaram excluídas desta organização: as mulheres radicais, negras, imigrantes trabalhadoras e as feministas militantes. (Schneier, 1996: 287).

5. Concessão do direito de voto Embora a concessão do direito de voto feminino tivesse apenas acontecido em 1920, em todo o território dos Estados Unidos, houve estados pioneiros que o fizeram mais cedo. O estado de Wyoming distingue-se por ter sido o primeiro, em 1869, seguindo-se-lhe o Colorado em 1893, e em 1896 O Idaho e o Utah. (Lamas, 1952: 634) Todos estes estados estão situados no Oeste e a situação das mulheres era bem diferente do que a leste. Há que referir que o êxodo para o Oeste significava o rompimento com o meio familiar de origem, o desenraizamento e a aventura. As mulheres tinham no Oeste uma vida mais difícil, uma vez que acumulavam os papéis de esposa e mãe com as tarefas domésticas e, muitas vezes, viam-se obrigadas a substituir o homem ou a ajudá-lo na labuta “masculina”. O trabalho era árduo e solitário. Por outro lado, ao trabalharem ao lado do homem, não se esperava das mulheres estereótipos de feminilidade, característicos das sociedades industrializadas. Era de mau gosto interrogar uma mulher sobre o seu passado e ninguém se escandalizava ao ver as mulheres a fumar e a beber. Algumas mulheres detinham posições de poder como a de sheriff (Basch, 1997:521). É neste espaço, mais tarde mitificado pela filmografia americana, que se explica a concessão do voto feminino mais cedo do que nos estados situados a Leste. A Leste surge em 1915, o Woman’s Party fundado por Alice Paul, que tinha sido expulsa da NAWSA, o qual tinha por objectivo obter o voto para todas as mulheres através de uma emenda à Constituição Federal a ser ratificada por todos os estados em 1920. Após vários protestos junto à Casa Branca contra a política do Presidente Wilson, face à sua posição em favor da guerra, as sufragistas pacifistas que integravam o partido de Paul, eram detidas por obstrução da via pública. Paul passa vinte e dois dias na prisão. Estas sufragistas vão ganhar o respeito junto da opinião pública, devido aos maus tratos que sofriam às mãos da polícia e na prisão. Este clima irá pressionar a Câmara de Representantes, que vota pela emenda federal em 1918. Porém, esta emenda terá de ser ratificada pelos estados. A 26 de Agosto de 1920, o 36º estado, o Tennessee ratifica a emenda. Está aprovado o direito de voto feminino nos Estados Unidos, que foi consagrado pela 19ª emenda à constituição e cujo texto se

passa a citar: «The right of citizens of the United States to vote shall not be denied or abridged by the United States or by any State on account of sex.» Com este estudo, pretendeu-se lançar alguma luz sobre o Movimento Sufragista Feminino nos Estados Unidos, contextualizá-lo no espaço geográfico e histórico em que emergiu, se desenvolveu e acabou por cumprir o seu objectivo.

Bibliografia Basch, Françoise (1997), “Les droits des femmes et le suffrage aux Etats-Unis 1848-1914” in Fauré, Christine (ed.) Encyclopédie Politique et Historique des Femmes, Paris, Presses Universitaires de France, pp. 505-533. Hill, Mary Beth (May, 15, 2010), “Temperance Movement Produces Women's Suffrage Leaders”, disponível em http://www.suite101.com/content/temperance-movement-produces--womens-suffrageleaders-a237296. Acesso em 23 de Outubro de 2010. Käppeli, Anne-Marie ( 1991), “Cenas Feministas” in Georges Duby e Michelle Perrot (eds.) História das Mulheres – O Século XIX, Porto, Edições Afrontamento, pp. 541-575. Kerber, Linda (1997), “L’action des femmes dans la Révolution Américaine” in Fauré, Christine (ed.) Encyclopédie Politique et Historique des Femmes, Paris, Presses Universitaires de France, pp. 119-137. Lamas, Maria (1952), “A Mulher no Mundo”, Volume II, Rio de Janeiro/ Lisboa, Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, pp. 559-644. Lerner, Gerda (1969), “the lady and the mill girl: changes in the status of women in the age of jackson” https://journals.ku.edu/index.php/amersstud/article/viewFile/2145/2104.pdf. Acesso em 25 de Junho de 2010. Miles, Rosalind (1993), “The Women’s History of the World”, Londres, HarperCollinsPubishers, Nash, Mary (2005), “As Mulheres no Mundo - História, desafios e movimentos”, tradução portuguesa de “Mujeres en el mundo – Historia, retos y movimientos”, Lisboa, Editora Ausência. Perrot, Michelle (2004), “La bibliothèque, mère de l’histoire des femmes” in Revue de la bibliothèque nationale de France, nº17, pp. 19-24. Rose, Sonya O., (2010), “What is Gender History?”, Cambridge, Polity Press. Schneir, Miriam (ed.) (1996), “The Vintage Book of Historical Feminism”, Londres, Vintage. U.S. Constitution: Nineteenth Amendment , disponível em http://caselaw.lp.findlaw.com/data/constitution/amendment19/. Acesso em 2 de Fevereiro de 2011.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.