À espera de Marcelo: Mito e Tragédia em O Irmão de David Mourão-Ferreira

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Matrizes Clássicas da Literatura Portuguesa (2014). Paula Morão e Cristina Pimentel (coord.). Campo da Comunicação.

À espera de Marcelo: Mito e Tragédia em O Irmão de David Mourão-Ferreira Catarina F. Rocha Centro de Estudos Clássicos Universidade de Lisboa

Micenas No túmulo que afinal não é o de Agamémnon quero ouvir o teu grito a converter-se em pedra porque há dentro de ti qualquer coisa como esta qualquer coisa que lembra o vazio da terra ciclópica rotunda onde a luz não penetra David Mourão-Ferreira. “Itinerário Grego”, 3 In Do tempo ao coração.

No mesmo ano em que é publicada a peça em dois actos O Irmão, David MourãoFerreira parte em viagem pela Grécia. Da sua passagem por Micenas, fica-nos um poema que viria a integrar a antologia Do Tempo ao Coração, poemas escritos entre 1962 e 1966. O topónimo da cidade do Atrida, surgindo como mote, evoca um tempo e uma realidade correspondentes à tradição literária onde se modelaram figuras como Agamémnon, Clitemnestra ou Electra. As linhas que no poema desenham os trágicos contornos de uma figura anónima, esboçam também o carácter ambíguo que a traduz. Radicalmente dividida nesse curto espaço entre luz e sombra, a figura, cujo grito o poeta eterniza, encontra semelhanças na Electra da tragédia clássica. Não apenas como imagem da filha clamando vingança frente ao túmulo de Agamémnon, que afinal também a si pertence, a Electra de David corporiza o mito muito mais pelo que de insondável e obscuro lhe dá forma. Elevada a essa dimensão de confronto entre claridade e obscuridade, que em Eurípides ganha especial ênfase, mas que já Ésquilo prenunciara em Coéforas, a personagem torna-se proeminente pela anfibologia que lhe dá estrutura. Cito versos de Ésquilo em Coéforas: λύκος γὰρ ὥστ᾽

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ὠμόφρων /ἄσαντος ἐκ ματρός ἐστι θυμός 1. Neste passo de plena anagnorisis, Electra reconhece aquilo a que não pôde escapar: a memória mitocondrial, ou essa espécie de δαίμων γένος que a liga, inevitavelmente, a sua mãe. Agindo em pólos opostos, Electra e Clitemnestra são como faces de uma mesma moeda, movidas por motivos idênticos (o sacrifício de uma filha, a morte de um pai) numa sede implacável de vingança. Será na peça O Irmão que a filha de Agamémnon encontrará correspondente no teatro português contemporâneo. Partindo de um mythos clássico, o autor não reduz o mito e o próprio sentido do trágico à mera recriação, pois que oferece, como observa Duarte Ivo Cruz, “uma situação existencial de confronto e conflito entre o plano real e o plano ideal, em termos de absoluta modernidade.”2. Na “Nota do autor” à primeira edição, David confessa a hesitação sentida na designação genérica de tragédia e no próprio título da peça. Orestes fora o “que obsessivamente chegara a seduzi-lo”, todavia, considerou o autor que lhe “não ficava bem” chamar a atenção para aquilo que de trágico ali pudesse existir. Decidiu, “não sem mágoa”, abandonar o pretenso título, adoptando o de O Irmão, que, não remetendo directamente para uma tradição literária, sublinha a centralidade e importância de uma figura porventura próxima a Orestes. As referências de carácter intertextual não se esgotam nas “Notas do autor” à 1ª e 2ª edição. A epígrafe, directamente citada das Coéforas de Ésquilo, ilumina o próprio título: “Lembra-te de Orestes, / por muito ausente que ele esteja.” 3. Poderá encontrar assim o leitor uma possível busca de sentido na tradição trágica em que se enraízam as figuras de Orestes e Electra. A concepção linear do tempo, implícita na sintaxe, é transformada em espiral pela própria estruturação dos actos. Cada acção e fala do 1º acto tem o seu contraponto no acto seguinte, ao que Duarte Ivo Cruz chamou “estrutura temática musical” 4. Os acontecimentos repetem-se, com a excepção da presença de Germano no 2º acto, personagem que nos será ainda objecto de análise detalhada, até à cena em que se refere a existência do irmão. A partir deste ponto, os dois actos irão divergir, voltando novamente a encontrar-se na cena final de tensão expectante pela chegada do irmão. Esta estrutura circular assimétrica, que bem poderia 1 ”Pois como um lobo selvagem, duro é o coração que nos vem de nossa mãe” (vv. 421-2). Todas as traduções que apresento são de minha autoria. 2 Cruz, 1986, 122. 3 Transcrevo directamente a citação da epígrafe, cuja autoria de tradução não é indicada. O passo corresponde ao verso 115 das Coéforas de Ésquilo: μέμνησ᾽ Ὀρέστου, κεἰ θυραῖός ἐσθ᾽ ὅμως. 4 Cruz, 1986, 332.

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ser o tempo da espera de Vladimir e Estragon 5, constitui, como observa M. F. Brasete, “marca subversiva da estrutura da tragédia clássica”6, não desvirtuando porém o sentido de trágico, antes, mutatis mutandis, adapta-o a novas formas de o dizer no mundo contemporâneo. O 2º acto afasta-se do 1º, como veremos, na direcção de um adensamento psicológico, trabalhandose a construção de um clímax, que, entendido na pura acepção do termo grego como “escada”, constitui, em forma de crescendo, o processo gradativo de construção que levará a um ponto culminante no texto. Ao definir-se os motivos da vingança de Bárbara, a espera do irmão, dotada de sentido, torna-se ela mesma uma necessidade levada ao extremo dos limites da razão, possibilitando-se desta forma o trágico. O movimento do drama no 2º acto, não é, na sua grande parte, causado por uma organização de incidentes (πραγμάτων σύστασις) constituintes do mythos, que para Aristóteles seria o mais importante7, mas antes pela διάνοια das personagens, aquilo que exprimem por meio da palavra. Não obstante a importância central do retrato como elemento de anagnorisis que projecta o drama para o seu desfecho, o valor da διάνοια é tal que, por vezes, sentimos o texto fugir dos limites da tragédia para o drama psicológico. No que respeita à concepção de espectáculo, na possibilidade de o drama ser levado à cena, temos ainda algo a notar. Defende o autor uma sobriedade na representação, na linha Aristotélica de concepção de ὄψις reforçada implicitamente nas informações didascálicas. Ainda na “Nota do Autor” à 2ª edição, David Mourão-Ferreira deixa uma recomendação a futuros encenadores: não se lhe afigura [ao autor] sequer admissível, no caso pouco provável de poder esta peça vir a suscitar a atenção de qualquer encenador, que sobre ela se exerçam aquelas hoje em dia habituais violências e atrocidades que, sob a pomposa designação de «trabalho dramatúrgico», muita vez não correspondem mais (existirão excepções) que a vingativas formas de impotência criadora (…).

Sobre a encenação da peça por Augusto de Figueiredo no Teatro da Estufa Fria em 1970, o autor exprime especial agrado pela “sóbria dignidade” com que fora levada à cena. Ora esta concepção, que sobrepõe o próprio texto aos artifícios do espectáculo, enquadra-se na

5 Beckett, En Attendant Godot, 1957. 6 Brasete, 1997, 7. 7 Aristóteles, Poética, 1450a

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que Aristóteles define em Poética, quando afirma ser o “espectáculo” o elemento constituinte da tragédia “mais desprovido de arte e alheio à poética”. Na indicação cénica que abre o primeiro acto, David Mourão-Ferreira apresenta-nos, num registo realista-naturalista, um cenário de aparência sóbria, envolto de um conforto frio, onde certos detalhes revelam um gosto burguês e moderno. A cidade é a de Lisboa, em meados dos anos 60. Não sendo apenas a descrição pormenorizada do espaço onde se desenrolará a acção, nela tornam-se gradualmente perceptíveis elementos conducentes a uma leitura para além do signo. Reconhecemos um movimento do texto para fora do universo possível de ser apreendido, transcendendo-o. A realidade empírica é sujeita, num registo que toca o impressionismo, ao entrelaçamento de peculiaridades que conferem certa atmosfera turva, de simbólico mistério preponderante na progressão da acção. A luz que ilumina o cenário é “frouxa”; uma porta adivinha-se pelo seu “ruído”; as personagens marcam presença pelo “rumor” de vozes vindo dos bastidores. Num ambiente onde todas as coisas nos parecem o seu simulacro, insinua-se, pendurado na parede, um “vago” retrato. O adjectivo, que porventura diríamos de pouca expressividade, adquire aqui especial força, sobretudo pelo seu carácter intencional. O objecto-símbolo surge-nos assim oscilante entre o vazio e o indeterminado. Desta forma, introduz o autor, num acto que desvela todavia não sem tornar mais denso, aquele que constitui o elemento chave na peça, pois que representando por metonímia a figura do irmão, tornará, como veremos, a anagnorisis possível. Germano é a personagem que, no 1º acto, encontramos em cena quando ainda todas as vozes são rumores. Esta presença da personagem ab initio traduzir-se-á numa omnisciência comparável à do próprio narrador. O médico-cirurgião exerce, assim, função tópica, trazendo à luz todo o passado da protagonista não figurado na peça, mas essencial para a construção do trágico. À semelhança do párodo na tragédia grega, a função da personagem-narrador é comum no drama aristotelicamente concebido, diferenciando-se da presença funcional de uma personagem que em si encarna um narrador-comentador, fruto de um processo de epicização do texto dramático iniciado no século XIX8. Este vulto, quase despercebido inicialmente, impõe uma presença majestática, justamente pela conjunção da omnisciência com aquilo que de obscuro permanece em torno de si. A própria etimologia acentua a ambiguidade da 8 Sobre este aspecto veja-se a obra de Peter Szondi, Theorie des modernen dramas, 1956. Na “Introduzione” à tradução italiana, Cesare Cases, ao analisar a epicização temática e formal do drama, escreve: “Questa relativizzazione epica dipende dalla scissione della sintesi tra soggeto e oggetto, che è tipica del dramma: i due termini entrano in opposizione, uno dei personaggi diventa la proiezione dell'io dell'autore e gli altri diventano l'oggetto di questo io, cioè al rapporto drammatico si sostituisce un rapporto squisitamente epico e sulla scena appare, a poco a poco, la figura del narratore.” (p. 14).

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personagem. O nome Germano, do latim Germanus, provém, segundo Lewis and Short, do étimo latino germen, designando “o irmão” com a condicionante genética que a palavra impõe. A ironia de uma relação consanguínea entre Bárbara e Germano, para além da amorosa explícita no texto, é subtilmente sugerida pela etimologia, propondo-nos a leitura desta personagem como correspondente ao irmão ausente que em toda peça permanece apenas por alusão. Neste sentido, a revelação do autor da pintura por parte de Germano é significativa, pois que, tratando-se de um retrato de Bárbara, inicialmente constituía um auto-retrato do irmão. Também a etimologia de Lúcia nos pede algumas considerações. Do latim Lucius,a, o nome próprio, ainda segundo L&S, tem como étimo lux (s.u. “Lucius”); no entanto, o seu homógrafo nome comum admite diferente etimologia. Este, segundo Valpy (s.u. “Lucius”), provém do grego λύκος, significando “lobo”. Ora, esta associação de Lúcia ao animal remete nos aos versos de Ésquilo, sobre os quais já aqui nos debruçámos, em que Electra compara o coração de Clitemnestra a um “lobo selvagem”. O autor estabelece assim um paralelismo simbólico entre Lúcia e a Rainha de Micenas, que se estenderá à elaboração do próprio mythos. A imagética animal penetra no texto sobretudo através da figura de Lúcia. Em vários momentos ela é comparada a uma raposa ou mesmo a uma leoa, tal como Egisto, no Agamémnon de Ésquilo (v. 1224). O animal como vítima sacrificial surge também associado a Lúcia e Juvenal, com a comparação destes a “perus que sobraram” numa noite de Natal, no momento que precede o encontro com Bárbara. Numa estrutura novelar, as relações familiares subjazem ao drama, sem que a ambiguidade que as envolve se desfaça. A insistência constante nesse código familiar, de ligações consanguíneas ou não, exerce papel fundamental na recuperação do mito clássico. Bárbara, uma Electra no século XX, esvaece em si os contornos da imagem de mãe e de mulher-amante, indiciando-se, não raras vezes, durante o texto uma relação de cariz erótico entre esta e Lúcia. O 2º acto será pródigo em manifestações determinantes para construção de uma semântica do desejo que conduzirá o discurso das personagens ao domínio do pathos. O universo divino transverte-se num tempo e num espaço onde um logos ordenador da realidade é algo ininteligível ao homem. As portas para a recriação do trágico contemporâneo abrem-se na ausência de um juiz, na tragédia clássica representado pela vontade divina, ficando o homem exposto ao conflito entre valores opostos simbolizado na luta da δίκη

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(justiça) contra a δίκη. Esta crise que atravessa o drama trágico do século XX é análoga, sob diferentes contornos socio-políticos e culturais, à que atravessa a Oresteia do século V a.C.. Nas palavras de José Pedro Serra, o que em Ésquilo se joga é “a compreensão que de si próprio o homem tem, o delineamento do seu modo próprio de habitar a terra, o sentido e o alcance do seu agir, a natureza da sua relação com poderes que o ultrapassam” 9. É nesta mesma crise, neste momento de amechania, que se enraíza o que poderá ser o nosso entendimento do trágico no drama contemporâneo. Expressão de demanda de um código passível de explicar a realidade, o vívido interesse das personagens na astrologia surge como uma das teologias substitutas ou pós-religiosas, comuns no século XX. Perante esta tentativa de encontro de uma ordem, impõe-se ainda a força indomável do inconsciente, que no drama adquire especial relevância. Bárbara não é apenas a figura arquetípica da época clássica, mas antes esboça em si as características de uma Electra que nos chega depois de Charcot e Freud. Hofmannsthal delineara já uma personagem imbuída do fin-de-siècle e das teorias que aí emergiram. A sua Elektra surge apenas três anos após a publicação de Die Traumdeutung, e esboça em si o modelo patológico de Anna O., caso estudo de Freud e Breuer nos Studien über Hysterie (1895). O texto de David parece filtrar parte da tradição de Hofmannsthal e Strauss, combinando em Bárbara elementos clássicos com traços que notam o interesse do autor pela psicanálise. A histeria surge como elemento que permite a peripeteia, exercendo função preponderante na evolução do drama. A tradição clássica abre caminho a esta interpretação ao colocar a filha de Clitemnestra sob a égide do adjectivo περισσά (excessiva). O que na Electra do século V a.C. é uma dor excessiva, em Bárbara transforma-se num "complexo" de raiz patológica. Logo no início do primeiro acto vemos uma referência à tentativa de explicação, através da psicanálise, do estado de Bárbara. Juvenal ironiza: “Complexos? Vivam os complexos! Cá por mim, já tenho dito muitas vezes: o Freud, que chato!, com aquela mania de nos tirar os complexos…” (p. 29). Esta abordagem psicanalítica culminará na contestação da histeria da personagem, por Lúcia, já no segundo acto: “Porque és uma histérica. Porque tens sido sempre uma histérica.” (p. 85). Claro e assertivo, o diagnóstico permitirá o desenvolvimento do clímax, que se traduzirá num percurso das personagens do logos ao pathos, da palavra delimitada à realidade supra-humana inapreensível e, por isso, elemento per se de tragicidade. Ao longo do primeiro acto colhemos, sobretudo, motivos que denunciam a presença clássica através de um universo simbólico. Significativa é a analepse que, no final deste acto, 9 Serra, 2007, 193.

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nos revela as circunstâncias do primeiro encontro entre Bárbara e Lúcia. As duas mulheres conhecem-se num cemitério, locus de valor simbólico, na medida em que, retomando as circunstâncias do mito clássico, recompõe-no sob novas exigências. A ironia da cena perpassa na colagem das Coéforas de Ésquilo: Electra e Orestes reconhecem-se como irmãos junto ao túmulo de Agamémnon, elemento este que orienta e justifica o matricídio até ao final da peça; Bárbara conhece Lúcia quando, anónima por entre túmulos, busca o nome de um pai misteriosamente desaparecido. O símbolo da necessidade do matricídio em Ésquilo é o locus que, em David, une pela primeira vez personagens antagonistas de mãe e filha. A construção do clímax tem início no segundo acto, a partir da cena central de anagnorisis em torno do retrato de Bárbara. Após uma série de falas premonitórias, Lúcia, que percebera antecipadamente atender a um dolo, conclui de forma sentenciosa: “sei muito bem como continua a arder, dentro de ti, o desejo de me suprimires” (p. 70). Recuperando o motivo do fogo associado ao desejo, a fala envolve um ritmo trágico ao ecoar versos que a Electra de Eurípides profere: διὰ πυρὸς ἔμολον ἁ τάλαινα ματρὶ τᾷδ’ / ἅ μ’ ἔτικτε κούραν. (E. Electra 1183-4)10. Está assim determinado o desejo de vingança que implacavelmente conduz Bárbara à necessidade extrema de uma resolução. O texto mostrou-se prudente até este momento, evoluindo de forma quase estática, ou, como observa Urbano Tavares Rodrigues, “acautelando o mistério, desvendando pouco a pouco os factos sempre turvos, soltando-se o símbolo, avançando e recuando no tempo, sem quebra de interesse, até à última incógnita” 11. O reconhecimento do autor do retrato, que durante toda a peça permanece em cena como representação metonímica do irmão precipita agora a peripeteia. Depois que Juvenal revela, por intuição, a autoria, o discurso de Lúcia vai gradualmente tornando-se nervoso, denunciando o aumento de tensão que começa a dominar ambas as personagens femininas. Bárbara exprime-se já “quase com lágrimas na voz”, num misto de amor-ódio que transpõe o seu discurso para o registo do pathos, culminando no estado diagnosticado de histeria. As notas textuais dão-nos conta desta metamorfose. O seu trajecto em cena descreve-se como uma "evolução nervosa" pela sala (p. 78); o acto de se sentar numa poltrona é descrito pelo verbo afundar: “afunda-se numa poltrona, cerrando os olhos, esticando os membros, como que a procurar descontrair-se…”, mas, imediatamente a seguir “retoma uma rígida posição, num grande esforço de concentrada expectativa.” (p. 78).

10 “Vim através do fogo, ó desgraçada, contra esta mãe, que me gerou mulher!” 11 In O Século, 21-V-1970.

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A presença de Juvenal neste momento do texto não se mostra passiva, porquanto exprime esta tensão crescente, instigando-a não raras vezes através das suas observações. A personagem a quem cabe proferir sentenças premonitórias ou de tom moralizador, assume um lugar que reconheceríamos possivelmente como o de um Coro na tragédia clássica. À medida que as personagens progridem, a chegada do irmão vai adquirindo significado no drama, definindo-se como uma necessidade que se justifica numa nova analepse de carácter explicativo. Quando Bárbara recorda Kaltenmark, um velho ricaço a quem Lúcia entregara, sexualmente, a jovem amiga-amante, o sentido da vingança toma forma, invadindo a consciência das personagens. Lúcia, num tom de trágico reconhecimento, exclama: “Começo a perceber… (…) Era então aí que tu querias chegar!” (pp. 81-82). Juvenal, agora quase ausente no diálogo, permanece no subtexto pois que é ele quem motiva a analepse e possibilita assim a explicação dos factos, essencial para a composição trágica. O discurso das personagens perde agora o carácter linear e racional, exacerbando-se, por sua vez, a interioridade psicológica através duma semântica que mergulha no domínio do desejo erótico mascarado pelo ódio. Bárbara oscila entre opostos, afirmando violentamente a necessidade de vingança sem que, por vezes, deixe o discurso ser conduzido por uma sombra de benevolência, motivada pela recordação do passado comum com Lúcia: “entrava tudo naquela infinita confiança que eu tinha em ti. (…) Gostava, nesse tempo, que as tuas mãos me protegessem… E me ensinassem a ser feliz…” (p. 84). Perante o turbilhão de emoções afloradas, Lúcia percepciona a falibilidade do pensamento cognitivo e da linguagem perante a interpretação do real. A dificuldade de entendimento mútuo transforma o que para si houvera sido cometido por hamartia num crime passível de punição. Recordando velhos desejos de Bárbara, a amiga reconhece a dificuldade de comunicação que porventura a terá levado ao erro: “Tudo o que fiz, e que não entendeste, foi sempre a pensar nessas tuas palavras” (p. 92). O movimento da peça gira agora em torno do acto de esperar; esta é a condição absoluta e Lúcia confirma-o: “Que importa? Vem tudo a dar no mesmo” (p. 94). Ecoando o Rien à faire de Estragon, Lúcia aceita a espera e reconhece-a como uma ἀνάγκη. Em Ésquilo, o clímax da peça é empurrado para o domínio do real: o matricídio justifica-se, a morte de Clitemnestra impõe-se para que a justiça possa ser feita; a espera é pelo inevitável. Em O Irmão, a chegada é uma incógnita e a resolução, mediante essa chegada, transforma-se em algo já despojado de sentido. O ritmo trágico recupera-se no acto conjunto da espera. O tragediógrafo do século V a.C. soube, nas palavras de David, “trazer à superfície aquilo que há

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de mais profundo em todos os homens”. Diríamos que David nos traz o que de absurdo habita a sua condição. A chegada do irmão representa, no mundo contemporâneo, o alcance de um logos capaz de ordenar a realidade, ou essa nova δίκη anunciada pelo triunfo de Atena, nas Euménides. A “crença na perfectibilidade dos homens”12, que David reconhece em Ésquilo, não mais se permite existir no autor do século XX. A existência do irmão nunca será confirmada até ao final da peça e todas as personagens confrontam e aceitam, ainda que o não expressem, esta fatalidade. Trágica é a condição que as força a esperar.

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Rebello, Luiz Francisco (1997). “David, autor dramático”. Revista Colóquio/Letras, n.º 145/146, pp. 319-325. Serra, José Pedro (2007). “Agamémnon, En Attendant Godot: Da Heróica Palavra Trágica ao Trágico Silêncio do Exílio”. Philosophica, 30. pp. 183 – 202. Szondi, Peter (1979). Teoria del dramma moderno. Cesare Cases (trad.). Torino: Einaudi.

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