À Espera do Duplo Tique Azul: Whatsapp, Violência e Técnica

June 2, 2017 | Autor: Kenny Ebinger | Categoria: Martin Heidegger, Violencia Simbólica, Whatsapp, Gestell, Dromocracy
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À Espera Do Duplo Tique Azul: WhatsApp, Velocidade e Técnica1 Kenny EBINGER2 Centro Universitário Adventista de São Paulo, Engenheiro Coelho, SP

RESUMO Os aparelhos tecnológicos em rede explodiram como principal meio de comunicação contemporâneo. O WhatsApp fez sucesso ao trazer a instantaneidade de comunicação e o acompanhamento do status de transmissão e leitura da mensagem sem custo, diferente do SMS. O presente artigo usa o aplicativo para articular os conceitos de Dromocracia e violência da velocidade do meio digital, conforme explicado por Eugênio Trivinho. A questão da técnica moderna de Heidegger possibilita compreender os media de rede para além do seu aspecto instrumental, e consequentemente os relacionamentos que se dão nessas plataformas. Ambas as teorias destacam uma mudança no ser das coisas: Trivinho aponta um híper-reducionionismo do homem; e Heidegger, a relação com o mundo pela disponibilidade. Ao final do texto, o aplicativo é interpretado de acordo com ambos os pontos de vista. PALAVRAS-CHAVE: Dromocracia; gestell; Heidegger; violência da velocidade; whatsapp A tecnologia se apresenta de maneira quase inerente à sociedade nos tempos contemporâneos. É claro que, sua existência não é restrita aos tempos recentes. Analisando o fluxo histórico, Trivinho (2007) encontra duas premissas básicas do desenvolvimento tecnológico: (1) a vitória da locomoção sobre o território e (2) e a otimização de produção de resultados, quaisquer que sejam, ao longo do tempo e cada vez em menos tempo. O território, no sentido espacial, foi vencido também no campo da comunicação. No início a vitória acontecia por métodos mais rudimentares de comunicação como cartas, telégrafo e transmissões por via de ondas de rádio. Porém o ápice destes métodos veio com aparelhos que permitem a comunicação em tempo real com o apoio principalmente da internet e de satélites. Neste ponto não há volta, uma vez que estes meios já estão amplamente proliferados em toda a esfera da existência humana (TRIVINHO, 2007). Ligações telefônicas, chamadas de vídeo em tempo real e mensagens de texto se tornam parte comum do dia-dia, ao ponto em que imaginar sua ausência parece algo insustentável. O aplicativo WhatsApp é um dos principais de comunicação por mensagens instantâneas. Além de mensagens de texto é possível trocar áudios, imagens e vídeos com ¹ Trabalho apresentado no IJ06 – Interfaces Comunicacionais do XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste a ser realizado de 17 a 19 de junho de 2016. 2 Estudante de Publicidade e Propaganda no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp). E-mail: [email protected].



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qualquer um em sua lista de contatos. Com uma rede de 1 bilhão de usuários no mundo3, este aplicativo é o objeto de estudo desta pesquisa. Por ser um aplicativo de comunicação instantâneo, ou seja, com conexão adequada não há espera entre a partida e a chegada do conteúdo, ele se torna um objeto adequado. Primeiro para analisar sua relação com a velocidade e violência simbólica da velocidade, discutida amplamente por Eugênio Trivinho. Segundo, para uma breve consideração de sua relação com a essência da técnica moderna, proposta pelo filósofo Martin Heidegger. Sendo tal programa produto de uma sociedade tecnológica, ou propriamente técnica, qual sua relação com a violência simbólica da velocidade e como interpretar seu funcionamento à luz da Gestell? Para responder estas questões é preciso primeiro entender o que define violência simbólica da velocidade e como ela ocorre, com o suporte dos conceitos de dromoaptidão desenvolvidos por Trivinho. Tais definições servirão de ponte para os conceitos de Gestell e essência da técnica de Heidegger. Se apoderando da aparente semelhança entre ambas teorias como ponto de partida de uma discussão mais profunda de suas relações. Tais conceitos serão aplicados na observação do WhatsApp e sua utilização, pois ao identificar sua forma mais comum de uso é possível encontrar ligações com as teorias abordadas de maneira mais pontual. Assim, será possível analisar suas relações e possíveis distanciamentos e é possível perguntar: de que maneira o aplicativo se enquadra no contexto da violência simbólica e como ele se encaixa nos conceitos heiddegerianos sobre técnica? A compreensão destes levantamentos trará clareza à compreensão do ser humano e sua relação com a tecnologia. Tal análise revela mais profundamente a faceta da comunicação no campo virtual, da internet. Que altera singularmente a maneira de se relacionar pessoalmente e trocar informações. Portanto seu estudo aplicado aos meios e veículos de comunicação imersos na lógica da rede permite a compreensão desse fenômeno ainda recente. É dada a largada Os instrumentos tecnológicos se consolidam na história e no cotidiano da humanidade a partir da Revolução Industrial. Neste período as máquinas são colocadas como meios de produção. Seu uso impulsionou o crescimento industrial e elas se foram aperfeiçoadas com as descobertas científicas graduais (eletricidade, motores, rádio). Durante as guerras, no século

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Número de usuários ativos por mês, alcançado em fereveiro de 2016. Disponível em: . Acesso em: 19 de abril de 2016.





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XX, tais meios foram aprimorados em função do aumento da produtividade e otimização dos processos (TRIVINHO, 2007). Neste período ocorre a proliferação dos meios de comunicação, que possibilitam a troca de informações pontualmente: com o telefone e telégrafo; e também em massa: com a televisão, rádio e mais tarde o computador (TRIVINHO, 2007). De acordo com Cazeloto (2007), tais meios, os info-técnicos, foram fundamentais para grandes conquistas no ambiente de trabalho e aos poucos migraram para a esfera pessoal da vida. As casas se enchem desses aparelhos e, por isso, passam a funcionar segundo a mesma lógica, quando antes estavam presente apenas nos ambientes produtivos. “O paradigma da velocidade vem apagando totalmente a diferença entre lógica do mundo do trabalho e a lógica do mundo do lazer” (TRIVINHO, 2007, p. 92). A lógica da velocidade sempre existiu, como suporte para alcançar ou transpor os dois pontos destacados no primeiro parágrafo. Com a chegada dos meios de comunicação tecnológicos e da cultura mediática, seus efeitos se aceleraram e ficaram mais evidentes (TRIVINHO, 2007). Tão grande é sua relevância para a sociedade, que Trivinho afirma existir uma nova lógica de existência, chamada dromocracia, ou o governo da velocidade: Se o imperativo dromológico tutelou a vida humana desde o início, confundindo-se com a própria gestação da técnica como invenção antropológica, deve-se ressalvar que nem sempre ele se alçou a configuração social-histórica com legitimidade e validade geral[...] sua consolidação como regime propriamente dito [...] como “sistema” global configura, pois, matéria recente (TRIVINHO, 2007, p. 69).

Esse sistema global não se refere a um novo Estado, governo formal, e sim a uma maneira de se viver, ou habitus. A consolidação desse regime ocorre através do suporte dos aparelhos que permitem a comunicação em tempo real pela rede. Por isso, é assim chamada de Dromocracia Cibercultural. Assim, Trivinho reafirma o pensamento de Paul Virílio (2007, p. 66): “A relação antropológica com a dimensão dromológica da existência atinge, assim, o seu ponto ômega, na forma intransponível do ‘muro’ invisível da velocidade pura”. Se antes a demora era uma barreira, esta é reduzida ao mínimo no ambiente virtual conectado. Sua velocidade passa a alcançar e cobrir qualquer ambiente, instrumento ou organização que esteja conectada de alguma maneira com os aparelhos ligados a rede. Estes meios instantâneos quebram o “muro” de tempo que antes existia para se resolver qualquer problema. Assim são criados os elementos necessários para que ocorra uma “estratificação sociodromocrática flexível em cujo topo figura a nova casta dos privilegiados, a elite



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cibercultural dromoapta, que opera quase inteiramente no filão do virtual do tempo real e já nem toca o solo próprio das zonas urbanas” (TRIVINHO, 2007, p 73). A partir de então, há uma nova forma de dividir os membros da sociedade. Organização que acontece pela habilidade que cada indivíduo social possui de se adaptar às transformações correntes, chamada dromoaptidão. Esta divisão prefigura um grande problema dessa velocidade frenética pois “a velocidade não pode ser concebida em disjunção com a categoria da violência, concreta ou simbólica” (TRIVINHO, 2006, p. 64). Com esse modus operandi, o indivíduo está automaticamente sob o estado da violência da velocidade em maior ou menor grau, a depender de sua dromoaptidão. E isso não significa que, por exemplo, os aparelhos tecnológicos agridam de maneira física os indivíduos. A violência da velocidade “é, essencialmente, um fenômeno reduzido ao estrato empírico-processual da própria lógica da vida social” (TRIVINHO, 2007, p. 94). Portanto ela é o processo pela qual tudo que existe está sujeito. A necessidade de fazer tudo de maneira imediata, adaptando a famosa questão existencial à: “ser veloz ou não ser.” (TRIVINHO, 2007, p. 97) A dromoaptidão advinda dos meios da cibercultura é questão central da violência simbólica da velocidade, uma vez que é o que identifica um ente como apto para a lógica atual da existência (TRIVINHO, 2006). Sobre aquele que não acompanha o ritmo, o dromoinapto, “recai então o peso de um novo preconceito, por referencialização no desempenho veloz socialmente aceitável como paradigma de normalidade. [...] o outro é estereotipado para ser, obviamente, rechaçado, quer dizer, simbolicamente morto” (TRIVINHO, 2007, p. 107). Na Modernidade Líquida do sociólogo Zygmunt Bauman (2006), há um conceito que muito se assemelha ao da violência simbólica. Nele o indivíduo que aos poucos desiste, se cansa ou falha em acompanhar as transformações constantes ao seu redor passa a ser considerado como excedente, menos importante. O “lixo humano” é tipo de morte simbólica com causas muito parecidas com a da violência da velocidade. Porém está violência não se limita ao dromoinapto, a lógica vigente é tão violenta que subjuga a todos, até mesmo àqueles por um instante acompanham as rápidas mudanças à sua volta. Pois devido ao caráter crescente e incerto das alterações eles vivem sobre o cochichar constante da velocidade que diz: “Tu deves seguir o ritmo: ser dromoapto em todas as operações exigidas” (TRIVINHO, 2007, p. 98).



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O WhatsApp Violento Tomemos então nosso objeto de estudo, o aplicativo WhatsApp. Com uma proposta de “Mensagens simples. Pessoais. Em tempo real”. A definição do app em seu site é “um aplicativo de mensagens multiplataforma que permite trocar mensagens pelo celular sem pagar por SMS”4. Devido às várias plataformas que ele suporta, sua interface passa por algumas mudanças, mas sem perder sua funcionalidade essencial de mensagens instantâneas. A conexão com um plano de dados ou um sinal wi-fi habilita o usuário para enviar qualquer tipo de mensagem para qualquer número da sua lista de contatos. As mensagens podem ser enviadas a qualquer hora do dia, e chegam em seu destino imediatamente após saírem do aparelho emissor. O próprio aplicativo dá ao remetente o controle sobre o paradeiro da mensagem enviada: O “tique cinza” ao lado da mensagem indica que a mensagem foi entregue ao sistema, ou seja: foi enviada. O “duplo tique cinza” confirma que a mensagem foi entregue ao telefone do seu contato. O “tique duplo azul” significa que o contato visualizou a mensagem, informando o horário que a mensagem foi entregue e lida. Além disso o aplicativo também mostra, em uma conversa já aberta, o status do contato. Estar online, por exemplo significa que ele tem uma conexão com a internet e está com o aplicativo aberto naquele instante. Em seu uso mais corriqueiro, as conversas são pontuais. De fato, conversas mais profundas e questões mais sérias e complexas podem e são tratadas no aplicativo, até porque o conteúdo da mensagem não é ditado pelos elaboradores do mesmo. Mas o seu formato de mensagens rápidas, sequenciais e simultâneas que se se revelam com o rolar da página, guiam o usuário por conversas mais triviais, do dia a dia. Há também outras formas de o usar, encontradas no âmbito empresarial. Uma experiência, por exemplo, foi a “Passa um WhatsApp” no Shopping Pq. Dom Pedro5, em campinas. Pelo período de um mês foi disponibilizado para os visitantes um contato que ficava disponível para tirar dúvidas e pedir informações. Aos poucos se torna comum ver empresas menores que disponibilizam um número habilitado para o uso do aplicativo para contato. Há também os grupos de conversa feitos pelas empresas, para troca de informações do trabalho. É importante ressaltar que a essência de cada funcionalidade se reproduz com pequenas peculiaridades nas várias situações e possibilidades do aplicativo (exemplo: conversa de grupo,

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Disponível em: . Acesso em: 20 de abril de 2016. Disponível em: . Acesso em: 20 de abril de 2016.



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lista de transmissão, chamada de áudio, na troca de áudios ou música, etc.). Porém o princípio por trás de cada uma delas permanece o mesmo: instantaneidade da comunicação e acompanhamento em tempo real do estado da mensagem. A partir daqui se começa o tatear da relação entre o aplicativo e a violência da velocidade. A primeira delas diz respeito ao seu suporte. A proposta dos smartphones, um objeto tecnológico com acesso a internet, o define como uma senha infotécnica de acesso (TRIVINHO, 2006). Algo que Trivinho destaca como uma condição para a dromoaptidão. Logo, o fundamento da existência de um aplicativo para aparelhos móveis, pressupõe automaticamente um desnível de velocidades e consequentemente: violência. Colocando o olhar de maneira mais específica sobre objeto, suas relações se tornam mais íntimas. Por sua essência tratar de conversas em tempo real, sua lógica se emparelha com a da violência da velocidade. Se tornando uma das vozes na qual cochicham a necessidade de acompanhar o ritmo constante das transformações, ou dos novos assuntos. Os próprios desenvolvedores comparam o aplicativo ao SMS. Porém, pode ser um equívoco compará-lo assim, ao levar em conta a violência da velocidade. Tal equívoco se esclarece ao analisarmos a funcionalidade de acompanhamento da mensagem. O SMS se propõe a troca de mensagens sem indicar o horário de leitura ou de entrega. Apenas a hora de envio é informada (salvo algumas exceções que agregaram essa funcionalidade em aplicativos de SMS). O caráter violento do aplicativo é potencializado pelo acompanhamento da situação da mensagem. Um exemplo simples de como tal violência se apresenta é a repulsa que alguém está sujeito a levar por não ter respondido imediatamente ao recebera mensagem. Tal comportamento seria injustificável no aplicativo do SMS. Pois a falta da confirmação da entrega da mensagem, põe sob dúvida a possibilidade de contato do remetente com o que foi enviado. Não há espaço para essa dúvida com o “duplo tique cinza” indicado pelo WhatsApp. A censura é uma situação hipotética. Porém por estar no contexto da lógica dromocrática de vida ela, além de plausível é justificável quando “o procedimento práticooperacional socialmente padrão e protocolar correspondente, já instaurado como habitus, chama-se interatividade” (TRIVINHO, 2006, p. 70). Portanto a ausência de interação, especialmente quando solicitada, é a quebra da lógica vigente. A fuga desse padrão dá margem para a repreensão, que se configura como violência simbólica da velocidade. Estas relações analisadas entre o WhatsApp e a velocidade, nos revelam sua posição favorável à lógica dromocrática. Sua essência e forma é a velocidade. Portanto, ele é um:



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colaborador, por ser suporte para que a violência da velocidade ocorra; e instrumento, por ser um método, motivo pela qual a violência se reproduz. Técnica, WhatsApp e Heidegger Sendo o aplicativo, velocidade, é possível partir para uma relação com a Gestell como previamente notou Trivinho (2007, p. 95): “Poder-se-ia dizer – com a devida permissão para o abuso da comparação – que ela opera como uma espécie de Gestell, tal como Heidegger o anteviu e definiu”. Primeiramente, para verificar como eles se assemelham é preciso descrever de maneira breve o significado de técnica e a sua definição específica na era moderna. Heidegger (2007) não descarta uma análise instrumental da técnica, mas ao mesmo tempo a questiona de maneira profunda, buscando a essência que se esconde por trás da mesma. Assim, afirmar que o aplicativo é técnica simplesmente por ser utilizado em um aparato eletrônico não é errado, mas não seria o suficiente. Ao voltar-se para os conceitos gregos, Heidegger (2007) guia o leitor pelo sentido primário da palavra techné, que é bem resumido por Duarte (2009) “Como a téchne, a técnica, é um saber da poiésis, a produção, então ela teria de ser entendida como um saber trazer o ente à luz da presença, em suma, como um modo de desocultar o ente em seu ser.” A técnica está intimamente ligada ao processo de desocultar. Esse desocultar significa “descobrir do ente”, no sentido de tirar a cobertura, revelar o que existe, mas que não está à mostra. A palavra usada, desocultar, pressupõe na realidade que tudo é, porém ainda não foi necessariamente descoberto. A técnica, por ser um meio de desocultar as coisas, está mais ligada com a episteme, com o ‘conhecer as coisas’ do que de fato com os aparelhos tecnológicos e instrumentos técnicos. Ela é, de maneira simplista, uma maneira de “enxergar o mundo”. Mas não a única, argumenta Heidegger. Contudo ao entrar na era moderna, a técnica apresenta outro comportamento, pois o desabrigar que nela impera se torna exigente à natureza das coisas (HEIDEGGER, 2007). O seu desabrigar é “um desafio que se lhe impõe e cujos resultados trazem consigo o domínio planejado e calculado daquilo que assim se desoculta” (DUARTE, 2009, p. 219). Se antes o desocultar tinha como objetivo o conhecer pleno do objeto, o desocultar da técnica moderna se interessa no extrair do ente, a fim de controla-lo. Então aquilo que é descoberto, que passa a existir por meio da técnica moderna se torna disponibilidade, é algo a ser usado quando necessário. Ele já foi descoberto com o requerer (o



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tal desocultar desafiador) como algo a ser usado posteriormente, quando solicitado. Não é mais visto como o ente, autônomo, que pode ser descoberto de outra maneira. Abre-se então uma pausa breve na linha de raciocínio formada até agora para contemplar o objeto de estudo. É perceptível nesta altura da argumentação, enxergar semelhança entre o aplicativo WhatsApp e a técnica moderna de ver o mundo, seu desocultar desafiante. Para isso é preciso partir dos dois pontos essenciais do app: a instantaneidade e o acompanhamento do status da mensagem. Quando conectado, o usuário tem a possibilidade de contatar qualquer um de sua lista de maneira imediata. Todos os seus contatos estão à sua disposição. Eles foram desvelados, à partir do aplicativo, como disponibilidade. “Por toda parte ele é requerido, para ficar posto imediatamente para um pôr, […] para ser novamente passível de encomenda” (HEIDEGGER, 2007, p. 383). Seus contatos são equiparáveis ao ente que assume o posto de subsistência, descrito por Heidegger. Até mesmo a presença física se torna dispensável, mediante a presença daquilo que é buscado, ou daquilo que é oferecido ao que requere. Em tal situação, o outro lado da conversa se torna um replicador ou simples emissor de informações, sejam elas vídeos, áudio ou texto. Esse está disponível a qualquer instante, antes ou depois de qualquer consulta com emissor. Na lógica de Heidegger, ele não é, por exemplo, alguém à ser conhecido. Ele se torna alguém que me está ao meu dispor. Disposto, por exemplo, para: confirmar o horário da reunião; conferir se há comida em casa; pedir para buscar as crianças na escola; avisar que a janta está pronta; etc. No início de seu pensamento, a possibilidade de ser requerido aparece apenas para natureza. Ao avançar, porém, Heidegger argumenta que o ser humano, há de tomar esta posição de disponibilidade, onde ele mesmo se torna apenas uma definição reducionista: meio para algum fim, podendo ser esta finalidade, um outro meio. Aqui, o exemplo do WhatsApp se estabelece, uma vez que o requerente no aplicativo é o ser humano. Porém, ao mesmo tempo em que ele possuí uma lista de contatos à sua disposição, ele também está disponível na lista de contatos de seus amigos. O usuário requere, tornando seus contatos subsistência, mas também é requerido. Ele também é subsistência. Temos assim um ciclo que se perpetua. O descobrir as coisas como subsistência, para ser possível descobrir ainda mais, como subsistência. Essa sequência, ciclo, Heidegger (2007) define como Ge-stell. Esse termo já foi traduzido de diversas maneiras: composição, dispositivo e armação. Seu significado é ao pé da letra: um conjunto, “ge”, no sentido de aglomerado que forma apenas um, de “stell”, seres que foram postos à disposição. “Denominamos agora aquela



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invocação desafiadora que reúne o homem a requerer o que se descobre enquanto subsistência de armação” (HEIDEGGER, 2007, p. 385). Portanto, Ge-stell “é o modo segundo o qual a realidade se desabriga como subsistência” (HEIDEGGER, 2007, p. 387). Como dito anteriormente, este não é o único método de desocultar, mas é o que prevalece na contemporaneidade. É importante destacar que apesar de no exemplo do WhatsApp, o ser humano requerer outro, a essência da técnica moderna, Gestell, se extende para os outros entes. Assim, um aplicativo pode ser parte da Ge-stell. Se ele é requerido e ao mesmo tempo reforça o desvelamento dos entes como disponibilidade. Ou seja, sua maneira de desocultar desafiadora, perpetua o desocultar desafiador. Heidegger (2007) pontua que a essência da técnica pré-define, condicionam o homem a revelar os entes como subsistência. Assim, ela a técnica moderna induz o descobrimento das coisas à partir dela mesma de maneira cíclica. Apesar da possibilidade do ser humano de desocultar, ele não possui o controle da Gestell. Pelo contrário, devido a sua pré-disposição à forma da técnica moderna, ela lhe passa despercebido. “Porque o destino leva toda vez o homem a um caminho de desabrigar, este permanece a caminho sempre à margem da possibilidade de apenas perseguir e perpetuar o que se desabriga no que é requerido e a partir dali tomar todas as medidas” (HEIDEGGER, 2007, p. 389). Aqui, o sentido da operação da Ge-stell encosta com o da violência da velocidade. Heidegger afirma que o problema do desabrigar desafiante é a sua perpetuação deliberada, por ela mesma. Isto é o seu maior perigo (HEIDEGGER, 2007). Assim também, o temível “horror” para Trivinho (2007) é a exigência da cibercultura de que o modus operandi da velocidade se torne habitus, introduzido pela sua violência. “Dessa maneira a violência da técnica avançada adquire, de tão invisível, o ar que lhe talha a sofisticação e a imunidade que também a redime de todo questionamento público” (TRIVINHO, 2007, p. 75). O caráter tácito não é o único ponto em comum entre a Ge-stell e a violência da velocidade. A perpetuação silenciosa e a intransigência das duas também se assemelham. Não cabe neste artigo entender a relação e distanciamentos entre a violência da velocidade e a Gestell. Essa discussão demanda trabalho extenso, porém válido. Tais aproximações justificam uma discussão mais detalhada: trazendo luz a supostas divergências e contribuindo para um diálogo entre a filosofia e a comunicação.



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A conclusão é disponível Ao longo do artigo fica visível que o principal na questão da tecnologia, o que Heidegger chama de essência da técnica, vai além do aparato tecnológico e atinge o campo da ontologia, ou seja, do ser das coisas. Essa percepção parece ser compartilhada por Trivinho (2006, p. 72), para quem a dromocracia-cibercultural “fomenta uma sorte de híperreducionismo antropológico e tecno-operacional da vida social a uma condição neomaniqueísta de extremidades estáveis.” Então, seria o WhatsApp o culpado desse reducionismo ontológico? Para Heidegger, de maneira nenhuma. Já que tal processo de redução se dá pelo desvelar do homem pela técnica moderna, ainda que ele não possua controle sobre a mesma. Trivinho, não dá margem para concluir esta pergunta categoricamente. De fato, o aplicativo corrobora e colabora com a violência da velocidade. Como visto, ele é responsável por inflamá-la, e o híper-reducionismo antropológico vem em virtude disso. Porém colocar a culpa apenas sobre aplicativo é martirizálo perante uma gama incontável de outros combustíveis da lógica dromocrática. À luz de Heidegger é possível interpretar o aplicativo como produto de uma sociedade técnica que inevitavelmente há de desocultar tudo a sua volta de maneira desafiante. Por isso, a solução para o próprio filósofo seria tomar consciência da Ge-stell para evitar ser vítima do envio do destino. Trivinho afirma ser impossível voltar à lógica de vida desprovida de velocidade, assim como Heidegger afirma ser impossível voltar atrás da tecnologia. Não é objetivo então, diante desse cenário, ir contra à lógica atual e “abolir” o WhatsApp. Este é um caminho sem volta. E ainda que as máquinas, com ar de fatalidade, pareçam dominar tudo com sua lógica técnica, Ciro (2012) afirma haver saída para quem decidir pensar fora dessa lógica. A solução, se é que há um problema, está na consciência, na percepção do destino e no evitar, se possível, ser vítima da violência da velocidade. Ambos os autores ressaltam, especialmente Heidegger, uma alteração ontológica, uma mudança na percepção básica do que é “ser”. Perante este postulado, outros problemas surgem: estaria a comunicação se moldando aos novos padrões ontológicos? Como essa nova visão ontológica altera a lógica e processo da comunicação? A comunicação resulta nesta alteração existencial ou vice-versa? Esses questionamentos nos convidam a compreender melhor a comunicação no ambiente cheio de transformações da sociedade tecnológica, além de possibilitar diálogos entre os campos da comunicação e da filosofia.



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REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. CAZELOTO, Edson. A velocidade necessária. FERRARI, P. (Org.). Hipertexto hipermídia: as novas ferramentas da comunicação digital. São Paulo: Contexto, 2007. DUARTE, André. Heidegger e a técnica. In: FIGUEIREDO, Vinícius. Filósofos na sala de aula vol. 3. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009, 202-45. MARCONDES F. Ciro. Fascinação e miséria da comunicação na cibercultura. Porto Alegre: Sulina, 2012. HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. Scientiaestudia, São Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-98, 2007. TRIVINHO, E. A dromocracia cibercultural: lógica da vida humana na civilização mediática avançada. São Paulo: Paulus, 2007. ___________. Introdução à dromocracia cibercultural: contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização mediática avançada. Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia, v. 1, n. 28, 2006.





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