A Espiritualidade de São Francisco de Assis.pdf

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Introdução

- A sua fé era chama que passava de alma a alma, como a dos grandes incêndios passa de casa a casa; era uma energia maravilhosa que fazia despertar a fé latente nas pessoas a quem se dirigia. Apoteose de São Francisco de Assis Frei Gomes Teixeira

No âmbito do seminário de História do Cristianismo Antigo e Medieval foi oportuno propor-se a realização de uma leitura sobre a espiritualidade de Francisco de Assis. Leitura essa baseada na obra Francisco de Assis do autor André Vauchez. Dado o escopo limitado deste trabalho a leitura dessa obra será complementada com artigos sobre a espiritualidade de Francisco de Assis e a obra São Francisco de Assis de Augustine Thompson. Três questões serão colocadas no decorrer desta leitura desde o seu momento inicial: como Vauchez se questiona, terá sido Francisco um místico? O que podemos entender por espiritualidade no contexto de Francisco de Assis? Qual terá sido o núcleo da sua mensagem e a substância da sua crença? As ideias fornecidas pelo autor base da nossa reflexão certamente respondem a estas questões, mas no sentido de aprofundar certos aspetos do seu pensamento foi necessário recorrer a terrenos menos explorados. A mentalidade e a vivência de Francisco serão o enigma do historiador, mas também serão a chave hermenêutica da sua vida e pensamento. A fim de acompanhar o pensamento do autor, as reflexões retiradas da sua leitura serão apresentadas por subtítulos que correspondem aos seis capítulos da sua obra dedicados a esta temática. A reflexão dentro de cada subtítulo terá um título diferente convidativo ao pensamento crítico. Certas definições de conceitos e referências bibliográficas serão apresentadas em nota de rodapé, de forma a facilitar a leitura desta breve reflexão sobre a espiritualidade de Francisco de Assis. Antes de iniciarmos a leitura da Vauchez seria oportuno questionarmo-nos se fará sentido falar-se de uma espiritualidade na vida de Francisco de Assis. O que é a espiritualidade no contexto cristão medieval para nós leitores modernos? O termo espiritualidade remonta apenas ao século XIX, antes desse período os filósofos empregavam o termo para definir a caraterística de um ser espiritual. Por exemplo a espiritualidade do ser humano em contraste com a materialidade de outros seres terrenos. No cristianismo, pouco a pouco, o termo espiritualidade começou a referir-se a uma visão personalizada da fé cristã e do Mistério de Cristo1, neste contexto a espiritualidade é um objeto viável de reflexão e um discurso sobre o modo de pôr em prática o Mistério cristão. Como é uma forma de agir, a espiritualidade é a fé personalizada, a religião individualizada, visto ser a maneira como o individuo, o ser espiritual vive o mistério

(Redatores de Evangile Aujourd’hui), A espiritualidade de Francisco de Assis (1993) ed. e trad. José Maria da Fonseca, Braga, 1993, pp. 11 1

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cristão na globalidade. A espiritualidade cristã é múltipla2, poderíamos falar de múltiplas espiritualidades cristãs uma vez que ao longo da história do cristianismo se exprimiram diversas conceções da vida espiritual com Cristo.

A Experiência de Deus

É através dos escritos de Francisco que obtemos um conhecimento preciso da sua relação com Deus. Como foi notado por Vauchez3, Francisco não reduz Deus a um conceito teológico ou a uma ideia religiosa. Nunca dá uma expressão teológica às suas experiências espirituais, nem as racionaliza num esforço de interpretação. Sem preparação académica Francisco não possuía os instrumentos culturais do seu tempo para realizar uma interpretação intelectual de Deus. Na experiência de Francisco, Deus era a presença ligada às dimensões físicas da realidade. Uma presença percecionada no seu corpo e nos seus sentidos levando-o a uma experiência no seu espirito. Esta “espiritualidade física” é bastante evidente no episódio do crucifixo de São Damião, ao olhar para o crucifixo em meditação, acreditou ouvir as palavras que Cristo lhe dirigia. Ao falar de Deus Francisco utilizava os termos dos trovadores do seu tempo, termos de doçura e de alegria. O encontro com Deus provoca em Francisco várias sensações corporais, o divino é assim percetível unicamente através das suas manifestações concretas e palpáveis4: a natureza, o manuscrito que contem o seu nome, a igreja de pedra onde se celebra a eucaristia, o pão e o vinho que são para Francisco sinais palpáveis da encarnação. Experimentar Deus no corpo Podemos assim falar de uma espiritualidade vivida no corpo, a experiência de Deus é vivenciada na natureza extremamente sensível de Francisco. Para ele o sentimento do religioso e do sagrado regista-se no plano das emoções e expressa-se exteriormente. Na sua conceção Deus não é sensível em primeiro lugar no coração5 ou no plano interior mas no corpo. Durante a fase da sua crise Francisco refugiava-se na floresta, ao regressar parava e rezava na Igreja de São Damião. Perante o altar, suplicava a Deus que lhe revelasse a sua vontade. «Ó glorioso Deus altíssimo, ilumina as trevas do meu coração, concede-me uma Fé verdadeira, uma firme Esperança e um Amor perfeito. Mostra-me, Senhor, o reto sentido e conhecimento para cumprir a Tua santa e verdadeira vontade».6 Rezava diante do crucifixo contemplando a Paixão de Cristo, isto teve um efeito profundo em Francisco, fisicamente ele chorava descontroladamente desejando unir-se ao Cristo nu e crucificado. Nestes momentos flagelava o seu corpo aqui temos uma vivência corporal da oração ou meditação interior dos sofrimentos de Cristo. 2

Idem Vauchez, A (2013). Francisco de Assis. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 315 4 Idem, pp. 315-316 5 Contrariando as ideias espirituais que vigoravam na sua época de que a relação com Deus seguia uma progressão por etapas pelos sete degraus da «escada do céu», como foi definida pelos autores monásticos do século XII. Vauchez (2013). Pp, 316 6 Oração encontrada em dois manuscritos tardios de A Legenda dos Três Companheiros. 3

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A Presença de Cristo Francisco pode ser mal interpretado no que toca a corporeidade da sua experiência espiritual, isto quando olhamos para os estigmas e o sofrimento crístico. A devoção de Francisco não se centrava na dor e no sofrimento que para ele eram secundários em relação á alegria de ser salvo pelo sacrifício de Cristo7, no seu íntimo Francisco procurava reconciliar os homens com Deus. Dando-lhes a conhecer que Ele podia tornar-se Pai deles, ao aceitarem abrir-se à ação do Espírito. Para que isto acontecesse Francisco preconizava dois pilares, ou se quisermos dois portais para o cristão chegar a esse relacionamento com Deus: a palavra de Deus presente na Bíblia sagrada e a Eucaristia. Os dois sinais principais da presença divina no plano terrestre. O sacramento assume uma centralidade na espiritualidade de Francisco que simbolicamente está ligada à sua fé sensitiva. Ao tocar no pão da eucaristia, estaria a tocar no próprio verbo encarnado, a carne de Cristo. Na sua leitura simbólica, Francisco contemplava na oferenda do pão e do vinho durante a missa, o lugar onde Cristo identificava-se, pelo Espirito com o homem. Quando o homem recebe o corpo e o sangue do Filho, torna-se capaz de ver o Pai porque o Filho está nele. Como Vauchez coloca: “com efeito, só Deus pode ver a Deus e o homem só o conseguirá se se tornar semelhante a Cristo”8. A epifania de Francisco e o núcleo da sua mensagem Assumindo a centralidade da Eucaristia, podemos afirmar que a cristologia de Francisco interpreta Cristo como o “divino crucificado”, a Paixão de Cristo marca o vértice da Encarnação e do amor divino. Face a este amor Francisco não tem nenhuma outra resposta a não ser o colocar-se no lugar de Cristo e carregar a sua própria cruz. “Devemos amar de verdade o amor que tanto nos amou”9 Foi na sua epifania10 que Francisco conseguiu encontrar uma forma de amar de verdade e de tornar-se semelhante ao divino crucificado. Na leitura de Vauchez 11 será a identificação com os marginalizados pela sociedade, os rejeitados e os desprezados. Para Francisco os pobres e os humildes não eram apenas instrumentos necessários para a salvação dos ricos como ensinava o tradicional conceito da esmola. Estes que sofrem são imagens de Cristo foi na sua epifania como Thompson sublinha de forma mais intensa que Francisco abriu os olhos a esta realidade. A epifania12ocorreu durante a sua experiência com os leprosos, ao encontrar-se com os leprosos ele descobriu o Cristo crucificado. Como ele escreveu no seu testamento:

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Vauchez, A (2013). Francisco de Assis. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 319 Idem, pp. 320 9 13 2C 196 citado em Vauchez, A (2013). Francisco de Assis. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 321 10 Epifania definida no Dicionário Houaiss Da Língua Portuguesa (2005) por: “Manifestação ou percepção da natureza ou do significado essencial de uma coisa; apreensão intuitiva da realidade por meio de algo ger. simples e inesperado” Pp.3383 Neste contexto Francisco teve uma perceção da realidade através da sua intuição mais profunda e significativa que a sua perceção comum, isto ao ponto de afirmar que depois esperou um pouco e deixou o mundo, o que era amargo tornou-se doce. 11 Idem, pp. 321 12 Thompson, A (2012). Francisco de Assis. Alfragide: Casa das Letras, pp. 42 8

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“Quando andava em pecados, era-me extremamente amargo dar com os olhos em leprosos, mas, um dia, o Senhor Deus conduziu-me ao meio deles, e eu com eles usei de misericórdia, e aquilo que me era amargo se me transformou em doçura da alma e do corpo. Depois esperei um pouco e deixei o mundo”. Este encontro com os leprosos foi o centro da sua conversão religiosa segundo informações fornecidas por Thompson13 isso aconteceu nos arredores de Assis, na leprosaria de San Rufino dell’Arce situada no caminho de regresso de Gúbio. Boaventura situou o episódio em San Salvatore delle Pareti, mas seja onde for que tenha sido, Francisco alojou-se na leprosaria e pagou a estada cuidando deles. Esta orientação pessoal dramática deu frutos espirituais. Mais uma vez teremos que evocar a espiritualidade corpórea de Francisco para mergulharmos neste episódio da sua vida. Quando Francisco mostrou misericórdia para com os leprosos, sentiu em si mesmo a misericórdia divina, ao limpar o corpo dos leprosos e tratar das feridas começou a vêlos comos seres humanos. Aqui a epifania ocorreu e onde antes via enjeitados de quem fugia horrorizado agora via Cristo esvaziado e humilhado a sua visão de vida mudou. Aquilo que para Francisco era feio e repulsivo tornou-se fonte de prazer e alegria, não só espiritualmente mas também fisicamente de forma profunda. Como Thompson aponta: “O sentido estético de Francisco, tão central na sua personalidade, fora transformado, até mesmo invertido”14 Aqui ele recebeu a visão central da sua vida, o núcleo da sua mensagem 15 todos os homens são irmãos uns dos outros e tudo o que rompe os laços desta fraternidade desejada por Deus é pecado. Para Francisco “viver segundo o santo Evangelho” era transformar as relações com os outros e ao mesmo tempo viver com os excluídos. Resposta a Vauchez: Francisco foi um místico Terá sido Francisco um místico? O autor com cautela afirma que depende da definição que dermos a misticismo. Certamente que a prova mais factual que aponta para uma realidade mística interna na vida de Francisco de Assis encontra-se no seu próprio testamento no momento em que viveu a sua epifania com os leprosos. Esta experiência teve um caráter místico porque transformou a sua personalidade e escalou uma tendência que já tínhamos detetado na vida deste homem. Para definirmos aqui o que é a mística recorremos a uma autora portuguesa16 que aponta algumas das dimensões comuns a todas as correntes místicas: “Há uma sede de absoluto, uma rutura de todo o apego e de todo o contingente, numa vocação de interioridade (…). A mística tem um dinamismo próprio que inicia com o desapego do mundo exterior com a vitória sobre as paixões, prossegue, depois, numa atitude de meditação e de contemplação, finalizando com a união completa com o Absoluto. De forma, particular, este desenvolvimento, para a mística monoteísta, dá-se sobre as exigências e a dinâmica do amor”.17

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idem Thompson, A (2012). Francisco de Assis. Alfragide: Casa das Letras, pp.43 15 Vauchez, A (2013). Francisco de Assis. Lisboa: Instituto Piaget, pp.322 16 A autora Eugénia de Magalhães ver obra: Mística e Psicanálise (2015) e o artigo: Sintaxe de polaridade nas experiências humana, religiosa e mística: coplas da cópula do divino-humano (2013) in Revista Lusófona De Ciência Das Religiões – Ano X,2013/nn. 18-19 17 Magalhães, E. (2015) Mística e Psicanálise. Lisboa: Esfera do Caos Editores, pp. 33 14

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Em Francisco há um desapego com os vínculos sociais e familiares, uma originalidade na forma de viver o evangelho. A interioridade de Francisco denota-se na sua atitude de humildade e na sua “ausência” no que toca às questões políticas do seu movimento. Ele contempla Cristo naqueles que nada têm e nada são aos olhos da sociedade. A sua união completa com o Absoluto é assinalada pela estigmatização da sua carne e numa semelhança profunda com Cristo. As dinâmicas do amor e o desapego às realidades exteriores são em Francisco notórias claro que apelamos aqui a subjetividade da vida mental interior de Francisco. Toda esta dimensão subjetiva do seu ser, emerge na experiência mística, sendo impregnada de uma outra caraterística: o amor. Existe na mística cristã uma centralidade no amor, que assenta, numa conceção do Divino pessoal e no desejo de relação permanente entre Francisco e o seu Pai divino. Como a autora afirma 18 a experiência mística cristã resulta de uma experiência de interioridade e de purificação do coração humano, numa relação permanente, pessoal e imediata com Deus; é um encontro real e existencial com o ser. Entendemos que toda a sua missão de vida é realizada à luz desta experiência que suscita em Francisco o desejo de ser o mais humilde e o menor dos irmãos. O Mistério de Cristo divinizou Francisco – cristificou-o – com estigmas ao contrário do comum habitual19 o misticismo de Francisco é vivido e sentido no seu corpo. Francisco experimentou colocar-se diante de uma realidade última: O Absolutamente Outro. A profundidade e a extensão dessa experiência determinaram os seus objetivos de vida e a sua leitura sobre a vida, sobre o homem, as suas ações e a sua fé. Como Vauchez afirmou: “Para ele, de facto, a experiência espiritual consistiu em ter a mesma vida de Deus quando se fez homem, deixando, para tanto, nascer e crescer em si a pessoa de Cristo até fazer da própria existência um empenhamento capaz de levar ao abandono e ao martírio”.20

Uma nova relação com a Escritura: o espírito da letra

Para Francisco a compreensão da palavra de Deus não vinha de um mestre exterior nem de uma análise subtil, o texto do evangelho tinha que chocar a audiência para que esta recebesse a envolvência da sua leitura de todo o coração. O evangelho para Francisco O evangelho para ele era a própria vida de Cristo pronunciada numa comunicação constante a ponto de ser retomada e continuada. Como Vauchez21 nota: “a este título a palavra constitui, com a eucaristia, um sinal deixado por Deus para assegurar de maneira permanente a sua presença no meio dos homens”. A maioria da população não tinha acesso a Bíblia o próprio Francisco sabia apenas algumas partes das escrituras. Sabemos que Francisco fazia uma leitura seletiva da Escritura22 sendo a sua preferência os Salmos e o Novo Testamento. Nos textos dos evangelhos valoriza as passagens que apelam à consciência do homem de forma 18

Magalhães, E. (2015) Mística e Psicanálise. Lisboa: Esfera do Caos Editores, pp. 37 Várias experiências subjetivas assinaladas por místicos cristãos como as noites escuras da alma, a contemplação, a oração, as várias moradas interiores ou a centelha divina 20 Vauchez, A (2013). Francisco de Assis. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 323 21 Idem, pp. 236 22 Idem, pp.329 19

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a orientá-lo para a raiz do seu ser e dos seus comportamentos. As passagens evangélicas mais citadas por Francisco são retiradas dos evangelhos sinóticos23, entre as cartas neotestamentárias mais utilizadas estão as de Paulo aos Coríntios e aos Romanos, bem como a de Tiago e a de Pedro24. Pelo que percebemos desta escolha e desta ênfase, a experiência religiosa de Francisco apresenta-se como uma tentativa levada ao extremo para viver uma vida comportamental e vivencial conforme o evangelho. A Palavra Sagrada encarnada em Gesto Sagrado A vivência é tudo aquilo que está para além das ideias, uma “leitura espiritualmente literal” para Vauchez 25 para mim é uma “leitura vivencial” que transcende o espaço das ideias entrando na vivência profunda que abrange todo o ser para “chegar a uma perfeita conformidade com Cristo”26. Como o autor notou Francisco não emprega o termo imitar (imitari, imitatio), mas o verbo seguir (sequi). A vivência que emana da leitura das escrituras é para Francisco um “seguimento criativo” do modelo de Jesus Cristo e não uma imitação literal. Esta vivência pode ser compreendida no contexto pessoal de cada cristão num compromisso pessoal com o caminho da salvação. Dentro de determinado contexto cada individuo deveria fazer um esforço para reencontrar as atitudes fundamentais de Cristo, como o espirito de oração e de amor. Cristo como modelo: Imitar ou Seguir? Do testemunho da sua vida e dos seus escritos encontramos uma nova definição do religioso, que deixa de ser uma realidade a parte distinta do profano. Para Francisco a experiência religiosa é um compromisso que abrange todos os aspetos existenciais do ser humano. A salvação não se alcança pelas crenças estipuladas no seu tempo, mas é antes uma maneira de viver numa relação de familiaridade com Jesus. No leito da sua morte deixou aos seus seguidores uma indicação bastante clara desta mentalidade: “Cumpri o meu dever: Cristo vos ensine a cumprir o vosso!” Nunca se considerou fundador da ordem, e aqui não pede aos seus filhos espirituais que o imitem, mas que sigam os passos de Cristo, numa fidelidade criativa mais abrangente que uma simples repetição. Compreendemos que em Francisco nunca existiu o desejo de impor a verdade ou a lei aos outros, a vida religiosa é uma luta contra si mesmo. O desejo de viver “segundo a forma do santo Evangelho”, resulta num esforço de purificação do coração e pela busca de uma intimidade cada vez maior com Deus através da oração. Francisco preocupa-se consigo e com as suas inclinações para o mal, pode exortar a sua audiência apelando a consciência e à santidade mas fá-lo de uma forma humilde.

Francisco e a Igreja: o carisma e a instituição

A relação de Francisco com a igreja foi sempre respeitosa, ao contrário de outros movimentos religiosos do seu tempo não procurou contrapor a igreja. A sua atitude perante a igreja é uma atitude de obediência, isto porque acredita que Deus nos seus desígnios escolheu a igreja como mediadora na transmissão da salvação. 23

Mateus 10; Lc 9,10; Lc 18,19; Lc 22,26 e Mateus 5:3-11 I e II aos Coríntios; Epístola aos Romanos, a Tiago e 1 Pedro 25 Vauchez, A (2013). Francisco de Assis. Lisboa: Instituto Piaget, pp.332 26 Idem, Pp.333 24

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A hierarquia eclesiástica tinha a função sacramental, fundamental para Francisco, assim como a transmissão da Palavra sendo que estes dois elementos são no seu pensamento os únicos laços concretos entre o cristão e a graça de Deus. A Ideologia Política e a Ideologia do amor No que concerne á forma como a espiritualidade de Francisco se relaciona com a Igreja é importante sublinhar o aspeto político do papado. A Igreja Romana pretendia apoiar-se nas Ordens Mendicantes para reconquistar as cidades da heresia com a sua pregação zelosa. A Igreja procurava consolidar um mundo cristão por si governado e dirigido em todos os aspetos da vida quotidiana. Francisco não se situava na mesma perspetiva, não demonstra ao longo do seu percurso uma intenção de reformar a Igreja ou a sociedade, mas antes procura promover uma segunda conversão do mundo ao evangelho. Através da mensagem evangélica os homens seriam capazes de reconhecer o amor divino e alterarem assim a natureza dos seus vínculos à imagem desse amor. A ideologia de Francisco era uma ideologia do amor, a única coisa importante não era fazer ou refazer a cristandade, mas apresentar aos homens as atos e os comportamentos oferecidos pela vida de Cristo, como ilustravam os evangelhos. A sociedade só seria cristã para Francisco quando aqueles que a compunham começassem a viver a mesma vida de Deus. Como Vauchez refere: “O que Francisco pretendia não era alterar as instituições, a que de resto atribuía uma importância secundária, mas convencer as pessoas a uma conversão necessária e contínua …”27. Para concluir esta secção podemos concluir que a Igreja aceitou Francisco e os seus irmãos mas não compreendeu a substância da sua mensagem. Os vários mal-entendidos daí derivados levaram Francisco a abandonar voluntariamente a direção da Ordem em 1220 e manter-se como o “líder” de uma hierarquia do carisma e da santidade fundada na sua pessoa28 enquanto a Ordem dos Irmãos Menores era dirigida por uma hierarquia normativa e disciplinar encarnada por Hugolino.

O Evangelho no mundo: uma mudança da antropologia religiosa

Para compreendermos outra das facetas da espiritualidade de Francisco devemos situá-la no seu contexto mais imediato da Alta Idade Média. No cristianismo ocidental o homem religioso por excelência era o monge que vivia separado do povo, ao abrigo do claustro. Nestas categorias mentais o mundo era um lugar povoado por demónios e oportunidades de pecar, levando a mente a esquecer-se de Deus. A originalidade da espiritualidade de Francisco reside aqui na sua intuição, de voltar as costas para esta tradição e reinterpretar o mundo á luz de uma nova antropologia. O mundo não era o lugar da exterioridade ou da vaidade de que é urgente Francisco fugir para encontrar Deus, mas é antes o espaço onde se praticava a caridade. A ponte que o peregrino atravessava sem tempo para instalações permanentes29, tornando a atividade um ato de contemplação no

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Vauchez, A (2013). Francisco de Assis. Lisboa: Instituto Piaget, pp.356 Idem, pp.363 29 Francisco não queria que os seus Irmãos Menores possuíssem propriedades, porque na sua visão estes eram peregrinos de passagem no mundo. Também temia que essa posse de terrenos e propriedades levasse os Irmãos a afastarem-se dos pobres. 28

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espirito de serviço e submissão30. Na sua espiritualidade corporal e dos sentidos, Francisco incorpora a experiência de Deus na experiência humana. A Mensagem do Leigo Religioso A mensagem de Francisco era na sua essência uma mensagem corporal e imagética, os Irmãos Menores trabalhavam nos campos e nas oficinas entrando em contacto com um grande número de pessoas. A mendicância e a pregação convidava os seus ouvintes à penitência, esta mensagem não era sobretudo oral como podemos hoje ler. O comportamento destes irmãos, alegre e mútuo repleto de afeto, testemunhava a real mensagem de Francisco: que era possível um novo tipo de relacionamento entre os homens. A sua mensagem de paz e conversão só podia ser acolhida se os ouvintes vissem nos Irmãos Menores a imagem de uma humanidade reconciliada e sem divisões. Francisco queria superar as diferenças ou as barreiras entre os sexos, as ideias e as várias categorias sociais e jurídicas do seu tempo numa comunhão espiritual plena de vida31. Esta mensagem inspirou um novo tipo de realidade na cristandade latina, a figura do leigo religioso.

Um mediador cultural nas origens de uma nova sensibilidade Tal como Vauchez32 afirmou o sucesso imediato que a mensagem de Francisco de Assis teve na Itália está conotado com o relacionamento bastante original que este manteve com as culturas do seu tempo. Francisco de Assis desenvolveu uma inovação radical no campo social das ideais, começando por utilizar a sua língua vulgar33 em domínios até então estranhos, como a poesia e o canto religioso. O Cântico do Irmão Sol representa, a este respeito uma inovação radical34. Porque ao fazer da língua vulgar e comum do povo um instrumento de celebração ao Criador semelhante ao latim, Francisco concedeu o elemento oral e popular à cultura laica. Libertando-a, assim, da sua própria inferioridade estrutural e remodela-a através da sua própria maneira de pensar e se exprimir, abrindo deste modo como acima referirmos o caminho a personalização da experiência religiosa. Graças aos seus escritos e a sua pregação os leigos de ambos os sexos poderiam ter acesso a uma cultura religiosa que lhes era estranha e envolta pelo latim. O povo italiano poderia agora manifestar a sua piedade numa língua própria, através da poesia e do canto. Como referi acima a mensagem de Francisco deixava muito pouco espaço a palavra escrita e ao discurso eram as imagens, os gestos e o canto que predominavam na sua pregação. Desta forma conseguia captar a atenção dos públicos modestos, partindo da condição cultural e social dos seus ouvintes, dela se servia como chave para abrir a alma e o coração às realidades espirituais.

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Idem, pp. 374 Vauchez, A (2013). Francisco de Assis. Lisboa: Instituto Piaget, pp.374-375 32 Vauchez, A (2013). Francisco de Assis. Lisboa: Instituto Piaget, pp.385 33 O Vernáculo 34 Vauchez, A (2013). Francisco de Assis. Lisboa: Instituto Piaget, pp.388 31

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Como Vauchez coloca: “Francisco gostava de pregar às criaturas evocando a criação, pois procurava menos transmitir uma mensagem ou recomendar um comportamento moral do que incitar os ouvintes a estabelecer um novo relacionamento com Deus e com o próximo, revelando o caráter divino escondido no fundo de si mesmos”35. Podíamos caraterizar a substância da mensagem de Francisco como a urgência que este sente em se dirigir com frequência a pessoas e grupos postos a margem de uma sociedade rica e culta. É a estes grupos que Francisco oferecia um projeto de redenção numa linguagem acessível a todos, num discurso repleto de palavras vulgares e realistas próximo do público. Acompanhando de cânticos e composições trovadorescas arrastava e instruía o público elevando-o com o seu testemunho de santidade. As suas expressões cavaleirescas são reformuladas em palavras e textos dirigidos a Deus num contexto religioso. Isto originou consequentemente uma nova sensibilidade que transpunha as barreiras tradicionais entre o sagrado e o profano. Ao associar os jograis a Deus, Francisco situava o invólucro da sua pregação na linha da cultura cavaleiresca, como cavaleiro da Dona Pobreza ou arauto do Grande Rei suscitando o riso e atraindo a atenção dos seus ouvintes. Esta nova sensibilidade confere à expressão da mensagem religiosa uma dinâmica e um espaço que pertencia até então aos trovadores nas cortes senhoriais e aos jograis que entretinham as cortes e o povo. Francisco Profeta para o seu tempo…ou para o nosso? Vários hagiógrafos medievais qualificam Francisco de Profeta como Vauchez36 indica é necessário compreendermos historicamente o que estes autores entendiam pelo termo “profeta”. A noção de profecia entre os clérigos no século XIII tinha ainda um conteúdo bastante impreciso poderia referir-se por vezes ao dom da clarividência espiritual, ou seja, a capacidade que os santos tinham de ler os pensamentos ocultos. Noutros casos, era a capacidade de predizer o futuro, em particular o destino de algumas pessoas com as quais o homem de Deus estava em contacto. Para Boaventura um dos biógrafos mais importantes de Francisco, a função profética consistia antes em revelar o sentido oculto da palavra de Deus pela pregação. Isto Francisco reivindica claramente no seu Testamento: “O mesmo Altíssimo me mostrou que devia viver segundo o modelo do santo Evangelho” Citando Vauchez: “Aos nossos olhos a sua mensagem pode ser qualificada como profética, na medida em que teve uma dimensão coletiva e um impacto histórico considerável”37. Remetendo esta questão para a espiritualidade de Francisco será útil entender a simbologia do profeta na Bíblia e na tradição judaico-cristã. O profeta é aquele que chama o homem ao coração de Deus o arrependimento é um chamado a comunhão, assim o dom do profeta é unir o coração do homem ao coração de Deus por intermédio do arrependimento (penitência). O profeta desvenda uma perspetiva arrastando os seus ouvintes

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Vauchez, A (2013). Francisco de Assis. Lisboa: Instituto Piaget, pp.391 Idem, pp.401 37 Idem, pp.402-403 36

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para um ponto de fuga situado além do horizonte, onde através da sua palavra abre novos caminhos para o Reino dos Céus. Nesta perspetiva será interessante localizar a dimensão profética do século XIII que correspondia à “era do Espírito”, segundo as especulações milenaristas inspiradas em Joaquim de Flora38, é possível que Francisco tenha sido influenciado por estas expetativas escatológicas. A sua mensagem tem conotações proféticas semelhantes a ética dos profetas bíblicos, nomeadamente no que toca à denúncia aberta aos abusos e injustiças sociais. Claro está que a sua forma de expressão tinha em si uma originalidade familiar também aos profetas bíblicos. Francisco afirmava o valor fundamental da pobreza e da humildade, como os profetas que liam a realidade por símbolos e imagens para ele a pobreza e a humildade não eram formas de ascetismo eram antes símbolos da rejeição do orgulho feudal e da avareza do mundo urbano e burguês. A sua mensagem tinha esta tónica subversiva e diria eu assente numa grande interioridade reforçando as palavras de Vauchez quando ele afirma: “Pobreza, profetismo: a velha conexão bíblica reaparece nele com um carácter rude e uma confiança absoluta nos meios humildes que o levavam a agir fora das vias do poder e das oportunidades deste mundo”39. Apenas com um grande senso de interioridade foi-lhe possível manter-se intacto às influências e pressões impostas muitas vezes pelas vias do poder e as oportunidades do seu tempo que poderiam em muito ter beneficiado o seu movimento. O profeta no sentido bíblico ouve a voz de Deus e é guiado pelo sopro do seu espírito, da mesma forma que relativizava a sociedade e o culto sacrificial israelita. Francisco também relativizava a ideia de sociedade cristã, a “cristandade” que o papado procurava estabelecer. Isto porque para Francisco a conversão interior no coração era a pedra fundamental da vida cristã assente na eucaristia e na escritura sagrada.

Robinot, L. (1993) Arrebatado pelo Espírito em (Redatores de Evangile Aujourd’hui), A espiritualidade de Francisco de Assis (1993) ed. e trad. José Maria da Fonseca, Braga, 1993, pp. 55 39 Vauchez, A (2013). Francisco de Assis. Lisboa: Instituto Piaget, pp.403 38

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