A esquerda optou pela obsolescência da transformação social e se rendeu à ideia de que as coisas são feitas aqui e agora. Entrevista especial com Henrique Costa

May 30, 2017 | Autor: Henrique Costa | Categoria: Political Sociology, Higher Education, Suburban Studies, New Left
Share Embed


Descrição do Produto

A esquerda optou pela obsolescência da transformação social e se rendeu à ideia de que as coisas são feitas aqui e agora. Entrevista especial com Henrique Costa   14 Junho 2016

   “O  ProUni  foi  um  jeito  de  o  governo  “matar  três  coelhos  com  uma cajadada  só”:  atender  a  demanda  do  mercado  de  trabalho,  que precisa desses estudantes em grande quantidade para pagar pouco e manter  a  situação  de  precariedade;  o  segundo  ponto  é  que  as universidades,  até  a  adoção  do  ProUni,  viviam  uma  situação  de estagnação  nas  matrículas  e  não  tinham  um  crescimento  suficiente para manter seus negócios; e o terceiro ponto era a necessidade de os alunos terem um diploma para conseguirem se manter no mercado", constata o cientista político. O  sentimento  geral  entre  os  jovens 'prounistas' 

entrevistados 

para

pesquisa de dissertação de mestrado Entre  o  lulismo  e  o  ceticismo: um 

estudo 

de 

caso 

com

prounistas  de  São  Paulo  “não  é nem  de  agradecimento,  nem  de reconhecimento  de  que  o  governo estava  trabalhando  para  eles”,  diz Henrique Costa à IHU On­Line. Segundo o autor da pesquisa, apesar de a narrativa “criada pelo próprio governo e  repercutida”  amplamente,  “de  que  o  Prouni  implicou  no  acesso  de  grandes



e  repercutida”  amplamente,  “de  que  o  Prouni  implicou  no  acesso  de  grandes massas e de uma grande fatia da classe trabalhadora jovem à universidade, algo que  não  lhes  era  permitido  anteriormente”,  entre  os  jovens  entrevistados  essa política pública não repercute positivamente na imagem que se tem do lulismo.  Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Costa ressalta que sua hipótese inicial era a de que os estudantes “reconhecessem o ProUni como uma política que os beneficiou”, mas se “surpreendeu um pouco, porque não foi exatamente assim.  Eles  veem  o  ProUni  como  uma  obrigação  do  governo  e  de  qualquer governo”, frisa. Na  avaliação  dele,  o  resultado  da  pesquisa  está  condicionado  a  outros  fatores, entre eles, o fato de os prounistas terem de trabalhar o dia todo, estudar à noite para  poderem  se  manter  no  emprego,  que  também  depende  da  conclusão  do curso superior. “As pessoas começaram a ver que ganham 1,5 salário mínimo e continuarão ganhando esse mesmo salário, se não perderem seus empregos. (...) Isso tem a ver com a percepção dos jovens de como todo esse arranjo que o PT criou  em  torno  dos  programas  sociais  serve  para  a  gestão  social  e  não necessariamente  para  a  mobilidade  social.  Foram  criadas  muitas  vagas  de emprego,  mas  se  todas  pagam  muito  pouco,  isso  demonstra  que  essas  vagas ajudam  as  pessoas  a  se  manter,  mas  elas  dificilmente  conseguirão  modificar radicalmente seu padrão de vida”, avalia. Segundo Costa,  a  consequência  mais  grave  dos  últimos  anos  é  que  a  esquerda optou  pela  “obsolescência  da  ideia  de  transformação  social”,  foi  “abandonando bandeiras  pelo  caminho”,  “até  chegarmos  ao  momento  em  que  hoje, basicamente, a nossa única preocupação é se o Michel Temer cortará ou não o Bolsa  Família.  Além  disso,  a  outra  pauta  é  garantir  a  questão  dos  Direitos Sociais.  Entretanto,  o  governo  ‘acabou’  com  o  Ministério  da  Ciência  e  da Tecnologia  e  com  o  Ministério  do  Desenvolvimento  Social  e  a repercussão  foi  mínima,  enquanto  o  então  fim  do  Ministério  da  Cultura causou  grande  repercussão,  sendo  que  era  o  Ministério  com  um  dos  menores orçamentos da União”. Além  disso,  adverte,  a  esquerda  “tem  dificuldade  de  dialogar  com  os  jovens trabalhadores” e está “terceirizando essa tarefa de diálogo para alguns grupos” ligados à cultura, mas não se dá conta de que essa é apenas uma “parte pequena da  juventude”,  “porque  tem  uma  massa  de  jovens  precarizados,  entre  eles  os jovens que pesquisei, que estão fora desse mundo”. Em  contrapartida  à  velha  esquerda,  estão  surgindo  os  partidos  “pós­



Em  contrapartida  à  velha  esquerda,  estão  surgindo  os  partidos  “pós­ materialistas”, que colocam no centro da política outros aspectos que “não a questão econômica, a questão material ou a luta de classes. Na  avaliação  dele,  é  preciso  adequar  a  reflexão  teórica  à  realidade,  porque muitas  análises  estão  “descoladas”,  “embriagadas”  e  não  se  está  percebendo  o que acontece “na base da sociedade”. O primeiro passo, frisa, é “parar para olhar o  que  está  acontecendo  no  mundo,  vamos  parar  para  olhar  o  que  está acontecendo neste país, e ter um pouco de humildade para aceitar que do jeito que estamos fazendo não está dando certo”. Talvez,  pontua,  uma  “faísca”  esteja  surgindo  nas  ações  dos  jovens  estudantes secundaristas:  “O  caso  dos  secundaristas  que  estão  fazendo  ocupações  é  um exemplo,  porque  eles  têm  uma  experiência  comum  de  sofrer  na  pele  o  que  é estar  na  escola  pública  hoje,  o  que  fará  deles  o  precariado  de  amanhã,  porque eles percebem que serão a classe explorada de amanhã”. Henrique Costa é mestre em Ciência Política e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP. Confira a entrevista. IHU On­Line – Como iniciou a sua pesquisa “Entre o lulismo e o ceticismo: um estudo de caso com prounistas de São Paulo”? Henrique  Costa  –  Minha intenção 

inicial 

com 

essa

pesquisa  era  tentar  mapear,  a partir da pesquisa qualitativa, as

imagem cedida pelo entrevistado

hipóteses  que  André  Singer havia  formulado  a  respeito  do lulismo  e  de  como  as  pessoas  que  são  beneficiadas  com  políticas  públicas sociais respondiam politicamente a isso. Imaginava­se incialmente que havia de fato uma repercussão do ponto de vista eleitoral. Quando comecei a pesquisar e mapear  as  pessoas  numa  universidade  privada  de  São  Paulo,  notei  que  o problema era mais profundo e que outros aspectos precisavam ser mapeados e compreendidos,  e  não  apenas  considerar  uma  adesão  ou  negação  ao  PT  ou  ao



compreendidos,  e  não  apenas  considerar  uma  adesão  ou  negação  ao  PT  ou  ao lulismo.  Decidi  fazer  uma  etnografia  política,  acompanhando  e  entrevistando esses  jovens  estudantes  sobre  outros  temas  que  não  somente  a  política,  mas também  sobre  mobilidade,  educação,  trabalho,  principalmente  a  relação  entre trabalho  e  educação.  Essa  foi  uma  pesquisa  feita  em  São  Paulo,  com  alunos  de uma universidade e, portanto, não quero generalizar e dizer que todos os alunos do ProUni pensam dessa maneira. IHU  On­Line  –  Quais  aspectos  novos  foram  incluídos  na  pesquisa para  entender  como  os  estudantes  se  relacionavam  com  o  ProUni  e como  isso  repercute  na  política  e  na  visão  que  eles  têm  do  PT  e  do lulismo? Henrique Costa – Quando se faz a pesquisa qualitativa com uma abordagem etnográfica,  tenta­se  incluir  todos  os  aspectos  que  fazem  diferença  para  a  vida das pessoas que estão sendo objeto de estudo. Então, quando essas pessoas iam procurar o ProUni ou o Fies, elas estavam sendo conduzidas a esses programas por uma série de outras questões relacionadas à vida delas, como, por exemplo, a necessidade  de  trabalhar.  As  escolhas  que  elas  têm,  portanto,  são disponibilizadas  a  partir  das  experiências  que  elas  já  tiveram,  por  exemplo,  na escola pública e nas condições de mobilidade. A maioria dos alunos que entrevistei vinha da Zona Leste por causa da linha do metrô,  porque  a  linha  vermelha  liga  a  Barra  Funda,  que  é  a  região  mais central,  a  Itaquera,  na  Zona  Leste.  Um  dos  campus  dessa  universidade  que pesquisei fica na Barra Funda e na “boca” do metrô, então o fluxo de estudantes vem  da  Zona  Leste  pela  Barra  Funda,  por  conta  da  praticidade.  O  outro grupo de estudantes que entrevistei vinha da periferia da Zona Sul e estudava num  campus  universitário  que  fica  ao  lado  de  um  ponto  de  ônibus.  Então  isso conforma  uma  espécie  de  condicionante  para  a  experiência  universitária,  ou seja, eles condicionam a experiência universitária deles de acordo com a maneira com que podem se deslocar. Nesse  sentido,  a  minha  percepção  foi  a  de  que  era  preciso  saber  como  esses estudantes  faziam  para  ir  até  o  local  de  trabalho  e  do  local  de  trabalho  para  a universidade,  porque  a  experiência  universitária  está  condicionada  a  esses aspectos, do mesmo modo que a experiência em relação à política também, pois se a pessoa mora no extremo da Zona Sul, a perspectiva que ela tem da cidade e da  política  será  diferente  da  pessoa  que  tem  uma  condição  melhor  de mobilidade. E se a pessoa estudou em escola pública numa região mais precária,



isso também vai influenciar sua visão. Não  adianta  somente  perguntar  em  quem  elas  votaram  e,  com  isso,  fazer  uma tabela e tentar referendar as posições políticas. Se você não entende que uma das meninas  é  evangélica,  mas  ao  mesmo  tempo  é  do  PCdoB,  você  não  consegue perceber  aonde  isso  vai  chegar.  Então,  é  preciso  entender  que  em  relação  às questões  municipais,  essa  menina  vai  ter  uma  percepção,  porque  os evangélicos  investem  nas  eleições  municipais  em  São  Paulo,  e  ao  mesmo tempo ela é filiada ao PCdoB porque o pai tinha sido do movimento de moradia e foi dirigente do PCdoB da Bahia. Com esses dados, é possível chegar a uma questão  geográfica,  porque  muitas  dessas  estudantes  são  filhas  de  nordestinos ou são nordestinas, o que entra na questão da referência que as pessoas têm de como o lulismo afetou o Nordeste. E a partir disso se chega à questão: a vida dessas  pessoas  melhorou  mesmo?  E  as  pessoas  vão  definir  seu  voto  por  causa disso? Não necessariamente, pois há outros fatores interferindo na decisão. IHU On­Line ­ Você divide os alunos "2013 foi um “tapa na cara” de todo mundo"

 

entrevistados 

em 

dois 

grandes

grupos:  os  do  curso  de  Pedagogia  e os  dos  cursos  tecnológicos.  Qual  é  o perfil  desses  estudantes  prounistas

que  você  entrevistou  e  como  eles  se  manifestam  em  relação  ao Prouni? Henrique Costa – Esses dois grupos são da periferia de São Paulo: um grupo majoritariamente da Zona Leste e outro da Zona Sul. Pude ver que, a partir das  experiências  de  vida  que  eles  acumulam  em  relação  ao  trabalho,  ao deslocamento, a oportunidades, compreendem a política de modos diferentes. O grupo  das  estudantes  de  Pedagogia  era  mais  velho  e  tinha  uma  situação  de precariedade  maior  porque  passava  por  necessidades  mais  imediatas  na  vida, mas tinha uma referência no PT a partir da ideia de igualdade no sentido de que o  partido  ajudaria  os  mais  pobres  por  conta  do  modo  como  o  petismo  se desenvolveu ao longo dos anos 80, ligado aos grupos de base. O  outro  grupo  é  de  tecnólogos,  jovens  que  atuam  nessa  área  dinâmica  do capitalismo,  que  é  um  setor  novo  e  que  é  resultado  da  estruturação  produtiva ocorrida nos anos 90 e que lida com o trabalho de um modo muito diferente, de forma flexível. Esses jovens estão inseridos nesse modelo flexível, mudam muito de  emprego  e  não  são  tão  pobres  quanto  as  estudantes  de  Pedagogia,  mas trabalham durante o dia, estudam à noite, têm dificuldades em acompanhar as



trabalham durante o dia, estudam à noite, têm dificuldades em acompanhar as aulas,  os  estudos,  têm  pouca  relação  com  a  universidade  ­  a  não  ser  aquela relação  mais  pragmática  para  conseguir  o  diploma  ­,  já  estão  inseridos  no mercado de trabalho e buscam o diploma para se manterem no mercado. Alguns  que  entrevistei  e  voltei  a  entrevistar  mais  tarde  já  tinham  desistido  do curso apesar de ter o ProUni. Então, esse tipo de situação acaba gerando uma frustração,  com  promessas  que  não  podem  ser  cumpridas:  eles  vão  continuar num mercado que é muito rotativo e dificilmente conseguirão ter o que os pais tiveram, isto é, um ofício estável, mesmo com condições não ideais. Então, isso acaba  afetando  o  raciocínio  deles  em  relação  a  outros  aspectos,  inclusive  em relação à política. As  pedagogas,  ao  contrário,  vislumbram  na  universidade  e  no  ProUni  uma oportunidade  de  melhorar  de  vida,  porque  anteriormente  elas  trabalhavam como babás e domésticas. Por isso a possibilidade de se tornarem professoras é vista como uma melhora para elas, inclusive, para terem mais autonomia.  IHU  On­Line  –  A  partir  da  sua  pesquisa,  que  relação  percebe  que esses  jovens  têm  com  a  universidade?  Ela  é  vista  apenas  como  um meio para conseguir um diploma? Henrique  Costa  –  Infelizmente  é  uma  relação  de  cliente  x  empresas. Conversei  com  alguns  professores  que  acabaram  corroborando  essa  percepção de que os alunos precisam do diploma para se manterem no trabalho. A relação com a universidade é muito deficitária porque a maioria desses alunos não tem condições de acompanhar o curso porque trabalham. Acompanhei algumas aulas e  pude  ver  o  quão  disperso  é  o  ambiente  da  sala  de  aula.  A  universidade também não ajuda muito, não estimula para que o aluno tenha uma relação mais aprofundada com o ambiente universitário. Conversando com os alunos fora do ambiente universitário, é frustrante ver que muitos deles acreditam que a universidade é um obstáculo em suas vidas e não algo que vá ajudá­los a evoluir. É como se fosse uma corrida com barreiras: você corre e tem que superar o obstáculo porque do contrário você não consegue se manter. Uma das estudantes que entrevistei disse que tudo que ela aprende na universidade,  poderia  aprender  sozinha  na  internet,  mas  que  mesmo  assim  ela precisa  frequentar  a  universidade  porque  o  mercado  cobra  o  diploma  e  ela acaba ficando sem escolha. Então, esse ideal de universidade que temos, de que se tem uma relação de



conhecimento  com  a  universidade,  é  muito  precário  no  caso  desses  jovens.  No caso das estudantes de Pedagogia a situação é um pouco diferente, porque elas têm  mais  sede  de  conhecimento,  gostam  de  conversar,  de  poder  expor  suas ideias, de falar sobre política ­ algo que os tecnólogos não gostam. Elas têm essa relação com o conhecimento, apesar de ser limitada, e isso tem a ver com uma ideia de vocação, uma vez que elas escolhem o curso porque gostam de crianças, de  ensinar,  de  estar  nessa  troca  com  a  criança.  Portanto,  as  estudantes pedagogas  têm  mais  vontade  de  descobrir  o  mundo  universitário  e  isso  acaba repercutindo em outras esferas da vida. IHU  On­Line  –  Na  sua  tese,  você  menciona  que  os  estudantes  dos cursos  de  tecnologia  negam  a  condição  operária  e  têm  uma  visão mais  focada  no  mérito  individual  e  um  descompromisso  com  as soluções  coletivas  de  melhorias  sociais.  Como  você  chegou  a  essa conclusão  e  como  interpreta  essa  informação?  O  que  seria  se identificar com uma “condição operária” nos dias de hoje? Henrique  Costa  –  Em  relação  aos  tecnólogos,  minha  análise  é  fruto  das observações e das entrevistas que fiz com eles. Como as entrevistas eram longas e  tinham  o  objetivo  de  “pescar”  quais  eram  os  referenciais  dessas  pessoas, percebi  que  num  dos  grupos  o  discurso  caminhou  para  um  lado  e,  no  outro, caminhou  para  outro  lado,  e  comecei  a  buscar  as  coincidências  entre  os discursos. No caso dos tecnólogos notei que eles tinham receio e dificuldade de se  expressar,  as  entrevistas  eram  mais  curtas  e  mais  difíceis.  Além  disso,  eles tinham  experiências  de  vida  muito  limitadas  ou  não  queriam  compartilhá­las. Enquanto as entrevistas com as estudantes pedagogas duravam mais de uma hora, com alguns estudantes tecnólogos não duravam vinte minutos.

"Muitos autores dizem que a centralidade do trabalho não existe mais, mas para esses jovens o trabalho é absolutamente central"

Empresas de si O segundo ponto é que eles acabavam se definindo como “empresas de si” – não  nesses  termos,  mas  é  o  conceito  que  retiro  dos  pesquisadores  que  estou trabalhando –, que é essa ideia de que a pessoa administra a si mesma como se fosse uma empresa: a pessoa precisa estar atualizada a todo momento por conta do nível de competitividade, precisa estar em busca de qualificação e por isso busca  fazer  um  curso  de  inglês,  de  informática,  ter  o  diploma  universitário,



busca  fazer  um  curso  de  inglês,  de  informática,  ter  o  diploma  universitário, porque, do contrário, vai ficar para trás. Quando  se  assiste  a  uma  aula  com  esses  jovens,  você  percebe  que  a sociabilidade  deles  é  limitada,  eles  têm  pouca  interação  e  muitos  chegam  na sala  de  aula,  colocam  o  fone  de  ouvido  e  passam  a  aula  toda  assistindo  a  um vídeo na internet. Essa ideia de que não se consegue inclusive promover relações dentro  do  espaço  universitário  é  significativa,  do  mesmo  modo  que  é significativo o fato de eles terem receio de se expor e valorizarem a centralidade do  trabalho.  Muitos  autores  dizem  que  a  centralidade  do  trabalho  não  existe mais, mas para esses jovens o trabalho é absolutamente central, até de um ponto de vista negativo, de não ser um trabalho dignificante. Quando se percebe que isso está muito presente nos discursos deles, é possível fazer  esse  tipo  de  associação,  chegando  ao  discurso  do  mérito  e  da individualidade.  Quando  perguntei  sobre  política,  eles  se  mostraram absolutamente  contrários,  se  desculpavam  por  não  poder  emitir  uma  opinião. Apenas  um  menino  cujo  pai  era  filiado  ao  PT  falou  sobre  política.  Mas  essa negação tem a ver com essa ideia de não entender mais as referências coletivas, não se entender parte de uma coletividade e não ter uma identidade de classe. Negação da condição operária A  negação  da  condição  operária  significa  dizer  que  os  pais  deles  tinham empregos  que  hoje  são  considerados  de  segunda  categoria,  mas  que  à  época permitiam  que  eles  pudessem  ter  carteira  assinada  e  uma  certa  estabilidade. Hoje em dia, no entanto, esses jovens têm uma vida muito mais atarefada, e não só trabalham e estudam sábado ou domingo, mas a pressão pelo trabalho produz algo muito forte na subjetividade dessas pessoas de modo que elas não têm nem tempo  de  pensar  a  respeito  disso.  Como  as  pedagogas  já  são  mais  velhas  e entendem o problema da precariedade do trabalho de modo diferente, elas compreendem  que  são  penalizadas  pela  desigualdade  social  e  acabam desenvolvendo um senso de coletividade e identidade diferente, que acaba sendo condicionante para outras percepções da vida. Se  esses  jovens  não  conseguem  fazer  essa  identificação  entre  eles,  não conseguem  se  ver  parte  de  alguma  coisa,  fica  complicado  fazer  um  trabalho político porque eles não se veem dessa maneira. Os velhos discursos da esquerda têm muita dificuldade de atingi­los. Quem os atinge de alguma maneira são os partidos “pós­materialistas”, que não trabalham necessariamente a questão de classe. Nesse sentido, muitos desses jovens votaram na Marina Silva ou na



de classe. Nesse sentido, muitos desses jovens votaram na Marina Silva ou na Luciana Genro, seduzidos pela questão da defesa da descriminalização do aborto. Eles não são necessariamente conservadores desse ponto de vista. Eles têm  amigos  gays,  não  gostam  da  ideia  de  religião  com  política,  mas  a  questão material  está  desvinculada  dessas  questões  para  eles,  então,  qualquer  político que entre na política terá, na visão deles, a função de fazer a gestão dos recursos humanos, e o ProUni para eles é uma gestão de recursos humanos. Esses  jovens  saem  de  casa  muito  cedo  para  trabalhar,  pegam  um  transporte lotado, depois vão para a universidade, voltam para casa à meia­noite e, no dia seguinte,  começam  tudo  de  novo.  Por  isso,  pensam  que  não  é  mais  do  que obrigação  do  governo  dar  a  eles  o  mínimo  para  que  possam  cumprir  as  suas tarefas  e  se  manterem  no  mercado  de  trabalho.  Eles  pensam,  então,  que  o ProUni não é o PT quem faz, mas que qualquer governo faria. IHU  On­Line  ­  Que  perfil  de  alunos você  esperava  encontrar?  Ficou surpreso  com  o  modo  como  eles pensam?  O  fato  de  eles  terem recebido  bolsa  de  estudo  do  Estado deveria  fazer  com  que  eles  tivessem

"O ProUni foi um jeito de o   

governo ‘matar três coelhos com uma cajadada só’"

uma  postura  diferente  em  relação  à política ou ao lulismo, por exemplo? Henrique  Costa  –  Nós  estamos  muito  acostumados  com  a  narrativa  criada pelo  próprio  governo  e  repercutida  pelo  PT,  pelo  PCdoB  e  pelos  partidos  que sustentam o governo, de que o ProUni implicou no acesso de grandes massas e de uma grande fatia da classe trabalhadora jovem à universidade, algo que não lhes  era  permitido  anteriormente.  Portanto,  essas  pessoas  se  sentiriam  não “agradecidas”, mas entenderiam que essa possibilidade de chegar à universidade promovida  pelo  ProUni  se  devia  ao  fato  de  reconhecer  essas  políticas  no sentido de que o governo estava trabalhando para elas, mas não foi esse o caso. A percepção dos prounistas No  caso  das  estudantes  de  Pedagogia,  como  elas  já  tinham  uma  série  de experiências  anteriores,  tinham  outra  visão  do  ProUni,  não  necessariamente por  conta  do  ProUni,  mas  da  referência  ao  PT  como  sendo  o  partido  que  as representava.  Então,  quando  o  PT  começou  a  desenvolver  essas  políticas,  elas fizeram  a  associação  de  que  outros  partidos  não  fariam  o  que  o  PT  estava fazendo.  Além  disso,  entendem  que  a universidade pública  não  é  para  elas,



fazendo.  Além  disso,  entendem  que  a universidade pública  não  é  para  elas, porque existe uma divisão social e elas não serão privilegiadas e beneficiadas, de tal modo que o ProUni é o que o governo poderia fazer por elas. No  caso  dos  tecnólogos,  eles  vivem  numa  situação  de  precariedade  no mercado  de  trabalho,  então,  de  modo  geral,  já  imaginei  que  eles  teriam dificuldade de dar entrevistas, mas não sabia direito o que esperar em relação à opinião deles sobre o ProUni. A tendência era de que eles reconhecessem esse programa como uma política que os beneficiou e me surpreendi um pouco, sim, porque  não  foi  exatamente  assim.  Eles  veem  o  ProUni  como  uma  obrigação do governo e de qualquer governo. Estão sofrendo a precariedade do mercado de trabalho e entendem que o Estado tem de oferecer algo, e o ProUni é o que o Estado  pode  oferecer.  Eles  entendem  o  ProUni  com  mais  naturalidade  que  as estudantes de Pedagogia. Os tecnólogos naturalizaram a ideia do ProUni e do Fies, e acham que entrar na USP não é racional, ou seja, eles pensam racionalmente em relação à carreira deles e acreditam que não é racional gastar dinheiro com um curso preparatório, passar meses estudando para ingressar numa universidade pública, porque o que  eles  fariam  na  universidade  pública  é  o  mesmo  que  fariam  numa universidade privada, e ainda correndo o risco de não conseguirem se manter na universidade  pública.  O  mais  racional  para  eles  é  estudar  com  o  Fies  ou  o ProUni,  porque  o  diploma  em  si,  para  eles,  serve  apenas  como  uma  exigência do mercado e não como algo que vai trazer conhecimento ou outras percepções do mundo ou novas ideias. Então, se é só isso, tanto faz. E se para conseguir isso é  necessária  uma  política  pública,  não  é  mais  que  obrigação  do  governo possibilitá­la. Um  dos  jovens  que  entrevistei  estudava  em  duas  universidades:  numa  com ProUni  e  noutra  com  outra  bolsa,  mas  os  dois  cursos  eram  muito  parecidos, porque dois diplomas valem mais do que um, e aí as condições de se manter no mercado de trabalho são maiores. Mas será muito difícil tirar ideias de política de  pessoas  assim,  o  que  não  significa  que  elas  sejam  alienadas;  ao  contrário, quero me afastar dessa ideia, elas são oprimidas por uma vida difícil, porque elas têm de trabalhar, estudar. IHU  On­Line  –  A  partir  da  sua  pesquisa,  você  chega  a  conclusões acerca  de  quais  foram  os  acertos  e  erros  do  ProUni?  Muitos criticaram o fato de o lulismo ter feito uma escolha por esse modelo de acesso à universidade. Como reage a essas críticas?



Henrique  Costa  –  O  ProUni  foi  um  jeito  de  o  governo  “matar  três  coelhos com uma cajadada só”: atender a demanda do mercado de trabalho, que precisa desses estudantes em grande quantidade para pagar pouco e manter a situação de  precariedade;  o  segundo  ponto  é  que  as  universidades,  até  a  adoção  do ProUni,  viviam  uma  situação  de  estagnação  nas  matrículas  e  não  tinham  um crescimento  suficiente  para  manter  seus  negócios;  e  o  terceiro  ponto  era  a necessidade  de  os  alunos  terem  um  diploma  para  conseguirem  se  manter  no mercado.  Então,  foi  uma  escolha  política,  porque  o  governo  manteve  o  apoio desses  grandes  grupos  econômicos  que  são  as  universidades  privadas  hoje,  e muitas delas têm boa relação com o PT. Mas  o  essencial  é  que  o  ProUni,  do  ponto  de  vista  do  governo,  também  é racional no sentido de gestão de recursos humanos, já que as pessoas estão disponíveis e é preciso dar emprego a elas. Então a ideia foi pensar como seria possível fazer isso em um tempo razoavelmente curto, e a opção foi a de colocar as  pessoas  na  universidade  privada  e,  ao  mesmo  tempo,  ajudar  a  financiar  o setor privado e inserir as pessoas no mercado de trabalho. Essa questão permeia não só o ProUni, mas todo o lulismo, ao se pensar que não há mais espaço para políticas de longo prazo, ou seja, essa ideia não “cola” mais nos tempos atuais e é preciso desenvolver políticas de emergência, porque tem uma massa de pessoas na miséria. Assim, se pensou no jeito mais rápido de tirá­las  dessa  situação  através  do  Programa  Bolsa  Família,  do  mesmo  modo que o Fies e o ProUni possibilitaram o ingresso de uma massa de pessoas no mercado  de  trabalho,  fazendo  com  que  os  grupos  privados  e  de  educação fizessem parte desse jogo. Vejo o lulismo como uma forma de integrar os interesses do empresariado com o precariado, ou seja, conseguiu­se juntar essas duas pontas com essas políticas e, nesse sentido, o ProUni tem um papel de prontuário, de ser uma política que funciona  rapidamente,  e  é  vantajoso  para  o  mercado  de  trabalho  e  para  as universidades. O governo tomou essa decisão condicionado à ideia de que não dá para  pensar  políticas  para  trinta  anos,  porque  as  coisas  têm  de  ser  pensadas hoje.

 "Os estudantes precarizados representam um setor da sociedade que está marginalizado do processo político que ocorre no país"

IHU  On­Line  ­  Que  relações  estabelece  entre  a  crise  do  lulismo  e  as

IHU  On­Line  ­  Que  relações  estabelece  entre  a  crise  do  lulismo  e  as conclusões  do  seu  estudo  com  os  estudantes  prounistas?  O  que  a pesquisa  demonstra  sobre  como  os  estudantes  veem  o  PT  e  o lulismo? Henrique Costa – Já era possível vislumbrar que a crise econômica estava por vir, porque a dinâmica do mercado de trabalho já era bem mais baixa e, em certa  medida,  tudo  isso  tem  a  ver  com  o  período  de  prosperidade  do  lulismo, que  esteve  ligado  à  questão  das  commodities,  do  petróleo  e  do  pré­sal.  O crescimento brasileiro  no  auge  do  lulismo,  por  volta  de  2010,  foi  histórico, impressionante  e  possibilitou  que  algumas  políticas  fossem  feitas,  como  a valorização  do  salário  mínimo,  a  concessão  de  créditos,  colocando  no  jogo muitas pessoas que antes não tinham acesso a banco e a crédito e estavam com o salário desvalorizado. Entretanto, o crescimento econômico não era sustentável, tanto  que  a  partir  do  momento  em  que  o  país  deixou  de  crescer economicamente,  o  Estado  passou  a  ter  dificuldades  para  se  financiar  e  para financiar  esses  programas,  os  salários  começaram  a  estagnar,  o  desemprego aumentou  e  o  mercado  de  trabalho  começou  a  se  deteriorar.  Nesse  cenário,  as pessoas começaram a sentir dificuldades e passaram a ter uma visão mais crítica em relação ao processo e ao lulismo. Os limites do lulismo Alguns jovens me diziam: “Estou cursando a universidade com o ProUni,  está sendo uma dificuldade me manter no mercado e cumprir todas as tarefas que me são  impostas,  e  mesmo  assim  não  consigo  ver  a  vida  melhorar”.  Isso  gera  uma frustração muito grande porque parece que o lulismo atingiu seu limite no que diz  respeito  à  promoção  da  mobilidade  social  e  da  ascensão  social.  E  essa situação bateu no teto, porque o país não teve mais condições de financiar tais políticas  –  tanto  que  muito  antes  da  queda  da  Dilma  e  de  toda  a  presente situação,  o  governo  já  havia  cortado  muito  dinheiro  do  Fies,  por  exemplo.  O Fies vem sofrendo muito há pelo menos dois anos, com cortes de orçamento; o governo  inclusive  dificultou  o  acesso  a  esse  programa.  Muitas  pessoas  ficaram frustradas  e  esse  tipo  de  frustração  desemboca  na  questão  política,  pois  as pessoas  começaram  a  perceber  que  aquilo  que  lhes  era  prometido  não  era sustentável. Então, o lulismo precisava daquele crescimento econômico porque do contrário ele não funcionaria. IHU  On­Line  –  Sua  tese  também  trata  de  junho  de  2013.  É  possível avaliar se parte dos prounistas que você entrevistou participaram de



junho de 2013? Henrique Costa – Entre as estudantes de Pedagogia, a adesão foi zero, não vou  dizer  que  elas  eram  contra  as  manifestações,  mas  a  manifestação  era  um mundo  alheio.  Elas  acompanhavam  tudo  pelo  noticiário,  pois  não  tinham  nem condição  nem  motivação  para  participar  das  manifestações,  dado  que  muitas tinham  filhos,  por  exemplo.  Ao  mesmo  tempo  que  elas  apoiavam  as  propostas das manifestações, como melhoria do transporte público, mais direitos, elas têm um  apego  à  ordem  e  não  gostam  do  que  chamam  de  “baderna”.  Elas  sempre faziam esse comentário: “Apoio, acho que as pessoas estão lutando pelas coisas, mas  não  gosto  de  baderna,  desse  negócio  de  quebra­quebra”.  Essa  observação indica  um  pouco  do  que  o  próprio  André  Singer  já  falou  há  muitos  anos,  de como  as  classes  mais  baixas  ­  o  “subproletariado”,  nos  termos  dele  –  têm  um apego  à  ordem,  querem  mudanças,  querem  mais  Estado,  mas  não  querem radicalismo, porque quando se tem radicalismo elas são as que mais sofrem. No  caso  dos  tecnólogos,  que  são  mais  jovens  e  acompanham  muito  as  redes sociais, pude perceber que estavam mais informados, tinham uma opinião mais positiva  sobre  junho  de  2013,  mas,  com  uma  única  exceção,  ninguém  foi  às manifestações.  Muitos  deles  disseram  que  não  entendiam  as  manifestações, porque  as  pessoas  defendiam  muitas  coisas  diferentes,  e  num  determinado momento não sabiam mais exatamente para o que elas serviam. Então, eles não se manifestavam contra, mas não tinham uma “euforia”. O que se pode ver entre as pessoas que participaram das manifestações efetivamente é que elas demonstravam “euforia” com aqueles acontecimentos. Acredito que os estudantes precarizados representam um setor da sociedade que está à margem do  processo  político  que  ocorre  no  país,  são  observadores,  não  estão participando,  não  por  alienação,  mas  porque  são  muito  “exigidos”  em  sua  vida cotidiana. IHU On­Line – Outro ponto da sua tese diz respeito à qualidade das vagas  do  mercado  de  trabalho  para  esses  jovens,  o  que  impede  que eles saltem para a classe média, porque 95% das vagas criadas entre 2003  e  2012  pagavam  1,5  salário  mínimo.  Como  você  analisa  esse dado? Henrique  Costa  –  Isso  tem  a  ver  com  a  percepção  dos  jovens  de  como  todo esse arranjo que o PT criou em torno dos programas sociais serve para a gestão social  e  não  necessariamente  para  a  mobilidade  social.  Foram  criadas  muitas



vagas de emprego, mas se todas pagam muito pouco, isso demonstra que essas vagas  ajudam  as  pessoas  a  se  manter,  mas  elas  dificilmente  conseguirão modificar  radicalmente  seu  padrão  de  vida.  Algumas  pessoas  estão  ganhando Bolsa  Família,  mas  continuam  vivendo  em  um  bairro  sem  saneamento básico.  Hoje  vemos  todo  o  problema  do  Zika  vírus  e  do  mosquito  Aedes Aegypti, ou seja, as pessoas vivem sujeitas a essas situações, e isso infelizmente não mudou. As situações de precariedade em que as pessoas vivem, inclusive na periferia de São Paulo, permanecem. Então, fora um certo momento de euforia do lulismo, em que de fato se criou uma  ideia  de  que  o  país  poderia  ir  para  frente,  se  desenvolver,  as  pessoas começaram a ver que ganham 1,5 salário mínimo e continuarão ganhando esse mesmo salário, se não perderem seus empregos. Essa ideia de que é possível ter mobilidade  e  ascender  socialmente  através  do  trabalho  acabou  sendo  um  “tiro no pé” da própria pessoa que investiu nisso, porque as pessoas investiram muito em educação, mas isso não trouxe muitos resultados. O problema é que investiram no sistema privado, em escola e saúde privada, em seu carro, enquanto do ponto de vista estatal­público a vida não melhorou tanto assim, as pessoas continuam tendo dificuldades para se manter. Portanto, isso é uma  falha  do  lulismo.  [Marcio]  Pochmann,  por  exemplo,  tem  a  opinião  de que se está dando para as pessoas algo que elas nunca tiveram e isso, por si só, já deve  ser  comemorado.  Eu  acho  que  de  fato  isso  não  pode  ser  desprezado,  o problema é que não é e não foi o suficiente, e hoje isso está muito claro. IHU On­Line – Os limites do lulismo foram  percebidos  tarde  demais?

"Quem não viu que o lulismo não era sustentável, no mínimo, se equivocou"

  

Faltou uma crítica mais profunda, ou o que aconteceu? Henrique  Costa  –  Muitas  pessoas tiveram  sensibilidade  para  ver  isso.

Pessoas que realizavam pesquisas, principalmente em periferias, que tinham um pouco mais de sensibilidade para entender que a coisa não era assim, que essa euforia  deveria  ser  contida,  no  mínimo,  e  não  deveríamos  nos  apegar  tanto  ao lulismo,  porque  a  euforia  era  fruto  de  uma  questão  conjuntural;  isso  tem  que ficar claro. O problema é que quando se entra nessa euforia – “o diabo mora nos detalhes”, como diz Guimarães Rosa – não se conversa com as pessoas e não se olha um



pouco  mais  clinicamente  o  que  está  acontecendo  na  base  da  sociedade,  e  o resultado é o de ficar embriagado com o discurso. Veja que a Copa do Mundo foi  uma  apoteose  do  lulismo.  Não  se  fez  Copa  do  Mundo  só  para  as empreiteiras ganharem dinheiro, fez­se porque era um momento de apoteose do lulismo, porque “agora nós somos uma grande nação que está emparelhada com o capitalismo central”, e isso foi uma aposta, a meu ver, equivocada. Deslocamento da realidade Quem  não  viu  que  o  lulismo  não  era  sustentável,  no  mínimo  se  equivocou, embora  muitas  pessoas  tenham  trabalhado  para  difundir  a  ideia  de  que  estava tudo bem. De outro lado, algumas pessoas tinham os instrumentos para fazer a crítica ao lulismo, mas não tiveram a iniciativa de ir atrás desses sinais, os quais já estavam dados há muito tempo, não são de agora, ou da crise que iniciou em 2013. 2013  foi  um  “tapa  na  cara”  de  todo  mundo.  Basta  lembrar  a  frase  do  então ministro  Gilberto  Carvalho,  quando  ao  se  falar  sobre  a  razão  das manifestações,  ele  perguntou  se  “as  pessoas  não  estão  agradecidas  pelo  que fizemos?”. É um nível de descolamento da realidade que hoje cobra seu preço e isso  continua,  infelizmente,  porque  parece  que  esse  “tapa  na  cara”  não  foi suficiente.  Basta  ver  que  o  Rui  Falcão  pediu  uma  greve  geral  para  semana passada e ninguém embarcou, as próprias centrais sindicais não toparam. Isso  é  para  ver  o  nível  de  descolamento  da  realidade  de  algumas  pessoas, inclusive uma dificuldade para aceitar que o mundo, o país e a base da sociedade não  compartilhavam  dessa  euforia  do  lulismo.  É  claro  que  podiam  estar razoavelmente  satisfeitos,  porque  ter  um  emprego  estável  e  uma  carteira assinada  não  é  pouca  coisa,  não  estou  minimizando  isso,  mas  as  pessoas entendem o que está acontecendo hoje porque elas já viveram muito e por isso sabem  que  situações  como  essa  vão  e  voltam  no  Brasil.  Ninguém  falará  de repente: “nossa, agora minha vida mudou e daqui para frente não precisarei me preocupar com mais nada”. Lógico que os trabalhadores em geral se preocupam; quem está precarizado, quem é trabalhador sabe que a situação nunca foi fácil e não tem por que achar que ela deixaria de ser fácil. IHU  On­Line  –  A  partir  das  suas  entrevistas  com  os  jovens prounistas, percebe se algum discurso político os atrai hoje? Henrique Costa – A esquerda tradicional tem dificuldade de se comunicar, principalmente  com  os  jovens  trabalhadores.  Tem  uma  parcela  de  jovens  que



principalmente  com  os  jovens  trabalhadores.  Tem  uma  parcela  de  jovens  que está mais envolvida com a política, principalmente mais engajada com a questão do “Fora Temer”, que está participando dos atos e que se engajou muito nessa questão  do  então  fechamento  do  Ministério  da  Cultura,  a  qual  é  uma juventude  de  classe  média.  Não  estou  desvalorizando  esse  movimento,  porque são  movimentos  importantes,  mas  são  movimentos  de  classe  média,  mais intelectualizada, de artistas e que têm perspectivas diferentes em relação ao que é transformação social para eles. Hoje,  a  esquerda  tradicional  se  apega  muito  a  esses  movimentos.  Quando  falo esquerda tradicional, eu me refiro às tendências mais tradicionais do PSOL e do PT,  que  por  conta  dessa  dificuldade  de  dialogar  com  os  jovens,  por  ter  uma linguagem  muito  antiga,  ortodoxa,  está  muito  descolada  do  que  verbaliza  a juventude trabalhadora. Por conta desse bloqueio, a esquerda está terceirizando essa  tarefa  de  diálogo  para  alguns  grupos,  que  são  grupos  de  juventude  mais ligados  à  cultura,  como  o  Fora  do  Eixo,  alguns  desses  grupos  que  fazem  o trabalho de comunicação, investem muito nisso e estão muito associados a essa dinamicidade da inovação, da criatividade, das redes sociais. Falta interlocução com os jovens trabalhadores precarizados O  problema  é  que  essa  é  só  uma  parte  da  juventude  e,  a  meu  ver,  é  uma  parte pequena, não desprezível, obviamente, mas pequena, porque tem uma massa de jovens  precarizados,  entre  eles  os  jovens  que  pesquisei,  que  estão  fora  desse mundo: eles não sabem o que é Ponto de Cultura, edital e Lei Rouanet, isso não  faz  parte  do  mundo  deles,  eles  não  estão  nesse  capitalismo  hipermoderno de, por exemplo, “vamos trazer o Google para fazer um museu virtual”, e esse é o  problema.  Com  essas  pessoas  ninguém  está  falando.  Em  certa  medida,  a Marina  [Silva]  tentou  falar  com  eles,  mas  se  perdeu  no  caminho, principalmente porque essas pessoas tendem a achar a vinculação entre política e  religião  algo  não  aceitável  e,  do  ponto  de  vista  partidário,  é  uma  situação dramática porque não tem interlocução. Infelizmente,  existe  um  tipo  de  interlocução,  em  um  sentido  ruim,  que  alguns partidos  têm  adotado  em  relação  ao  próprio  ProUni.  Por  exemplo,  decidem fazer um ato dos prounistas em favor do governo [Fernando] Haddad, que foi quem  criou  o  ProUni,  mas  esse  apoio  morre  no  dia  seguinte.  Portanto,  é  um jeito muito instrumentalizado de fazer política. Acredito  que  quem  conseguiu  mapear  melhor  a  situação  desses  jovens precarizados  foi  o  Movimento  Passe  Livre  –  MPL,  e  não  estou  falando  do



precarizados  foi  o  Movimento  Passe  Livre  –  MPL,  e  não  estou  falando  do movimento atualmente, porque o MPL vive muitos impasses e depois de 2013 teve  muitos  problemas,  mas  até  2013  foram  eles  que  conseguiram  entender  o que era a situação de um jovem trabalhador em uma cidade como São  Paulo. Perceberam que o jovem trabalhador sofre todas essas dificuldades, que trabalha em  um  emprego  extenuante,  precisa  de  diploma,  precisa  se  formar  na universidade, fazer um curso de inglês, de informática, e para fazer tudo isso tem de se deslocar pela cidade, tem de pagar um valor de tarifa que está para além do que ele pode pagar, e se pudesse economizar, a vida dele seria muito melhor. IHU  On­Line  –  Como  conclusão  da

"Todos os principais

sua  tese,  considera  que  há  uma sensação  de  que  a  “transformação social” não se encaixa no discurso do protagonismo juvenil hoje ou o modo    como  essa  transformação  social  tem sido proposta é o que não se encaixa? Henrique  Costa  –  Todos  os  principais

atores políticos que faziam parte do governo à esquerda se adaptaram a essa obsolescência da ideia de transformação social"

atores  políticos  que  faziam  parte  do governo  à  esquerda  se  adaptaram  a  essa  obsolescência  da  ideia  de transformação social. Essa ideia já é, por si só, algo menos radical do que já foi quando se falava das reformas de base, antes de 1964. Com o golpe, essa expectativa  se  reduziu.  Então,  veio  a  reabertura  democrática,  se  fez  a Constituição  Cidadã  e  fomos  abandonando  bandeiras  pelo  caminho,  até chegarmos ao momento em que hoje, basicamente, a nossa única preocupação é se o Michel Temer cortará ou não o Bolsa Família. Além disso, a outra pauta é  garantir  a  questão  dos  Direitos  Sociais.  Entretanto,  o  governo  acabou  com  o Ministério  da  Ciência  e  da  Tecnologia  e  com  o  Ministério  do Desenvolvimento  Social  e  a  repercussão  foi  mínima,  enquanto  o  então  fim do  Ministério  da  Cultura  causou  grande  repercussão,  sendo  que  era  o Ministério com um dos menores orçamentos da União. Transformação social é obsoleta Acredito  que  a  questão  da  transformação  social  deixou  de  existir,  virou  uma ideia obsoleta, os próprios partidos de esquerda abandonaram a ideia, que já não está na prática partidária há muitos anos. O governo Lula entendeu que essa ideia de transformação social era obsoleta em um mundo que tinha passado pelo neoliberalismo, e que a transformação social, se existe, é uma coisa de longo



prazo e não temos esse tempo todo, então as coisas serão feitas aqui e agora, do jeito que dá. Entretanto,  esse  tipo  de  pensamento  promove  transformação  social efetivamente?  Estamos  vendo  que  não.  O  governo  Lula,  os  partidos  que sustentaram  os  governos  Lula  e  Dilma  e,  em  alguma  medida,  os  próprios partidos da esquerda se renderam a essa ideia. Portanto, você não verá ninguém hoje  em  dia  que  seja  contra  o  ProUni  ou  o  Fies,  nem  estou  dizendo  que  eles não tenham seu mérito, eles têm o seu valor, mas poderiam ser aplicados junto a outras reformas estruturais que não foram feitas. A questão é: não é que as reformas deixaram de ser feitas porque não havia consenso parlamentar, porque precisava ter a governabilidade, e sim porque houve certa rendição da esquerda a essa ideia de que as coisas são feitas aqui e agora, a transformação social é uma coisa de longo prazo e não há tempo para isso. Então, para esses jovens trabalhadores,  não  é  que  a  ideia  de  transformação social  seja  obsoleta,  ela  simplesmente  não  faz  parte  do  vocabulário  deles. Quando  falamos  sobre  política  ou  qualquer  iniciativa  transformadora,  não  se trata de as pessoas serem contra, ou de que elas não queiram se engajar, é que simplesmente  essa  possibilidade  não  está  dada.  Essa  ideia  de  transformar  o mundo, que é uma ideia rebaixada desde os anos 1990, simplesmente deixou de existir. Hoje se tem a ideia de que políticas focalizadas são o que funcionam, porque foi provado empiricamente que funcionam: o caso do Programa Bolsa Família é cabal.  A  política  focalizada,  da  qual  a  esquerda  era  contra,  quando  se  provou eficiente, foi adotada e a esquerda disse: “é por aí que vamos”. IHU  On­Line  ­  O  que  e  quais  são  os  partidos  de  novo  tipo  “pós­ modernos”  ou  “pós­materialistas”  que  vão  além  de  Marina  Silva, como você menciona? Henrique  Costa  –  Os  partidos  pós­materialistas,  no  “capitalismo avançado”,  são  mais  comuns  e  têm  menos  vergonha  de  se  assumirem  dessa maneira.  Então,  por  exemplo,  existem  os  partidos  verdes  na  Europa,  que  são partidos  que  estão  colocando  no  centro  da  política  outros  aspectos  que  não  a questão  econômica,  a  questão  material  ou  a  luta  de  classes.  Os  partidos brasileiros  estão,  em  certa  medida,  alguns  grupos  mais  rapidamente  do  que outros, aderindo a essa ideia. Assim, há grupos dentro do PSOL, por exemplo, que estão modificando sua maneira de militância para virar um Fora do Eixo ­



isso  não  é  uma  crítica,  é  uma  observação.  Grupos  que  são  menos  ligados  à militância  tradicional,  que  têm  menos  tempo  de  vivência  e  que  são  os  mais jovens dentro desses partidos – do PSOL e do PT principalmente – já estão em um movimento de virar um partido de novo tipo, um partido pós­materialista. Essa  ideia  de  pós­materialismo  é  um  pouco  imprecisa,  mas  é  uma  das  que têm  se  usado.  Trata­se  de  colocar  no  centro  da  agenda  política  questões  de gênero,  questões  ambientais,  questões  ligadas  à  cultura  e  deixar  de  priorizar  a disputa social, a disputa de classe. Não quero dizer com isso que essas questões não são importantes, é claro que são, mas quando se tira o elemento classista da equação, se deixa de dialogar, por exemplo, com esses jovens, porque para eles a questão material ainda é central, do mesmo modo que o trabalho e a educação para o trabalho. IHU  On­Line  ­  Ao  mesmo  tempo  a  “esquerda  tradicional”  também não dialoga com esses jovens trabalhadores que você pesquisou? Henrique Costa – A outra esquerda também não dialoga com eles porque está em  outra  chave  de  discurso,  e  aí  tem  um  problema  discursivo.  Se  analisarmos um partido como o PSTU, por exemplo, ele está em uma chave discursiva que não existe mais, o prazo de validade venceu, apesar de todos os méritos que ele tenha. A questão não é pautar ou não o mundo do trabalho, porque eles pautam o trabalho, no entanto não pautam o mundo do trabalho hoje. Recebi  esses  dias  uma  resolução  de  um  grupo  do  PSOL  sobre  a  conjuntura,  e parecia uma resolução de conjuntura dos anos 1980 ou 1990. Há muitas coisas que aconteceram nas últimas décadas, em termos de pesquisa mesmo, que não são  contempladas.  Fala­se  muito  sobre  a  “Torre  de  Marfim”,  de  que  a universidade não vai para fora de si mesma, mas os próprios partidos também não procuram essas referências, porque elas existem. Mesmo o André Singer, que  é  superfestejado  e  do  qual  todo  mundo  gosta,  se  pegarmos  uma  resolução dele, não veremos nada ali de tudo o que foi estudado, de todos os avanços, do ponto  de  vista  de  entender  a  realidade  social,  esses  dados  são  simplesmente ignorados.  Isso  porque  muitos  grupos  são  muito  autossuficientes,  eles  têm  um problema de dogmatismo, que obviamente ninguém assume, mas que existe. Portanto, se não começarmos a pensar a realidade social a partir do empírico e do  que  está  acontecendo  na  base  da  sociedade,  e  ficarmos  só  na  leitura  dos clássicos e naquela coisa mais ortodoxa, que tem o seu valor ­ não estou dizendo que  não  tem  ­,  mas  será  insuficiente.  Se  não  começarmos  a  fazer  o  caminho



inverso, ficará muito difícil, mas este seria um primeiro passo: dizer “espera aí, vamos  parar  para  olhar  o  que  está  acontecendo  no  mundo,  vamos  parar  para olhar  o  que  está  acontecendo  neste  país  e  ter  um  pouco  de  humildade  para aceitar que do jeito que estamos fazendo não está dando certo”. IHU  On­Line  ­  Você  vislumbra  uma "Não dá para a esquerda achar que tem direito

saída  pela  esquerda  para  a  atual situação brasileira?

adquirido de falar pelos

   Henrique Costa –  Isso  que  falei  agora  é uma condição, se isso não acontecer ficará

trabalhadores ou pelos

muito  difícil,  porque  não  dá  para  a esquerda  achar  que  tem  direito  adquirido

pobres"

de  falar  pelos  trabalhadores  ou  pelos pobres;  as  pessoas  não  veem  assim,

ninguém  assinou  nenhuma  carta  dizendo  “estou  dando  meu  poder  de  palavra para o PT falar em meu nome”. Então, tem que ter humildade para entender que as  pessoas  não  estão  se  sentindo  representadas  pelos  partidos,  e  isso  não  é  só uma questão de ser contra ou a favor da forma partido. Hoje em dia se diz que essa  forma  já  não  é  suficiente,  talvez  não  seja,  mas  chegar  a  essa  conclusão depende de olhar para si mesmo, olhar para o que estamos fazendo e olhar para a realidade social e perceber a distância que existe entre uma coisa e outra, entre a militância da esquerda dos partidos tradicionais e a realidade social. A  partir  do  momento  em  que  a  esquerda  conseguir  fazer  esse  link,  acho  que teremos uma saída. Não sei qual é a saída, mas, enfim, temos de olhar para essa direção.  O  caso  dos  secundaristas  que  estão  fazendo  ocupações  é  um exemplo,  porque  eles  têm  uma  experiência  comum  de  sofrer  na  pele  o  que  é estar  na  escola  pública  hoje,  o  que  fará  deles  o  precariado  de  amanhã,  porque eles percebem que serão a classe explorada de amanhã. Olhar para esses jovens e pensar no que eles têm a nos ensinar, e não instrumentalizá­los e aparelhá­los, dizendo  “ah,  vamos  lá  politizar  esses  moleques  e  trazê­los  para  o  partido”.  É exatamente o contrário, o que podemos aprender com eles? Ali tem uma saída, ali tem uma faísca. Por Patricia Fachin Nota: A fonte da primeira imagem é correiobraziliense.com.br



0 Comments   Recommend

1 

ihu

⤤ Share

 Login

Ordenar por Melhor avaliado

Start the discussion…

Be the first to comment.

ALSO ON IHU

O direito à igualdade como o direito à felicidade. Entrevista especial com Roberto Romano 1 comment • 11 days ago•

Carta pessoal do papa à presidente afastada Dilma Rousseff: a história do "golpe branco" 1 comment • a month ago•

Antonio Fernando Navarro — A justiça se

Esmael Leite da Silva — excelente artigo,

inicia com o tratamento desigual aos desiguais. O regime político para o povo ­ Demo ­ é a democracia. Quando essa se

linguagem delicada e clara. Amei.

Jornal vaticano diz: “Amoris Laetitia” é ensinamento católico válido 1 comment • a month ago•

“A Bíblia é o grande instrumento de libertação dos leigos”. Entrevista com Francisco Orofino 1 comment • 19 days ago•

Fabiano Anderson Pedroso — Cabe

Pedro A. R. Oliveira — Perfeito! A Bíblia

destacar, creio, que o fiel leigo deve obediência ao ordinário local, ou seja, seu Bispo ou Arcebispo e não deve "pular" esse

nos liberta das amarras impostas pelo Código de Direito Canônico.

✉ Subscribe d Adicione o Disqus no seu site Add Disqus Add

ὑ Privacidade



Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.