A estabilização da Beleza no Xangai da 1ª República: Promovendo novidades, vendendo estereótipos

July 9, 2017 | Autor: Beatriz Hernández | Categoria: Visual Culture, Social Cognition, Modernity, Advertisement, Shanghai modern
Share Embed


Descrição do Produto

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

A estabilização da Beleza no Xangai da 1ª República: Promovendo novidades, vendendo estereótipos Beatriz Hernández FCH- CECC

Introdução Segundo as épocas, a beleza tem sido vinculada - em maior ou menor medida - com o bem moral, com a proporção, ordem e a exatidão, passando a ser considerada como uma emoção perante aquilo em cuja ordenação nada sobra nem falta. Houve épocas em que foi equiparada com a harmonia e com a verdade da representação artística segundo a sua concordância com regras áureas geométricas-pitagóricas; ou por outras palavras: em relação à afinidade mais perfeita possível do objeto perante a sua primogénita ideia platoniana. Igualmente houve quem a tenha relacionado com funcionalidade - a beleza do adequado - como Sócrates, que insistia que o seu algo largo nariz era belo porque lhe permitia cheirar melhor... Adicionalmente: o termo grego kalón - utilizado para designar o bonito, o qual segundo a interpretação de Platão também podia servir para designar tudo aquilo que fosse “bom” ou “correto”, admite igualmente ser traduzido como algo que suscita admiração, incluindo os atributos da alma. O pulchrum dos romanos - vocábulo que, durante o Renascimento, deu passo ao bellum – admite hoje quase tantas miradas como indivíduos. Efetivamente, milhares de anos de História teorizando à volta de um mesmo conceito, constante e persistente mas sempre mutável e nunca absoluto. Assim, o belo teima em inspirar e marcar o discorrer de cada época histórica, deixando que grande parte da humanidade se afervorize perante a sua misteriosa capacidade de atração. E se o belo parece guiar muito do nosso dia-a-dia, sem dúvida há um espaço no qual se instalou para o conquistar e dominar: o mundo da arte. A arte - como a define Donald (2006:3) - “is an activity that arises in the context of human cultural and cognitive evolution.” Na sua execução interagem elementos cognitivos e culturais, não só do artista, como também de toda a audiência que a recebe. De este diálogo de ideias, arquétipos, emoções e afectos nasce um produto que, por sua vez,

 

1  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

retroalimenta a coevolução do sistema cognitivo e cultural dos sujeitos envolvidos. A análise de artefactos artísticos será, portanto, uma boa ferramenta para tentar apreciar os processos da mente, as estruturas cerebrais internas que desencadeiam, mas sem perder de vista o contexto histórico no qual se circunscrevem. Arte e beleza formam um poderoso tandem que, no entanto, flui acompassado e dependente de contingências históricas e sociais, as quais devem ser colocadas em paralelo. Observar artefactos artísticos à luz de todas estas condicionantes contribuirá para proporcionar uma leitura perceptiva mais fluida, rica e inspiradora da informação cultural, semântica e expressiva que encerram. Estes dados serão fundamentais para determinar as relações causais objetivas que puderam ter influído na execução da peça e contribuirão também para estender o fio condutor na evolução cognitiva que liga arte e História, ainda para mais tratando-se de um conceito como o da beleza, coberto com uma camada de séculos de teorização. Neste trabalho propomos abordar ‘o belo’ como manifestação cultural na particularidade de um contexto especialmente emocionante: o Xangai da década dos 20 e dos 30. Nesta cidade portuária, Oriente e Ocidente chocaram, gerando assim uma tensão de instintos, sensibilidades, capacidade de imaginação e inteligências emocionais díspares que contribuíram para a codificação de uma peculiar miscelânea onde também não faltou a beleza. A partir das imagens que nos proporcionam os calendários de publicidade que circularam na cidade tentaremos aproximar-nos de alguns dos processos epistemológicos que estes calendários codificaram e analisaremos o modo como esses condutores cognitivo-culturais serviram possivelmente para condicionar a execução dos pósteres. Aproveitando a natureza metacognitiva da arte, tentaremos estabelecer os instrumentos autorreguladores que puderam ser úteis para ajudar a definir uma sociedade que procurava uma nova identidade. Partindo destes pressupostos, sopesaremos a medida em que estas imagens - que anunciavam um ideal de futuro - enriqueceram e modificaram o modo de olhar

a beleza que elas mesmas promovem e bem como a percepção da mesma.

Igualmente procuraremos analisar em que medida estes pósteres foram usados para partilhar representações mentais dentro da rede cognitiva e para impulsionar um determinado padrão de encanto e atrativo.

 

2  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

O facto de estas imagens aparecerem num determinado contexto e seguindo uma ordem particular faz com que elas funcionem não como ícones individuais, mas como um sistema simbólico que conforma uma rede iconológica. Uma imagem não pode ser desvinculada do seu propósito nem dos requisitos sociais que a produzem. É dentro de um contexto onde a linguagem visual ganha vigência e aceitação, ao perfilar-se junto de outros produtos da cultura que a rodeia. Assim, ao comparar estes retratos com outros extraídos da imprensa diária – principalmente desenhos e caricaturas -, tencionamos contrastar e ampliar os algoritmos interpretativos que a sociedade da época gerou em relação ao novo arquétipo de beleza publicitado na fascinante Xangai dos anos 20 e 30.

 

3  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Um olhar para as Xanghai Beauties: entre os detalhes objetivos e a identificação subjetiva A arte não é uma atividade neutra. Pelo contrário é concebida para influenciar e pôr em funcionamento mecanismos no cérebro e na mente do espetador. Como Donald reconhece (2006: 4): “art should be regarded as a specific kind of cognitive engineering”. Os elementos que compõem uma peça de arte são ao mesmo tempo causa e consequência: eles resultam de uma determinada reação perante o mundo por parte do artista e com eles o artista deseja fazer reagir o espetador. De aí que o seu objetivo final e ineludível seja sempre o de gerar consequências cognitivas, maquinar um “state of mind” na audiência, seja ele de que signo for. A nova cultura urbana que emergiu na China de finais de XIX ajudou a cristalizar as mudanças e os ajustes conceituais que o país estava a experimentar devido à incursão de preceitos ocidentais após a derrota do país nas Guerras do Ópio (1839-1842 e 1856-1860). À força do Tratado (ou: À força de um tratado), potências europeias foram se instalando e partilhando espaços, alterando desta forma

a ordem de acesso simbólico até então

imperante e introduzindo um novo discurso de modernidade. Tendo em conta que as novidades são disseminadas com maior efetividade através do visual, a produção pictórica do momento apropriou-se da tarefa de familiarizar o seu público com a imagem do moderno. Jornais, revistas e livros impressos nesta época foram o ecrã onde se projetaram novos estilos de vida, valores e elogios a tudo quanto chegava do exterior como novidade. No caso das Xangai Beauties devemos ter em linha de conta que são um produto deliberadamente pensado para atrair de duas formas: por ser o trabalho pictórico de artistas num contexto e num espaço determinado que desejam retratar, e por serem escolhidos para ilustrar cartazes de publicidade, com todo o peso orientador e controlador que isso implica. Em Shanghai - uma das cinco cidades que se converteram em território concedido à presença ocidental- o choque dos cidadãos nativos com os produtos estrangeiros exigia adotar uma forma de apresentação da nova cultura de consumo que fosse integradora. Para isso, desenvolveu-se este novo estilo visual característico dos calendários de publicidade que muito facilitou a comunicação entre o novo e o tradicional, entre o doméstico e o exótico.

 

4  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Apareceram na China, ainda para mais, numa altura em que o desenvolvimento tecnológico permitiu com a distribuição massiva destes calendários. A chegada e a proliferação de técnicas litográficas a partir dos últimos anos do século XIX facilitam a difusão das imagens em grande escala e a cores, acabando com a lentidão e com a fraca qualidade da xilografia tradicional 1 . O nome que este método recebeu com a sua implementação é bastante revelador: dianshi chengjin (点石成金) que literalmente significa “tocar uma pedra e convertê-la em ouro” (Pang 2005:20) e que forma parte de um ditado popular frequentemente usado para indicar a magia que reside na transformação de elementos mundanos em exemplos de extraordinária beleza através, curiosamente, de “learned hands and inteligent minds.” Este impacto “mágico” das novas tecnologias foi surpreendentemente atingido através de uma descrição realista do ambiente que esse mesmo impacto criou e que foi considerado fonte empírica de conhecimento. De facto, alterou-se o modo como as imagens foram entendidas. A oscilação que esta forma de impressão possibilita entre o desejo de sublinhar o máximo de detalhes objetivos da pintura e o reforço na identificação subjetiva de quem olha proporciona-lhe um poder importante na estabilização do indivíduo perante a ameaça e as incertezas da modernidade. Deste modo, o leitor confrontado com estas imagens conseguia consolidar um certo grau de identificação devido à ênfase feita no pormenor e no realismo do ‘aqui e agora’ que veicularam a materialização e a visualização de mudanças até então estranhas e temíveis. Igualmente, as mudanças no campo representativo e a expansão de técnicas de arte realista ampliaram as possibilidades descritivas das imagens. Se até este momento, a arte clássica tradicional e os seus esmaecidos e etéreos perfis tinham imperado nas produções, no fim do século XIX, o realismo, a perspectiva e o chiaroscuro – este último tintroduzido por europeus no século XVII – começam a ganhar terreno2. Anteriormente, as ilustrações tradicionais incluídas em livros impressos - como por exemplo as que figuram em volumes impressos durante a dinastia Ming – tinham uma função eminentemente de suporte

1 As técnicas de impressão na China podem ser consideradas como sofisticadas já desde a dinastia Ming (1368-1644). No entanto, os seus elevados custos fizeram que só a elite conseguisse a elas ter acesso. Os principais promotores da reprodução massiva responsáveis pela redução do preço final foram os missionários que introduziram quer a imprensa de tipos móveis quer a litografia na China. Para mais detalhes Pang (2005). 2 Devemos sublinhar que todas estas alterações pictóricas foram causa da própria mudança política que se viveu com a queda da última dinastia Qing e o estabelecimento da Primeira República. A supressão dos exames imperiais põe fim ao monopólio dos letrados nas artes, o seu carácter elitista e o seu valor como marca de distinção classista. Já nos últimos anos do século XIX, a arte luta por sair da reclusão de palácios e divisões privadas e empenha-se em popularizar-se e o contexto político, cultural e técnico –como vimos – acaba por ser favorecedor. Todavia, isto não significa que a arte popular tenha deixado de ser domínio da classe alta: de facto, a produção cultural ficou especialmente vinculada com a elite intelectual dado que era esta – e não os camponeses ou as classes menos favorecidas quem tinha acesso a jornais, revistas ou livros.

 

5  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

suplementário à palavra escrita e de promulgação de modelos de conduta que mantinham o status quo da época. Pelo contrário, as ilustrações que começam a circular no final da Dinastia Qing já não são vistas como simples formas de embelezar um texto. Pelo contrário, absorvem todo o protagonismo apresentando uma realidade que é vendida aos leitores como prova empírica, realista e objetiva através da qual poderiam obter conhecimento direto sobre o mundo moderno. De aí que fosse inevitável advogar por uma mudança de estilo e pela escolha de um tipo de ilustração que expusesse toda a sua habilidade para documentar cuidadosamente a realidade. Na estética tradicional chinesa, o espiritual tinha sido privilegiado sobre o material. Desta forma, as descrições abstratas e espontâneas, fruto do movimento livre do pincel e a mão do artista (xieyi 寫意), imperavam sobre as descrições concretas e corpóreas (xieshi 寫實). Assim sendo, o trabalho artístico dos clássicos literati, ao estar baseado em manifestações da consciência humana e em universais genéricos, nunca poderia ser reduzido à sombra do mundo real, tal como foi entendido por Platão. Com a intensificação das propriedades formais tangíveis, a aparência, no lugar do espírito, passa a reger a ordenação da representação pictórica3. Portanto, com a disseminação das imagens estandartizadas que monopolizam estes calendários publicitários, o que encontramos é, no final, um desejo epistemológico e realista da captação do novo entorno moderno. De facto, estes pósteres equilibram na sua composição, por um lado, a representação material da realidade e promovem, por outro e ao mesmo tempo, um determinado “modo de olhar” muito mais dinâmico e ideologicamente formulado de que o olhar contemplativo que imperava na época clássica tradicional. Cada detalhe visual produz conhecimento e indiretamente promove a autoidentificação do sujeito e o empowerment da ideia simbólica de progresso e modernização que encerram. Olhar é, sem dúvida, um ato poderoso no qual inevitavelmente se evoca ao mesmo tempo desejo e temor. Com estas imagens conseguimos ter acesso quer ao “olhado” que ao “facto de olhar”. Aproximam-nos tanto do objecto de desejo como do anelo por explorar e domesticar a modernidade que atemoriza.

3 Isto não significa que o conceitualismo desaparecesse suplantado pelo realismo e o seu interesse na verosimilhança. Pelo contrário, durante os anos 20 e 30, manteve-se um prolífero debate sobre estilos e formas de renovação da pintura tradicional chinesa que extravasou a polaridade tradicionalismo-modernismo e que deixou figuras fulcrais para a arte chinesa como Xu Beihong (徐悲鸿,18951953), Chang Yu (常玉,1901-1966), Fu Baoshi (傅抱石, 1904-1965), etc.

 

6  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Este novo espaço pictórico proporcionou ao sujeito que o observa ferramentas visuais com as quais ganhou um poder epistemológico e cognitivo para reduzir a desordem do não-visionado. Contudo, este realismo visual deslocou todas as possibilidades hermenêuticas possíveis celebradas pelas pinturas tradicionais chinesas. Fixou, através da estandardização e da promoção de uma arquitetura cognitiva “in-averageness”, as ambiguidades que supostamente no passado poderiam ser publicitadas como um estilo menos realista. Utilizando a explicação de Jenk (cfr. Pang 2005:33), este tipo de cultura visual “will ‘deskill’ the interpretative capacities inherent in Chinese traditional cultural domains, indirectly limiting people’s comprehension of modernity.” Assim, a modernidade promovida pelas imagens que circularam nesta época não tem unicamente a ver com mudanças, supôs também uma estabilização dos câmbios, ao reforçar ideologias forjadas e fixar padrões que popularizaram o que aparecia como novidade. Todavia, devia conseguir esta fossilização e estabilização sem impedir nem travar o próprio curso de progresso. De que forma conseguiu a arte equilibrar este paradoxo? Como foram afetados conceitos como o de beleza por esta viragem de estilo? Em que medida terá ajudado o realismo a domesticar o novo cânone de beleza importado pelo “imperialista” ocidental? Ter-se-ão mantido traços prototípicos do passado?

 

7  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Technologies of Recognition: estabilização do belo, do moderno e do ocidental O aparecimento e a proliferação de novas mercadorias associadas ao crescimento económico bem como o estabelecimento de novas políticas têm vindo a impulsionar historicamente a incorporação de novos vocábulos na sociedade receptora. A China não é nem foi exceção, e entre os variados termos que surgiram recentemente, meinü (美女)- que significa mulher bela- destaca-se como exemplo desta tendência. Curiosamente, utilizado como prefixo, meinü forma agora denominações quotidianas como meinü zuojia (美女作, beautiful woman writer), meinü yundongyuan (美女运动, beautiful woman athlete), meinü jingcha (美女警察, beautiful woman police officer), meinü jiaoshou (美女教授 beautiful woman professor), etc. O mais frequente de todos: meinü jingji(美女 经济 ) ou beauty economy. Todavia, apesar de todas estas inovadoras entradas no dicionário, o belo e a beleza como convenção social possui uma extensa tradição histórica. Já na China pré-moderna se organizavam atividades públicas para determinar o ranking das mais bonitas. Histórias que se espalhavam através da tradição oral falavam acerca das “The Four Great Beauties” (Xi shi -西施- século V a.C.; Wang Zhaojun -王昭君- , século I a.C.; Diaochan -貂蝉-, século I a.C. y Yang Guifei - 杨贵妃 -, século VII da nossa era). Poemas e relatos narravam o fascínio que causavam estas figuras, algumas delas empenhadas , no fim da história, em lutas pelo poder e encarnando a origem de todos os desastres (hongyan huoshui) que acabavam com dinastias ou desencadeavam tragédias de toda índole4. Contudo, a beleza era medida igualmente em termos de bondade, excelência, moralidade e integridade. Mas o que havia de belo em elas? O que perdura delas com o passar do tempo, as mudanças de épocas ou as oscilações dos gostos? Serão belezas eternas ou não conseguirão deter as influências de outros conceitos de atrativo chegados do exterior? Como já apontámos, o belo não pode ser determinado por regras fixas que sirvam de um modo universal e incontestável. É verdade que é um conceito universal, mas só no sentido da sua constante permanência no debate cultural transnacional e transdisciplinar. A sua definição não pode ser esboçada como normas, mas tão só a partir da consideração dos efeitos, sentimentos e reações que produz

num momento determinado e num local

determinado. Assim, o ideal de beleza que estes pósteres publicitam acaba por ser uma 4

 

Sirva como exemplo o da cortesã Chen Yuanyuan, tida como responsável pela queda da dinastia Ming em 1644.

8  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

construção artística executada para suscitar a evocação de efeitos como identificação, simpatia, aceitação e naturalização do moderno, virtude feminina, elegância, glamour, felicidade, prosperidade, liberdade, independência, etc. O que perdura principalmente é a sua essência convertida em metáfora, o valor simbólico associado à sua representação visual: a sua capacidade de dar corpo a ideias como a perfeição moral, a virtude, o amor, a lealdade, a defesa da pátria, a elegância, a perfeição de um espírito cultivado, etc. Com a chegada de novas tendências ira mudando o seu exterior e ajustando o seu perfil segundo os novos cânones em voga. Mas a sua mensagem interior permanecerá inscrita na sua nova silhueta. Mantendo esse vínculo com o passado, igualmente, pretende-se estabilizar a vertigem das mudanças que se sucedem durante o período no qual nos encontramos. Assim, o impulso reformista produzido pela convivência com o moderno ocidental acaba sendo moderado e o choque cultural suavizado. Segundo Teresa Perkins (cfr. Kitch 2001: 5), a força de um estereótipo é o resultado de três factores: simplicidade, reconhecimento imediato – o que faz do seu papel comunicativo uma ferramenta fulcral – e a sua referência implícita a um consenso social perante certas singularidades e perante um conjunto de significados culturais partilhados. Na China, os pósteres em forma de calendários eram usados já desde 1896 (Hestler 2005: 16) e utilizavam a estética dos tradicionais New Year Pictures e as suas estandardizadas divindades que simbolizavam sorte, felicidade e longa vida para atrair os clientes. Todavia, não foi até a confluência de várias circunstâncias - como a chegada das influências ocidentais e a necessidade de domesticar produtos forâneos ou a seleção da figura feminina como a sua estrela indiscutível - que estes cartazes se tornaram num poderoso fenómeno de ubiquidade indiscutível. Cientes da necessidade de alterar os gostos locais e fazer os seus produtos forâneos parte integrante da identidade individual, os empresários da época não hesitaram em controlar reações através da difusão de imagens poderosas visualmente, mas geralmente estandardizadas, para dar uma sensação de continuidade e não de ruptura com os protótipos mais tradicionais.

 

9  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Parece, assim, que a evolução do padrão da beleza durante os anos 20 e 30 em Xangai poderia amoldar-se ao efeito que Winkielman et ali. (2006) definem como “beautyin-averageness”. Respeitando formas e conceitos prototípicos, conseguia-se em paralelo favorecer a fluência de categorização da imagem bem como a sua capacidade de atrair (argumento este também esgrimido em Magro 1999).

Figure 1.

Uma maior fluidez na interpretação favorece reações positivas perante o objeto observado, estimulando seguidamente ideias positivas de recompensa e gratificação. Segundo o estudo anteriormente citado, bem como o de Reber et ali. (2004), e tendo em conta o forte peso hedónico e subjetivo do conceito que estamos a analisar, a categorização de algo como belo dependeria tanto da habilidade do objeto para desencadear o processamento de estímulos mentais e cerebrais como do valor estético da obra. Igualmente, a quantidade de informação necessária é também uma determinante importante da beleza, o que traz de volta o argumento da simetria e da repetibilidade dos estereótipos como facilitadores do processo perceptivo. Ao ordenar cronologicamente as imagens das Xangai Beauties, conseguimos determinar alguns traços que foram transformando-se nas figuras femininas tomadas como  

10  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

representantes da beleza da época. Reconhecendo a posição de influência metacognitiva que estes autores acapararam, mas considerando ao mesmo tempo que o artista procura a sua inspiração na sociedade, acionamos deste modo um ciclo de influências autopoéticas no qual entorno pictórico e entorno social se vão modelando reciprocamente. O artista promove um determinado padrão de beleza - tendo em conta a sua visão e antecipando as possíveis reações da audiência – e a sociedade analisa-o e aplica-o, dando em troca um novo material de observação ao pintor. O circuito não se detém e continua a girar em torno do propósito constante, mas não imóvel: a beleza. Com a queda do império em 1911 foi-se incorporando paulatinamente um standard diametralmente oposto ao da tradicional mulher de palácio. Rostos ovais, sobrancelhas em forma de folha de salgueiro, alongados e finos olhos, pequenos lábios encarnados em delgados e frágeis corpos deram lugar ao código que promovia grandes olhos marcados por finíssimas sobrancelhas, bocas amplas e sorrisos abertos em corpos ágeis e cheios de energia. O protótipo de atriz de Hollywood era apresentada como o novo ideal de mulher bela. Contudo, algo seguiu incólume: o valor social e o significante moral que essa beleza transmitia 5. Assim, os rostos das mulheres, porque publicitam ideais, representam quer um específico tipo de beleza feminina quer um “estilo” de vida no qual confluem outra série de atributos e valores sociais, tais como a juventude, a inocência, a sofisticação, a modernidade e a progressão social. O que distinguimos é uma alteração no significante, mas não no significado. Todos esses valores são tacitamente colados na imagem, partilhados socialmente e indispensáveis para descobrir as verdadeiras intenções de uma imagem inserida no seu contexto espaço-temporal. Assim, olhando para esta história de evolução visual conseguimos perceber de que forma as imagens incluídas nestes pósteres trabalham para criar, transformar e perpetuar certos ideais culturais em detrimento de outros. Tendo em conta que – tal como defende Donald (2006:8) – a evolução é conservativa, a mente também retém etapas prévias na sua estrutura. Este factor é, no entanto , incontornável no caso chinês, país que se caracteriza pela sua capacidade de mudar dentro da tradição, gerindo habilmente todos os oxímora que este paradoxo desencadeia. Isto explica o facto de, durante os primeiros anos de produção de calendários promocionais, antigas belezas imperiais partilhassem espaço e

5 Este argumento cultural encontra uma explicação neuro-científica no estudo de Jacobsen et ali. (2006). Os autores concluem que avaliações estéticas relativas à beleza desencadeiam uma ativação na rede cerebral que geralmente estão subjacentes nos juízos valorativos e que também partilham o mesmo substrato neuronal que os ditames sociais e morais.

 

11  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

protagonismo com os novos imaginários da época num diálogo contínuo de eleição e reeleição de antepassados e de prescrição de novas economias de discurso visual. Com o passo do tempo, elas desapareceram visualmente do mesmo leque onde no passado tinham sido protagonistas indiscutíveis, mas a sua essência manteve-se incorporada a outra imagem prototípica que lhe desse forma mas sem alterar o conteúdo. O ideal de mulher bela continuou a ser publicitado junto com outros fatores morais e espirituais que não podiam dissociar-se do protótipo de beleza. Igualmente, a força iconológica das Xangai Beauties baseia-se na forte estandardização de caras, miradas, poses, adornos, vestidos, penteados, etc. A repetição constante de algo inovador acaba por ajudar à sua rápida aceitação, reduzindo consideravelmente o impacto inicial de temor e receio que poderia em princípio suscitar em quem está a olhar pela primeira vez. Grande parte dos pintores que foram contratados pelas agências de publicidade da época estudou em escolas de arte nas quais se seguia manuais de fisionomia como o Qianbi xihua tie (鉛筆習畫, Practice models for pencil drawing) o el Huishi jianshuo (繪 事 箋 說 ,Painting simplified). Inspirados em livros ocidentais, proporcionavam um guia elementar para desenhar figuras humanas, reduzindo o corpo humano a estruturas simples, geométricas que respeitavam fórmulas esquemáticas. Entre os atributos faciais que contribuem para suscitar atração e o interesse de quem olha encontra-se, como um dos esgrimidos com maior frequência, o da a simetria da figura. Junto a ele, cita-se igualmente a estandardização do rosto segundo um protótipo regular e normalizado (O’Doherty et eli. 2003: 147). Se olharmos para as protagonistas dos calendários de publicidade, esta interação de rasgos é quase uma constante, o que talvez tenha contribuído a reforçar a magia do seu encanto e fascínio, ao ponto de as converter num dos produtos culturais mas solicitados do momento.

 

12  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Figure 2. Modelos de referência para desenhar figuras publicado em Xinpai meishu fenlei tuhua daquan (1922). © Laign (2004).

No geral, a ampla maioria dos cartazes que sobreveio até aos nossos dias dão conta do requinte e do gozo pelo detalhe, característica esta que, como mencionámos anteriormente, foi facilitada pelo uso da litografia. O desejo de perfeição estética do produto final alcançou tais níveis que muitas das oficinas de arte onde se confeccionaram foi estabelecido um sistema de divisão de tarefas para assim tirar o melhor partido das aptidões artísticas de cada pintor. A execução do corpo feminino pretendia atingir o efeito hua jin yi zai - que significa “finished paintings with lingering emotions”- uma filosofia artística derivada de uma ancestral prática na arte retratista. Por isto, o mestre mais qualificado encarregava-se de executar as figuras humanas, enquanto os menos peritos ficavam responsáveis pelo desenho fundo e pelos produtos que publicitavam, ou seja, no fim de contas foram relegados para um plano totalmente secundário. Antes de avançar, devemos todavia fazer finca-pé no corolário anotado anteriormente, principalmente pelo seu valor cognitivo. Esta máxima dominante na confecção destas imagens estipula o grau de perfeição de um produto artístico em função da essência que ele representa. De aí que, quando o trabalho estiver finalizado, a ideia permaneça. Talvez seja precisamente nesta capacidade da obra em

reter o impulso

intelectual e mental que simboliza onde resida a sua excelência como representação estética, onde resida, em último termo, a sua beleza.

 

13  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

O belo deve ser captado tanto pela aparência física da mulher como no seu caráter e entorno emocional. Consequentemente, o seu poder de captação publicitária deve a sua força a este feitiço de cativação baseado no encanto das suas expressões. Destacam-se os ademanes alegres e divertidos, com sorrisos que variam em graduação e portanto sensação de intensidade: publicitam paralelamente um ideal de progresso e, como tal, estes pósteres devem ser reflexo de uma evolução crescente e positiva. Desde uma quase gargalhada aberta que deixa a descoberto uma icónica dentadura branca e perfeita, passando pelo mais comedido esboço de sorriso, até chegar a uma contemplativa expressão de meditação, encontramos todo um catálogo de bocas e lábios em sintonia com os restantes gestos e poses. Não há quebra nem contradições na representação do ideal que personificam. De facto, o padrão da mulher de

beleza imperial - ainda vestida com peças

de corte

tradicional, penteada segundo os preceitos da corte Qing - mantém a sua aura de timidez, o seu recato moral e o seu decoro, quase que privando o seu gesto de alegria. No entanto, este mesmo gesto explode em risada com o passar do tempo, quando o ideal de Mulher Moderna, livre e independente invadir a cultura visual da época, com as suas caras rosadas6, o seus qipaos cheios de cor e a suas sugestivas poses. Sirvam os seguintes exemplos para ilustrar

toda

esta

estandardização

e

representação

prototípica

partilhada

circunstancialmente em Xangai dos anos 20 e 30.

Figure 3. Protótipo de beleza imperial promovido durante os primeiros anos da República. Paulatinamente abrirá caminho a outros padrões renovados segundo novas modas que imporão novos maquilhagens, vestidos, penteados, posses, etc.

6 Artistas como Zheng Mantuo (郑曼陀 1885-1959) destacaram-se pelo uso de técnicas ocidentais misturadas com práticas tradicionais para conseguir uma sensação de verosimilhança e naturalidade na execução dos rostos. Este pintor desenvolveu o método rub-and-hub para conferir essa tonalidade rosada na tez. Esfregando pó de carvão sobre a imagem e posteriormente aplicando aquarelas sobre a pintura, conseguia-se criar esta complexão de frescura e vivacidade da “Mulher Moderna” publicitada a partir dos anos 20.

 

14  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Figure 5. Embora estilo, vestuário, cenário sejam diferentes, os rostos das duas protagonistas condizem em gesto e fisionomia.

Figure 4. Neste caso, gesto, penteado, sobrancelhas e maquilhagem focalizam os principais pontos de semelhança entre ambos cartazes.

 

15  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Seguindo a leitura do estudo de O’Doherty et ali. (2003), constata-se que um visual agradável completado por um gesto de alegria ou por um sorriso produz estímulos na mesma região cerebral que é responsável pelo impulso do valor da recompensa7. Todavia, estudos como o de Kampe et ali (2001) matizam este argumento, explicitando que não é somente a expressão do gesto que pode modular as respostas neuronais perante feições atrativas. Outros fatores como a mirada condicionam a intensidade de essas respostas. No entanto , a mirada é também uma peça chave na fisionomia das Xanghai Beauties. Os olhos e sobrancelhas eram a primeira parte da fisionomia feminina a ser desenhada pelo que as restantes feições dependiam de eles. Quer se olhassem frontalmente quer fosse, esquivos, fossem brilhantes ou mais pensativos, tudo iria condicionar o resto da composição e por fim, o valor simbólico que a pintura ativaria no espectador: força libertadora e desafiante ou serenidade, comedimento, timidez, etc. Em definitiva mulher tornou-se verdadeiramente num íman para os olhares e consequentemente num ponto de vendas tanto das mercadorias que publicitavam como do estilo de vida que exibiam perante um público atento e rendido ao seu ‘feitiço’. A mulher epitomava – como as suas antecessoras no olimpo das Beautiful Ladies - a perfeição do feminino, tanto

na forma como no espírito. A sua estela acabou por trasbordar as

fronteiras da publicidade para se estabelecer como decálogo de estilo para as mulheres reais do Xangai dos anos 20 e 30. Paulatinamente as ruas da cidade foram povoando-se de réplicas de estes papéis femininos que se apropriavam do look de beleza exibido pela publicidade o qual, por sua vez, inspirava mais padrões para promover. Caricaturas, anúncios na imprensa e fotografias da época servem para demonstrar que as Xangai Beauties tiveram uma vida fora dos calendários de publicidade e que circularam incansavelmente durante mais de dois décadas nas cidades8. A estandardização de modelos físicos e morais é constante e, contrariamente ao que poderia parecer, não cansa facilmente. Segundo Reber et ali. (2004: 11), “many fluent stimuli may continue to elicit a pleasant experience even when fluency of processing is expected. (…) we suspect that people continue to enjoy prototypical faces, symmetrical patterns, harmonious chords, and high 7 Segundo este estudo, ao observar um rosto considerado atrativo que sorria , o córtex médio órbito frontal -que está associado à representação do valor da recompensa- regista um realce mais saliente do que aquele provocado perante o mesmo rosto com uma expressão neutro. Veja-se também Tsukiura et al. 2011 e 2011 a. 8 Embora a fotografia comece a ser usada com regularidade na imprensa bem como em algumas revistas do período, a maior parte dos cartazes impressos serão basicamente trabalhos pictográficos. Os pósteres feitos a partir de imagens fotográficas serão comparativamente muito escassos e, por regra geral, utilizarão o retrato de atrizes famosas do momento como base sobre a qual se aplicarão cores para dar um ar de semelhança com respeito ao grosso dos yuefenpai.

 

16  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

clarity drawings even after they formed fairly accurate processing expectations for these stimuli.”

 

17  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Figure 6. Mulher nos primeiros anos da República. © Zamperini.

Figure 7. Anúncio para a marca de cigarrillos Ruby Queen Cigarettes (1920’s). © Etsy

Figure 9. Brutal Torture… A shy Young man stepped in the trolley bus. Caricatura de Guo Jianying publicada em 1934 no jornal Jianying manhua. © Figure 8.

Fotos de modelos publicadas na revista feminina Liangyou em 1935. © http://mclc.osu.edu/

 

18  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Figure 11. Tango (1927). Anuncio do artista Zheng Mantuo para a marca de tecidos Wuxi Maolun Silk and Satin Factory. ©Laing (2004).

Figure 10 Dancing now in Vogue in Shanghai. Publicado no jornal Beiyang huapao (28 de Março 1929) ©Laing (2004)

Os yuefenpai (月份牌) são um reclamo estético se olharmos também para os cenários, a maior parte deles executados com grande primor e cuidado pelo detalhe. Fruto talvez desse desejo de popularização do exótico através da promulgação do estereotipado, o cenário é pintado como se cada elemento fosse um objet d’art em si. Cadeiras, tocadores, chaiselongues ou candeeiros publicitando os estilos estrangeiros da moda no ocidente – o Art Noveau e o Art Deco – são domesticados através do gesto de conforto e comodidade da protagonista da imagem. A sua pose transmite total sincronia com o entorno que a rodeia, anulando qualquer prejuízo devido a estranheza, desagrado ou recusa. A palete multicor que costuma ser escolhida para delinear o girassol do cenário colabora no mesmo sentido para criar uma sensação de apego e atração. Partindo do pressuposto que a utilização de cores facilita o apelo aos sentidos, estes cartazes de publicidade fazem uma apelativa apologia de gamas e tons diversos para despertar os sentidos. Não só os vestidos das figuras femininas e os seus acessórios, mas também os  

19  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

mosaicos do chão e alcatifas, o papel das paredes ou os estofos conformam um sugestivo repertório de nuances que cativa e faz reagir o espectador. Embora possa acabar por cria uma atmosfera kitsch9 e excessiva – afastada do humilde cânone tradicional que reduzia a sua palete de cores a dois ou três tons -, fá-lo expondo igualmente uma certa harmonia, com a qual suavizar qualquer oposição e repulsa que possa surgir perante o novoestrangeiro. Os artistas tentaram assim institucionalizar uma renovada ordem no esquema perceptivo que fosse capaz de penetrar no subconsciente do espetador para o expor ao moderno. Mas esta manobra devia ser modelada sem fomentar oposições e com o intuito de anular receios, de modo a que o sujeito fosse suavemente absorbido pelo circuito comercial e a sua aposta por um novo modelo de beleza. Assim, como sublinha Eco (2007: 394), “defining the dominant aesthetic sensibility is a tricky business”.

9 Ao reconhecer esta aura kitsch validamos igualmente a ênfase que, na opinião de Umberto Eco (2007: 397), este estilo transpõe para a estética da imagem. Segundo este autor – e na linha da própria definição que dele faz Schopenhauer (cfr. Eco 2007:400) - uma peça kitsch “emphasises the reactions that the work must provoque, and elects as the goal of its own operation the emotional reaction of the user”. Do mesmo modo, considerar estas imagens como exemplo de arte kitsch, muitas das quais até poderiam ser recuperadas como peças da estética Camp, ajuda a comprovar que o que já foi feio, vulgar ou puramente marginal no passado, pode, com o decorrer do tempo, ser considerado belo e demonstração de gostos refinados. Consequentemente, características tão abstractas e fluidas como a beleza só podem ser consideradas dentro de um contexto espácio-temporal determinado.

 

20  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Figure 15. Anuncio Macao Electric Lighting Co., Ltd. Zhang Kouluan (1933)

Figure 14. Changguang Glass Company' do artista Hang Zhiying, (1928). ©PowerHouse Museum.

Read more: http://www.powerhousemuseum.com/collection/d atabase/?irn=147606#ixzz1xUwMol4C Under Creative Commons License: Attribution Non-Commercial

Figure 13. Anuncio da Compahia de Seguros London Assurance. © Etsy.

Figure 12. Anónimo . ©PowerHouse Museum

 

21  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Conclusões Embora redigir uma definição categórica e universal de beleza seja uma tarefa utópica, a realidade é que este conceito implica conhecimento. Assim, a percepção e determinação de algo belo exige adentrar-nos no território cognitivo, tal como defende Eco (1997: 57). “Aesthetic pleasure has to do with the intellect, even if it does so through the mediation of the senses.” Deste modo, deve diluir-se a dicotomia afetos-cognição e apontar para uma interligação dos mesmos. De facto, como afirma Susan Sontag (1964:14) , “we value a work of art because the seriousness and dignity of what it achieves. We value it because it succeeds - in being what it is and, presumably, in fulfilling the intention that lies behind it”. E esta análise ajuda a identificar a relação que existe entre a execução escolhida por parte do artista e a intenção cognitiva que com o seu trabalho procura gerar no público-alvo. A arte agrega assim o mundo ao mundo, não tanto representando uma realidade que é evidentemente esquiva – mas experienciando e fazendo sentir. Essa é a sua ética. Mesmo Kant (cfr Ariel Madrazo 2006: 16) susteve na sua Crítica del gusto que não podia existir uma regra objetiva do gosto que determinasse, por meio de conceitos, aquilo que é belo. Contudo, o próprio conceito do belo em si – que transportamos connosco sem nos apercebermos - é algo que os distintos cérebros partilham e é preenchido posteriormente com as características que cada sujeito tenha por bem lhe atribuir. Assemelha-se assim a um mecanismo que, a modo de ‘tábua rasa’, incorporamos “de série” e sem saber. Com o tempo, vamos modelando segundo as nossas circunstâncias, o nosso contexto, o nosso conhecimento – o adquirido e também o tácito -. Tomando emprestadas as palavras de Borges (2007: 89) elevando-as para o campo da arte, parece que “cada artista cria os seus próprios precursores” e oferece ao espectador uma experiência particular para ir completando o puzzle de aquilo que, no fim, será identificado como algo belo e reconhecível sob outras formas e por meio de outros produtos e experiências posteriores. Deste modo, cada ideia de beleza resinifica as precedentes, mesmo quando simula adoptálas com devoção. Os calendários das Xangai Beauties perseguiam o claro objetivo de partilhar, difundir e naturalizar estereótipos entre uma sociedade que se encontra em recomposição política, social e cultural. Após a queda do sistema político que sustentou toda a nação chinesa durante séculos, urgia criar uma nova identidade que ao mesmo tempo integrasse  

22  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

os ventos inovadores que chegavam de ocidente. Devia fazê-lo, ainda para mais, sem pôr em perigo nem desestabilizar valores e ideais que formavam parte do património idiossincrático do país. Consequentemente, geraram-se e estabilizaram-se representações prototípicas derivadas, curiosamente, da tensão entre o que era familiar - conhecido, doméstico e portanto atribuível à particularidade do império chinês – e uma nova interpretação definida sob o influxo de determinadas circunstâncias culturais e conjunturais, fruto do diálogo com o estrangeiro. A sua estandardização beneficiou a fluidez perceptiva de imagens que apresentavam novos estilos de vida, novos produtos e, acima de tudo, um novo padrão de beleza exterior que mantinha na sua simbologia os valores morais tradicionais do feminino na China. Portanto, dentro da afirmação que sentencia que a beleza “is in the eye of the beholder” deverá ser incluído o matiz que ligue o individuo com a sua História, com o seu contexto determinado e com todos os processos cognitivos e afectivos que estão em vigor no momento e no local onde o indivíduo se situa. Assim, na defesa que o neuro-cientista Semir Zeki faz no sentido de a nossa percepção da arte estar baseada num substrato biológico formado por uma densa rede de células neuronais e detetores de traços , cores e movimentos, faltam outros elementos que não podem ser deixados de parte. Junto a estes processos e reações no córtex visual, deve-se prestar atenção paralelamente a outros fatores, como o próprio conhecimento tácito, a memória, a imaginação, a experiência prévia, o ambiente cultural, o contexto histórico da pessoa envolvida no olhar. Deste modo, aproximamo-nos do enfoque defendido por Bullot (2012) no qual se apresenta a pychohistorical framework for the science of art appreciation como um modo de compensar falhas no estudo do que ele considera a nossa “Artful Mind”. Como sentencia Eco (2007: 10), quer o conceito de beleza quer o de fealdade “are relative to various historical periods or various cultures” e pela sua instabilidade e inconstância podem vir a ser ligados não só a critérios estéticos, como também sociopolíticos ou económicos. O autor utiliza um fragmento incluído no livro de Marx Economic and philosophical Manuscripts (ibid. 12) para assinalar como o dinheiro pode atuar para compensar a fealdade. De facto, na China parece que o conceito de beleza acaba sendo o resultado não só de clareza, proporção ou atrativo visual, mas também da integridade ou da verdade, muito na linha do pensamento de São Tomás de Aquino exposta na sua Summa Teologica (cfr. Eco. 1997).

 

23  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Com a arte, estabelece-se um vínculo comunicativo que estimula o fluir de ideias, memórias, conhecimentos e emoções que vão perfilando a atividade cognitiva dos sujeitos involucrados de um modo dinâmico. Por isso, a arte é construtivista - segundo aponta Donald (2006) – e integra um abrangente catálogo de sensações num único evento perceptivo. Olhar para a larga série de imagens que a prolífera indústria editorial de Xangai deixou como legado ajuda-nos a acompanhar a própria evolução que o protótipo de beleza experimentou no decorrer de duas décadas. A sua análise permite-nos aproximar-nos dos rasgos que foram mantidos nessa mudança e, ao mesmo tempo, , foram-se adaptando aos novos tempos. Não obstante, vistas hoje em dia e com o beneplácito do passo do tempo, estas imagens não conseguem dissimular a desilusão consumista que acarretaram, desilusão que se aproxima da linha de pensamento das Mitologias de Roland Barthes, deixando à mostra as próprias contradições da modernidade. Por baixo de toda a beleza e de toda a insistência de estereótipo ideal a imitar que estas Xangai Beauties arejaram, não podemos deixar de identificar em cada uma delas um novo patriarcado que teimava em adiar a tão desejada liberdade feminina. Nelas reside também o cruel optimism de Lauren Berlant e até elas se remonta o processo que, no presente, explica a relevância do termo meinü jingji (美女经济) ou beauty economy, a que nos referimos anteriormente. Apesar disto, o belo e as sensações e experiências que ativa são um motor cognitivo intrínseco à nossa cultura. No meio da crescente ‘aesthetisation of the world” na qual vivemos – Leder et eli. (2004: 490) -, é evidente que desejamos continuar a enriquecer a etimologia deste conceito. Talvez estejamos ainda tentados pela história do rinoceronte de Durero e a sua fabulosa capacidade de retratar aquilo que nunca tinha visto com mais encanto, atrativo e beleza do que o animal real poderia alguma vez suscitar. Porque, sem dúvida, a beleza aproxima-nos de uma visão diferente do quotidiano, enriquecida pelo anelo que o poeta Ives Bonnefoy (cfr Ariel Madrazo 2006) acabou por condensar do seguinte modo: Que este mundo permanezca Que entre, para siempre, El polvo brillante de la tarde de verano En la sala vacía. El polvo brillante, la inasible belleza. Así sea.

 

24  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Bibliografía Ariel Madrazo, Jorge (2006), “Belleza, sí, pero ¿qué es eso?” Atenea (Concepción). Disponível em http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S071804622006000100002. Consultado em Maio de 2012. Barthes, Roland (1981), Mitologías. México: Siglo XXI. Berlant, Lauren Gail (2011), Cruel optimism. Durham: Duke University Press. Borges, Jorge Luis (2007), Obras completas. 2, 1952-1972. Buenos Aires: Emecé. Bullot, Nicolas (2012), “The Artful Mind Meets Art History: Toward a Psycho-Historical Framework for the science of Art Appreciation”. Disponivel em: http://nicolasbullot.org/Publi/PDF/2012/Bullot_BBS-D-11-00012_preprint-v1.pdf. Consultado em Maio 2012. Di Dio, Cinzia, Macaluso, Emiliano, and Rizzolatti, Giacomo (2007), “The Golden Beauty: Brain Response to Classical and Renaissance Sculptures”. Public Library of Science.

http://www.pubmedcentral.nih.gov/articlerender.fcgi?artid=2065898.

Consultado em Junho de 2012. Donald, Merlin (2006), “Art and Cognitive Evolution”, in Mark Turner, The artful mind: cognitive science and the riddle of human creativity. Oxford: Oxford University Press, pp. 3- 20. Eco, Umberto (2007), On ugliness. New York: Rizzoli. ___. (1988), The aesthetics of Thomas Aquinas. Cambridge, Mass: Harvard University Press. Eco, Umberto, and Alastair McEwen (2004), History of beauty. New York: Rizzoli. Kampe KK, CD Frith, RJ Dolan, and U Frith (2001) "Reward value of attractiveness and gaze". Nature. 413 (6856). Hestler, Anna (2005), Shanghai posters: the power of advertising. Hong Kong: FormAsia Books.

 

25  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Ishizu, Tomohiro, and Zeki, Semir (2011), “Toward A Brain-Based Theory of Beauty”. Public

Library

of

Science.

Disponível

em

http://www.pubmedcentral.nih.gov/articlerender.fcgi?artid=3130765. Consultado em Junho de 2012. Jacobsen, Thomas, Schubotz, Ricarda Ines, Hoefel, Lea, and von Cramon, D. Yves. n.d. “Brain

correlates

of

aesthetic

judgements

of

beauty”.

Disponível

em

http://edoc.mpg.de/277312. Consultado em Maio de 2012 Kitch, Carolyn (2001), The Girl on the Magazine Cover The Origins of Visual Stereotypes in American Mass Media. Chapel Hill: The University of North Carolina Press. Laing, Ellen Johnston (2004), Selling happiness: calendar posters and visual culture in early twentieth-century Shanghai. Honolulu: University of Hawai'i Press. Leder, Helmut, Benno Belke, Andries Oeberst, and Dorothee Augustin (2004), "A model of aesthetic appreciation and aesthetic judgments". British Journal of Psychology. 95 (4): 489-508. Magro, Albert M. (1999), "Evolutionary-derived Anatomical Characteristics and Universal Attractiveness". Perceptual and Motor Skills. 88 (1): 147. O'Doherty J, J Winston, H Critchley, D Perrett, DM Burt, and RJ Dolan (2003), "Beauty in a smile: the role of medial orbitofrontal cortex in facial attractiveness". Neuropsychologia. 41 (2): 147-55. Pang, Laikwan (2005), "The pictorial turn: realism, modernity and China's print culture in the late nineteenth century". Visual Studies. 20 (1): 16-36. Reber, Rolf, Norbert Schwarz, and Piotr Winkielman (2004), "Processing Fluency and Aesthetic Pleasure: Is Beauty in the Perceiver's Processing Experience?" Personality and Social Psychology Review. 8 (4): 364-382. Sontag,

Susan

(1964),

“Notes

on

Camp”,

disponível

em

http://web.grinnell.edu/courses/spn/s02/SPN395-01/RAM/RAM01/RAM0102.pdf. Consultado em Junho de 2012.

 

26  

Beatriz  Hernández  |  FCH  -­‐  CECC  

Turner, Mark (2006), The artful mind: cognitive science and the riddle of human creativity. Oxford: Oxford University Press. Tsukiura, Takashi, and Roberto Cabeza (2011), "Remembering beauty: Roles of orbitofrontal and hippocampal regions in successful memory encoding of attractive faces". NeuroImage. 54 (1): 653-660. ___. (2011a). "Shared brain activity for aesthetic and moral judgments: implications for the Beauty-is-Good stereotype". Social Cognitive and Affective Neuroscience. 6 (1): 138-148. Winkielman, Piotr, Jamin Halberstadt, Tedra Fazendeiro, and Steve Catty (2006), "Research Article: Prototypes Are Attractive Because They Are Easy on the Mind". Psychological Science. 17 (9): 799-806. Zeki, Semir (2009), Splendors and miseries of the brain: love, creativity, and the quest for human happiness. Chichester, UK: Wiley-Blackwell.

 

27  

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.