A estatística demógrafo-sanitária e os médicos: notas de pesquisa acerca da mortalidade por malária na cidade de São Paulo (1900-1910)

June 6, 2017 | Autor: Geraldo José Alves | Categoria: History of Science, History of Public Health, History of Statistics and Statistical Agencies
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Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT

A estatística demógrafo-sanitária e os médicos: notas de pesquisa acerca da mortalidade por malária na cidade de São Paulo (1900-1910) GERALDO JOSÉ ALVES1 Muito além do café com leite Nas últimas décadas a produção historiográfica sobre a Primeira República no Brasil (1889-1930) apresentou uma notável transformação. Com substanciais contribuições tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo, esta produção foi responsável por mudar muito significativamente a percepção dominante estabelecida a respeito daquele período histórico. Principalmente a partir de 1980 surgem estudos que, em conjunto, procuraram avançar as análises no sentido de superar o quadro genérico de referências através dos quais a nossa compreensão estava moldada. Para muito além da política do café com leite, do domínio oligárquico e da economia agroexportadora dependente desvelava-se um quadro histórico muito mais rico e complexo. Muito embora este movimento da historiografia tenha se constituído a partir de perspectivas muito distintas, é possível apreender o papel central que a problematização do conceito de cultura e sua instrumentalização no trabalho de pesquisa histórica ocupou neste processo. É neste quadro da elaboração de uma história cultural da Primeira República que os estudos sobre saúde-doença, medicina e ações sanitárias ganharam um terreno fértil para o seu desenvolvimento. A importância destes trabalhos pode ser sintetizada no balanço que a historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado apresenta no prefácio ao recente livro de Márcia Regina Barros da Silva, O laboratório e a República (SILVA, 2014): “[...] a construção do Estado/nação nos inícios da República se vincula, de maneira profunda, ao processo de constituição de ferramentas de controle da população e da cidadania. Superada a escravidão como forma de organização e controle privados da população, fazia-se necessária a construção de uma esfera pública liberal, aparentemente neutra e abrangente, capaz de produzir ferramentas de controle social. Instituições asilares e hospitalares – com sua congênere ideológica, a instituição prisional – teriam, dessa forma, passado por amplo processo de ressignificação social, ressurgindo como braços cientificizados do controle estatal.”

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Doutorando em História Social no Departamento de História da Universidade de São Paulo. Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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Assinalando que a contribuição de vários autores aqui citados e ainda outros – como Jaime Benchimol, Nancy Stepan e Nísia Trindade Lima 2 – acertadamente não limitaram suas análises ao controle estritamente estatal, a autora ressalta ainda que “mediante outras abordagens, advindas da história social, das ciências e da política, a historiografia tem tratado [...] de questões significativas que ofereceram materialidade a aspectos que, de outra forma, ficariam limitados ao viés institucional.” (in: SILVA, 2014: 9). Elaborando uma revisão da historiografia na qual se insere a obra prefaciada, a autora destaca os principais temas estudados e sua relevância na ampliação de nossa compreensão da Primeira República: “A atuação social do sanitarismo no combate às epidemias da época [...], os desdobramentos políticos das campanhas sanitárias, a vacinação, o combate à lepra, a medicina tropical, as disputas políticas travadas pelas diferentes especialidades em busca do monopólio do diagnóstico e tratamento, a regulamentação profissional, entre muitos outros temas, enriqueceram a abordagem do problema. Especialmente a emergência, já na segunda metade do século XIX, da medicina tropical como via de afirmação de uma identidade própria dos médicos nacionais, marcada pelas discussões a respeito dos problemas da raça, do clima e da medicina, ofereceu a moldura na qual se acomodaram diferentes grupos de médicos e sanitaristas em sua busca de afirmação científica, política e social [...]”(in: SILVA, 2014: 10)

A estatística demógrafo-sanitária paulista e a Classificação Internacional de Doenças É neste cenário historiográfico3 que podemos entender a emergência de estudos sobre a disseminação da produção, circulação e utilização de estatísticas a partir principalmente, mas não somente, de diversos organismos públicos. Em minha dissertação de mestrado (ALVES, 1999), procurei investigar a implantação da Classificação Internacional de Doenças e Causas de Óbito (CID)4 nas publicações da Secção de Estatística Demógrafo-Sanitária, vinculada ao Serviço Sanitário do Estado de São 2

Ver: (LIMA; HOCHMAN, 2004). As contribuições de autores estrangeiros também poderia ser considerada nesta mesma direção: (EVANS, 1992), (ARNOLD, 1996) e (WORBOYS, 1997). 3 Os trabalhos de outros autores também poderiam ser lembrados neste contexto. Ver: (ROSEN, 1994), (MCKEOWN, 1986), (ARMUS, 2002) e (WEISZ, 2003). 4 A primeira versão da Classificação Internacional de Doenças e Causas de Óbito (CID-1) passou a ser utilizada pelos serviços estatísticos de várias nações a partir de 1 de janeiro de 1901, e foi elaborada a partir da discussão da nomenclatura proposta por Jacques Bertillon, chefe do Serviço Estatístico da cidade de Paris e ativista da padronização internacional da nomenclatura nosológica por décadas. Por esta razão, a CID-1 é assinalada já como uma primeira revisão, assumindo-se a intenção de realizar revisões decenais para atualização desta nomenclatura. A partir de então seguiram-se revisões em 1909 (CID-2), 1920 (CID-3), 1929 (CID-4), 1938 (CID-5), 1948 (CID-6), 1955 (CID-7), 1965 (CID-8), 1975 (CID-9), 1989 (CID-10). Ver: (BERTILLON, 1903), (MORIYAMA; LOY; ROBB-SMITH, 2011) e (ALVES, 1999). Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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Paulo nas duas primeiras décadas do regime republicano. As fontes primárias utilizadas neste trabalho foram os Anuários Demográficos5 publicados pela Secção de Estatística DemógrafoSanitária a partir de 1895. As fontes utilizadas se referem a uma unidade federativa somente, o Estado de São Paulo, isso porque, como mencionou Nancy L. Stepan em seu trabalho clássico Gênese e evolução da ciência brasileira: "Com a Proclamação da República em 1889 e a transferência da responsabilidade pela educação e pela ciência para as legislaturas individuais dos Estados, a preocupação com o saneamento e a medicina estavam crescendo, particularmente no Estado de São Paulo, economicamente bem sucedido.” (STEPAN, 1976: 48)

Federalização das esferas administrativas, portanto. Mas, de um lado, e concordando com Nancy L. Stepan, é preciso salientar o fato de que foi no Estado de São Paulo que a organização do Serviço Sanitário parece ter ocorrido de forma mais pronta e orgânica. Em relação a adoção da Classificação Internacional de Doenças, é significativo que o próprio Jacques Bertillon aponta ser o Estado de São Paulo o único a adotar a CID-1 prontamente em 1901, como sugerido (BERTILLON, 1903: 7). Mas seria arriscado concordar com um suposto “pioneirismo” paulista levando-se em consideração somente este registro e as razões apontadas por Nancy L. Stepan. Em primeiro lugar porque o próprio Jacques Bertillon, na mesma publicação, informa que o Brasil “adota a nomenclatura internacional para a totalidade do seu território em 1903” (BERTILLON, 1903: 8), fato em si não desprezível6 . Por outro lado, é necessário problematizar o fato apontado por Nancy L. Stepan que atribui a “preocupação com o saneamento e a medicina” no estado de São Paulo ser crescente em consequência deste estado ser “economicamente bem sucedido”, ou seja, em subordinar todas as aspirações aos condicionamentos econômicos. Nesta questão, a análise de Gilberto Hochman elucidou de forma mais precisa as complexas relações estabelecidas entre o federalismo político, o livre mercado – ou o

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Até 1904 (ano XI), esta publicação aparece ora como Anuário Demográfico da Secção de Estatística Demógrafo-Sanitária, ora como Anuário Estatístico da Secção de Demografia. A partir de 1905 (ano XII), aparece como Anuário Demográfico da Secção de Estatística Demógrafo-Sanitária, título que se mantém constante nas edições seguintes. Por mera convenção, a publicação será referida aqui como Anuário Demográfico. 6 Esta declaração deve ser encarada com cautela na medida em que não foi possível confrontá-la com outros dados empíricos, podendo tratar-se tão somente de uma aspiração reportada como fato. Somente com o desenvolvimento de pesquisas em nível nacional será possível traçar a evolução dos órgãos estatísticos locais, permitindo uma análise comparativa segura. Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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protecionismo – na esfera econômica e a interdependência instaurada pelas entidades patológicas que não respeitavam fronteiras geográficas ou políticas em sua expansão: “A política de saúde pública seria o produto de escolhas fundamentadas em uma interação tensa e peculiar, envolvendo a pátria paulista, os demais estados e o poder central, ao longo da Primeira República. A política nacional de saúde pública foi o resultado

de

uma

combinação

específica

entre

autonomia

estadual

e

interdependência sanitária, e não o simples isolamento e singularização de São Paulo, derivado de uma leitura que anteporia autonomia estadual e poder central. [...] foi uma síntese entre regionalismo, interpenetração e integração.” (HOCHMAN, 1998: 241)

Em suma, as peculiaridades paulistas deviam-se ao fato de que: “São Paulo valia-se do poder central na economia, afastava-o nas políticas de saneamento e saúde, mas concordava com a sua franquia aos demais estados. A presença federal nos outros estados, para administrar os efeitos da interdependência sanitária, seria, como o recurso ao Executivo federal para regular a economia do café, uma decisão que traria benefícios líquidos de curto e médio prazo para São Paulo. [...] as elites paulistas recorreram seletivamente ao poder central, tanto para administrar a interdependência sanitária entre São Paulo e os demais estados como para regular a economia do café.” (HOCHMAN, 1998: 241-242)

Contando, classificando e comentando: a mortalidade por malária Os Anuários Demográficos relativos aos anos de 1902 a 1914 foram produzidos quando a Secção de Estatística Demógrafo-Sanitária era dirigida pelo médico Domingos Rubião Alves Meira7, importante protagonista no cenário médico da época. Analisando o periodismo médico paulista, em O laboratório e a República, Márcia Regina Barros da Silva afirma que “[...] por iniciativa do Serviço Sanitário de São Paulo, duas publicações [...] passaram a ser veiculadas e, mesmo não sendo consideradas revistas médicas, continham informações importantes para a área: o Anuário Demográfico (1884) e o Anuário Estatístico do Estado de São Paulo (1898).” Vale lembrar que o conteúdo destes Anuários aparecia glosado em vários dos periódicos médicos do período (SILVA, 2014: 105).

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Domingos Rubião Alves Meira (1879-1946), nascido no interior do Estado do Rio de Janeiro, filho do médico João Alves Meira. Formou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1900. Além de clinicar em consultório privado, também foi médico na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, onde foi chefe de enfermaria. Foi membro atuante e presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (depois Academia de Medicina de São Paulo) e editor do jornal médico Gazeta Clínica (1903). Tornou-se professor catedrático da Faculdade de Medicina de São Paulo e ainda reitor da Universidade de São Paulo entre 1939 e 1941. Ver (ALVES, 1999) e (SILVA, 2014). Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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Outra publicação desta repartição era o Boletim Mensal de Estatística DemógrafoSanitária, que tinha seu conteúdo veiculado também em jornais, como o Correio Paulistano, por exemplo (SILVA, 2014: 105). Márcia Regina Barros da Silva chama a atenção para o fato de que como a Faculdade de Medicina de São Paulo somente iniciou suas atividades após 1913, os debates médicos até então se encontravam vinculados a outros espaços institucionais que não o acadêmico, sobretudo a partir das experiências partilhadas na atuação profissional dos médicos na Santa Casa. Segundo esta autora: “Na realidade, o grupo médico que orbitava na instituição [Santa Casa de Misericórdia] era o mesmo que compunha outros espaços médicos, como revistas médicas, Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, Policlínica e Faculdade de Medicina e Cirurgia. As representações sobre a medicina que resultavam dessa reorganização do atendimento médico possibilitaram a construção crescente de consensos, tanto na descrição e diagnósticos das doenças quanto nas escolhas dos procedimentos e das terapêuticas a serem adotadas.” (SILVA, 2014: 104). A autora aponta que a atuação dos médicos nesses diferentes espaços compunha “um cenário de agitação e efervescência na área científica” (SILVA, 2014:105), permitindo concluir que “a inexistência de uma faculdade de medicina pode ser vista mais como uma ausência consentida, sinal de um campo ainda em processo de organização, do que como uma lacuna.” (SILVA, 2014: 112). O conteúdo dos Anuários Demográficos relativos aos anos de 1902 a 1914 permite acompanhar o debate estabelecido a partir da divulgação dos dados relativos à mortalidade por malária aí publicados e comentados. O Anuário Demográfico de 1902 apresenta o seguinte comentário acerca dos 99 óbitos atribuídos à malária assinalados na estatística das causas de morte: “Incontestavelmente tem essa causa de morte diminuído gradativamente, [...] o que muito provavelmente é resultado não só das grandes obras de saneamento executadas pelo Estado [...], mas também da vigilância da nossa polícia sanitária que, pela sua severa fiscalização não consente [...] a permanência de detritos vegetais e águas estagnadas que constituem um meio favorável ao desenvolvimento e pululação dos anófeles, vetores do hematozoário de Laveran. É bem possível que em pouco tempo, a malária quase desaparecesse dos quadros estatísticos da Capital se [da] parte do nosso corpo clínico houvesse uniformidade de vistas sobre a verdadeira patogenia das pirexias que reinam mais frequentemente nesta cidade.” (Anuário Demográfico, 1902: 116)

Esta argumentação é composta de elementos que serão reiterados nos Anuários Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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seguintes, praticamente sem alteração em seu conteúdo até o ano de 1907. Em primeiro lugar, destaca positivamente a atuação do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo, atribuindo à sua ação o decréscimo constante dos óbitos por malária na Capital do Estado. Em relação a esta apreciação aparece vinculada a percepção do “meio antipático”, “não malarígeno como o nosso”, no qual o “desenvolvimento progressivo da higiene” atua diretamente sobre uma “moléstia que recua diante da civilização”, permitindo prever que em futuro próximo “só figurarão no obituário os casos oriundos de zonas palustres e que aqui venham sucumbir.” (Anuário Demográfico, 1904: 21). Enfim, atribui a erro de diagnóstico dos médicos paulistanos os óbitos atribuídos à malária, ensejando que “com o correr dos anos e do melhor conhecimento da nossa piretologia, esse número fique reduzido a mais simples insignificância” (Anuário Demográfico, 1903: 23). O Anuário Demográfico de 1907 traz comentários muito mais substanciais sobre a questão. Logo de início o texto anuncia o interlocutor preferencial da análise que então se articulava, abrindo o debate: “Pretendemos com as considerações que vamos apresentar chamar a atenção de nossos colegas para esse assunto com o fim exclusivo de vermos desaparecer a malária quase por completo do nosso quadro estatístico, como causa de morte. (Anuário Demográfico, 1907: 28)

O autor do comentário relata o caso da mortalidade por malária na Cidade do Rio de Janeiro, narrando os percalços referentes a esta questão na Capital Federal: “Vamos dar o motivo dessa nossa opinião, sentindo que não haja aqui uma voz que fale com a energia e a eloquência com que o professor Francisco de Castro agitou, em seu discurso proferido na Faculdade de Medicina, quando paraninfo dos doutorandos de 1898, a classe médica do Rio de Janeiro, pregando, com a convicção de um sábio, a não existência desse morbus naquela cidade. A sua oração, palpitante do entusiasmo, com que costumava pregar doutrinas científicas, levantou no momento a grita descompassada dos velhos clínicos, que se viam perturbados pelo espírito sintético que se lhes apresentava, pela teoria que surgia violentamente e queria derruir concepções arraigadas. Mas, a ideia venceu, e venceu porque o que se pregava ali era a realidade das coisas e não mera hipótese nem filigranas de fantasia. E, o parasita malárico que tudo invadia, que dominava a carta nosográfica da Capital da República, que tinha ali propriedades que noutra parte se desconhece, que ia até provocar supurações, teve de recuar diante aquela palavra autorizada. Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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Assim, é o que verifica quem atender ao quadro da mortalidade, por esta moléstia, no Rio de Janeiro, e fato que se mostra tão eloquente que dispensa demais considerações e apaga o valor das palavras sonantes.” (Anuário Demográfico, 1907: 28-29)

Apresenta-se então a tabela descritiva dos óbitos por malária entre 1889 e 1906: Óbitos por impaludismo Rio de Janeiro (Cidade) 1889-1906 Ano Óbitos 1889 2056 1890 1237 1891 2235 1892 2070 1893 1175 1894 1889 1895 1749 1896 2294 1897 1151 1898 1607 1899 1386 1900 1019 1901 932 1902 1217 1903 772 1904 453 1905 295 1906 266 Fonte: Anuário Demográfico, 1907: 29

Os dados são apresentados sem qualquer referência à mortalidade proporcional ou aos coeficientes específicos de mortalidade pela moléstia, procurando assinalar tão somente o decréscimo constante da ocorrência desta causa de morte naquela cidade. Enfim, o texto encaminha as seguintes conclusões: “O declínio é patente e coincide com o momento do memorável discurso que chamou a atenção dos clínicos do Rio de Janeiro, para a infecção malárica, de sorte que o maior cuidado daí por diante preside na fórmula do diagnóstico. E, esse resultado, esperamos, há de ser cada vez mais acentuado, de um lado, porque a geração nova está sendo educada nessa escola, de outro porque as medidas higiênicas ali executadas hão de conseguir o seu efeito, expulsando a maior parte das moléstias infectuosas perfeitamente evitáveis.” (Anuário Demográfico, 1907: 29)

Após esta digressão para os eventos observados no Rio de Janeiro, o comentário retoma o debate no território paulistano: Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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“Em S. Paulo anteriormente, já eram conhecidos os estudos do Instituto bacteriológico [sic] do Estado. As chamadas ‘febres paulistas’ não eram mais que formas leves da própria febre tifóide, como ficou demonstrado por fatos e provas científicas irrefutáveis. Daí por diante, na estatística dos óbitos, veio baixando o número de casos fatais atribuídos às febres intermitentes, renitentes ou perniciosas, (todas mais ou menos ‘paulistas’) aumentando, então, os casos de febres tifoídeas. Mas, ainda o nosso obituário comporta grande número de casos que, acreditamos, não podem merecer essa designação patológica.” (Anuário Demográfico, 1907: 29)

Após estas considerações iniciais sobre o caso paulistano, segue-se a enumeração dos óbitos atribuídos à malária entre os anos de 1895 e 19078. Os dados aparecem descritos sumariamente, não constando sequer qualquer título. Esta aparente displicência formal contrasta, entretanto, com o vigor dos comentários elaborados em seguida: “Ora, não nos conformamos, ainda que respeitemos a opinião de nossos colegas subscritores desses diagnósticos, em admitir que a totalidade desses óbitos sejam realmente provocados pela malária. Ela não tem absolutamente razão para existir em S. Paulo. Cidade saneada, [...] que não oferece as condições de vida para o parasita da malária, que não possui pântanos visíveis ou invisíveis, onde a perseguição dos transmissores da moléstia se efetuou, há tempos, em luta contínua da higiene, que continua na sua ação ainda hoje; população, onde se desconhece a existência da caquexia palustre aqui mesmo originária, autoctona [...]; cidade quase toda edificada, não se pode permitir que seja assinalada na sua carta nosográfica essa moléstia, que ao contrário da tuberculose, é tocada pelo fogo vivo da civilização, foge diante a esta com o mesmo ímpeto com que se aninha nas cidades desertas, à margem dos rios, à beira dos lagos, junto aos pântanos. Deixemo-la para as ribanceiras de Mogi, excluamo-la da nossa capital.” (Anuário Demográfico, 1907: 30)

Reiteração acerca das características do meio natural e da atuação benéfica realizada quando necessário pelas obras de saneamento, portanto. Surge, então, um elemento novo na argumentação: “A malária é moléstia cujo diagnóstico comporta meio seguro de garantir a sua presença, – o exame de sangue. Na época atual, com os novos elementos de que dispõe a diagnose, é indispensável ao clínico esse recurso propedêutico. Porque, todos sabem, não basta a existência da febre, com a sua tripeça mórbida – sensação de frio, aumento de calor e desperdício de suor, embora de caráter intermitente, para 8

Os números podem ser acompanhados na tabela Mortalidade por impaludismo - São Paulo (Capital) 18941914, ao final. Há uma única discrepância no número de óbitos relatados para o ano de 1896: nos dados apresentados em 1907 são 283, enquanto na tabela elaborada em 1920 são 266. Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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caracterizar a infecção malárica. Não; fazemos justiça aos colegas que não desconhecem essas coisas comezinhas de patologia. [...] E não precisamos insistir... [...] Isso quer dizer que o diagnóstico da malária numa cidade como a nossa, requer outros elementos de convicção que não a simples apreciação de febre, é preciso que se eliminem as outras hipóteses que costumam se apresentar em campo. É necessário que, em caso de dúvida, o médico recorra ao exame do sangue, que nenhum deve desconhecer, que procure o parasita e conheça os processos de numeração dos glóbulos sanguíneos, que percuta e ausculte com segurança os ápices pulmonares, que averigue da existência das manifestações da sífilis e indague, com cuidado, das perturbações gastro-intestinais. Só assim, poderá garantir a presença ou ausência do impaludismo e atestar com convicção e verdade, mantendo a estatística patológica em pé de merecer todo o conceito que se lhe deve. Do contrário, permanecemos no mesmo status-quo; termos no obituário, em contradição com as regras de higiene que não permite a existência da malária em meio não malarígeno, esse fator que, na realidade, comporta múltiplos outros e pode ser dividido por afecções diversas.” (Anuário Demográfico, 1907: 30-31)

Além de evocar a necessidade do recurso ao exame do sangue no procedimento diagnóstico e expressar sua confiança nas “coisas comezinhas de patologia”, o comentarista avança em direção anteriormente ainda não explorada: “E, não nos contentamos em afirmar que o nosso terreno não é propício à evolução do parasita. Negamos a existência desse morbus, entre nós, também porque jamais o encontramos aqui, e sabemos, de grande número de clínicos autorizados, que os casos apresentados são todos de pessoas vindas de zonas reconhecidamente palustres. Há seis anos que temos a felicidade de dirigir uma enfermaria de medicina na Santa Casa, e do colossal exame de doentes que tem passado sob nossas vistas e merecido os nossos cuidados, nenhum até hoje, residente nesta Capital, se nos apresentou portador da infecção malárica. O nosso livro de arquivo contém inúmeros doentes de impaludismo, todos, porém, de regiões conhecidas como assoladas pela malária. E temos tido, entretanto, bastantes casos de febre intermitente de outras origens, – abcessos de fígado, pleurizes purulentos e sero-fibrinosos, tuberculose pulmonar, sífilis secundáris, abcesso peri-nefrético, infecções intestinais... doentes que poderiam ser abarrotados de toneladas de quinino sem que a moléstia cedesse. Os outros clínicos do mesmo hospital têm, acreditamos, observação idêntica; porque no meio que ali se depara ao médico, o diagnóstico tem outros elementos que se não possui na clínica civil. Esse estudo que fazemos desde que principiamos o nosso Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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tirocínio clínico [...] nunca sofreu contestação, de sorte que a convicção que temos arraigada é a da não existência do impaludismo na zona urbana de São Paulo.” (Anuário Demográfico, 1907: 31-32)

A experiência clínica obtida no ambiente hospitalar aparece para corroborar os demais elementos utilizados para formar a convicção do diagnóstico. Enfim, um último elemento, o epidemiológico, é acrescentado: “Ora, os óbitos da malária são quase todos nessa parte cidade. Fizemos a estatística deles e chegamos a verificar que há colegas que tem sido mais felizes que nós porque a tem encontrado em tão grande messe. Dessa estatística se apura que os óbitos são mais frequentes nesses últimos anos – na Consolação (30), em Santa Ifigênia (28), no Braz (25) e em Santa Cecília (9). Ora, justamente nesses bairros é onde a condensação da população é maior e onde se não conhece a existência de terrenos pantanosos. E, ainda mais, eles se verificam em ruas populosas, justamente naquelas onde ninguém pode pensar existir essa moléstia, que, repetimos, é inimigo corrido pela civilização.” (Anuário Demográfico, 1907: 32)

Ao finalizar o extenso dossiê o comentarista retoma a interlocução inicial com os médicos da cidade de São Paulo, reforçando o fato que toda a questão apontada até aqui se referia à qualidade dos diagnósticos: “Diante dessas circunstâncias e publicando a nossa opinião que acreditamos é abraçada pela maioria da classe médica, não hesitamos em colocar uma interrogação diante de tão grande número de óbitos provocados pela infecção malárica. Oxalá, produzam as nossas palavras o efeito desejado, que é o de vermos o falecimento devido ao impaludismo justificado com o exame de sangue, senão tivermos a satisfação de apreciar reduzida, à simples expressão que tem realmente entre nós, essa causa de morte.” (Anuário Demográfico, 1907: 32)

As manifestações contidas no Anuário Demográfico de 1907 sobre a existência ou não da malária nos limites da cidade de São Paulo foram o ápice do longo processo de questionamento que se iniciara em 1902 e aparecia agora de forma mais completa e vigorosa, explicitando o caráter de debate com o a “classe médica” paulistana. O resultado desta incitação produziria seus resultados, ainda que não imediatamente. Como o Anuário Demográfico de 1908 registrou a ocorrência de “um óbito a mais sobre o número representativo desse morbus em 1907”, o comentarista constatou então que: “Não produziram, pois, o efeito desejado, as considerações amplas com que no “anuário” de 1907 chamamos a atenção dos profissionais para a não existência dessa infecção na nossa Capital, que absolutamente não oferece condições de vida ao Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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parasita, agente patogênico dessa moléstia. Não acreditamos absolutamente, em que pese a opinião dos facultativos de S. Paulo, representar essa elevada cifra a expressão da verdade no que toca ao impaludismo nesta cidade.”

(Anuário

Demográfico, 1908: 32. Grifo no original)

Além de retomar laconicamente muitas das evidências apresentadas anteriormente em favor de sua posição, o comentarista acrescenta um questionamento que aponta para a questão dos diferenciais de morbidade e mortalidade: “Demais, a malária é moléstia perfeitamente curável, e quem frequenta agora as clínicas do Hospital da Santa Casa, aí verá, em todas as suas manifestações e mesmo as mais graves, os doentes que vêm às porções de Bauru, onde há foco evidente de infecção, e que aqui se curam com o tratamento quinico apropriado e conveniente. Não podemos, portanto, acreditar que fora da Santa Casa haja essa letalidade, tão considerável pela malária e, mais uma vez, chamamos a atenção cuidadosa dos clínicos para esse fato. E, ainda mais, na época atual, não é permitido o diagnóstico de malária sem o exame de sangue, e absolutamente o clínico não tem o direito de afirmar essa suposição, sem cercar-se dos elementos que a propedêutica moderna requer. [...] Assim, pois, no intuito mesmo de ver deslindada essa questão, para nós capital, chamamos mais uma vez a atenção dos profissionais para esse ponto, cabendo-nos apenas assinalar como causa de morte pela malária, aqueles óbitos que assim figuram nos mapas do registro civil, sem que, porém, tenhamos confiança, repetimos, na veracidade deles.” (Anuário Demográfico, 1908: 32)

O Anuário Demográfico de 1909 aponta a ocorrência de 39 óbitos por malária, um decréscimo muito discreto em relação aos anos anteriores, possibilitando que os comentários elaborados insistam na campanha há tanto tempo iniciada sobre a qualidade desse registro. Neste ano os comentários fazem recurso a no dispositivo argumentativo, explorando os casos de outras moléstias que também permitem suspeitar da qualidade do diagnóstico médico registrado. São dois os exemplos apontados neste caso. Em primeiro lugar, exclama o comentarista, “[...] quantas bronquites, quantos embaraços gástricos e enterites, quantos fenômenos nervosos de natureza diversa, não são rotulados com a simples designação de gripe! É isso que se deve evitar em uma cidade como S. Paulo, dotada de clínicos de renome.” (Anuário Demográfico, 1909: 35) Outra moléstia sob que tem seu diagnóstico sob suspeita no quadro da mortalidade é a febre tifoide: “Essa infecção ora sobe ora desce entre nós. É preciso que isto assim não seja e que ela tenda de uma vez a desaparecer, retirando da carta nosológica de S. Paulo essa Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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moléstia que a macula. Entretanto, falando antes como clínico que como demografista, cabe-nos dizer que ultimamente são gravíssimos os casos desse morbus que temos encontrado. [...] Temos pugnado sempre pelo declínio da moléstia entre nós, estudando suas causas, para que a lealdade nos obrigue a declarar não estarmos satisfeitos com o que vamos observando.” (Anuário Demográfico, 1909: 35)

Este comentário é notável na medida em que revela a busca de uma interlocução inter pares, na qual o comentário dá lugar ao depoimento, uma vez que enunciado por um médico que se apresenta “falando antes como clínico que como demografista”. No Anuário Demográfico de 1910 também poder ser encontrados expressões que apontam para diagnósticos suspeitos, como no caso da distinção entre disenteria e diarreia, quando o comentarista chama a atenção dos clínicos para o que é “verdadeiramente disenteria e para os estados intestinais que o povo classifica, erradamente – e os médicos com o povo – de disenteria. A estatística requer se apure a verdade e esta não estava evidentemente com os algarismos elevados, que representavam a mortalidade por disenteria.” (Anuário Demográfico, 1910: 40) A partir deste momento parecem se concretizar as expectativas de que a “convicção de que nos achamos imbuídos penetrará a pouco e pouco no espírito dos clínicos desta cidade, e que a verdade exploda no seu realce.” (Anuário Demográfico, 1909: 40), uma vez que os óbitos atribuídos à malária decrescem nos registros apresentados para os anos de 1910 a 1914. O comentarista afirma que os óbitos registrados somente podem ser admitidos quando importados de regiões onde a malária grassa endêmica e que suas vítimas buscam atendimento médico os serviços hospitalares da capital paulista. Aponta ainda que a diminuição dos óbitos por esta moléstia “foi grande também no Rio de Janeiro, pois que se em 1903 ocasionou 1036 falecimentos, em 1909 apenas 515, com evidente tendência a baixar cada vez mais” (Anuário Demográfico, 1910: 42). O declínio dos registros de óbitos por malária enseja comemoração por parte do comentarista, afirmando que a “estatística está demonstrando que tínhamos razão” (Anuário Demográfico, 1912: 36). A campanha de contestação dos diagnósticos de óbitos atribuídos à malária na cidade de São Paulo parece ter encontrado seu termo, e o triunfo permite a aclamação de seus próceres: “felizmente aqui estamos para colocar as coisas em seu lugar” (Anuário Demográfico, 1914: 37) O valor do método ou o valor da clínica? Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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O debate instigado pelos Anuários Demográficos acerca da estatística da malária como causa de morte na primeira década do século XX na cidade de São Paulo permite problematizar uma série de questões. É possível entender que o questionamento da qualidade dos atestados de óbitos apresentados pelos clínicos da cidade atendia a um duplo objetivo. De um lado, zelar pela constituição de estatísticas de mortalidade mais confiáveis e ainda, simultaneamente, servir de instrumento de defesa das práticas laboratoriais e dos métodos microbiológicos na atuação dos médicos que aí clinicavam. Vários trabalhos se detiveram na análise das complexas relações estabelecidas na prática médica a partir das inúmeras descobertas produzidas na pesquisa bacteriológica. Jaime Benchimol estudou a questão a partir do caso da febre amarela (BENCHIMOL, 2004) e Luiz Antônio Teixeira investigou dois casos exemplares deste problema: o estabelecimento da identidade entre a varíola e o alastrim (TEIXEIRA, 2000) e o debate em torno das chamadas “febres paulistas” (TEIXEIRA, 2004). As chamadas “febres paulistas” foram objeto de intensos debates na Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo entre os anos de 1896 e 1897 e envolvia o diagnóstico de malária a casos nos quais a pesquisa bacteriológica apontava serem de febre tifoide. É possível entender que os diagnósticos de malária passaram a ficar sob suspeição a partir deste debate, que aparece reportado no dossiê questionador publicado no Anuário Demográfico de 1907 (Anuário Demográfico, 1907: 29). A tabela abaixo permite perceber o decréscimo sistemático dos óbitos atribuídos à malária na cidade de São Paulo já a partir do ano de 1898, logo após o confronto dos diagnósticos clínicos diante da investigação laboratorial. Mortalidade por impaludismo - São Paulo (Capital) 1894-1914 Mortalidade Óbitos por % sobre a Ano População geral impaludismo mortalidade 1894 150.000 4.214 273 6,48% 1895 170.000 5.191 236 4,55% 1896 200.000 5.779 266 4,60% 1897 230.000 5.237 214 4,09% 1898 260.000 5.083 149 2,93% 1899 260.000 4.279 120 2,80% 1900 260.000 4.108 118 2,87% 1901 286.000 4.514 81 1,79% 1902 286.000 5.199 99 1,90% 1903 286.000 4.604 62 1,35% 1904 286.000 4.922 54 1,10% Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

Coeficiente por 1.000 h. 1,82 1,39 1,33 0,93 0,57 0,46 0,45 0,28 0,35 0,22 0,19

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1905 1906 1907 1908 1909 1910 1911 1912 1913 1914

286.000 286.000 300.000 300.000 300.000 314.000 358.000 400.000 480.000 485.000

4.852 5.406 5.129 5.760 5.757 6.246 6.933 9.585 9.301 8.491

63 50 41 42 39 26 20 17 8 18

1,30% 0,92% 0,80% 0,73% 0,68% 0,42% 0,29% 0,18% 0,09% 0,21%

0,22 0,17 0,14 0,14 0,13 0,08 0,06 0,04 0,02 0,04

Fonte: Anuário Demográfico, 1919, apud Alves, 1999.

Neste caso, é possível atribuir estabelecer uma relação de continuidade entre os debates de 1897-1898 na Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo e os da década seguinte e que se prolongaram até 1914 no Anuário Demográfico. Ainda que o conteúdo das reivindicações revisionistas sejam diversas – confusão entre febre tifoide e malária, de um lado, e a inexistência da moléstia na cidade, de outro – as suspeitas em ambos os casos pretender ser dirimidas a partir da aplicação dos métodos bacteriológicos de investigação. Certamente, a extensão do debate para o campo das estatísticas de causa de morte no âmbito dos Anuários Demográficos representou uma novidade notável, na medida em que instituía um novo e qualificado interlocutor naquele cenário de debate, revelando de maneira mais ampla a articulação do projeto sanitário paulista que ganhava corpo nos seus diversos organismos. Mas a questão não pode ser entendida somente a partir de uma suposta unidade cognitiva transposta mecanicamente para o poder institucional. Como argumentou Michael Worboys em artigo no qual provocativamente questionou a percepção segundo a qual o avanço das pesquisas microbiológicas teria provocado uma verdadeira “revolução bacteriológica” nas duas últimas décadas do século XIX, as análises informadas por uma perspectiva teleológicas tendem a mitigar significativamente os percalços e conflitos pertinentes ao impacto que essas descobertas efetivamente suscitaram9 (WORBOYS, 2007). Tratando mais detidamente o caso britânico, este autor enfatizou o grande descompasso existente entre a grande quantidade de agentes patogênicos identificados sob o microscópio com a alteração dos procedimentos clínicos em vários aspectos de sua atuação. 9

Esta perspectiva metodológica aparece desenvolvida do ponto de vista historiográfico e conceitual no ensaio de Ludmilla Jordanova, The social construction of medical knowledge (JORDANOVA, 2004). Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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A descoberta dos agentes patogênicos em muitos casos não alterou significativamente os procedimentos de diagnóstico na medida em que não substituíram ou tornaram dispensáveis as habilidades clínicas já consolidadas, pelo contrário, “where laboratory tests were used in diagnosis, it was to reinforce clinical judgements [...]” (WORBOYS, 2007: 34) . No caso da terapêutica este descompasso se mostrou ainda muito mais aflitivo, na medida em que essas descobertas não produziram imediatamente novos procedimentos capazes de transformar ou suplantar as práticas até então utilizadas, que M. Worboys a concluir que “germ discoveries were not experienced by contemporaries as moments of revelation, rather as ongoing negotiations over the exact role of certain disease agentes in aetiology and, I would emphasise, pathogenesis and morbid pathology” (WORBOYS, 2007: 28). Retomando o elenco dos argumentos elaborados nos Anuários Demográficos sobre o diagnóstico da malária, esta percepção da instauração de um campo de constante “negociação”10 entre os protagonistas do debate parece ser plenamente justificada. Como visto, ao diversificar o leque dos argumentos apresentados, ainda que reiteradamente a questão da exigência do exame de sangue para comprovação do diagnóstico aponte na direção da defesa insistente dos métodos bacteriológicos, é notável perceber a constante menção da experiência clínica de Rubião Meira como elemento probatório das suas alegações. Neste sentido, ao enunciar a suspeita sobre os diagnósticos de malária como causa de morte “antes como clínico que como demografista” (Anuário Demográfico, 1910: 40), o diretor da Secção de Estatística Demógrafo-Sanitária revela a importância que ele confere à prática clínica, possibilitando mesmo perceber o papel instrumental que os recursos laboratoriais representam em função da sua utilidade na atividade médica. Talvez o mesmo pode ser dito quanto à compreensão que ele articula em relação ao trabalho de elaboração das estatísticas sanitárias, na medida em que elas devem expressar uma verdade útil à atividade clínica, objetivo final de todos os recursos e métodos. Vale lembrar que Rubião Meira apresenta sua tese de livre-docência em 1912 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro justamente direcionada a apreciar o “Valor dos novos métodos e processos de diagnóstico em clínica médica” (MEIRA, 1912). 10

Outro trabalho de M. Worboys amplia ainda mais esta percepção da elaboração de um campo de negociação ao estudar o debate sobre a gonorreia (WORBOYS, 2004). Por outro lado, a pretensa “objetividade” da pesquisa laboratorial pode ser questionada a partir do estudo de Keith Wailoo sobre a anemia falciforme (WAILOO, 1999). Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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Neste trabalho, Rubião Meira expressa laconicamente que se trata, em vista dos avanços dos métodos laboratoriais, tão somente, que “o diagnóstico, agora em medicina, é mais complexo que outrora era” (MEIRA, 1912: 7). A conclusão apresentada por ele sobre as controvérsias acerca da reação de Wassermann muito bem pode ser tomada como paradigmática da perspectiva que entende como instrumentais todos os conhecimentos científicos produzidos em relação à saúdedoença, privilegiando o olhar e a atuação do clínico: “[...] verifica-se que só o laboratório não conclue e que para concluir necessita correr parelhas com os symptomas, em quanto esses têm o condão de firmar, na ausência deles, diagnósticos os mais perfeitos e completos” (MEIRA, 1912: 100) O valor do método se refere à sua funcionalidade para o uso clínico. Referências bibliográficas: ALVES, G. J. A 'contabilidade da higiene'. Representações da mortalidade no discurso médico demográfico. São Paulo (1903-1915). [s.l.] Universidade de São Paulo, 1999. ARMUS, D. La enfermedad en la historiografía de América Latina moderna. Asclepio, v. 54, n. 2, p. 41–60, 2002. ARNOLD, D. Introduction: tropical medicine before Manson. In: ARNOLD, D. (Ed.). Warm Climates and Western Medicine: The Emergence of Tropical Medicine, 1500-1900. Amsterdan / Atlanta: Rodopi, 1996. p. 1-19. BENCHIMOL, J. L. Febre amarela e a instituição da microbiologia no Brasil. In: HOCHMAN, G.; ARMUS, D. (Eds.). Cuidar, controlar, curar. Ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004. p. 57–97. BERTILLON, J. Nomenclatures des maladies (Statistique de morbidité - Statistique des causes de décès). Montévrain: Imprimerie Typoghaphique de L’ École D' Alembert, 1903. EVANS, R. J. Epidemics and revolutions: cholera in nineteenth century Europe. In: RANGER, T.; SLACK, P. (Eds.). Epidemics and ideas: essays on the historical perception of pestilence. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. p. 149–173. HOCHMAN, G. A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil. São Paulo: Hucitec / Anpocs, 1998. JORDANOVA, L. The social construction of medical knowledge. In: HUISMAN, F.; WARNER, J. H. (Eds.). Locating medical history: the stories and their meanings. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2004. p. 338–363.

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