A Estátua \"O Desterrado\" de Soares dos Reis. Notas para um Estudo Transdisciplinar

June 7, 2017 | Autor: J. Abreu | Categoria: ESCULTURA, História da arte, António Soares dos Reis
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A estátua O Desterrado de Soares dos Reis. Notas para um estudo transdisciplinar José Guilherme Abreu 1. O Poeta do mármore O nosso interesse pela obra de Soares dos Reis possui uma história longa de mais de uma década, muito embora não tenha dado origem a uma investigação rigorosa e aprofundada. Em virtude da nossa área de investigação ser a Arte Pública, preocupava-nos, essencialmente, a escassa visibilidade pública da obra de Soares dos Reis, pois não só a sua presença no espaço público do Porto é diminuta, como o seu contacto com o público se encontra prejudicado, visto a sua implantação ocorrer, em maior número, nos cemitérios da cidade. Dessa falta de visibilidade, lamentámo-nos já várias vezes, inclusive por escrito, num artigo que escrevemos para a Revista da Associação Cultural Amigos do Porto, nos seguintes termos: Poeta da cidade, as mais importantes obras de Soares dos Reis encontram-se guardadas no Museu que lhe consagrou a República, dentre todas destacando-se O Desterrado, espécie de auto-retrato idealizado e sofrido que o escultor realizou durante o seu pensionato, em Roma. Ou a Flor Agreste, de 1881, busto de uma delicada carvoeirinha, propriedade da Câmara Municipal do Porto, em depósito no Museu Nacional de Soares dos Reis. No exterior, encontram-se obras de menor vulto, como as imagens de S. José e S. Joaquim, de 1880, da fachada da capela neo-gótica dos Pestanas, ou como a estátua do Conde de Ferreira, de 1876, que está no cemitério de Agramonte, réplica em bronze do original1 que está à guarda do MNSR, e por isso destituída da qualidade plástica ímpar do original. Mas verdadeiramente no espaço público, só se encontra uma obra: um magnífico busto em bronze de Marques de Oliveira que está no Jardim de S. Lázaro, […] frente ao então Museu Soares dos Reis e Academia Portuense de Belas Artes, uma vez que o busto de Francisco de Almada e Mendonça e a estátua A Saudade, por se encontrarem implantados nos cemitérios, respectivamente do Prado do Repouso e de Agramonte, já não usufruem de tão constante visibilidade pública. Por isso, para corrigir aquela que poderia ser uma injustificável omissão, consideramos que o presente texto sobre a escultura pública do Porto teria necessariamente de começar por uma referência muito especial a Soares dos Reis. Aliás, porque escrever é muito pouco, e fazer homenagens pouco mais, julgamos que o que teria de facto valor seria replicar algumas esculturas de Soares dos Reis, e implantá-las nos espaços públicos da cidade. Desde logo, replicar O Desterrado, e fazer implantar essa magnífica estátua, por exemplo, nos jardins do Palácio de Cristal, onde julgamos que aquela figura poderia encontrar um enquadramento adequado, capaz de propiciar sugestivas leituras.

É, pois, no seguimento de um interesse anterior, que contribuímos agora para o Congresso O Porto Romântico, com uma investigação que apesar de incidir, unicamente, sobre uma estátua, acabou por se tornar numa tarefa de maior envergadura do que à partida seria de supor. Temos de reconhecer, no entanto, que a presente investigação não se encontra esgotada, muito embora os novos elementos que agora foram reunidos tivessem ultrapassado as expectativas, tanto mais que O Desterrado não é uma obra desconhecida, mas antes uma obra emblemática, não só da produção de Soares dos Reis, como da própria produção escultórica portuguesa. Sem avançar conclusões, importa referir que a investigação realizada vem, senão refutar, pelo menos, pôr em causa, algumas das teses tradicionalmente enunciadas a propósito da definição do lugar e do sentido que emanam da enigmática estátua.

1

Uma outra réplica, também em bronze, da mesma estátua, encontra-se nas Caldas da Rainha, implantada no Parque D. Carlos I, junto ao Museu Malhoa.

Enigmática, desde logo pela judiciosa combinação de duas linguagens à partida tão díspares quanto opostas: a poética romântica que emana da expressão anímica da personificação do poema de Alexandre Herculano “Tristezas do Desterro”2, aliada à forma clássica que emana do nu masculino modelado segundo a regra de proporções preconizadas por Policleto no seu cânone, o qual, de acordo com Galeno, se havia sido formulado, como se segue: “A beleza, pensa Chysippus, não está na simetria dos elementos, mas na adequada proporção entre as partes, como por exemplo dos dedos uns para com os outros, estes para com a mão, esta para com o punho, este para com o antebraço, este para com o braço, e de tudo para com tudo, como está escrito no Cânone de Policleto. Tendo-nos ensinado nesta obra todas as proporções do corpo, Policleto corroborou seu tratado com uma estátua, feita de acordo com os princípios de seu tratado, e ele chamou a estátua, assim como o tratado, de Cânone”.3

A par deste convívio improvável entre o classicismo e o romantismo, um outro convívio não menos improvável faz-se sentir, entre o rigor da representação naturalista – não apenas presente no corpo da figura, mas também no pormenor da vaga que vem rebentar contra o penhasco, onde a estátua se encontra assente – e o desalento psicológico da figura, irremediavelmente mergulhado nas profundidades abissais da sua alma. Encontra-se pois impresso no belíssimo bloco de mármore de Carrara cinzelado por Soares dos Reis, durante o seu pensionato em Roma, uma equação a várias incógnitas, cuja leitura e interpretação tem desafiado sucessivas gerações de historiadores e críticos. 2. A estátua O Desterrado, teses fundamentais Importa por isso recordar algumas das teses mais significativas. Desde logo a de António Arroyo, que se estabelece no livro que escreveu sobre as obras de Soares dos Reis e de Teixeira Lopes, livro importante, desde logo porque constituiu o momento fundador da crítica de arte em Portugal. Eis como a referida tese é enunciada pelo próprio: O Desterrado é com efeito uma bella estátua, mas sem forte personalidade ainda, apesar da nobreza geral da concepção; influenciada pelos mármores gregos […] ella apresenta na sua plastica aspectos de um equilíbrio soberano; é alem disso primorosa de modelação e execução. Sob o ponto de vista expressivo porem ella é, quanto a nós, contradictoria. Aquele gesto de dedos, proposital e elegantemente encruzados, casar-seia melhor com uma expressão sorridente e attenta; ao passo que o sentimento de desanimo expresso no rosto exigiria como complemento as mãos abandonadas, por inúteis para qualquer acção.4

Formulada a partir de uma leitura crítica, a tese de António Arroyo postula a influência da estatuária grega no que concerne à modelação plástica e ao equilíbrio e harmonia gerais da forma, mas postula a natureza contraditória da estátua sob ponto de vista expressivo, dada a incongruência que o autor julga descobrir entre o desânimo do olhar e o entrecruzar lúdico dos dedos.

2

HERCULANO, Alexandre, Poesias, Viúva Bertrand e Filhos, 1860, 2ª edição, Lisboa, pp. 165-183. E-book acessível em: http://www.gutenberg.org/ebooks/25925 3

“Beauty, Chrysippus feels, resides not in the commensurability (symmetria) of the constituents (i.e. of the body), but in the commensurability of parts, such as the finger to the finger, and of all the fingers to the metacarpus and the wrist (carpus), and of these to the forearm, and of the the forearm to the arm, in fact of everything to everything, as it is written in the Canon of Polyclitus. For having taught us in that treatise all the symmetriae of the body, Polyclitus supported his treatise with a work, having made a statue of a man according to the tenets of his treatise, and having called the statue itself, like the treatise, the Canon.” In, STEINER, Deborah Tarn, Images in Mind. Statues in Archaic and Classical Greek Literature and Thought, Princeton University Press, 2001, New Jersey, pp. 39-40. 4

ARROYO, António, Soares dos Reis e Teixeira Lopes. Paginas de critica d’arte, Typographia de José da Silva Mendonça, 1899, Porto, p. 91. E-book acessível em: http://purl.pt/6361

Leitura portanto equívoca, a tese de Arroyo assenta na premissa de que a estátua era uma obra ainda imatura, destituída, portanto, do carácter de uma obra da maturidade como, por exemplo, a estátua do Conde de Ferreira. Sucede que a estátua do Conde Ferreira é apenas dois anos mais recente do que o Desterrado, cuja finalização ocorre em 1874, tendo sido iniciada em Roma, em 1872, facto que contraria essa leitura, pois não é pacífico admitir que a distância entre uma obra de juventude e outra de maturidade, num artista, possa reduzir-se apenas a dois anos, ou quatro, no máximo. Concebida a partir dos enunciados do naturalismo, então retoricamente adoptado pelo ensino academizado das artes, a tese de Arroyo era acompanhada de rasgados elogios à obra de Teixeira Lopes, já que na sua apreciação a Viúva de Lopes superava o Desterrado de Soares5, mau grado a primeira seja uma obra inequivocamente inferior, quer no tratamento plástico, quer na própria expressividade. Trata-se portanto de uma leitura forçada, incapaz de identificar a sua originalidade, e mais ainda incapaz de produzir uma interpretação plausível do seu sentido. De resto essa incapacidade, quanto a nós, tende a manter-se ao longo dos tempos, embora de forma progressivamente mais esbatida, pois de um modo geral a crítica da arte mais do que interrogar a estátua (e de se interrogar perante ela), têm antes projectado sobre a mesma leituras procedentes de outras origens, de que a estátua é apresentada a posteriori como símbolo. Foi isso que precisamente se passou com o laicismo Republicano. Durante a 1ª República, a estátua O Desterrado suscitou novas e sugestivas leituras, que a resgatavam de um historicamente confinado e esteticamente redutor entendimento tardo-romântico. Com Teixeira de Pascoaes, o Desterrado surge como símbolo eloquente da religião da Saudade que o poeta identificava como a essência do povo português, referindo-se à estátua, num artigo publicado em A Águia, logo em 1911, nos seguintes termos: Soares dos Reis, no Desterrado vislumbrou a Saudade; sob os golpes do seu escopro genial, o marmore estremeceu, animou-se para sempre, desenhando os seus longínquos e pressentidos contornos; a tristeza d’aquele marmore é sobrenatural; no seio d’aquele marmore palpitam a luz do céu e a escuridão da terra: Niobe geme nas suas entranhas a alegria dos deuses que lhe massacrou os filhos e a impederniu de dôr: aquela pedra á a Pedra d’Ara do nosso Templo!6

No ano seguinte, Teixeira de Pascoaes regressa ao tema, para designar Soares dos Reis como “o precursor da verdadeira arte lusitana”7, e a propósito de O Desterrado, refere o seguinte: … O Desterrado é a Esfinge da Raça no recanto esquecido de um Museu. Na sua figura sagrada vive já, de alguma forma, a saudade religiosa e metafísica.8 A estátua deixa então de ser vista como uma citação dos mármores gregos, para se tornar anúncio de uma arte lusitana, ontologicamente marcada pela religião da Saudade, de que O Desterrado se torna o incontornável símbolo. Esta leitura, marcada pelo Criacionismo republicano de Leonardo Coimbra, viria a manterse durante o período do Estado Novo, muito embora de forma menos enfática e filosófica, 5

Ver nota de rodapé pp. 159-160

6 PASCOAES, Teixeira, Crítica à obra Por Tierras de Portugal y de España de Miguel de Unamuno, in A Águia, Porto, 1.ª série, n.° 8, Abril, 1911, p. 15. 7

PASCOAES, Teixeira, O Espírito Lusitano ou o Saudosismo, Porto, Ed. Renascença Portuguesa, 1912, p. 13

8

Idem, ibidem.

como se encontra registado nas dezenas de depoimentos que vários autores e homens de letras deixaram registadas no Álbum, In Memoriam, publicado no centenário do nascimento de Soares dos Reis. A título de exemplo, transcrevemos a seguinte, de Reinaldo dos Santos: O Desterrado é a sedução de uma sensibilidade requintada pela beleza plástica do nu, tocada de morbidezza, tal como a arte helenística a concebera. Beleza plástica sobre a qual uma cabeça romântica se inclina com a nostalgia da saudade. Hibridez de classicismo e romantismo que caracterizara muitas obras da geração anterior. Soares dos Reis sentia o equilíbrio, a harmonia a euritmia e o idealismo da arte grega; outras obras de estatuária que depois fez traduzem idêntica sedução pelos ritmos clássicos.9

Deve-se a José-Augusto França a superação do impasse a que as leituras de base romântica e/ou simbolista haviam conduzido as interpretações sobre a origem e o sentido desta estátua, ao mesmo tempo que a interpretação que o historiador vem propor, não somente corrige os desmandos da deriva daquelas leituras, como faz entrar o seu entendimento no plano analítico e semântico da modernidade. Ouçamo-lo: Obra de um romantismo suspenso numa interioridade discreta e tensa, ela classifica-se de uma maneira epigonal em relação a um certo formalismo do Ocidente […]. Por outro lado, porém, esta obra recusa a estrutura de tal formalismo de duas maneiras curiosamente opostas: ou pelas raízes classicizantes, ou por uma mais moderna fidelidade naturalista. O “Desterrado” define-se assim como uma obra charneira, e não só no quadro da escultura nacional. A sua qualidade plástica permite situá-la num plano mais ambicioso.10 A leitura de França começa por fazer jus à originalidade da estátua, e lucidamente evita tentar inscrevê-la dentro de uma única estética (ou lógica) formal. Pelo contrário, a lucidez de França permite reconhecer que o sentido da estátua se desvenda precisamente pelo cruzamento de linguagens plásticas opostas, e sobretudo que é esse cruzamento (esse romantismo suspenso) que permite situar a estátua num “plano de charneira”, que dá azo a um exercício plástico cuja excelência supera o “quadro da escultura nacional”. Mas é na passagem seguinte, que França define o “lugar conceptual” donde emana o sentido transcendental, isto é, consciencial, da obra: Obra “espiritual” e “natural”, o “Desterrado” tem uma carga simbólica que lhe é interior; não nasce de uma ideia, mas de um programa vivido e exigido pela própria vivência do artista. É, por assim dizer, uma obra “existencial”.11 A percepção da origem transcendental (no sentido fenomenológico) da obra, por José-Augusto França, constitui uma viragem na interpretação da mesma, cuja importância queremos aqui salientar, e consideramos que as consequências dessa viragem ainda não se encontram suficientemente assumidas pela história e pela crítica da arte, inclusivamente por José-Augusto França, que numa passagem, porventura diplomaticamente conciliatória, relativamente a um entendimento menos radical da obra, admite o seguinte: Mas o “Desterrado” é também a estátua da saudade, dum sentimento que a sua geração realista, e gente das “Conferências do Casino”, procuraria escalpelizar, antes de a ela ceder, vencida da vida, ou do próprio sentimento, fantasma desculposo de uma certa ideia de pátria.12

9 SANTOS, Reinaldo dos, A Arte de Soares dos Reis, In, EBAP (org), Soares dos Reis: In Memoriam, 1948, Porto, p. 17 10

FRANÇA, José-Augusto, A Arte Em Portugal no Século XIX, Vol. 1, Bertrand, Lisboa, 1966, pp. 453-454

11

Idem, Ibidem

12

Idem, ibidem

Como veremos mais adiante, parece-nos bastante discutível conotar O Desterrado com o saudosismo, desde logo porque o saudosismo é algo distinto do sentimento da Saudade. O saudosismo é a versão portuguesa do discurso e da sensibilidade simbolista que então chegava a Portugal, uma vez mais, vinda de França. A insistência na Saudade, continuará, por isso, presente mesmo nas mais recentes leituras que foram actualizando o entendimento da crítica sobre a referida estátua. Momento importante dessa actualização, foi a publicação do livro Soares dos Reis. Memória e Reconhecimento, publicado aquando da celebração do centenário do seu falecimento. Nele, figura a leitura de Bernardo Pinto de Almeida, que a seu respeito avança: Em Roma infatigavelmente esboça, estuda, copia, desenha e sobretudo deixa-se impregnar pelo que vê nos dois anos que ali permanece, e de lá voltará com os olhos e o coração cheios disso tudo […] e também com a sua obra-prima, o Desterrado, que em Portugal virá a concluir […] Seria talvez necessário esperar pela leitura sistemática que Kathryn Greenthal fez da obra de Augustus Saint-Gaudens – amigo e condiscípulo de Soares em Roma – para entender que a sua obra se inscreve numa corrente elegíaca que ambos os artistas partilharam com Thomas Crawford, autor dessa obra-prima que é o “Chefe índio contemplando o progresso da civilização”, em que se prolonga um sentimento tardo-romântico de constatação da decadência e da mutação dos vectores da civilização, em obstinada recusa de os assumir. Saint-Gaudens, de resto, escreveu a propósito do Desterrado que "a sua melancolia estava em completo acordo com a própria natureza de Soares", testemunhando um conhecimento que se aprofundou na amizade, e que em Soares dos Reis passou sempre por uma referência respeitosa ao seu amigo americano, de quem chegou, de resto, a executar esboços a lápis de uma peça. E é aí que se revela frágil a grelha de Arroyo ao ver em Soares apenas o grego que ele muito transcendeu, como se justifica uma das leituras mais interessantes que afinal a sua obra propõe, a de um romantismo português que não teve par em escultura e pouco o encontrou mesmo na pintura.13

A leitura expressa por Bernardo Pinto de Almeida inscreve-se, portanto, no plano do tardoromantismo, e encontra como fundamento a tese de que a estátua reflecte o sentimento de melancolia que moldava a sensibilidade do escultor. Temos bastantes reservas relativamente a este entendimento, como desenvolveremos mais adiante. Não é a melancolia que se espelha nos signos identificadores de O Desterrado, mas a angústia. Não é a corrente elegíaca (clássica) que emana do olhar, do torso e das mãos. É a consciência de si como motor da existência, acompanhada da percepção da impossibilidade do exercício da liberdade que a possibilita, aspecto que surge agravado no campo da criação artística, em virtude do jugo do academismo que pesava, então, sobre a esfera das artes. Para lá deste enunciado, esta leitura tem o mérito de introduzir um dado novo fundamental para o entendimento da estátua: a relação de convívio e amizade com o escultor norte-americano Augustus Saint-Gaudens (1848-1907), aspecto esse que iremos analisar com algum detalhe mais à frente, pois dele emergem novas pistas e se insinuam novas ilações. Terminamos o primeiro ponto, com uma leitura recente da estátua, da autoria de Rui Mário Gonçalves, que sintetiza e actualiza, como se segue, a leitura sobre O Desterrado: Nesta escultura cruzam-se três modos do pensamento artístico desenvolvidos ao longo do séc. XIX: a vontade clássica de clareza formal e de bom acabamento; a expressão romântica da vida interior; e a captação dos dados da experiência comum, quer ao nível da percepção visual quer no âmbito dos sentimentos. Por este último aspecto, Soares dos Reis foi, a partir de então, e mais ainda nas suas obras posteriores, um dos introdutores do Naturalismo em Portugal, coincidindo cronologicamente com as intenções dos escritores antiromânticos da década de 70. Mas Soares dos Reis inspirara-se no poema “Tristezas do Desterro” do 13 ALMEIDA, Bernardo Pinto de Almeida, António Soares dos Reis, In, BALDAQUE, Mónica e ALMEIDA, Bernardo Pinto de (coord.), Soares dos Reis: Memória e Reconhecimento, MNSR, 1988, Porto, p. 9.

romântico Alexandre Herculano (1810-1872). A sua escultura ligou o passado ao futuro, encarnando antecipadamente o espírito derrotista do final do século, em que relevantes intelectuais e militares se mataram, o que levou o filósofo espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) a caracterizar Portugal como terra de emigrantes e suicidas, entre as quais se contou o próprio Soares dos Reis. O poeta Teixeira de Pascoaes (1877-1952) formulou um juízo mais amplificante e menos pessimista. Para ele, “O Desterrado” era a expressão máxima da saudade, sendo esta uma característica essencial do povo português. Na Poesia de Pascoaes, a saudade foi revelada como uma profunda entrega à reminiscência iluminante, análoga à da filosofia de Platão em busca dos arquétipos. Nesta problemática filosófica, o “Desterrado” adquiriu uma significação perene e universal.14

Baseado numa leitura, por assim dizer, sincrética, de anteriores interpretações, o entendimento que Rui Mário Gonçalves veicula sobre a estátua sintetiza de forma particularmente conseguida a interpretação que prevalece hoje, na crítica da arte e na museologia. Propomo-nos reexaminar este entendimento, seguindo para tanto o itinerário das influências de Soares dos Reis, durante o tempo da sua aprendizagem, em Paris e Roma. 2. A influência dos mestres Na sua estadia em Paris, Soares dos Reis teve como mestres na Escola Imperial de Belas Artes de Paris, François Jouffroy (1806-1882), professor de escultura, Adolphe Yvon (1817-1893), professor de Desenho e de Pintura Histórica, Léon Heuzey (1831-1922), professor de Arqueologia e ainda de Hippolyte Taine (1828-1893), professor de História da Arte. Vejamos uma amostra da produção escultórica de François Jouffroy:

Fig.1- François Jouffroy (1806-82)

Fig.2- Secret à Vénus, 1839 Fig. 3- L’Harmonie, Opéra, 1865, Paris

Fig. 4- L’Aube, 1876, Paris

Analisando a amostra, verifica-se uma obediência uniforme ao longo da sua carreira aos formulários do neoclassicismo, que se manifesta na expressão idealizada das suas figuras, no tratamento plástico dos panejamentos, no recurso a figuras da mitologia greco-romana, na sensualidade contida dos nus, no emprego de signos identificadores da cultura clássica, como sendo figuras aladas, coroas de louros, liras, ânforas, etc. Vejamos uma amostra da produção de pintura histórica e de desenho de Adolphe Yon:

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GONÇALVES, Rui Mário, O Desterrado (1872), In, Centro Nacional de Cultura, Obras de referência da Cultura Portuguesa, URL: http://e-cultura.sapo.pt/DestaqueCulturalDisplay.aspx?ID=560&print=1

Fig.5- Adolphe Yon (1806-82)

Fig. 6- Adolphe Yon, O Génio da América, 1858, óleo s/tela, St. Louis Art Museum, EUA

Fig.7- Adolphe Yvon, Caderno de desenhos do artista, ff. 19, ENSBA, Paris

Fig. 8- Idem, ff. 25, ENSBA, Paris

Analisando a amostra, verifica-se uma obediência menos uniforme aos formulários do neoclassicismo, que ao nível do desenho aparecem complementados com figurações que oscilam entre o naturalismo e a fantasia, devendo assinalar-se a presença de signos maçónicos na tela O Génio da América, 1858, Fig. 6. No caso da produção de Adolphe Yon, a mesma mostra-se mais eclética no seu alinhamento estético, e tende a acompanhar a evolução cronológica dos próprios formulários académicos. Por último, relativamente ao mestrado de Hippolyte Taine, importa assinalar que, apesar de meramente teórico, o mesmo deve ter tido repercussão em Soares dos Reis, visto existir um apontamento escrito pelo seu punho, que acompanha um desenho da sua própria mão, onde aparece uma passagem do livro de Taine Philosophie de l’Art en Italie, que transcrevemos: On a remarqué que deux conditions sont nécessaires pour produire les grandes œuvres: la première, c'est la vivacité d'un sentiment spontané, propre et personnel que l'on exprime comme on l'éprouve, sans craindre aucun contrôle ni subir aucune direction; la seconde, c'est la présence d'âmes sympathiques, l'aide extérieure et incessante des idées voisines par lesquelles les idées vagues qu'on porte en soi-même sont couvées, nourries, achevées, multipliées, enhardies.15 Fig. 9- S. dos Reis, Desenho e citação, s/d

15 TAINE, Hippolyte, Philosophie de l’Art en Italie. Lessons Professés à L’École des Beaux-Arts, Germer Baillière, 1866, Paris, p. 160.

Não se encontrando o documento datado, o desenho no entanto deverá ter sido riscado após 1885, em virtude da mão desenhada exibir uma aliança no dedo anelar do escultor, o que a ser assim viria corroborar a tese da simpatia que o escultor mantinha pela obra de Taine, passados cerca de 15 anos de ter sido seu aluno. Aliás, a frase transcrita, provém do livro que reproduz os conteúdos das aulas dadas por Taine, na École. Permite-nos este facto aduzir que de todos os professores que teve, foi porventura Hippolyte Taine aquele que mais terá marcado Soares dos Reis, e que, muito provavelmente, terá sido o contacto que por seu intermédio estabeleceu com a arte italiana que decerto terá determinado a escolha de Roma como destino para a segunda parte do seu pensionato, interrompida que foi a primeira, em Paris, pela eclosão da guerra franco-prussiana. Assim, depois de uma breve passagem por Portugal, entre Agosto de 1870 e Janeiro de 1871, Soares dos Reis no dia 7 desse mês, arrancou para Roma, vindo a instalar-se, numa primeira fase, na Via de S. Nicolo da Tolentino, que partilhará com Augustus de SaintGaudens, anteriormente seu colega, e amigo pessoal, na École, em Paris. Os contornos e implicações desta circunstância, abordaremos mais adiante, quando nos detivermos nas influências imprimidas pelos colegas. De momento, importa analisar a produção do professor que acompanhou a sua aprendizagem em Roma: Giulio Monteverde.

Fig.10- Giulio Monteverde (1837-1917)

Fig. 11- G. Monteverde, Jovem Colombo, 1870

Fig. 12- G. Monteverde, Jenner vacina o filho, 1873

Observando as imagens, veifica-se uma inegável afinidade estética e acordo semântico entre a obra de Monteverde e de Soares dos Reis, reforçado desde logo pelas origens humildes de ambos os artistas, pois como sintetiza Raffaella Beccaro Peddulla16, a biografia de Giulio Monteverde conheceu as seguintes etapas: Filho de Vittorio, trabalhador agrícola, Monteverde nasceu em Bistagno em 1837. Jovem, demonstrou precocemente os seus dotes artísticos, e ainda criança seguia o pai ao trabalho, modelando figurinhas com argila que encontrava nos campos. Ao serem percebidas suas habilidades manuais, foi encaminhado a tornarse artesão, aprendendo o ofício com um carpinteiro. Com nove anos chega à oficina como aprendiz, junto a um entalhador de madeira, o Merletti de Casale. Na mesma cidade entra no ateliê de Giovanni Bistolfi, pai do grande Leonardo. É propriamente este último que, reconhecendo seus dotes incomuns, o aconselha a transferir-se para Gênova, onde se fixa entre 1857 e 1859. Lá, para manter-se, trabalha com o ebanista Bottaro e o carpinteiro Giacinto Grosso, que produzia móveis em estilo florentino e genovês. Nesse meio tempo, à noite, frequenta os cursos da aula de nu da Accademia Ligustica di Belle Arti di Genova, onde tem como mestre Santo Varni (Gênova, 1807-1885), com o qual colabora no restauro dos assentos do coro do Duomo di S. 16 Directora do Museo Gipsoteca Giulio Monteverde, Bistagno (Alessandria) e Consultora do Centro Nazionale delle Ricerche, Università di Genova

Lorenzo em Gênova. Aproxima-se assim dos ideais do verismo e da corrente de Lorenzo Bartolini (Savignano di Prato, 1777 – Firenze, 1850), representada na Ligustica por Francesco Gandolfi (Chiavari, 1824 – Gênova, 1873) e do pintor Tammar Luxoro (Gênova, 1825-1899). Conquista a estima de Giovanni Batista Cevasco (Gênova, 18141891) que, juntamente com Varni, guia o movimento naturalista antiacadêmico.17

Eis como a mesma investigadora caracteriza a sua obra: A produção de Monteverde insere-se bem no contexto histórico do movimento verista, compreendido como corrente estética a afirmar-se na Itália na segunda metade do Oitocentos que sustenta, em correspondência ao naturalismo francês, uma representação objetiva da realidade, sem todavia prescindir de uma autonomia formal e expressiva. Já no período dos estudos acadêmicos genoveses, persegue um ideal mais alto do que aquele proposto por Santo Varni. Mais que o seu mestre, ele admirava a Lorenzo Bartolini e Vincenzo Vela.18 Este aspecto parece-nos de grande relevância, tanto mais que a filiação da obra de Soares dos Reis com o Verismo não tem sido referida, à excepção de uma nossa referência anterior, onde sutentamos ser “um dado entendimento do verismo [aquilo] que distingue a obra de Soares dos Reis.”19 Afinidade, mas não transcrição. Soares dos Reis não é um epígono de Monteverde, e nenhuma

razão havia na insinuação lançada pelo pintor Francisco Rezende de que “o Desterrado era mais obra do escultor italiano Monteverde, seu suposto mestre em Roma, do que pròpriamente sua.”20 Senão vejamos, comparando ambas:

Fig. 13- G. Monteverde, Colombo, 1870, Génova Fig. 14- S. dos Reis, Desterrado, 1874, Porto

Se é verdade que se verifica uma certa similitude relativamente à pose, no que respeita ao tratamento plástico, são notórias as discrepâncias, visto em Monteverde nos encontrarmos 17 PEDULLA, Raffaella Beccaro, Monteverde e a escultura do Oitocentos na Itália, In, Revista de História da Arte e Arqueologia, Nº 11, Jan/Jun de 2009, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, p. 57 18

Idem, p. 58

19

ABREU, José Guilherme, A Estatuária Novecentista entre dois Paradigmas de Monumentalidade, In, MATOS, Lúcia Almeida (coord.), Encontros de Escultura, FBAUP/MUSEU, Porto, 2005, p. 20

AZEVEDO, António, Soares dos Reis, In, EBAP (org), Soares dos Reis: In Memoriam, 1948, Porto, p. 84

perante uma figuração neo-florentina, como convinha à interpretação verista do jovem Colombo, enquanto em Soares dos Reis nos encontramos pertante uma figuração clássica, evidenciada pelo nu masculino. Mas os contrastes não se restringem ao domínio da iconografia. De igual modo, o tratamento expressivo é totalmente distinto quer relativamente à expressão do olhar, quer relativamente à posição das mãos, como se verifica pelas imagens:

Fig. 15- G. Monteverde, Colombo, 1870, pormenor do olhar Fig. 16- S. dos Reis, Desterrado, 1872-74, pormenor do olhar

Analisando as imagens, verifica-se o contraste absoluto da deteminação premonitória de uma expressão que visa um horizonte distante, mas indubitavelmente focada no devir, no caso de Colombo. Já no Desterrado, observa-se a expressão vazia, ou perdida no abismo interior de quem não tem futuro, nem sequer presente. Olhar firme, determinado e seco, na antecipação do devir, no Colombo. Olhar vazio, perdido e humedecido, no Desterrado. Em síntese, podemos afirmar que do ensinamento dos mestres que teve em Paris e em Roma, Soares dos Reis colheu maior influência em Giulio Monteverde, do qual aproveitou o verismo plástico e expressivo que lhe permitia superar a frivolidade formal, a frieza do desenho e o convencionalismo da composição dos estatuários franceses que reduziam a estatuária do terceiro quartel do século XIX, a redundantes exercícios meramente retóricos de grandiloquência. Não era claramente a arte de executar exercícios retóricos que Soares dos Reis procurava. O seu propósito, como viria a confirmar-se, não era agradar a nenhuma clientela21, pois Soares dos Reis não trabalhava para clientelas, mas unicamente para a Arte. Ora essa demanda de autenticidade, acordava-se com o verismo que conheceu pela primeira vez através de Monteverde, verismo que rejeitava as reivindicações de utilidade da arte, distanciando-se, contrariamente ao naturalismo francês, das teses positivistas, como explica Luigi Capuana, um dos seus principais teóricos: Claro que é necessário ser idealista, para tentar surpreender, para lá dos olhos escuros ou claros, a alma, a ténue e tímida alma que se revela apenas aos crentes, porque se ela se fechar ao exterior ou mesmo aos fenómenos psíquicos, tornar-se-á apenas um mecanismo, e observará somente aquilo que mais puramente se encontra relacionado com a carne, e então a obra será infrutífera, será uma licença de caça com as características das várias personagens, não será um livro da alma.

21

É uma constante na sua obra, a recusa de retratos encomendados por parte dos retratados, como sucedeu com o busto de Emília Pinto Leite, de 1877, e de de Joaquim Pinto Leite, de 1881, cuja figuração denunciava as origens plebeias de ambos (os pais de Joaquim Pinto Leite eram proprietários da Quinta da Gandarinha, em Cucujães), devendo no entanto assinalar-se a detenção de títulos de nobreza por parte do seu irmão mais novo, Sebastião, nomeado, primeiro, 1º Visconde da Gandarinha, em 1879, e depois 1º Conde da Penha Longa, em 1886, assim como o seu sobrinho, Júlio, nomeado 1º Conde dos Olivais, também em 1886.

Ela [a arte] vive para as pessoas, as quais são maravilhosamente desenhadas pelo verismo de Verga, ou seja, pessoas que são essas e não outras, e que não são confundidas com quaisquer outras. E ele está certo. Eu (deveria dizer nós, mas parece-me demasiado orgulhoso, e contento-me com a meia medida de orgulho que apresento) entendo que pessoas vivas, não são abstrações, não são nuvens cinzentas que se transformam em todos os ventos, não são fantasmas lívidos que desaparecem à luz de uma candeia, mas o tipo (e aqui de uma forma muito especial, poderia dizer, com Guyan e com Brunetière, símbolo), onde cada homem encontra algum sentimento, algum pensamento seu, onde cada homem encontra alguma imagem fraterna, onde cada homem encontra a sua alma entendida, como uma gota de água está incluída no mar infinito.22

Esta longa passagem é eloquente. Por ela se compreende a distância abissal que do ponto de vista conceptual separa o verismo do naturalismo, sendo este marcado pelo sociologismo de pendor positivista, enquanto o outro é marcado pelo transcendentalismo de pendor místico. A arte de Soares dos Reis encontra-se no nosso ponto de vista bastante afectada por esta dicotomia, e o Desterrado, como veremos a seguir, denota-o, nitidamente. 3- A influência dos condiscípulos Não tem sido considerado este aspecto, na análise da problemática de que se reveste a génese do Desterrado. No entanto, importa recordar que enquanto Soares dos Reis se encontra em Roma, encontram-se também lá colegas seus portugueses, como o escultor José Simões de Almeida (1844-1926), que enquanto bolseiro do Estado Português teve o mesmo trajecto e foi aluno dos mesmos professores que Soares dos Reis, tanto em Paris como em Roma. Mas não será dos seus compatriotas que Soares dos Reis receberá maior influência. De resto, já Aarão de Lacerda havia sugerido a influência dos escultores neo-florentinos, como Paul Dubois (1829-1905), provavelmente pensando no mármore Narciso no banho, que esculpira em 1862-67, e que presentemente se encontra em exposição no Quai d’Orsay, mas cuja figuração e mesmo plástica nada tem que ver com o Desterrado.23 Atalhando, de todos os seus colegas escultores, aquele com quem Soares dos Reis estabeleceu maiores laços de amizade foi com o norte-americano Augustus Saint-Gaudens (1848-1907), que fez também o mesmo percurso, tendo estudado em Paris e em Roma, e cuja amizade perdurou, ao longo dos anos.24 22 CAPUANA, Luigi, Gli “Ismi” Contemporanei (Verismo, Simbolismo, Idealismo, Cosmopolitismo). Ed altri saggi di critica letteraria ed artistica, Niccolò Giannotta Editore, Catania, 1898, pp. 38-39 – Certo per ciò è necessario di essere idealisti, di cercar di sorprendere al di là dell'occhio oscuro o chiaro l’anima, la tenue timida anima che solo ai credenti si rivela, perchè, se ella si fermerà all’esterno o anche dei fenomeni psichici farà un macchinismo e osserverà solo quelli più prettamente legati alla carne, allora 1’opera sarà vana, sarà un permesso di caccia coi tratti caratteristici dei varii personaggi, non sarà un libro dell’anima. Ella per persone vive intende quelle mirabilmente disegnate dal verismo del Verga, ossia persone che sieno quelle e non altre e non confondibili con nessuna altra. E ha ragione. Io (dovrei dir noi, ma mi sembrerebbe anche più orgoglioso e mi contento della mezza misura d’orgoglio contenuta in quell’io) intendo per persone vive non astrazioni, non nuvole grige e mutevoli a ogni vento, non fantasmi lividi che spariscono alla luce d’una candela, ma tipi (e qui in un certo specialissimo senso ella potrebbe — col Guyan e col Brunetière dire simboli) dove ogni uomo ritrovi qualche sentimento, qualche pensiero suo, dove ogni uomo ritrovi una qualche immagine fraterna, dove ogni uomo ritrovi l’anima sua, compresa come una goccia d’acqua è compresa nell’infinito mare. 23 24

Esta sugestão é citada por Carlos Passos, no livro Soares dos Reis: In Memoriam, p. 135

Existe uma carta de Soares dos Reis dirigida a Augustus Saint-Gaudens, datada de 1885, cujo micro-filme se encontra na Dartmouth College Library, guardada no espólio Augustus Saint-Gaudens, cota, SaintGaudens, Augustus, Papers 1874-198, Identification: ML-4, cuja descrição é a seguinte: Soares dos Reis, Antonio -- One letter from Soares to Augustus Saint Gaudens. 1885. FRAME : 41-53, Society of American Artists -- One letter from Augustus ... http://ead.dartmouth.edu/html/ml4.html, In, http://ead.dartmouth.edu/html/search_results.html?cx=017180522165740084141%3Av1wbqwoih_k&as_q =more%3Aead&cof=FORID%3A10%3BNB%3A1&ie=UTF-8&q=soares+dos+reis&sa=Search#140

De resto, a amizade com o escultor norte-americano começou logo em 1868, durante o mestrado de Jouffroy, como refere John Dryfhout, biógrafo de Saint-Gaudens.25 De acordo com o mesmo autor, em Outubro de 1873, Soares dos Reis acompanharia SaintGaudens num “Walking tour of Naples and Capri”26, sabendo-se inclusive que dessa viagem a Capri resultou o desenho da mesma vaga que fustiga o rochedo sobre o qual se apoia o Desterrado, consensual que tem sido considerar que a angustiada figura se ergue sobre um dos rochedos de Capri, que Soares dos Reis teria, na mesma viagem, visualizado, ou pelo menos a que a estátua pretendia aludir. Sucede que de acordo com a cronologia publicada no Catálogo Soares dos Reis: Memória e Reconhecimento, os factos ocorridos em 1872, encontram-se ali registados, da seguinte forma: 1872: É-lhe suspensaa pensão e exigido o retorno a Portugal, em Março. Interferência do Conde de Tomar, seu amigo em Roma. (doc.4), (Junho), Recebe novos subsídio para a conclusão da sua obra final como pensionista, (Julho). Saída de Roma e envio da estátua do Desterrado ainda inacabado directamente à Academia Portuense de Belas Artes. Completá-la-ia mais tarde auxiliado por moldes que tirara do natural, sobre o modelo vivo. Visitas a Florença, Nápoles, ruínas de Pompeia, Poertum, Sorrento. Esboça vistas de Amafaldi e Capri, onde tira apontamentos como os de uma rocha e onda, que lhe serviram para as cinzeladas finais do “Desterrado”. Passagem por Paris. Travessia da Mancha para ver Londres. De regresso a Portugal, passagem por Lyon, Arles, Nimes e Marselha. Passagem por Madrid, onde visita a imagem de S. Bruno da autoria de Manuel Pereira que mais tarde desenhará para a revista “Arte portuguesa” Chegada a Portugal (V.N. de Gaia), (Setembro). É nomeado Académico de Mérito pela Academia do Porto (doc. 5) a 23 de Dezembro

As cronologias de ambas as biografias não coincidem, mas não é possível de momento esclarecer este hiato, de quase um ano, pois isso exige uma investigação que ultrapassa um estudo com as presentes características e limitações. Parece no entanto segura a informação que dá Soares dos Reis em Vila Nova de Gaia, em Setembro de 1872, pois em 23 de Dezembro desse ano o escultor recebe o Diploma de Académico de Mérito, atribuído pela Academia Portuense de Belas-Artes, e sabemos que não viajará para Roma no ano seguinte. Independentemente das suas prováveis imprecisões cronológicas, importa no entanto considerar o depoimento de John Dryfhout, sobre a passagem de Saint-Gaudens por Roma: During his early days in Rome, however, in order not to lose sight of the ideal, not to stray from his true artistic purpose, Saint-Gaudens began to model the Hiawatha. The subject was safe, following a neoclassically correct theme from mythology and Literature. He modeled the figure in the nude, the favored expression of ideal beauty; the pose and style of the work certainly derived from his French training. A cast of Francisque Duret’s Chactas Meditating on the Tomb of Atala, a romantic figure of 1836 based on the poem by Chateaubriand, was in the Villa Medici, the French Academy in Rome. Saint-Gaudens choice of the theme, based on the poem by Longfellow, brings to the figure a particular national flavor. He shared a studio on the via Tolentino with the Portuguese sculptor Soares dos Reis, a fellow student from the École des Beaux-Arts who was also modeling an ideal work called The Exile.27

25

DRYFHOUT, J, The Work of Augustus Saint-Gaudens, University Press of New England, 1982, Lebanon, p. 3

26

Idem, p. 4.

27

Idem, p. 26.

Este depoimento é importante, na medida em que avança dois factos determinantes. Em primeiro lugar, mostra-nos que a decisão de esculpir a estátua de O Desterrado, não decorreu de uma decisão solitária, fruto do afastamento doloroso do escultor de Portugal, mas antes decorreu de uma decisão muito provavelmente partilhada, tomada em paralelo com Augustus Saint-Gaudens, perseguindo ambos os escultores, a partir de propostas diferentes, a síntese dos ensinamentos colhidos em Paris e em Roma. Em segundo lugar, mostra-nos também que a iconografia de O Desterrado tem uma origem académica e não arqueológica, i. e., uma origem que remonta não aos modelos dos mármores greco-romanos, mas antes aos “modelos academicos-literários” que os alunos copiavam, como metodologia de aprendizagem, tal como sucede aqui com a estátua Chactas sur la tombe d'Atala (1836), de Francisque Duret (1804-1865) que se encontra implantada nos jardins du musée des Beaux-Arts de Lyon, estátua baseada na novela Atala, ou Les Amours de deux sauvages dans le désert, publicada en 1801, por François-René de Chateaubriand, tornando-se de imediato uma obra seminal da literatura romântica. Observem-se a seguir as imagens das estátuas de Chactas, de Hiawatha e de O Desterrado:

Fig.17- Francisque Duret, Chactas, 1836, Musée de Lyon Fig. 18- Saint-Gaudens, Hiawatha, 1872, Met., New York Fig. 19- Soares dos Reis, Desterrado, 1872

Eis o modelo donde provém a iconografia do Hiawatha, de Saint-Gaudens e, em paralelo, de O Desterrado, de Soares dos Reis. Uma iconografia que se forma a partir de uma cruz, cujos pólos são a literatura romântica, a plástica neoclássica, a aprendizagem académica, e a História-Pátria. Essa mesma síntese, reflecte-se na noção de arte que o própio Saint-Gaudens defendia: I thought that art seemed to be the concentration of the experience and sensations of life, in painting, literatture, sculpture, and particulary acting, which accounts for the desire in artists to have realism. However, there is still the feeling of the lack of something in the simple representation of some indifferent action. The imagination must be able to bring up the scenes, incidents, that impress us in life, condense them, and the truer they are to nature, the better. The imagination may condemn that which has impressed us beautifully as well as the strong or characteristic or ugly.28

Descobrimos em Saint-Gaudens, a mesma preocupação de evitar uma interpretação redutora do real. A preocupação em cruzar com a nobreza dos temas da mitologia clássica, uma 28 SAINT-GAUDENS; Homer, Reminiscences, vol. 2, p. 16. Apud, DREYFHOUT, John, The Work of Augustus…, p. 26.

narrativa historicamente fundamentada, mas enriquecida com a imaginação poética, por forma a torná-la eficaz e significativa para o seu próprio tempo e o seu povo. A análise de O Desterrado, de Soares dos Reis, em paralelo com o Hiawatha, de Saint-Gaudens, torna-se assim, em nossa opinião, particularmente esclarecedora, desde logo porque faz jus à génese simultânea a partir da qual ambas as estátuas foram criadas, tal como refere Kathryn Greenthal, corroborando o que John H. Dreyfhout já havia avançado: He met up with the Portuguese sculptor António Soares dos Reis (1847-1889), a fellow student from the École, and the two decided to share a studio in the gardens of the Pallazzo Barberini. Because as foreigners they were not eligible to receive formal training at the French Academy in Rome, they had to study on their own. Following as assignment prescribed at one of the more advanced stages of training at the French Academy, each young man set about to produce a life-seize statue. Saint-Gaudens chose Hiawatha as his subject.29

Mais adiante, Kathryn Greenthal, acaba mesmo por referir: The statues of the two young men have more than just a literary origin in common; the positioning of the legs and the manner in which the arms are crossed over them are also akin. They also share a quality of brooding and isolation; that each contains a personal reference can be readily inferred.30

A análise de O Desterrado em paralelo com o Hiawatha, de Saint-Gaudens, oferece assim à investigação novas leituras e novas interpretações da enigmática estátua de Soares dos Reis. Leituras e interpretações que permitem, desde logo, questionar algumas das teses a que já nos referimos. O Desterrado não é nem o produto de uma alma melancólica, torturada pelo exílio da Pátria amada, nem o espelho de uma raça teluricamente marcada por uma mística da Saudade. Não sendo conhecido pelos excessos da vida boémia durante o seu pensionato em Paris, Soares dos Reis, terminada a sua bolsa em Roma, não regressa, no entanto, directamente à Pátria, para aliviar o seu sofrimento. Em vez disso, como já vimos, ruma a Paris, atravessa a Mancha e visita Londres, e na viagem de regresso, não deixa de visitar Lyon, Arles, Nîmes e Marselha, ainda tendo tempo para passar por Madrid. A saudade não parece fazer-lhe apressar o passo para regressar à ditosa Pátria amada. Por outro lado, sem pretender denegar nem confirmar as teses de uma religiosidade induzida da Saudade, importa no entanto reconhecer que a Saudade, enquanto temática artística, não constitui um assunto assiduamente tratado pelos artistas portugueses. Obviamente, o saudosismo é um traço, senão um marco, da identidade da língua portuguesa, de resto, mais do que da nação portuguesa. Mas não é na arte, ou pela arte, que ele mais, e melhor, se manifesta. Assim sendo, se o Desterrado não é um ícone da saudade colectiva nem da melancolia pessoal, o que é que nele há de específico, para lá da inspiração de um formulário académico, (a estátua de Francisque Duret), de uma poética romântica, (o poema Tristezas do Desterro, de Alexandre Herculano), de uma estética clássica, (o classicismo greco-romano), e de uma realidade nacional (a Arte Portuguesa)? Para ensaiar uma resposta a esta pergunta, parece-nos necessário identificar os signos diferenciadores de O Desterrado, para de seguida os interrogar e analisar.

29

GREENTHAL, Kathryn, Augustus Saint-Gaudens, master sculptor, Metropolitan Museum of Art, 1985, New York, p. 65. 30

Idem, p. 68.

4- Elementos para uma leitura A leitura que propomos, começa inicialmente por aqui. Por um lado, existe a estrutura (o modelo) que é comum a Saint-Gaudens e a Soares dos Reis. Por outro, existe a interpretação desse modelo, que é única e original em ambos os acasos, na medida em que se constroem a partir de signos bem diferenciados. No Desterrado, esses signos são o olhar vazio (que já vimos), os dedos entrecruzados, o torso dobrado sobre si mesmo, e a onda que vem rebentar no rochedo junto ao mar. Coloquemos esses signos lado a lado:

Fig. 20- S dos Reis, Torso;

Fig. 21- S. dos Reis, Desterrado, detalhe Fig. 22- S. dos Reis, Desterrado, detalhe;

Fig. 23- S dos Reis, desenho

Importa assinalar, que todos estes signos são bastante raros na iconografia da estatuária académica. É isso que os torna precisamente signos diferenciadores, pois normalmente a estatuária oitocentista tende a ser glorificante, ou pelo menos exaltante. Ora cada uma destes signos é o contrário da exaltação. Senão vejamos: a acentuada curvatura do torso, reflecte o abatimento do espírito da personagem; os dedos entrecruzados31 parecem denotar uma crispação, e ao mesmo tempo desenhar uma grade, como se o sujeito se encontrasse aprisionado; o olhar fixo e vazio mais a lágrima que do olho direito se desprende parece sugerir um profundo e constante sofrimento; o rochedo batido pelas ondas do mar, parece indicar a ideia de terminus, de beco sem saída e, portanto, de problema sem solução. Qual é a emoção que melhor traduz o estado de espírito a que parecem aludir estes signos? A nós, parece-nos que essa emoção é a angústia. O sofrimento sem objecto definido, sem causa imediatamente identificável. A sensação do desmoronamento de si, i.e., do self. Um dos mais marcantes filósofos oitocentistas da angústia foi Søren Kierkegaard (18131855). Kierkegaard usa o exemplo de um indivíduo que se detém junto à borda de um edifício alto ou precipício. Quando o indivíduo olha para baixo, ele sente o medo de cair, mas, ao mesmo tempo, sente um impulso terrível para se atirar, borda fora. Eis como o mesmo a descreve: A angústia pode ser comparada à vertigem. Aquele cujo olhar fita para dentro do abismo, fica tonto. Mas qual é a razão para isso? Está tanto no olhar, como no abismo, supondo que ele não tivesse antes olhado para baixo. Daí, a angústia ser a vertigem da liberdade que surge, quando o espírito quer postular a síntese, e a liberdade olha para baixo para a sua própria possibilidade, mantendo a finitude para se poder sustentar. A liberdade sucumbe nesta vertigem. Mais do que isso, a psicologia não pode avançar. Nesse mesmo momento tudo está mudado, e a liberdade, quando novamente se ergue, vê que ela é culpada. Entre esses dois momentos está o salto, que nenhuma ciência explicou e que nenhuma ciência pode explicar.32

Segundo Kierkegaard, a angústia faz eclipsar a liberdade. Daí o sentir-se encurralado, sem escapatória possível, quando além se rende à angústia. É esse sentimento, quanto a nós, que 31

Importa referir que os dedos entrecruzados são um dos atributos da iconografia de Santa Madalena.

32

KIERKEGAARD, Søren, The concept of Dread, Princeton University Press, 1944, Princeton, p. 55

se espelha na expressão de O Desterrado. Não é a mera tristeza, ou melancolia, que é um estado de espírito passageiro. É o desespero que advém de uma situação limite. Uma situação que pode ser motivada por uma tragédia exterior – caso do Holocausto dos judeus ou do exílio dos liberais – ou de uma tragédia interior – caso do suicídio de Antero ou do de Soares dos Reis. A angústia pode portanto conduzir ao suicídio, como refere Kierkegaard, no caso do indivíduo que sucumbe à atracção do abismo. Foi o que sucedeu a Soares dos Reis, podendo assim funestamente afirmar-se que o seu suicídio é a prova de que o sentimento dominante do seu carácter era a neurose da angústia. Não cabe aqui obviamente desenvolver este aspecto, mas deixamos ficar a nota, de que na perspectiva de um estudo transdisciplinar do conjunto da obra de Soares dos Reis, é absolutamente imperioso empreendê-lo33, pois só através de uma incursão na psicologia das profundezas poderá esclarecer-se o que existia de patológico em Soares dos Reis, e que o que existia de mesquinho e tacanho no meio social que o rodeava, sabendo-se de antemão, como é óbvio, que a mistura de ambos os termos só poderia ser explosiva. Parece-nos no imediato claro, que Soares dos Reis enquanto se encontrava em Roma, não sofria de crises de ansiedade ou de insegurança generalizada, muito embora essa predisposição já se manifestasse, pois de acordo com o depoimento de Saint-Gaudens, “a sua melancolia [do Desterrado] estava em completo acordo com a própria natureza de Soares.”34 De resto, a prova de que Soares dos Reis quando regressou a Portugal não vinha roído pelo desalento, foi que, logo em 1879, foi membro co-fundador do Centro Artístico Portuense, tendo assumido a sua presidência, no ano seguinte. Mas nesse mesmo ano, viria o primeiro revés: a insidiosa calúnia lançada sobre ele, acusando de não ser ele o autor de O Desterrado. Calúnia essa de imediato desfeita pelo Marquês de Tomar, à data Embaixador de Portugal, em Roma. Não seria esse, no entanto, o maior revés de Soares dos Reis, no nosso ponto de vista. O que lhe causou efectivamente maior e mais gravoso dano, foi a rejeição do seu Projecto de Reforma e Regulamento do curso de Escultura35 apresentado pelo mestre à Academia de BelasArtes, em 1886, projecto esse que tivera como antecedente o “Plano de um Curso de Desenho Graduado e Modelação”, proposto, em 26 de Janeiro de 1881, por uma comissão do Centro Artístico Portuense, liderada por Soares dos Reis, e apresentado, em 1882, nos dois primeiros números da Revista “Arte Portugueza”36, editada também pelo mesmo Centro. Pelo exposto, verifica-se que Soares dos Reis se encontrava, por esses anos, bem activo e era uma figura influente, tendo concorrido para o lugar de professor da Cadeira de Escultura da Academia Portuense de Bellas-Artes, e sido aceite, por unanimidade. Mas isso não é tudo, já que em 1884 Soares dos Reis viria a criar um prémio destinado a premiar os seus melhores alunos. É, justamente, a partir de 1886, que Soares dos Reis cai em profunda depressão, como desabafa num postal dirigido a Serafim Neves, em 17 de Junho de 1887: 33

Para tanto, importava previamente reunir e publicar toda a sua correspondência. Quer a que Soares dos Reis escreveu, como a que recebeu. Coisa que reconhecemos será um feito árduo, pois receamos que o que se encontra publicado seja apenas uma pequena parte.

34

GREENTHAL, Kathryn, Augustus Saint-Gaudens…., p. 68.

35

Publicado num opúsculo editado, no mesmo ano, pelo Jornal O Commercio do Porto.

36 A colecção integral (doze números) é consultável em regime de livre acesso, a partir do site da Biblioteca de Lisboa, em http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/ArtePortuguesa/ArtePortuguesa.htm

... Da minha saúde nada posso adiantar a não ser que tenha ainda a fortuna de o meu amigo e distincto médico Dr. Rebello da Silva faça um milagre, se é que no estado em que estou ainda é susceptível de cura pronunciadamente radical…37

É precisamente nesse ano que Soares dos Reis desenhou um monumento funerário, onde a sua assinatura aparece riscada num obelisco encimado por uma cruz de guerra, sobre o qual um anjo choroso se debuça. Parece-nos claro que se trata do desenho do monumento que Soares dos Reis projectara, antevendo a sua própria e iminente morte.

Fig. 24- Monumento Funerário, 1887

Fig. 25- J.J. Teixeira Lopes, Máscara mortuária de S dos Reis

A frustração do artista era portanto irrevogável. Aos seus olhos, tudo na sua vida falhava. Falhara o Projecto de Reforma do Ensino de Escultura, falhara o Centro Artístico Portuense, com a Arte Portugueza a não publicar mais do que doze números, e falhava a sua carreira de escultor, com a derrota dos concursos aos monumentos aos Restauradores e a José Estêvão, e sobretudo com a rejeição do busto de Mrs. Elisa Leech, em 1888. Daí que, no ano seguinte, na manhã do dia 26 de Fevereiro, depois de uma entusiástica tertúlia, na véspera, em torno do projecto para o Monumento ao Infante D. Henrique no Porto, a cuja comissão organizadora Soares dos Reis pertencia, com dois tiros certeiros, Soares dos Reis, abreviava o seu desterro na Terra. Com a morte de Soares dos Reis, sucumbia também, importa dizê-lo, a Escola do Porto, que entrava em regime de hibernação, para dele se reerguer, apenas, na segunda metade do século XX, graças ao concurso das três eminentes figuras de Dordio Gomes, Carlos Ramos e Barata Feyo, pois como já defendemos noutro lugar38, a Escola da Gaia nunca passou de uma miragem: uma mistificação engendrada por António Teixeira Lopes. Arriscando uma “interpretação de fundo”, a estátua o Desterrado representa o terminus de uma filosofia da arte. Inserindo-se na linha evolutiva – na genealogia – da História da Arte Ocidental, como já judiciosamente observara José-Augusto França, o Desterrado não somente é uma obra-prima da Arte Ocidental, como representa o seu auge: a pedra-de-fecho que coroa a abóbada do que poderíamos designar como o entendimento clássico da arte, que em sintonia com entendimento clássico da ciência – a física newtoniana – começava, em 1888, a sofrer os primeiros abalos, com os trabalhos do eminente matamático Henri Poincaré (1854-1912), designadamente no que concerne ao problema dos três corpos, como se refere: 37 BALDAQUE, Mónica e ALMEIDA, Bernardo Pinto de (coord.), Soares dos Reis: Memória e Reconhecimento, MNSR, 1988, Porto, p. 55 38

ABREU, José Guilherme, A Escultura no Espaço Público do Porto no Século XX. Inventário, História e Perspectivas de Interpretação, Universitat de Barcelona, e-Polis, 2005, Barcelona, pp. 297-299

Em 1887, em homenagem a seu 60° aniversário, Oscar II, Rei da Suécia patrocinou uma competição matemática com um prêmio em dinheiro para resolução da questão de quão estável é o sistema solar, uma variação do problema dos três corpos. Poincaré ressaltou que o problema não estava corretamente estabelecido, e provou que a solução completa não pode ser encontrada. Seu trabalho foi tão impressionante que em 1888 o júri reconheceu seu valor através de uma premiação. Ele mostrou que a evolução de tal sistema é frequentemente caótica no sentido que pequenas perturbações em seu estado inicial, tais como uma ligeira mudança na posição inicial do corpo, irão levar a uma mudança radical em seu estado final. Se esta sutil mudança não é percebida pelos nossos instrumentos de medição, então não seremos capazes de predizer o estado final a ser obtido. Um dos juizes, o distinto Karl Weierstrass, disse, Este trabalho não pode ser considerado realmente como fornecedor da solução completa para a questão proposta, mas aquilo que de mais importante tem esta publicação é que ela inaugura uma nova era na história da mecânica celestial.39

O Desterrado de Soares dos Reis é a última realização da estética clássica da arte, e tem como seu acompanhante, Hiawatha, de Saint-Gaudens, que é o ícone de um outro vencido da vida. Sucede, porém, que, ao contrário de Saint-Gaudens, Soares dos Reis não transfere para nenhum herói lendário a expressão desse fim, mas antes a vive, como seu duplo existencial, criando aquilo que na psicologia se designa por alter-ego, e se define como a imagem em geral não declarada da personalidade do seu autor. O Desterrado é pois o alter-ego de Soares dos Reis. Um alter-ego, por assim dizer, crepuscular, pois naõ mais do que crepuscular era a luz com que o academismo iluminava os caminhos da criação artística, trilhados por Soares dos Reis. Nesse sentido, sendo o Desterrado o alter-ego do artista verista que Soares dos Reis era, ao mesmo tempo era também o ícone paradigmático do terminus da escultura clássica, como já postulámos, correspondendo, por isso, exactamente, a distância entre a escultura clássica e a escultura moderna, à distância que separa o Desterrado, de Soares dos Reis, de o Pensador de Auguste Rodin.

Fig. 26- O Desterrado

Fig. 27, Rodin, O Pensador

E interessante é verificar que com o Pensador, de Rodin, não se desmorona apenas o Classicismo, como também se desfaz o Romantismo. Mas um elo de ligação os une: a meditação em torno da condição existencial do ser humano, cuja iconografia ambos magistralmente definem, a partir de pressupostos claramente distintos, que a discrepância do material em que ambas as estátuas são produzidas também ajuda a evidenciar, com a técnica industrial de fundição em bronze a substituir a técnica ancestral do talhe e afeiçoamento do mármore. Para finalizar, e fazendo jus ao valor artístico da estátua o Desterrado, acrescentamos a estas notas uma nota porventura romântica: a sugestão por nós já anteriormente várias vezes 39

Vide,wikipedia, Henri Poincaré, URL: http://pt.wikipedia.org/wiki/Henri_Poincar%C3%A9

avançada40 de fazer uma réplica, em pedra, de O Desterrado, e colocar esta no jardim do Palácio de Cristal, eventualmente a rasar a superfície do lago.

Fig. 28- Soares dos Reis, O Desterrado no Palácio de Cristal, 1872-74, montagem fotográfica (2007), José Guilherme Abreu

Estamos certos de que isso contribuiria para um maior visibilidade da estátua Soares dos Reis, que é a bem dizer um dos tesouros escondidos deste Porto Romântico. José Guilherme Abreu Bibliografia: ABREU, José Guilherme, A Estatuária Novecentista entre dois Paradigmas de Monumentalidade, In, MATOS, Lúcia Almeida (coord.), Encontros de Escultura, FBAUP/MUSEU, Porto, 2005. ABREU, José Guilherme, A Escultura no Espaço Público do Porto no Século XX. Inventário, História e Perspectivas de Interpretação, Universitat de Barcelona, e-Polis, 2005, Barcelona. ARROYO, António, Soares dos Reis e Teixeira Lopes. Paginas de critica d’arte, Typographia de José da Silva Mendonça, 1899, Porto. BALDAQUE, Mónica e ALMEIDA, Bernardo Pinto de (coord.), Soares dos Reis: Memória e Reconhecimento, MNSR, 1988, Porto. CAPUANA, Luigi, Gli “Ismi” Contemporanei (Verismo, Simbolismo, Idealismo, Cosmopolitismo). Ed altri saggi di critica letteraria ed artistica, Niccolò Giannotta Editore, Catania, 1898 DRYFHOUT, J, The Work of Augustus Saint-Gaudens, University Press of New England, 1982, Lebanon EBAP (org), Soares dos Reis: In Memoriam, 1948, Porto. FRANÇA, José-Augusto, A Arte Em Portugal no Século XIX, Vol. 1, Bertrand, Lisboa, 1966 GONÇALVES, Rui Mário, O Desterrado (1872), In, Centro Nacional de Cultura, Obras de referência da Cultura Portuguesa, URL: http://e-cultura.sapo.pt/DestaqueCulturalDisplay.aspx?ID=560&print=1 GREENTHAL, Kathryn, Augustus Saint-Gaudens, master sculptor, Metropolitan Museum of Art, 1985, New York. HERCULANO, Alexandre, Poesias, Viúva Bertrand e Filhos, 1860, 2ª edição, Lisboa. KIERKEGAARD, Søren, The concept of Dread, Princeton University Press, 1944, Princeton. PASCOAES, Teixeira, Crítica à obra Por Tierras de Portugal y de España de Miguel de Unamuno, in A Águia, Porto, 1.ª série, n.° 8, Abril, 1911. PASCOAES, Teixeira, O Espírito Lusitano ou o Saudosismo, Porto, Ed. Renascença Portuguesa, 1912. PEDULLA, Raffaella Beccaro, Monteverde e a escultura do Oitocentos na Itália, In, Revista de História da Arte e Arqueologia, Nº 11, Jan/Jun de 2009, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. STEINER, Deborah Tarn, Images in Mind. Statues in Archaic and Classical Greek Literature and Thought, Princeton University Press, 2001, New Jersey. TAINE, Hippolyte, Philosophie de l’Art en Italie. Lessons Professés à L’École des Beaux-Arts, Germer Baillière, 1866, Paris. 40 Vide, Conferência Jardins de Escultura ou Escultura em Jardins? Proferida na Biblioteca de Almeida Garrett, em 7 de Julho de 2007, inserida no Programa Ciclos & Trânsitos, 2ª edição, organizado pela Associação Portuguesa de Historiadores da Arte. Mais informação em http://www.apha.pt/ciclos.php

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