A Estatuária Novecentista entre dois Paradigmas de Monumentalidade

June 7, 2017 | Autor: J. Abreu | Categoria: Public Art, ESCULTURA, História da arte
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A estatuária novecentista ... entre dois paradigmas de monumentalidade, por José Guilherme Abreu1 “Para estudiar l’arte público hay que bajar a la calle” Antoni Remesar

Introdução O suicídio de Soares dos Reis, em 1889, deixou a escultura portuense órfã. Perdido o génio incompreendido do mestre, a estatuária tornou-se de imediato mais permeável à adopção dos formulários da École parisiense, afastando-se do classicismo escultórico de feição italianizante que caracterizava o legado de Soares dos Reis, de que a estátua o Desterrado traduz uma verista interpretação. O paradigma da monumentalidade oitocentista, editava, então, a sua versão portuguesa, com os monumentos a serem encarados, a um tempo, como dispositivos narrativos e como decorum urbano, erguendo-se tanto quanto possível, majestaticamente, enquanto marcas da História e símbolos de Civilização. Estimulada pelo ambiente patriótico criado com a reacção ao Ultimato inglês, uma monumentalidade fin-de-siècle surgia, episodicamente, no Porto e em Lisboa, para logo a seguir ao regicídio se quebrar o unanimismo político e cívico que a mesma requeria, restringindo-se doravante a estatuária novecentista a operações de “aformoseamento” dos espaços urbanos, sem veleidades sublimes e pretensões monumentais, tanto mais que a Grande Guerra com o seu cortejo de horror, inviabilizava a lógica de uma monumentalidade comemorativa. Sem outro motivo de glória que não o imperativo moral de rememorar os combatentes caídos, os monumentos aos mortos que então se erguem pelo país, são cenotáfios do Soldado Desconhecido, que celebravam, afinal, o heroísmo inútil da guerra, repercutindo os ecos da última monumentalidade cívica que se espalhou pela Europa Ocidental. Centrada exclusivamente na temática e na problemática da estatuária monumental e da escultura pública, a presente comunicação pretende mostrar que o Estado Novo ao conceber e sistematizar a exaltação da potência “da Raça” e a expressão do sublime “em a Nação”, fez abortar a maturação de uma monumentalidade cívica e republicana, que emergia das celebrações de que os Monumentos aos Mortos da Grande Guerra eram palco e cadinho. Pretendemos, ainda, apresentar a monumentalidade novecentista como uma monumentalidade bloqueada pelo Estado Novo, com o academismo da estatuária portuense novecentista a torná-la, “sem querer”, refractária à “Política do Espírito”, relegando-se para o limbo de nostalgias naturalistas ou simbolistas, aqui e além combinadas com um certo recorte ArtDéco.

1 Investigador independente. Mestre em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

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1. O universalismo oitocentista Devido ao interregno das lutas liberais, a estatuária monumental oitocentista irrompeu em Portugal durante a segunda metade do século XIX, iniciando-se a série, se considerarmos as datas de inauguração, com o Monumento a D. Pedro V, no Porto, da autoria de José Joaquim Teixeira Lopes, inaugurado em 1866, e terminando com o Monumento a Avelar Brotero, de Soares dos Reis, inaugurado em Coimbra, em 1887, sendo curiosamente ambos escultores de Gaia. Poucos meses após a inauguração da estátua pedestre de D. Pedro V, seria inaugurada a estátua equestre de D. Pedro IV, de Anatole Calmels, implantada na Praça da Liberdade, também no Porto. Mais conseguida esta, a mesma impõe-se como “obra típica de um academismo internacionalizado”2, e por seu intermédio pode analisar-se uma das três tipologias da monumentalidade oitocentista, herdadas da Roma Imperial: a Estátua Equestre, a Coluna e o Arco de Triunfo. A estátua equestre de D. Pedro IV, é um exemplo típico do dispositivo monumental oitocentista, sendo constituída por elementos que em conjunto compõem uma narrativa universal e multidimensional. São eles: o elevado plinto, a estátua equestre, os relevos narrativos, os elementos de heráldica, as inscrições e o gradeamento, fig. 1. A estátua equestre surge, desde logo, como símbolo de poder e de excelência áulica: o soberano que serenamente impõe o seu domínio ao animal possante, que, escarvando, a ele se rende e o aceita. Mas os recursos narrativos da estátua não se limitam a encenar o poder do soberano, já que, vendo bem, a figura não participa dessa situação. A figura do “rei-soldado”, com o traje de Caçadores 5, é fixada e apresentada num momento preciso do seu percurso político: a outorga da Carta Constitucional. Um acontecimento da História Diplomática que implica directamente os cidadãos, já que foi ao País que D. Pedro IV outorgou a Carta, fig. 2. E o elevado plinto, demarcado do espaço envolvente, por meio de um gradeamento, como que sacralizando-se, serve não só para elevar a figura, como também para arranjar espaço para a colocação de elementos narrativos e simbólicos suplementares. Desde logo, os símbolos heráldicos. Na parte anterior, o escudo com as armas nacionais, sobrepujado pela coroa, e esta pelo dragão que simboliza a Casa de Bragança. Na parte posterior, o brasão da cidade, sobrepujado também pela coroa e pelo dragão bragantino. Mas também os relevos narrativos, que funcionam como reconstituições históricas de episódios marcantes da gesta pessoal de D. Pedro IV. No lado poente, uma reconstituição em bronze (os originais eram em mármore, mas foram vandalizados no início do séc. XX) do desembarque do Mindelo. Do lado nascente, a entrega da urna contendo o coração de D. Pedro, à cidade. Por este exemplo, pode avaliar-se a dimensão comunicacional da escultura monumental oitocentista. Uma verdadeira linguagem plástica que animava a forma escultórica, compondo, juntamente com o desenho arquitectónico, o cerne do dispositivo monumental. José Joaquim Teixeira Lopes procurou inserir-se neste complexo, mas sem lograr alcançar o brilho de Anatole Calmels, muito embora a sua estátua pedestre de D. Pedro V, trajado à tenente-general e de cabeça descoberta fig. 3, transposta para o mármore, se tenha disseminado pelo país, sobrepujando monumentos em Castelo de Vide e em Braga, figs. 4 e 5. 2 FRANÇA, José-Augusto, A Arte em Portugal no Século XIX, Bertrand, 1966, I Vol, p. 339

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Outros exemplos de estatuária monumental anterior ao Ultimato de 1890, confirmam esta mesma lógica universalista, como sucede com o Monumento a D. Pedro IV, erguido em 1870, no Rossio, em Lisboa, mas cuja intenção, como no do Porto, era bastante anterior, remontando a 1834, a iniciativa devida ao Duque de Palmela. Para tanto, foi aberto um concurso internacional ao qual concorreram 87 projectos. Após mais de cinquenta sessões, o júri decidiu escolher a maqueta apresentada pelo arquitecto Gabriel Davioud e pelo escultor Elias Robert. Aqui a tipologia é a de uma Coluna, sobrepujada pela estátua pedestre de D. Pedro IV a exibir, tal como na estátua equestre do Porto, a Carta Constitucional: uma solução que repercutia a formula napoleónica, da Coluna de Vendôme, embora sem seguir tão de perto o modelo romano. Contrariamente a esta, a do Rossio é uma coluna coríntia em cujo fuste se dispõem, anelarmente, em baixo relevo, uma roda de anjos, enquanto que, na base, nos ângulos do embaasmento, se dispõem as figuras da Prudência, da Justiça, da Fortaleza e da Moderação, fig. 6. De novo, nos deparamos com um dispositivo monumental multidimensional e integrado. A base, que mais directamente dialoga com o público, veiculando valores morais. Mais acima, as datas do nascimento, da morte, da outorga da Carta e da inauguração do monumento. E, nos píncaros áulicos, bem acima dos anjos, o heróico soberano. Mas este modelo grandíloquo e universalista tinha os seus dias contados. Logo no ano seguinte, a Comuna de Paris haveria de derrubar a Coluna de Vendôme. E em Portugal, no mesmo ano, as Conferências Democráticas do Casino, seriam suspensas por ordem da Câmara dos Pares. A Geração de 70, fazia então ouvir a sua voz, e o Realismo clamava pela Questão Social, insurgindo-se contra os partidos da Regeneração. Deste episódico período, que fechava e coroava o furor idealista de uma geração tardoromântica, que se deixara fascinar pelas ideias de Proudhon e pelos romances de Zola, e que logo haveria de se auto designar como “Os Vencidos da Vida”, ficou-nos a estátua de Avelar Brotero, de Soares dos Reis, fig. 7, ele próprio um inadaptado escultor de Gaia. Estatuária monumental? Decerto, não é disso que se trata. Mas antes, de verdadeiros monumentos à estatuária. Monumentos a uma estatuária que transcende, pelo verismo, mais do que literário, existencial, que a caracteriza, as convenções do próprio classicismo. 2. A transição fin-de-siècle / novecentismo O Ultimato inglês de 1890 desencadeou, como é sabido, uma reacção patriótica inusitada no país, tendo as manifestações de desagravo face à decisão de acatamento das exigências inglesas, escolhido como palco o Monumento a Camões, que Victor Bastos havia erigido em 1867. A escolha não era fortuita. Não só pela carga patriótica do simbolismo de Camões, mas também porque ali se haviam realizado já os festejos do Centenário do Marquês de Pombal, organizados pelo recém criado Partido Republicano, em 1880. O ambiente era de furor patriótico, e a aproximação da data do centenário do nascimento do Infante D. Henrique (1894), logo faria nascer a ideia de erigir um monumento ao Príncipe Navegador. Decidida a sua localização no Porto, onde o Infante segundo as crónicas teria nascido, logo foi aberto um concurso “entre artistas nacionais”, e rejeitada a participação dos ingleses do Port Wine no financiamento do monumento.

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O primeiro prémio foi atribuído a Tomás Costa, mau grado os protestos de Teixeira Lopes, ambos escultores de Gaia, e rivais desde o tempo de aprendizagem na Academia Portuense de Bellas-Artes. O monumento ao Infante é o primeiro de uma monumentalidade tipicamente fin-de-siècle, filha do Ultimato, logo patriótica, mas permeável aos formulários parisienses, fig. 8. Algo do universalismo anterior se perde, a favor de um cunho, por assim dizer, mais regionalista. Na verdade, no monumento ao Infante, sob o repertório dos formulários parisienses académicos, brota uma espécie de dialecto próprio, compondo um eclectismo sui-generis, pela mescla de historicismos nacionais e de maneirismos franceses. Visíveis uns e os outros, desde logo, na torre que serve de pedestal à figura do Infante. Uma torre que já foi identificada com a silhueta da Torre de Belém, muito embora, tendo vivido o Infante entre 1394 e 1460, e tendo sido a Torre de Belém construída em 1514, a relação entre ambos não seja historicamente viável. Melhor sentido fará, porventura, considerar que aquela torre, mais do que simbolizar as navegações de quatrocentos ou de quinhentos, represente aquilo que aparentemente é: uma torre de menagem medieval, atravessada por uma embarcação, e sobrepujada pela figura, também ela medieval, do Infante, que sobre ela se eleva e a coroa, coroando assim, metaforicamente, a própria medievalidade. Daí, o Infante não aparecer com chapeirão habitual. É que aquele Infante, não é o Infante de Sagres, mas o Infante que antes da Conquista de Ceuta foi armado cavaleiro, explicando-se assim o traje fig. 9. Carácter regional, senão mesmo local, aplicado sobre um modelo francês. Modelo francês entretanto internacionalizado, como se pode ver pelo confronto do projecto inicial do Infante de Tomás Costa, com o Colombo de Charles Cordier, de 1876, para a Cidade do México, figs. 10 e 11. De resto, estruturalmente, o monumento repercute a mesma lógica narrativa que já vimos, unicamente devendo dizer-se que esta aparece aqui mais reforçada, na medida em que não só a componente arquitectónica é mais elaborada, como o é, ainda mais, a aparelhagem alegórica e narrativa, com a frente do Monumento a exibir uma Alegoria à Navegação Portuguesa: um grupo escultórico em bronze, no qual uma embarcação sobrepujada por uma Pátria, empunhando numa mão a bandeira e na outra duas palmas, é puxada por dois cavalos marinhos guiados, de cada lado, por um Tritão e uma Nereide. Por sua vez, nas faces Norte e Sul da torre, figuram dois relevos narrativos. No do lado Norte, figura um quadro da Conquista de Ceuta, onde a bravura do Infante, segundo as crónicas, ter-se-á evidenciado. No do lado Sul, figura um quadro da Escola de Sagres, onde o Infante aparece trajado já com o chapeirão habitual. Na parte posterior do Monumento, figura ainda um anjo empunhando uma cruz, em alegoria ao proselitismo cristão do Infante. Quanto à estátua pedestre, ela exibe como já referimos uma figuração do Infante retirada da estátua do Portal dos Jerónimos3, em vez de se inspirar na iluminura que apareceu nas Crónicas da Guiné, onde o Infante é representado com o chapeirão flamengo. A estes elementos junta-se ainda uma citação dos Lusíadas: “Assí fomos abrindo aquelles mares / Que geração alguma não abriu / As novas ilhas vendo e os novos ares / Que o generoso Henrique desbravou” 3 Porém, contrariamente à dos Jerónimos, o Infante aparece aqui com rosto glabro.

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Comparando com o Monumento a Afonso de Albuquerque, o do Infante D. Henrique aparece bastante menos marcado pelos historicismos manuelinos, que profusamente ornamentam o primeiro. Em síntese, a monumentalidade oitocentista regia-se por modelos de grande sumptuosidade arquitectónica, escultórica e ornamental, que enformavam um complexo dispositivo de elementos plásticos, de símbolos eruditos e de signos comunicacionais, que construíam uma poderosa linguagem e asseguravam uma presença marcante que contaminava os espaços urbanos onde decorria a vida social e pública. Uma autêntica a “idade do ouro do monumento público”4 viveu-se, então, na Europa, como Carlos Reyero sustenta, entre 1820 e 1914. E Portugal, comunga desse espírito e contribuiu, tanto quanto permite a sua dimensão e capacidade, para essa febre de sumptuosidade monumental. Mas, após o Regicídio, o movimento detém-se, com o Monumento ao Marechal Duque de Saldanha, de Tomás Costa e de Ventura Terra (1904-1909) a fechar o ciclo, e com os monumentos aos Heróis da Guerra Peninsular e ao Marquês de Pombal a inserirem-se aí, à força, e já tarde. Mas o monumento não desaparece. Apenas passa por uma mutação. Uma mutação, aliás, pacífica e discreta, podendo por isso falar-se antes em transição. Transição para o Novecentismo. Uma transição de que se encarregará António Teixeira Lopes, como se percebe pelo Monumento a Soares dos Reis, inaugurado em Gaia, em 1901, junto a um dos cantos de um frondoso jardim. Uma estátua sentada do célebre escultor, a sobrepujar um austero pedestal desenhado por Ventura Terra, fig. 12. Modelado a partir “da máscara e do modelo da mão que o pai de Teixeira Lopes, quando da morte do artista, moldou em barro, sobre o próprio cadáver”5, o monumento a Soares dos Reis introduz uma nota discrepante, relativamente à exuberância arquitectónica e à intencionalidade apologética que haviam caracterizado o dispositivo monumental oitocentista. Nada desse brilho se descobre nesta obra. Numa primeira abordagem, desde logo se manifesta nela um dado entendimento do verismo que distingue a obra de Soares dos Reis. Entendimento outro, porém, já que o verismo de Teixeira Lopes não é o mesmo do de Soares dos Reis. O de Teixeira Lopes é, por assim dizer, epidérmico, faltando-lhe a profundidade anímica ou existencial – a “angst” – de Soares dos Reis, já que, mau grado os esforços de Teixeira Lopes para a transcender, aquela plasticidade aparece revestida de uma pele naturalista. Despido de roupagens alegóricas, e espartano no risco arquitectónico e na ornamentação, o monumento a Soares dos Reis acaba por documentar a forma como o mesmo era visto pelos seus conterrâneos. Mas não é unicamente no monumento ao seu mal-amado mestre, que Teixeira Lopes constrói uma monumentalidade sui-generis, devendo recordar-se que já no seu tempo, António Arroyo descobria no escultor uma predilecção pela elegia, coisa que se verifica também no monumento ao hortofloricultor José Marques Loureiro, implantado no Jardim da Cordoaria, em 1904, no Porto, fig. 13. Inaugurado depois do monumento a Eça de Queiroz, mas concebido antes, esta obra confirma a lógica de uma monumentalidade de transição, que encontra o seu espaço de implan4 Vide, REYERO, Carlos, La Escultura Conmemorativa en España. La Edade de Oro del Monumento Público, Cadernos Arte Cátedra, Madrid, 1999 5 Vide, LOPES, António Teixeira, Ao Correr da pena. Memórias de uma vida,

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tação preferencial nos jardins e não nas praças, coisa que denota um carácter mais intimista, logo, menos público e cívico, senão menos monumental, que as anima. Uma figura feminina em alegoria da Flora, com um ramo de flores pendendo da mão direita, apoia-se numa árvore seca, de pé sobre uma formação rochosa que lhe serve de plinto, compondo uma espécie de elegia plástica à morte da vegetação. Na base, no lado esquerdo, figura uma efígie em bronze do homenageado. O mesmo esquema mantém-se no monumento a Eça de Queiroz, implantado também ele num espaço ajardinado, sobre um pedestal rústico e informe, embora aqui o homenageado suplante a alegoria: uma personificação da célebre passagem de A Relíquia “Sobre a nudez forte da Verdade o manto diáfano da fantasia”. Frase que figura incisa sobre o actual pedestal de bronze, fig. 14. Em síntese, na escultura de Teixeira Lopes inserida no espaço público, introduz uma nota dissonante relativamente àquela que havia sido a norma da grande estatuária monumental. O acento dado à forma escultórica, o distanciamento face à erudição académica, a fidelidade naturalista relativamente ao modelo e o verismo dramatizado da expressão, fizeram da escultura de Teixeira Lopes um caso sui generis: Não sendo um estatuário vocacionado para encenar acontecimentos históricos, tendo sido preterido em todos os concursos a que, para esse fim, concorreu, não sendo um cidadão empenhado em veicular, tão pouco, valores cívicos, tendo pela sua proximidade à família real, permanecido sempre refractário relativamente à República, a escultura de Teixeira Lopes é antes de mais uma escultura de interior, destinada a ser vista sob a iluminação coadas dos salões, ou dos átrios e pórticos dos edifícios públicos, e nesse sentido é bem verdade que, em Teixeira Lopes, “tem de ser visto como um criador de Oitocentos”, e que se não pôde igualar, como almejava, Soares dos Reis, “alguma culpa nisso tiveram os anos em que viveu.”6 Com Teixeira Lopes, esgotam-se as possibilidades expressivas do oitocentismo fin-de-siècle. Mas a ele, ficou a dever-se, se não a emancipação, pelo menos o distanciamento, face ao arsenal alegórico erudito, que tolhia o desenvolvimento de uma estatuária menos convencional. Se Teixeira Lopes não se livrou da alegoria, pelo menos ele retirou-a do nicho de idealização em que a mesma se havia mantido, por via da erudição e da tradição académica. Desse legado irá beneficiar Henrique Moreira. Contrariamente ao seu mestre, Henrique Moreira é assumidamente o escultor da cidade, e as suas peças são obras que se concebem e se destinam, antes de mais, e sem sombra de dúvida, para o espaço público. Com Henrique Moreira, constitui-se o ciclo monumental novecentista 3. O Novecentismo cívico Falho o consenso necessário para a erecção de um Monumento à República, as primeiras medidas de melhoramentos citadinos envolvendo a colocação de estatuária nos espaços públicos, decorreu do ajardinamento de novas praças, como o campo de S. Ovídio, que seria ajardinado por proposta do Dr. Tito Fontes, em 1908, tendo sido aberto ao público e convertido na praça da República, em 1914. Por essa altura, foram ali implantadas duas obras de dois escultores de Gaia: António Teixeira Lopes e António Fernandes de Sá. Do último, seria implantado um elegante e algo simbolista Rapto de Ganimedes. Do segundo, um busto muito naturalista intitulado Baco. 6 FRANÇA, José-Augusto, A Arte Em Portugal no Século XIX, Bertrand, 1966, Lisboa, Vol. II, p. 220

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Nesse frente a frente, encontravam-se dois escultores premiados em Paris, a disputar a supremacia na sua terra natal. Outras peças seriam implantadas, nos primeiros anos da República, como os relevos de Diogo de Macedo e Sousa Caldas, no Teatro de S. João. Ou o Guilherme Gomes Fernandes, de Bento Cândido da Silva. Mas o surgimento da monumentalidade novecentista, teria de aguardar o final da Grande Guerra, para poder manifestar-se. E fê-lo justamente a propósito da Guerra. Uma vez mais, os escultores de Gaia acabariam por ser directamente envolvidos no processo. É que, depois de falhada a implantação da República como tema inspirador da definição de uma nova monumentalidade, caberia à Grande Guerra fornecer o tema adequado à expressão de uma nova vaga, e de uma nova modalidade, de patriotismo cívico. A história é conhecida: a Junta Patriótica do Norte, logo em 1919, promoveu, por sugestão do Capitão Augusto Casimiro, um ex-combatente da Flandres, o projecto de “fixar em lápide ou outro monumento, em cada sede de Concelho, os nomes dos mortos da Grande Guerra”. O Porto cedo aderiu à ideia, e logo em 1920, o Presidente da República António José de Almeida, lançava a primeira pedra do monumento que viria a ser inaugurado em 11 de Novembro de 1924. O monumento inaugurado era constituído por um padrão que reproduzia o modelo instituído pela Junta Patriótica do Norte, ao qual havia sido acrescentada uma figura inspirada na vetusta estátua “O Porto”, de Sousa Alão, inclinada a depor um ramo de flores, em homenagem ao Soldado Desconhecido, fig. 15. Da autoria de José de Oliveira Ferreira, aquela estátua não foi bem acolhida, nem pela imprensa7, nem tão pouco pela população, tornando-se rapidamente alvo da sátira social, fig. 16, e Augusto Martins, na Águia8, logo defendeu a realização de um concurso público para a erecção de um novo monumento, decisão que a Comissão Executiva da Câmara Municipal resolveu tomar em 15 de Abril de 1925. Em 11 de Janeiro de 1926, o anterior monumento já havia sido apeado, e a 9 de Abril de 1927, seguindo a sugestão de Augusto Martins, eram expostas ao, público no Atheneu Comercial do Porto, as duas maquetas apresentadas ao concurso aberto pela Câmara. Em primeiro lugar, seria premiada a maqueta “Sentinella”, de Henrique Moreira, fig. 17, a qual após serem introduzidas algumas alterações no desenho da parte arquitectónica, pelo arquitecto Manoel Marques, seria usada para a erecção do monumento definitivo, fig. 18. No nosso ponto de vista, este processo serve para assinalar a substituição de um dispositivo monumental por outro. No primeiro caso, temos um dispositivo monumental que, sobre o modelo standart de um Padrão da Grande Guerra, delineado pela Junta Patriótica do Norte, é colocada uma estátua simultaneamente alegórica e revivalista. No segundo, sobre um novo modelo de padrão, é colocada uma estátua simultaneamente realista e actual. Esta diferença parece-nos que assinala, claramente, a emergência de um novo paradigma monumental.

7 Artigo de Braz Burity publicado no Primeiro de Janeiro de 21/11/1924 8 A Águia, nº 28, 29 e 30, Outubro, Novembro, Dezembro de 1924, pp. 92-95

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Um novo paradigma, e não uma nova composição ou solução meramente plástica, porque é da emergência de uma nova monumentalidade que se trata: uma monumentalidade destinada a comemorar não as glórias e figuras célebres de um passado histórico mais ou menos remoto, como até então acontecia, mas para homenagear os infortúnios e as figuras anónimas de um passado recente ainda vivo e presente, pelas memórias dos combatentes da Grande Guerra, que organizam e promovem a erecção dos monumentos e o culto aos seus mortos. Culto, mais do que simples memória, portanto, e culto republicano. Pois, como refere Antoine Prost no seu estudo sobre os monumentos aos mortos da Grande Guerra em França, aqueles monumentos tornaram-se “le lieu privilégié non d'une mémoire de la République [...] mais d'un culte républicain, d'une religion civile.”9 Os MMGG, são, portanto, os primeiros sinais da constituição de um novo paradigma monumental. Quer esteticamente, quer intencionalmente, quer politicamente, quer socialmente, os MMGG são portadores de uma lógica de comemoração discrepante, e até inversa, relativamente à anterior: agora não se tratava de celebrar, mas de cultuar, coisa que faz pensar que estes monumentos antecipam já algo do que, após a II Guerra Mundial, será entendido por memorial, na linha da distinção proposta por Arthur Danto de que “We erect monuments so that we shall always remember and built memorials so that we shall never forget”10. De resto, o MMGG de Henrique Moreira é disso mesmo testemunho, fig. 19. O Sentinela é um sósia do “poilu” (o magala): um soldado desconhecido que monta guarda aos símbolos da República: o Escudo com as Quinas, encimado já não pela coroa ou esfera armilar áulicas, mas pela Cruz de Guerra, símbolo da Liga dos Combatentes que entretanto se constitui para apoio dos militares feridos e das famílias de combatentes mortos, e que promove as romagens e concentrações cívicas junto aos túmulos e aos monumentos ao Soldado Desconhecido. Nos flancos laterais e posteriores do padrão, dentro de escudos iguais aos da parte anterior, figuram os nomes e as datas das mais importantes batalhas travadas em França, em Angola e em Moçambique, enquanto, ao redor da base, figuram, estilizados, pequenos grupos de munições de morteiro usados na Guerra. Na frente, duas inscrições: “Aos Mortos da Grande Guerra” e “A Cidade do Porto”, esculpidas em relevo sobre o revestimento de lioz em caracteres de desenho art-déco, acompanhados pelas datas 1914 e 1918, recortadas em bronze. A completar o conjunto, alguns elementos ornamentais: festões esculpidos no lioz, grinaldas de flores em bronze nos flancos do padrão e uma coroa de louros, também em bronze, junto à base, em perpétua homenagem, (uma e outras desaparecidas após a desmontagem do monumento efectuada durante as obras de construção do parque de estacionamento sob a praça). O MMGG do Porto é, portanto, um conjunto de símbolos e de signos: símbolos patrióticos; símbolos cívicos; signos bélicos e signos gráficos, todos eles à guarda do Soldado Desconhecido. Mas o monumento não é só formado pelo Padrão e pelo Sentinela. Compreende também o recinto da Praça, com o qual faz intrínseco conjunto, pois esse recinto era usado para as concentrações e o cerimonial, que durante décadas e desde cedo ali se realizava, durante as 9 PROST, Antoine, Les Monuments aux Morts, In, NORA, Pierre (dir), Les Lieux de Mémoire, La République, Gallimard, 1988, Paris, p. 221. 10

DANTO, Arthur, The Vietnam Veterans Memorial, in, The Nation, 31 Aug. 1986, Apud, YOUNG James E., The Texture of Memory. Holocaust Memorials and Meaning, Yale University Press, New Haven and London, 1993, p. 3.

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datas do armistício (11 de Novembro) e da Batalha de La Lys (9 de Abril), e inclusive durante outros momentos, como na concentração promovida pelo Orfeão Académico do Porto em que foi apresentada uma série de composições corais ao Soldado Desconhecido. Enfim, trata-se de todo um verdadeiro e inédito dispositivo monumental, aquele que os MMGG apresentam e congregam. Mas, e esta é a parte mais interessante, não se trata de um dispositivo monolítico, pois, como observa Antoine Prost, existem quatro tipologias destes monumentos: os monumentos cívicos, os patrióticos, os pacifistas e os funerários. Os primeiros veiculam valores de cidadania, os segundos idealizam os valores da Pátria, os terceiros pronunciam-se contra a guerra e os últimos constituem túmulos ao Soldado Desconhecido, podendo ainda encontrar-se híbridos combinando estas quatro tipologias. Assim sendo, o monumento do Porto, é um monumento cívico-patriótico, na medida em que a figura é uma sentinela que monta guarda aos símbolos da Pátria, coisa que o aproxima do MMGG de Maisons-Alfort, arredores de Paris, inaugurado em 1920, fig. 20. Em Portugal, encontram-se curiosamente todas as quatro tipologias acima referidas, bem como alguns híbridos, coisa que mostra uma vez mais que o país se encontrava em sintonia pelo diapasão europeu, nomeadamente, pelo francês, e curiosamente não pelo italiano, dos monumentos “ai cadutti”, de feição marcadamente fascista. E os obreiros desses monumentos, foram em grande parte escultores de Gaia, formados na Escola do Porto, com Henrique Moreira à frente, como grande campeão desses monumentos. Destes factos, consideramos que se encontram por retirar as devidas ilações. E o que nesse sentido, de imediato, propomos é o seguinte: os Monumentos aos Mortos da Grande Guerra constituíram uma primeira tentativa de estabelecimento de uma monumentalidade cívica, e por assim dizer, plana e plural, de feição republicana, cujo desenvolvimento e apuramento estético foram travados pelo advento da monumentalidade monolítica e nacionalista do Estado Novo. Travestida de um modernismo sui-generis e, a bem dizer, paradoxal, essa monumentalidade monolítica e nacionalista, constituiu um retrocesso relativamente ao percurso que a estatuária civil vinha desenvolvendo desde os primórdios de oitocentos, podendo bem afirmar-se que foi, também, com o objectivo de travar esse processo, que o Estado Novo se instituiu e se constituiu, como defende Margarida Acciaiuoli11, em torno do pressuposto da celebração do Presente pela restauração do Passado. Em síntese, entre a monumentalidade Fin-de-Siècle, marcada pelo Ultimato e pautada por sentimentos patrióticos e decadentistas, e a monumentalidade do Estado do Novo, marcada pela Política do Espírito e pautada por sentimentos nacionalistas e restauracionaistas, existe uma monumentalidade, por assim dizer, intersticial, cuja origem nos remete para uma proto-monumentalidade verista e naturalista que Soares dos Reis, primeiro, e Teixeira Lopes, depois, tentaram sem cabal êxito, estabelecer, como diz José-Augusto França, por culpa do seu próprio meio e do seu próprio tempo, monumentalidade intersticial essa que encontra nos Monumentos aos Mortos da Grande Guerra o tema e o campo de actuação, que lhe permitirá constituir-se como monumentalidade cívica, resgatando do plano onírico e intimista, o projecto de monumentalidade da estatuária verista e naturalista, da mesma forma como tam-

11 Vide, ACCIAIUOLI, Margarida, Os Anos 40 em Portugal. O País, o Regime e as Artes. Restauração e Celebração. Vol I, UNL, Tese de Doutoramento, Policopiada, Lisboa, 1991.

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bém, esta mesma monumentalidade nada tem que ver com a monumentalidade nacionalhistoricista do Estado Novo que se lhe seguirá, e que lentamente asfixiará. A esta monumentalidade intersticial e crepuscular, designamos, algo ambiguamente, de monumentalidade novecentista, utilizando, talvez polemicamente, uma terminologia pouco usada na historiografia da arte portuguesa. Por ela, nós pretendemos designar uma franja da produção estatuária que se situa de forma instável entre a estatuária oitocentista e a estatuária modernista, e que algo frivolamente tem sido classificada de estatuária académica. São efectivamente de matriz académica as técnicas de que essa estatuária se serve para se produzir, a saber, modelação em barro, reprodução em gesso e transposição para o bronze ou a pedra, assim como são também académicos os seus métodos, a saber, partir do modelo vivo, primado da figuração e respeito pelo natural. Mas a estatuária novecentista não se esgota nesses aspectos. Ao assumir-se, por um lado, como veículo de comemoração cívica e, por outro, como valor de ornamentação plástica, a estatuária novecentista, surge como uma instância avant la lettre do que mais tarde se designará como arte pública, muito embora destituída da dimensão controversa que hoje encerra o próprio conceito, e que de certa forma o constitui, enquanto tal. Quer pela ideia de decorum urbano, quer pela prática de repercutir actos sociais e cívicos, a estatuária novecentista engrena num dos princípios fundamentais da escultura pública, tal como o define Siah Armajani no 7º § do seu manifesto: “Public sculpture attempts to fill in the gap that comes about between art and public, to make art public and artists citizens again.”12 Dir-se-á que o valor estético da estatuária novecentista não é relevante, mas isso também não deixa de ser discutível. E é discutível, desde logo, porque o valor estético de uma obra não se reduz à plasticidade das suas formas. Ele é também, como se sabe, um valor intencional e sociocultural. E a estes valores, acrescentaríamos ainda os valores cívicos e os valores de uso, principalmente se estes forem abertos e inclusivos, relativamente a estéticas e a realidades multiculturais emergentes. Aqueles que justamente poderão reinserir a obra de arte de novo no tecido sociocultural, retirando-a do limbo museal onde a mesma se tem refugiado, por efeito da instrumentalização dos aparelhos políticos e da manipulação e especulação dos poderes económicos. Mas isso, são outras histórias que transcendem a presente comunicação, e que não iremos desenvolver aqui. 4- A blocagem novecentismo / nacionalismo No mesmo ano em que era inaugurado o MMGG do Porto, era apresentado, poucos meses depois, em Lisboa, na Avenida da República, frente à Rua de Rosa Araújo, o célebre Zarco, de Francisco Franco, antes de abalar para a Madeira, onde ainda hoje se encontra, fig. 21. Importa dizer, que este acontecimento de importância certa e reconhecida, pela viragem que representa e pela assunção do novo modelo que claramente é, não teve grande impacto na produção dos artistas de Gaia, formados pela Escola do Porto. Por essa altura, Henrique Moreira esculpe a graciosa Juventude (Menina Nua, para o vulgo), fig. 22, e, em 1931, ainda modela a estátua O Pedreiro, que será instalado, primeiro na Cordoaria, em 1934, e depois deslocado para junto da Escola Industrial, D. Henrique, fig. 23.

12 ARMAJANI, Siah, Manifesto. Public Sculpture in the Context of American Democracy, In, Espacios de Lectura / Reading Spaces, MACBA, 1995, Barcelona, p. 112

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Não pode pois dizer-se que o cânon do “Nuno Gonçalves do cinzel”, se tenha imposto de forma tão avassaladora, como por vezes se pretende. Contrariamente, o meio artístico, como todos os campos sociais, rege-se pelas suas próprias inércias, e fora do grupo específico “dos rapazes novos” a que António Ferro se referia nas entrevistas a Salazar, e cujos serviços, por assim dizer, vinha oferecer ao Chefe, a escultura novecentista não desapareceu, e continuou a subsistir e a prosseguir, enquanto pôde, a sua marcha. E, coisa curiosa, quando enfim se deram por concluídos os Monumentos aos Heróis da Guerra Peninsular (o do Porto seria inaugurado apenas em 1952) e, sobretudo, quando acabaram as encomendas de MMGG, eis senão quando os “botas de elástico” da SNBA, reunidos em torno de Falcão Trigoso, e incluindo, entre outros académicos, o escultor João da Silva, autor do belíssimo MMGG de Évora, e de dois monumentos no Porto, desencadeiam uma autêntica revolução no campo das artes em Portugal durante o Estado Novo, associando-se aos oposicionistas do MUD, e organizando, no rescaldo da vitória aliada, logo após o final da II Guerra Mundial, as célebres Exposições Gerais de Artes Plásticas. Isto é, se a Política do Espírito de Ferro e as exposições de Arte Moderna do SPN bloquearam o desenvolvimento da estatuária novecentista, não é menos verdade que os artistas ditos académicos acabaram por bloquear, também, o “modernismo equilibrado” de Ferro. Daí, que voltando aos artistas de Gaia formados na Escola do Porto, se exceptuarmos o caso de Diogo de Macedo, que viria posteriormente a renunciar à escultura, não só o modelo zarquiano não fez carreira, como o mesmo foi combatido, como veremos de imediato. Na verdade, é apenas com a realização, em 1934, no Palácio de Cristal, no Porto, da I Exposição Colonial Portuguesa, que se pode falar de um contacto do público nortenho com a estatuária modernista. Duas obras se destacavam: o mussoliniano Monumento ao Esforço Colonial Português, em estafe, de Alberto Ponce de Castro, fig. 24, e o magnífico Afonso de Albuquerque de Diogo de Macedo, em pedra de ançã, fig. 25. Mas outras se encontravam também presentes: um outro monumento em estafe, implantado nos jardins, de Alberto Ponce de Castro – o Monumento aos Mortos da Colonização Portuguesa – e uma estátua em gesso, situado no interior do Palácio das Colónias – O Homem do Leme – de Américo Gomes, fig. 26. Finalizada a Exposição, foi oficialmente decidido que o Monumento ao Esforço Colonizador Português seria passado a granito, por forma a perpetuar aquele padrão nacionalista. Mas também, por outro lado, por iniciativa de um grupo de “amadores da arte”, liderado pelo capitalista e coleccionador de arte portuense Jacinto de Magalhães, era ao mesmo tempo, proposta a passagem a bronze da estátua em gesso O Homem do Leme, propondo-se o grupo custear metade das despesas para a sua fundição e implantação, “na Avenida de Carreiros.” O facto não pode deixar de ser significativo. E de quê? Naturalmente da defesa de um determinada concepção e linguagem escultórica, a favor da qual o meio culto portuense vinha dar voz. Mas não só o meio culto e, por assim dizer, burguês. Também o meio artístico e o meio literário, pois verifica-se um súbito apoio à obra de Américo Gomes (que logo a seguir, em 1936 e 1937, verá serem rejeitados dois projectos de monumentos13 por parte da Comissão de Estética da Câmara) apoio esse vindo de personalidades tão diferentes e marcantes como 13 Monumento a Henrique Pousão e Monumento a Silva Porto.

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Aquilino Ribeiro, fig. 27, Teixeira de Pascoaes, fig. 28, Aarão de Lacerda, fig. 29 e Teixeira Lopes, fig. 30. Os nomes citados não deixam margem para dúvidas. O que ali se tratava era da tentativa de impor um modelo alternativo ao modelo zarquiano. Um imergente modelo simbolista, em vez do emergente modelo historicista. Saudosista, decerto, para Pascoaes. Republicano, para Aquilino. No fundo, o modelo da revista A Águia, que entretanto se extinguia. Ambos os monumentos – o Esforço Colonizador Português e o Homem do Leme conheceriam a transposição para materiais duradouros. Mas, ironia das ironias, o primeiro viria a ser desmontado e a permanecer longos anos reduzido a um monte de blocos, arrumados a um canto dos jardins do Palácio de Cristal, que era “usado” pelas crianças para ensaiar as primeiras escaladas (coisa que aconteceu também com o autor desta comunicação), enquanto o Homem do Leme sempre permaneceu no seu posto, ao comando onírico de uma embarcação, que se equiparava à própria cidade. Só em 1984, sob a vereação de Paulo Valada, o Monumento ao Esforço Colonizador Português achou morada à sua medida, na Praça do Império, fig. 31. Quanto ao Afonso de Albuquerque de Diogo de Macedo, após ter andado às bolandas de uns armazéns municipais para outros, a partir de 1949 encontrou pouso seguro no Largo de D. João III, fig. 32, onde a estátua, esculpida numa pedra pouco resistente, se encontra exposta ao rigores do tempo, e se vai irremediavelmente derruindo, como aliás acontece com muitas outras peças. Seria neste caso, e nos outros, bastante melhor que estas peças dessem entrada no museu, onde poderiam estar mais a salvo das intempéries e de potenciais vandalizações, e que, em seu lugar, fossem colocadas réplicas em pedra artificial, que hoje se produzem industrialmente sem grandes problemas. E o Homem do Leme remete-nos ainda para o poema O Mostrengo, que Pessoa escreve na Mensagem: O mostrengo que está no fim do mar Na noite de breu ergueu-se a voar À roda da Nau voou três vezes Voou três vezes a chiar E disse: “Quem é que ousa entrar Nas minhas cavernas que não desvendo? Meus tectos negros do fim do mundo?” E o homem do Leme disse tremendo: “El-rei D. Joao II!” “De quem são as velas onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço?” Disse o mostrengo, e rodou três vezes Três vezes rodou imundo e grosso “Quem vem poder o que só eu posso, Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo?” E o homem do Leme tremeu e disse: “El-rei D. Joao II!” Três vezes do leme as mãos tirou Três vezes ao leme as reprendeu E disse no fim de tremer três vezes: “Aqui ao Leme sou mais do que eu Sou um Povo que quer o mar que é teu E mais que o mostrengo que a minha alma teme

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Manda a vontade que me ata ao Leme De el-rei D. João II!”

O sublinhado é nosso! De resto, o Homem do Leme, fig. 33, não é um arquétipo apenas do mar Português. Nos Estados Unidos, por exemplo, figura, desde 1923, em Gloucester, que é o mais antigo porto de pesca norte-americano a estátua “Man at the Wheel”, da autoria de Leonard Craske, fig. 34. Assim sendo, será que se pode mesmo falar de blocagem da escultura novecentista? Cremos que sim. Desde logo, porque apesar deste episódio de resistência ao modelo oficial, lentamente, a política de encomendas do Estado Novo e a afirmação crescente do dogma nacionalista, não deixam de surtir o seu efeito junto dos artistas, nomeadamente dos arquitectos, que sonham com o projecto de criar uma monumentalidade moderna de feição portuguesa. Os arquitectos ditos modernos acreditaram nessa possibilidade, e deixaram-se seduzir pela tentação de criar um modelo moderno para uma monumentalidade portuguesa, coisa em se entretiveram ingloriamente durante toda a década de trinta. Para além disso, em Dezembro de 1933, era conhecido, em Lisboa, o resultado do concurso para a erecção de um monumento à memória do antigo Presidente da República António José de Almeida. E o resultado desse concurso marca uma opção de fundo: a derrota do projecto de Diogo de Macedo e António Varela, que apresentava uma vigorosa alegoria à Revolução, fig. 35, e que se ficaria por um inofensivo 2º lugar, e a eleição, para vencedor, do projecto de Leopoldo de Almeida e Pardal Monteiro, fig. 36. Esta opção foi determinante. Tanto ou mais do que o modelo zarquiano, o monumento a António José de Almeida, marca uma irreversível separação das águas. É que, tratando-se de um concurso público, e tendo sido tomada por um júri formado por artistas, na prática, aquela decisão equivalia ao sancionar de um modelo. Um modelo a seguir. Daí, que uma opção estética e estratégica, de fundo, tivesse ficado decidida naquele momento para o monumentalismo oficial. Uma opção entre a retórica do “classicismo congelado” de Leopoldo de Almeida e o expressionismo vigoroso de Diogo de Macedo. Analisando, aliás, o monumento construído, verificamos de imediato o aniquilamento do homenageado perante o gigantismo da alegoria à Nação. Era bem a encarnação do primado da soberania “em a Nação”, que a constituição fundadora do Estado Novo acabava de consagrar naquele mesmo ano, que ali se materializava. Por este novo paradigma, se invertia duplamente a lógica da monumentalidade oitocentista: em vez de ser o homenageado a coroar os elevados píncaros da glória, era a figura da alegoria que merecia a glorificação, mantendo por isso a coroa de louros em sua posse. Duplamente, porque era definitiva e liminarmente afastada a lógica universalista, para a qual a ideia de monumento, na sua definição iluminista de glorificação dos valores de civilização, nos remete. A derrota de Diogo de Macedo foi um rude golpe. Doravante, pouco havia a fazer, e Henrique Moreira entreter-se-á a concluir o Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular. 5- O Nacionalismo retórico O sucessivo fracasso dos concursos para a erecção de um monumento ao Infante D. Henrique em Sagres e as polémicas que os mesmos desencadearam, passados os anos de ouro da Exposição do Mundo Português e o terramoto das Gerais, após o termo da II Guerra 13

Mundial, o paradigma monumental nacional-historicista entra em decomposição, incapaz que se mostra de forjar um modelo moderno e original de monumentalidade portuguesa. Daí, o Estado buscar nas grandes Obras Públicas, a sublimidade que os arquitectos não foram capazes de encenar em Sagres. Em 1948, no rescaldo da segunda Exposição Geral de Artes Plásticas, é organizada, no Instituto Superior Técnico, a I Exposição de Obras Públicas, onde a estatuária figura já, como não deixará de observar Diogo de Macedo, como mero adereço decorativo de uma exposição. O sublime está definitivamente arredado do monumento que perde então a sua aura, e se desloca para as grandes obras públicas, proezas da técnica e dos técnicos. Principalmente as barragens, fig. 37, mas também as pontes, os hospitais, as escolas e, claro está, os palácios da justiça. A escultura pública é assim “raptada”14 pelas obras públicas, passando a submeter-se à sua lógica e ao seu sublime, funcionando como seu adereço decorativo e emblemático. De monumento sublime, a escultura torna-se mero apetrecho decorativo e magnificador de uma sublimidade que não é já a da arte. Por outro lado, percebendo que a oportunidade histórica de forjar uma monumentalidade nacional sublime havia chegado ao fim, e que doravante caberia aos engenheiros o protagonismo da sublimidade decorrente das grandes obras públicas, os arquitectos reunidos no I Congresso Nacional da Arquitectura, que decorreu em paralelo à Exposição do Técnico de 1948, fazem aprovar teses que reprovam a imposição de um estilo português à arquitectura, e iniciam uma impiedosa contestação ao Regime, em nome da responsabilidade social inerente ao exercício da arquitectura. Por essa altura, organiza-se no Porto, em torno do mestrado de Carlos Ramos, na ESAP, a ODAM, e em Lisboa o ICAT. Para a Direcção do Sindicato Nacional dos Arquitectos, logo será eleito Keil do Amaral, e em breve a Revista Arquitectura será dirigida pelos arquitectos contestatários do Regime. Nestas circunstâncias, e havendo ingressado Salvador Barata Feyo, em 1949-50, na Escola do Porto, onde se junta a Carlos Ramos e Dordio Gomes, os escultores de Gaia, com menor espaço ficam ainda para assegurar e manter alguma presença. Depois da humilhante derrota de Henrique Moreira no concurso dos elementos escultóricos para os plintos da Praça D. João I, e deste também se render a uma anacrónica estética germanizada, no grupo escultórico que modela para o palácio do Comércio, fig. 38, em 1955, apenas Eduardo Tavares tenta adaptar-se à nova situação, obtendo algumas encomendas para complemento de obras públicas, como os relevos para a Escola Comercial de Gomes Teixeira, fig. 39, em 1952, ou a estátua de Ricardo Jorge, para o Hospital Escolar de São João, fig. 40, em 1958, obras onde o escultor se rende à estética e à retórica oficial. E ao longo dos anos 50 o quadro vai-se agravando, principalmente a partir da decisão de Oliveira Salazar, de não executar o projecto Mar Novo, de João Andresen, Barata Feyo e Júlio Resende, figuras cimeiras da Escola do Porto, premiado em concurso internacional, aberto para a construção de um novo monumento ao Infante, em Sagres. Daí que, a decisão15 de passar a pedra, em 1960, o Padrão dos Descobrimentos, fig. 41, erigido em estafe para figurar na Exposição do Mundo Português, em 40, apareça no fim deste longo 14 Socorremo-nos aqui do conceito de “Espacio Raptado”, proposto por Javier Maderuelo, in MADERUELO, Javier, El espacio raptado: interferencias entre arquitectura y escultura, Madrid, Mondadori España, D.L., 1990

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itinerário, como sinal de uma blocagem equivalente, àquela que o primado da monumentalidade restauracionista havia de fazer recair sobre a estatuária novecentista, desta feita fechando-se sobre si mesmo o monumentalismo oficial, reiterando um ensimesmamento tipicamente autista e “orgulhosamente só”. 6- Considerações finais No fim do itinerário, consideramos que pode afirmar-se o seguinte: 

Encaixado incomodamente entre dois paradigmas de monumentalidade particularmente marcantes, o novecentismo intentou sintetizar fórmulas monumentais plurais e abertas à participação cívica e comunitária, antecipando concepções lúcidas e coerentes de arte pública



Os MMGG tornam-se pólos diferenciadores de uma monumentalidade republicana de carácter civil, integrando lógicas e estéticas distintas, que vão dos monumentos cívicos aos patrióticos e dos funerários aos pacifistas



Afastado da retórica monumental do Estado Novo, o novecentismo prossegue uma via refractária, centrada em obras de menor escala, refugiando-se no limbo



Uma estética veladamente modernista, processualmente académica e indelevelmente simbolista, abre espaço para uma concepção e uma presença integrada da escultura no tecido urbano, constituindo-se como prática coerente de arte pública, à margem de historicismos e de sublimidades retóricas



Perante o avanço poderoso e pesado do monumentalismo nacional-historicista, a monumentalidade novecentista não pôde usufruir de um desenvolvimento livre, limitando-se a ocupar espaços intersticiais remanescentes no espaço público



Como noutros géneros, o seu valor artístico é desigual, mas historicamente o seu papel foi importante, e hoje os seus pressupostos renascem com algum vigor.

15 Importa referir que a ideia de passar a pedra o Padrão dos Descobrimentos já é assumida em 1954, antes ainda do resultado do 3º Concurso de Sagres, constando a mesma do arranjo urbanístico da zona de Belém encomendado a Cristino da Silva, facto que não deixa de ser surpreendente, já que Cristino da Silva era membro do júri designado para esse mesmo concurso. (vide, Rodolfo, João de Sousa, Luís Cristino da Silva. E a Arquitectura Moderna em Portugal, Dom Quixote, 2002, pp. 214-217)

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Bibliografia: ABREU, José Guilherme R P de, A Escultura no Espaço Público do Porto no Século XX. Inventário, História e Perspectivas de Interpretação, FLUP, 1999, Tese de mestrado, texto policopiado. ACCIAIUOLI, Margarida, Os Anos 40 em Portugal. O País, o Regime e as Artes. Restauração e Celebração. Vol I, UNL, Tese de Doutoramento, Policopiada, Lisboa, 1991 ARMAJANI, Siah, Manifesto. Public Sculpture in the Context of American Democracy, In, Espacios de Lectura / Reading Spaces, MACBA, 1995, Barcelona, p. 112 BROCHADO, Alexandrino, O Porto e a sua Estatuária, Livraria Telos Editora, Porto, 1998. BURITY, Braz, Primeiro de Janeiro de 21/11/1924 CORREIA, Victor e BRACONS, António, Estatuária Urbana Conimbricense, Universitária Editora, Coimbra, 2001 FERREIRA, R. Laborde e VIEIRA V. M. Lopes, A Estatuária de Lisboa, Amigos do Livro, Lisboa, 1985 FERREIRA, R. Laborde e VIEIRA V. M. Lopes, A Estatuária do Porto, Amigos do Livro, Porto, 1987 FRANÇA, José-Augusto, A Arte em Portugal no Século XIX, Bertrand, 1966, Lisboa, Vol. I FRANÇA, José-Augusto, A Arte Em Portugal no Século XIX, Bertrand, 1966, Lisboa, Vol. II LOPES, António Teixeira, Ao Correr da pena. Memórias de uma vida, Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, VN Gaia, 1968 MADERUELO, Javier, El espacio raptado: interferencias entre arquitectura y escultura, Madrid, Mondadori España, D.L., 1990 PROST, Antoine, Les Monuments aux Morts, In, NORA, Pierre (dir), Les Lieux de Mémoire, La République, Gallimard, 1988, Paris. REYERO, Carlos, La Escultura Conmemorativa en España. La Edad de Oro del Monumento Público, Cadernos Arte Cátedra, Madrid, 1999 YOUNG James E., The Texture of Memory. Holocaust Memorials and Meaning, Yale University Press, New Haven and London, 1993.

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