A Estética como Crítica: Um Debate entre Marcuse e Foucault

August 18, 2017 | Autor: Silvio Carneiro | Categoria: Critical Theory, Aesthetics, Herbert Marcuse, Michel Foucault, Estética, Teoría Crítica
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A ESTÉTICA COMO CRÍTICA: UM DEBATE ENTRE MARCUSE E FOUCAULT

Silvio Ricardo Gomes Carneiro Doutorando em Filosofia pela FFLCH/USP, bolsista FAPESP [email protected]

Passando pela crítica foucaultiana da hipótese repressiva - compreendendo mais diretamente a diferença entre os autores e, sobretudo, os lugares de onde partem cada uma delas - notamos - de uma maneira bem genealógica, aliás - que o fundo do debate entre Foucault e Marcuse, antes de ser excludente, sustentaria uma correspondência. Pois haveria um campo em disputa entre os dois autores: um território em que ambos buscam uma nova normatividade distinta dos exercícios da racionalidade moderna. Esta passagem pode ser aferida através de um terceiro personagem que identifica, em momentos e com elementos diversos, um fundo insustentável entre nossos dois autores. Não é por menos que em momentos de autocrítica, Jürgen Habermas elege primeiramente Marcuse e, em seguida, Foucault, como dois de seus principais focos de críticas. Afinal, no projeto habermasiano que procura recuperar o campo crítico que a Modernidade nos deixa como herança - crítica que possibilitaria o espaço público e um campo

de

reconhecimento

intersubjetivo

-,

seria

absolutamente

necessário,

primeiramente, desfazer-se de qualquer "filosofia da natureza" presente no interior da teoria crítica da primeira geração. Bem como, paralelamente, seria necessário o desvio de qualquer projeto que toma a priori a arquitetura da razão moderna como um edifício a ser abandonado, como o caso da pós-modernidade. Em ambos os casos, Habermas acusa a ausência de racionalidade e, por conseguinte, a falência de qualquer ensaio crítico da ordem social. No limite, ambos os projetos conjugam uma "contradição performativa": na tentativa de uma nova racionalidade, acabam girando em falso nos impasses da gramática moderna. Tomando Marcuse e Foucault como os extremos contra os quais o projeto habermasiano debate, podemos compreender o que está no jogo em que nossos dois autores estão enredados.

O espelho habermasiano entre Marcuse e Foucault À princípio, este nossa interpretação se mostra, no mínimo, curiosa, posto que Foucault acompanharia a crítica habermasiana à primeira geração de Frankfurt.

Conforme notamos em nosso primeiro capítulo, Foucault suspeita das formulações vitalistas que estariam presentes em interpretações fenomenológicas como as que inspirava o jovem Marcuse no projeto de releitura do marxismo a partir do espaço vital. Algo que, conforme Habermas, pode ainda ser encontrada tardiamente, nas análises marcuseanas do pós-guerra, e em sua tentativa de determinar uma contrapartida crítica mediante uma filosofia da natureza. Seria em Técnica e ciência como "ideologia" - uma homenagem crítica aos 70 anos de Marcuse (em pleno julho de 1968) - que Habermas chegaria a formular o seguinte raciocínio: Marcuse tem em mente uma atitude alternativa perante a natureza mas, a partir dela, não se pode deduzir a ideia de uma nova técnica. Em vez de tratar a natureza como objeto de uma disposição possível, poderíamos considerá-la como o interlocutor de uma possível interação. Em vez da natureza explorada, podemos buscar a natureza fraternal. Na esfera de uma intersubjetividade ainda incompleta podemos presumir subjetividade nos animais, nas plantas e até nas pedras, e comunicar com a natureza, em vez de nos limitarmos a trabalhá-la com rotura da comunicação. E, para dizer o mínimo que se pode dizer, essa ideia conservou um atrativo peculiar, a saber, que a subjetividade da natureza, ainda agrilhoada, não se poderá libertar antes de a comunicação dos homens entre si não estar livre da dominação. Só quando os homens comunicarem sem coação e cada um se puder reconhecer no outro, poderia o gênero humano reconhecer a natureza como um outro sujeito - e não, como queria o Idealismo, reconhecê-la como o seu outro, mas, antes, reconhecer-se nela como noutro sujeito (HABERMAS, 1986, pp. 52-53).

Haveria, pois, uma natureza reprimida - "uma natureza que também aguarda pela revolução!", exclamaria Marcuse. A referência aqui é clara: trata-se do capítulo sobre as "imagens de Narciso e de Orfeu" apresentado em Eros e civilização. Pois seria Orfeu aquele que, através de sua técnica musical encantaria até mesmo as pedras. E seria Narciso - que Marcuse retira da tradição poética - justamente o momento da identificação silenciosa entre homem e natureza: o quiasma entre cultura e natureza, a despeito da ordem social em que vive (não seria este o castigo de Diana a seu amor Narciso: apaixonar-se pela própria imagem - sem a reconhecer como tal - uma vez que rejeita as funções que a sociedade lhe determina: a caça e o casamento?). O problema poético de Narciso - que fascinou tantos poetas: de Ovídio a Valéry - é o problema da identidade, o momento em que a subjetividade se metamorfoseia entre natureza e cultura. Na verdade, o impulso erótico que, enquanto rompe com a ordem social e seus valores, precisa de uma nova normatividade, ainda que seja o encontro com a própria morte - dada a impossibilidade trágica de realização na ordem estabelecida. Orfeu e

Narciso seriam a imagem avessa da ordem estabelecida, cujo mito principal se mostra na figura trágica de Prometeu: criador dos homens, na forja da natureza; aquele que rouba o fogo dos deuses para conceder aos homens a sua sabedoria; aquele que pretende dominar a natureza divina através da técnica. Decerto, esta contraposição entre as imagens da dominação e da libertação sugerem para Habermas a possibilidade de um novo projeto crítico, uma "estrutura alternativa de ação" e, por conseguinte, de técnica - que não, aparentemente, se diferenciaria dos critérios de uma racionalidade instrumental, constituindo-se como "interação simbolicamente mediada" (idem, p. 53). Contudo, a partir das imagens libertárias de Marcuse, não se tem uma nova técnica propriamente. De outro modo, a intenção marcuseana de encontrar uma alternativa acaba por recuar a um relativismo, em que a crítica da razão instrumental - em sua forma unidimensional - se reduz a uma questão de "projeto", ou seja: "Manter-se-ia, pois, a estrutura do progresso técnicocientífico, apenas se modificariam os valores regulativos", que se traduziriam por "tarefas tecnicamente solucionáveis" (idem, p. 54). No limite, mudam-se os valores, muito embora os critérios de racionalidade continuariam os mesmos. E daí a necessidade - ilusória no entender de Habermas - de um recuo à uma filosofia da natureza, a uma teoria das pulsões, a um pré-racionalismo crítico em prol da afirmação de uma forma de vida mítica, que aguarda o movimento de libertação - uma pulsão que leva à manifestação política e libertadora não apenas da sensibilidade, como também da própria razão: A dificuldade que Marcuse apenas encobre com a expressão relativa ao conteúdo político da razão é a de determinar de modo categorialmente preciso o que significa o seguinte: a forma racional da ciência e da técnica, isto é, a racionalidade teleológica [podemos dizer: instrumental] acaba por constituir uma forma de vida, uma 'totalidade histórica' do mundo vital (idem, p. 55 - nossos colchetes).

Em outros termos, muito embora Marcuse, em Eros e civilização, notasse a necessidade de uma virada simbólica no terreno da racionalidade moderna - uma linguagem erótica que libertasse a racionalidade e a sensibilidade da reificação da ordem estabelecida acabaria por recuar a um território externo à razão, gerando uma crítica a partir de uma filosofia da natureza, de uma "totalidade histórica do mundo vital". Lembremos que esta crítica não é distante das suspeitas de Foucault sobre a hipótese repressiva. No caso freudo-marxista, que Foucault descreve a partir das leituras de Marcuse e Reich, a necessidade de se abandonar os diagnósticos da repressão que,

mediante "o energismo difuso que sustém o tema de uma sexualidade reprimida por motivos econômicos" (FOUCAULT, 1988, p. 108) acaba por naturalizar a sexualidade ao invés de considerá-la um dispositivo central de poder, enquanto "aparato técnico"; um modelo energético próximo à análise econômica da força de trabalho. Uma crítica muito próxima à suspeita de Habermas sobre as investigações marcuseanas: movimento que associa, estranhamente, o pensamento foucaultiano dos pressupostos da teoria do agir comunicativo. No entanto, não é para esta direção que segue a arqueologia do saber. As práticas discursivas não se revertem em um espaço público em busca de um consenso intersubjetivo, mas sim, em um campo de batalha entre forças diversas. Este é o limite que Foucault encontra em sua própria arqueologia e que se reflete nos trabalhos da história da sexualidade. Ainda que não se trate de uma ruptura na experiência intelectual de Foucault, a passagem pela genealogia do poder aprofunda aspectos negligenciados pela arqueologia do saber. Decerto, o arqueólogo ainda apreendia o discurso mediante as estruturas de uma epistémé que arregimenta as práticas e teorias de um saber. Compreender historicamente as descontinuidades e variações das práticas discursivas, a produção de suas verdades sem se dissolver no relativismo, faz com que Foucault estenda as investigações arqueológicas dos discursos às redes de poder em que se inserem. Diversamente do reconhecimento entre subjetividades diversas em um campo comum de discurso, há um espaço dos enfrentamentos que produz as subjetividades que habitam seu interior. Deste modo, Foucault, embora crítico da saída frankfurtiana pela teoria das pulsões e toda a hipótese repressiva que lhe acompanha, duvida, ao menos, da intersubjetividade esclarecida que Habermas tem por horizonte1. O próprio Habermas nota o quão Foucault se distancia dos propósitos de uma teoria do agir comunicativo - algo que seria possível, caso estivesse permanecido em suas análises sobre a clínica e os desdobramentos das ciências humanas - no fundo, toda a arqueologia do saber se aproximava da análise da "rede de enunciados" que tanto poderia aproximar os projetos foucaultiano e habermasiano (HABERMAS, 2000, p. 382). Na tentativa de operar uma crítica pela genealogia, evitando os problemas da 1

Conforme a resposta de Foucault: "A ideia de que poderia haver um tal estado de comunicação no qual os jogos de verdade poderiam circular sem obstáculos, sem restrições e sem efeitos coercitivos me parece da ordem da utopia. Trata-se precisamente de não ver que as relações de poder não são alguma coisa má em si mesmas, das quais seria necessário se libertar (…) O problema não é, portanto, tentar dissolvê-las na utopia de uma comunicação perfeitamente transparente, mas se imporem regras de direito, técnicas de gestão e também a moral, o êthos, a prática de si, que permitirão, nesses jogos de poder, jogar com o mínimo possível de dominação” (FOUCAULT, 2006, p. 284).

arqueologia, Foucault acaba por perder o fundamento do saber. Conforme Habermas, seu conceito de poder giraria em torno de dois papéis: de um lado, uma análise empírica da descrição dos aparatos de poder - com todas as descrições detalhadas das micropolíticas e suas tecnologias - o que caracterizaria Foucault quase como um "positivista feliz". Por outro lado, a genealogia foucaultiana se sustenta em uma análise transcendental de um conceito de poder que estrutura todo o domínio de saber das ciências humanas. Deste modo, Foucault inverteria a "dependência do poder em relação à verdade em uma dependência da verdade em relação ao poder" (idem, p. 385). Estas duas bases configuram os limites da crítica de Foucault à Modernidade. Dos efeitos maiores da crítica habermasiana2, consideramos interessante sua acusação do caráter "cripto-normativo" que a genealogia de Foucault acaba por se enredar. Pois, a teoria foucaultiana do poder, segundo Habermas, encobre os critérios normativos que legitimam esta perspectiva. Estando na base de toda economia discursiva, o poder deslocaria as instâncias em disputa, embora rearranjadas na submissão normativa da biopolítica. Isto porque Foucault na mesma medida em que pretende confrontar os jogos de linguagem da modernidade, mediante sua rede de enunciados, dispensa a forma dialética em que estes poderiam se dar. Isto é, dispensa a dialética da modernidade e seus duplos de proposição e crítica: as tensões que os autores que não abandonaram a frágil modernidade, como os frankfurtianos como autonomia e heteronomia, moralidade e legalidade, emancipação e repressão. Pois Foucault, com sua base nietzscheana, tem como projeto o abandono da modernidade. Distante dos critérios normativos da razão moderna - bem como de suas formas "patológicas", distorcidas - apenas resta a nosso autor uma instância pré-discursiva que se estabelece na forma de poder, ou melhor, "a forma de um biopoder que se apropria antes dos corpos do que dos espíritos, submetendo-os a uma pressão normalizadora rigorosa - sem necessitar para isso de um

2

Dentre os quais: a) o presentismo (o fato de que a genealogia do poder, uma vez que atravessa a todos os tempos, sem qualquer critério claro, deixaria apenas ao "historiador radical" a possibilidade de análise das demais formas de poder a partir da sua forma atual: o poder disciplinar e o biopoder); b) o relativismo (na tentativa de fazer da genealogia um discurso crítico às ciências humanas tradicionais, Foucault trataria a genealogia como um contra-discurso; na impossibilidade de instaurar um normatividade e um critério de verdade que não seja produto da rede de poder, a genealogia enquanto crítica fica sem fundamentos, deixando obscuro o seu caráter crítico diante das demais possibilidades críticas); c) o cripto-normativismo (afinal, a crítica à Modernidade e sua normatividade, acaba por gerar uma outra normatividade, a que Foucault nunca afirma diretamente, embora acabe por carecer de critérios normativos para escapar ora do presentismo, ora do relativismo)

fundamento normativo" (idem, p. 397) - uma normalização sem fundamento normativo, eis como Foucault, de acordo com Habermas e Nancy Fraser3, desenvolveria sua crítica. No fim desta trajetória, embora com elementos diversos, Foucault acaba por reproduzir na análise do poder o mesmo que tentaria evitar com o discurso vitalista4; embora por caminhos diversos, Habermas nota o mesmo limite entre os dois campos de crítica. Por conseguinte, Foucault e Marcuse se alinham na medida em que suas críticas da modernidade acabam por reproduzir - mediante estratégias diversas - conceitos "histórico-transcendentais", abandonando não apenas os impasses da modernidade, como também a própria modernidade e seus critérios autorreflexivos, a autonomia de sua crítica5. Seja pela erotismo, seja pelo poder, a normatividade moderna seria o alvo. No espelhamento habermasiano, Foucault e Marcuse acabam mais próximos. Afinal, sob a crítica de Habermas, alguns diagnósticos se aproximam6. Ressaltemos aqui aqueles de natureza estética - pois seria aqui que o limite da crítica habermasiana se apresenta. Haveria um "déficit estético" em sua análise da modernidade.

A saída estética

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Lembremos que grande parte deste debate é atravessado por uma nova geração da teoria crítica que acompanhou a trajetória intelectual de Habermas. Axel Honneth seria um dos principais responsáveis pelos argumentos habermasianos contra Foucault. Viria de Honneth a crítica de uma "hipóstase foucaultiana do poder". Ao lado dele, também é importante a colaboração de Nancy Fraser, sobretudo a respeito da ausência de fundamento normativo: uma vez que, mais do que um recurso estético, a ausência de fundamento normativo viria da herança do empirismo inglês, sobretudo do utilitarismo benthaminiano - cujos argumentos sobre a vigilância e punição se sustentam nos critérios de prazer e dor. 4 "Assim como Bergson, Dilthey e Simmel [e poderíamos juntar aqui, Marcuse] elevaram a "vida" a conceito transcendental basilar de uma filosofia que ainda constituía o pano de fundo da analítica do ser-aí de Heidegger, assim também Foucault eleva agora o "poder" a conceito histórico-transcendental fundamental de uma historiografia crítica da razão" in HABERMAS, 2000, p. 356 - colchetes nossos. 5 Embora Habermas não deixasse de diferenciar os dois autores, através de suas estratégias críticas: "Herbert Marcuse interpretou como 'dessublimação repressiva' os fenômenos contemporâneos de uma libertação sexual controlada, socialmente dirigida, ao mesmo tempo comercializada e administrada. Essa análise mantém aberta a perspectiva de urna dessublimação libertadora. Foucault parte dos fenômenos análogos de uma sexualidade desqualificada, reduzida a um meio de controle e despida de erotismo; mas para ver aí precisamente o telos, o segredo desvelado da libertação sexual. (...)Para Foucault, "sexualidade" é sinônimo de uma formação de discurso e de poder que faz valer a exigência inocente de veracidade em face das próprias emoções a que se tem um acesso privilegiado, dos desejos pulsionais e das vivências, e que empreende uma estimulação imperceptível do corpo, uma intensificação dos prazeres e uma formação das energias psíquicas" in HABERMAS, 2000, p. 407. 6 Desenvolveremos aqui o modo como Marcuse e Foucault operam sua crítica ao Estado. Ambos estão distantes dos critérios clássicos que consideram as formas de Estado a partir das formas de governo. Com os limites do Estado de Bem-Estar Social (bem como o Estado soviético) se faz necessário dirigir-se criticamente aos efeitos descentralizados de poder. Um diagnóstico comum tanto em O homem unidimensional, quanto em Nascimento da biopolítica. No entanto, deixaremos esta análise para seguir mais detidamente em outro ponto de convergência: na análise de suas reflexões estéticas.

Estranha recusa do pensamento habermasiano aos termos da estética. Na arquitetura de seu espaço público, na pragmática da comunicação intersubjetiva, o campo estético aparece ali, como uma sombra, que ameaçaria a transparência pretendida entre os interlocutores. Não é a toa: a normatividade do agir comunicativo - e a garantia do saber crítico habermasiano - seria ameaçada pelo que considera ser a expressão subjetiva do discurso estético. Em momentos diversos, Marcuse e Foucault seriam representantes desta "tentativa autoexpressivista" que a estética possibilita. Em Técnica e ciência como "ideologia", Marcuse quase alcançaria uma racionalidade comunicativa (lembremos nossa análise sobre o encantamento da natureza pela música de Orfeu, ou o encantamento de si, pela beleza autoerótica de Narciso), uma mediação simbólica nas relações sociais, não fosse o imperativo crítico contra a racionalidade instrumental (e toda a fixação dos procedimentos da racionalidade moderna análogos à práxis do trabalho). Conclusão que poderia ser extraída da análise marcuseana sobre o trabalho alienado do artista. A matriz, embora habitante da estética e da sensibilidade, ainda assim se sustenta do campo do trabalho, da produtividade. Segundo Marcuse, teria a alienação do artista um caráter de resistência diante do mundo alienado. Pois a alienação artística é uma separação entre a atividade artística e a atividade cotidiana da dominação. Neste sentido, desde sua tese sobre o Romance alemão de formação do artista (1922), Marcuse insiste que diante dos impasses da sociedade burguesa, alienar-se da realidade seria também sua rejeição. Seria esta subjetividade que, habitando um mundo reificado (e que, no pós-guerra reforça esta característica em uma sociedade totalmente administrada) o jogo livre das artes oferece novas possibilidades de transformação. "Não mais empregado como instrumentos de retenção dos homens em desempenhos alienados, as barreiras contra a gratificação absoluta se tornariam elementos da liberdade humana. Elas protegeriam aquela outra alienação em que se origina o prazer - a alienação do homem não de si mesmo, mas da mera natureza: sua autorrealização" (MARCUSE, 1966, p. 227). Seria esta alienação interpretada por Habermas como um recuo aos impasses de uma racionalidade moderna da filosofia do sujeito. Como se, na medida em que o espaço público estivesse vedado à uma relação efetiva de reconhecimento intersubjetivo, Marcuse recuasse para a autorrealização subjetiva tipificada pela alienação do artista. Paralelamente, Habermas também acusaria Foucault - por caminhos diversos aos de Marcuse - de seguir também para uma auto-expressão estética. Habermas não indica com isso os passos dados pelo último Foucault (o momento da estética da existência).

Como reconhece em nota do Discurso filosófico da modernidade, Habermas tem em mãos os argumentos de Foucault até o primeiro volume da História da sexualidade momento praticamente final de um ciclo da trajetória intelectual foucaultiana em torno da genealogia do poder. De outro modo, a acusação habermasiana de que Foucault incidiria em uma auto-expressão estética seria pela irremediável necessidade de uma forma subjetiva que subjaz em sua genealogia. Algo que está na consideração habermasiana do cripto-normativismo da genealogia do poder. Na impossibilidade de constituir um contradiscurso - que também é um efeito da rede de poder - Foucault recairia em um perspectivismo (de moldes nietzscheanos) que, de modo inevitável à esta estratégia de querer anular as formas soberanas de poder, acaba se invertendo no avesso de sua intenção: o subjetivismo irremediável de toda perspectiva. Entretanto, resta duvidar desta crítica habermasiana. É certo que Foucault dedica-se em seu último momento a uma pesquisa sobre as tecnologias de si, o que poderia ser considerada a confirmação de um retorno a uma filosofia do sujeito conforme provoca Habermas. Mas, tal consideração seria um equívoco. Trata-se de levar em consideração uma outra normatividade, diversa da racionalidade intersubjetiva do agir comunicativo. Afinal, a virada foucaultiana para uma genealogia da verdade e toda a hermenêutica do sujeito que nela está implícita; toda esta possibilidade de se constituir uma subjetividade portadora da parhesia, deixa de lado pressupostos importantes para a teoria do agir comunicativo: sobretudo a noção de uma substância subjetiva. Toda a normatividade pragmático-comunicacional que estrutura um espaço público pressupõe, de acordo com Habermas, ao menos o reconhecimento de subjetividades diversas. A normatividade intersubjetiva do reconhecimento é, pois, uma gramática da crítica da razão em um território que - sejamos justos - dispensa a figura transcendental do sujeito. No entanto, reafirma um campo de reconhecimento entre sujeitos com seus valores pré-reconhecidos. Não é isto que está pressuposto na obra foucaultiana. A tecnologia de si é, ainda, uma prática de dizer a verdade, um modo de enunciado. Seu retorno aos gregos, por assim dizer, é um recuo para formas de constituição da subjetividade, para os enunciados em que se afirma cada vez mais a possibilidade de liberdade. "“Deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta,

como também procuram se transformar,

modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de

certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo” (FOUCAULT, 1984, p. 15). Devemos lembrar que algo similar acontece no embate entre Marcuse e Habermas. A recusa da teoria crítica de Marcuse em seu paradigma de filosofia da natureza, oculta o fundo de uma normatividade que não se encaixa nos termos de uma teoria do agir comunicativo. Ao fim e ao cabo, a insistência de Marcuse por uma "dimensão estética" revela mais do que uma teoria do conformismo. Sempre que se pensa em uma autonomia da arte, trata-se de modos normativos em que a arte se desdobra como potencial transformador. Segundo A Dimensão Estética, o imperativo da arte é de que "as coisas devem mudar" (MARCUSE, 1978, p. 13). Mudança que não está vinculada necessariamente à ação revolucionária - como critica no realismo soviético - mas na autonomia da arte que confere à materialidade sensível uma forma. Embora em caminhos diversos, diríamos que na estética existe um estranho encontro entre Marcuse e Foucault. Avessos à normatividade que a forma de vida estabelecida reifica a existência, seria na normatividade estética que tanto Foucault quanto Marcuse buscam uma nova linguagem: uma linguagem que, diferente da comunicacional, consiga defrontar-se com o silêncio, não como uma patologia da modernidade, mas como uma promessa que ainda está por ser cumprida.

Referências bibliográficas: FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: o uso dos prazeres (vol. 2), trad. M. T. da C Albuquerque e J. A. G. Albuquerque, 16ª Ed., Rio de Janeiro: Graal, 1984. ________________. História da Sexualidade: a vontade de saber (vol. 1), trad. M. T. da C Albuquerque e J. A. G. Albuquerque, 16ª Ed., Rio de Janeiro: Graal, 1988. ________________. Ética, Sexualidade, Política (Ditos e Escritos V), Manoel B. da Motta (ed.), 2a. Edição, Rio de Janeiro: Ed. Forense Univeersitária, 2006a. HABERMAS, Jürgen. Técnica e a Ciência como “Ideologia”, Lisboa: Edições 70, 1986. ________________. O discurso filosófico da modernidade: 12 lições, São Paulo: EMF, 2000.

MARCUSE, Herbert. Eros and Civilization - A Philosophical Inquiry into Freud, Boston: Beacon Press, 1966. ________________. One Dimensional Man: Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society, Boston: Beacon Pr., 1972. ________________. The Aesthetic Dimension: Toward a Critique of Marxist Aesthetics, Boston: Beacon Press, 1978. ________________. Art and Liberation (Collected Papers of Herbert Marcuse - vol. 2), London, New York: Routledge, 2007.

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