A estética da sobrevivência no rap de cárcere: fragmentos de memórias do Carandiru

May 31, 2017 | Autor: Carla Mello | Categoria: Poetry, Hip-Hop/Rap, Prisons
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A estética da sobrevivência no rap de cárcere: fragmentos de memórias do Carandiru Carla C. Mello (Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC) RESUMO: As diásporas africanas apresentam um legado de extrema importância no universo poético-musical contemporâneos. Exemplos disso são os estudos de teóricos como Stuart Hall (2003) e Paul Gilroy (2001), entre outros, que nos apresentam essas confluências há muito tempo. Aqui no Brasil, o rap – gênero poético-musical que faz parte do “Movimento Hip Hop” –, desde a década de 1980 vem crescendo junto com a emancipação cultural das diferentes periferias do país, delineando uma poética do enfrentamento, contando e cantando as mazelas sociais vividas pelos sujeitos periféricos. O rap de cárcere, por sua vez, reivindica a memória de sujeitos duplamente marginalizados pelo sistema. Os grupos “Detentos do Rap” e “509-E” surgem em 1996 e 1999, respectivamente, no extinto Complexo Carcerário do Carandiru, cenário do Massacre de 2 de outubro de 1992, que resultou na morte de cento e onze detentos, segundo números oficiais. Seus poemas-musicais apresentam o “realismo afetivo” (SCHØLLHAMMER, 2012) das barbáries cotidianas enfrentadas pelos sujeitos encarcerados: a superlotação, as violências, a banalização da morte, as estigmatizações, e em meio a tudo isso, a “linha de fuga” através do lirismo ácido do rap como uma estética de sobrevivência nesse ambiente hostil. As memórias e subjetividades desses rappers-poetas também se manifestam através das performances em videoclipes gravados dentro desta prisão, que sobrevivem também como memórias audiovisuais da maior prisão da América Latina à época. PALAVRAS-CHAVE: Rap; Cárcere; Memória; Carandiru; Performance. ABSTRACT: The African diasporas present a legacy of extreme importance in the contemporary poetic-musical universe. Theoreticians Stuart Hall’s (2003) and Paul Gilroy’s (2001) studies are some examples that present those confluences. In Brazil, rap – poeticmusical genre, part of the “Hip Hop Movement” –, since the 1980s have been growing along the cultural emancipation of different peripheries of the country, delineating a confrontational poetics, telling and singing the social woes lived by the suburban subjects. The penitentiary rap claims the memory of the system’s double marginalized subjects. The groups “Detentos do Rap” and “509-E” appear in 1996 and 1999, respectively, in the nowadays extinct Carandiru Penitentiary Complex, scenery of the Massacre of October 3rd, 2002, which resulted in the death of a hundred and eleven inmates, according to official numbers. Their musical-poems present the “affective realism” (SCHØLLHAMMER, 2012) of the everyday barbarism faced by the imprisoned subjects: overcrowding, violence, banalization of death, stigmatizations, and, amongst it, the “line of escape” through the acid lyricism of rap as an aesthetics of survival in such a hostile environment. The memories and subjectivities of these poet-rappers are also manifested through performances in music videos shot within the penitentiary complex, which also survive as audiovisual memories of the largest prison in Latin America by the time.

KEY-WORDS: Rap; Prison; Memory; Carandiru; Performance. “Um homem na estrada recomeça sua vida/ Sua finalidade/ a sua liberdade/ Que foi perdida, subtraída/ E quer provar a si mesmo que realmente mudou/ Que se recuperou/ e quer viver em paz/ Não olhar para trás/ dizer ao crime: nunca mais!” (RACIONAIS MC´S, 1993) O RAP E O CÁRCERE O rap representa uma vertente da música negra considerada por Paul Gilroy (2001) como “contracultura da modernidade”. O movimento hip hop chegou ao Brasil em meados de 1980 e ocupou as ruas do centro da cidade de São Paulo. Seus proliferadores eram jovens pobres e periféricos de bairros que pouco ou nada ofereciam aos seus moradores, desde os direitos básicos até educação e cultura. Em meio a um cenário de ausências, e por sentir que a “cultura do senhor de engenho”1 não lhes representava, a cultura hip hop ganhou adeptos. Primeiramente através do break, a dança do movimento, e logo em seguida, a poética falada ou “tagarela” do “ritmo e poesia” (RAP - rithym and poetry em inglês); ou suas variáveis significantes da sigla como “revolução amor e poesia” ou “revolução através das palavras”, como costumam denominar seus propagadores, tornou-se a voz dos marginalizados da sociedade. Assim como desde seu nascimento na Jamaica, a estética de protesto e denúncia se faz presente no rap brasileiro, conforme explicita Rafael de Sousa ao abordar a consolidação do movimento em São Paulo: Decididos a construir outra trajetória para suas vidas e fugir da angustiante sina familiar, os jovens da periferia de São Paulo estabelecem, a partir da década de 1980, outra relação com a áspera realidade que envolve suas vidas e convocam seus pares para adotar essa mesma postura. Nessa nova relação a “tristeza”, a “submissão” e a “vergonha” que marcaram a vida de seus pais são substituídas pelo orgulho que essa nova geração tributa à história e às tradições de seus antepassados. (SOUSA, 2012, p. 47)

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“Cultura do senhor de engenho” é o termo utilizado em diferentes discursos de rappers que pode ser entendida como a cultura do opressor, representada pelo “senhor de engenho”, figura central da opressão à época da escravidão.

Ao perscrutar caminhos que permitam ao sujeito periférico recuperar sua autoestima e politizar sua identidade (HALL, 2001), o rap, e o movimento hip hop vão se constituindo como a nova trilha sonora dos guetos brasileiros. O rap assumiu também, nessa época, um papel iniciado pelos movimentos negros em luta pelos direitos e recuperação da autoestima da negritude brasileira, em grande parte influenciado pelo cenário de lutas dos Estados Unidos, tomando nomes como o do grupo político Panteras Negras, de Martin Luther King Jr. e Malcolm X, como seus verdadeiros mestres. Essa identificação do sujeito negro passou, então, a se orgulhar de suas raízes e a perceber que poderia criar através das rimas novas perspectivas para esse povo excluído da sociedade brasileira. Dentro desta perspectiva, ainda, não é difícil compreender porque o rap também se faz presente dentro de presídios - espaço que abriga, em sua maioria, sujeitos duplamente marginalizados pelo sistema: aqueles que estavam à margem da sociedade antes de adentrar esse lugar, e se encontram agora estigmatizados como “marginais” do sistema, aqui no sentido pejorativo da palavra2. Para Bruno Zeni, essa relação não poderia ser diferente: A relação do rap com o universo prisional é de intimidade e reciprocidade. Por ser uma música surgida entre a população pobre, o rap tem, na grande massa carcerária brasileira, composta majoritariamente de negros e pobres, um público fiel e rapper em potencial. O movimento é de mão dupla: o rap tematiza o mundo da cadeia, ponto final daqueles que se envolvem com o crime e com a violência – ameaça vivida de forma próxima e intensa por grande parte dos moradores da periferia –, e as prisões produzem rap. (ZENI, 2004, p. 4)

Nessas produções prisionais, o “sistema opressor”3 se personifica em um Estado que pune e massacra um sujeito poético fragmentado que, por sua vez, procura sua própria forma de reconciliação com seu “eu” e com seu “mundo” e, ao que parece, consegue fazê-lo a partir da palavra cantada do rap. Aqui a palavra-música evoca a resistência do homem-corpo em busca da compreensão de suas subjetividades e contradições, bem como da metamorfose de sua condição atual. Assim, a lírica do rap de cárcere perpassa imaginários construindo visibilidades inauditas sobre a força poética em situações extremas através da palavra que vive e vibra na voz e no corpo de quem ouve/ lê e vê tais manifestações. 2

Um jargão comum para se depreender esse conceito depreciativo de “marginal” pode ser encontrado na frase “bandido bom é bandido morto”, para exemplificar o que poderia corresponder no contexto dos sujeitos aqui retratados. 3 A denominação do “sistema” na poética do rap é muito abrangente, mas basicamente assinala as opressões impostas aos sujeitos pretos e periféricos ao longo da história denunciados pelos rappers.

O CÁRCERE E O INFERNO O universo carcerário se coloca como um campo de guerra “pior que o Vietnã” extensão dos morros e favelas em que habitavam esses sujeitos por ora aprisionados. Esse poeta encarcerado é o homo sacer (AGAMBEN, 2002) contemporâneo, cuja vida já não tinha valor antes de adentrar no mundo do crime, ainda mais agora que está em débito com a Lei. Dessa forma, ao ser relegado enquanto sujeito de direito, o poeta-rapper “encarna” o portavoz dos “malditos da sociedade”: A palavra viva de mais de cinco mil homens/ Os verdadeiros porta-vozes da cadeia/ Apoiados pelos miseráveis, favelados, oprimidos e esquecidos pelo sistema/ De reabilitação de ladrão a trabalhador do gueto/ provando pra sociedade que o sistema não recupera ninguém/ pois foram resgatados pelo rap/ E assim, como Zumbi rompeu as correntes da opressão/ Detentos do rap quebrando as algemas do preconceito (DETENTOS DO RAP, Quebrando as algemas do preconceito, 2001)

Ao trazer essa introdução de um dos grupos que trabalhamos na busca de compreender o papel do rap na prisão4, passamos a apresentá-los: são dois grupos chamados Detentos do Rap, ou DTS5, e 509-E, que se formaram dentro do cárcere, mas não uma cadeia qualquer: o Carandiru, maior presídio da América Latina durante sua existência. O primeiro grupo se formou em 1996, e o segundo em 1999. Embora extinto em 2002, o Carandiru se consolidou como a pior lembrança da história carcerária brasileira: em 2 de outubro de 1992 ocorreu a incursão do batalhão de choque da polícia militar de São Paulo e deixou nada menos que cento e onze corpos inertes, sem vida, sem esperança, sem identidade e sem voz, como acontece aos vencidos ao longo das histórias oficiais. A partir das ruínas deixadas para trás com sua implosão, talvez no intuito de se apagar uma memória desses sujeitos vencidos, o vasto material que se produziu sobre o tema assume primordial importância, conforme aponta Paulo Carvalho: Hoje, o complexo arquitetônico do Carandiru existe, sobretudo, sob a forma de memória individual dos ex-internos e da ex-população de funcionários lotados na extinta e demolida instituição. Ou como manifestação da memória coletiva 4

Essas reflexões podem ser melhor compreendidas em minha dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em Literatura da UFSC, em março de 2015, intitulada Vozes do Carandiru: o rap de cárcere e os estigmas sociais, orientada pela professora Dra. Susan A. de Oliveira. 5 Usarei apenas a sigla, de ora em diante, para referenciar o grupo.

por meio da oralidade popular pautada em histórias que têm como paisagem o próprio Carandiru e seus personagens, fictícios ou não, que fortalecem o repertório simbólico da antiga penitenciária. E existe, também, pelas suas ruínas: fotos, vídeos, livros, música, cinema, dentre outras manifestações da linguagem artística, jornalística, científica, captadas e/ ou registradas, que interferem decisivamente sobre a compreensão dos atores sociais quanto a lembrar ou esquecer a barbárie ocorrida no dia 2 de outubro de 1992. (CARVALHO, 2011, p. 12)

O pavilhão nove, palco do massacre, abrigava réus primários e réus que ainda não haviam sido julgados pela justiça. O pavilhão nove abrigou os fantasmas de “marginais descartáveis” de uma sociedade que ignora - e prefere que assim continue - a ter que respeitar os direitos desses algozes, como explicita o DTS: “Seja feita a vontade perante a lei do réu/ se tiver que provar o amargo do fel/ Fleury dá risada vendo tudo pela Globo/ esperando que o massacre repita-se de novo/ aqui pavilhão nove terra de ninguém/ Cristo não teve aqui/ poucos dizem amém” (DTS, Gladiador do inferno, 2005). Ao referir o nome do governador do Estado de São Paulo à época (Fleury) - responsável pela autorização de entrada da PM no Complexo Carcerário, denota-se uma denúncia que se incorpora na performance do poema e ratifica também o “sistema” como o “outro” algoz nesse jogo onde imperam diferentes formas de violência. Portanto, esses dois grupos de rap reverberam, dentro do contexto histórico e social do país, a reivindicação pela memória dos enclausurados, tanto aqueles calados, apagados e desaparecidos em 1992 quanto tantos outros que ocupam esse espaço no país de terceira maior população carcerária atual6. Uma memória que vem “botar o dedo na ferida”, também, da atual situação dos presídios, onde afirmou o defensor público de São Paulo, Bruno Shimizu, repetirmos “um Carandiru” a cada três anos em nossos presídios7. O defensor se refere ao número de 120 presos mortos pelas forças de segurança do Estado dentro desses locais. É fato que temos diferentes tipos de violências que perpassam esse espaço, a exemplo das próprias guerras entre facções, mas é importante refletirmos sobre essa naturalização da atuação policial e o cada vez mais crescente o número de óbitos deixados por eles, tanto 6

Fonte:Reportagem intitulada Brasil passa a Rússia e tem a terceira maior população carcerária do mundo, 2014. Disponível em: . Acesso em 05 dez. 2015. 7 Fonte: Reportagem intitulada Prisões brasileiras têm um Carandiru a cada três anos, 2013. Disponível em: . Acesso em 05 dez. 2015.

dentro quanto fora da prisão, para que possamos compreender que tipo de crítica à violência o rap em geral aborda como pano de fundo a fim de se pensar em novas estratégias de discussão sobre segurança pública no país. As poéticas ácidas do DTS e do 509-E abordam problemáticas estruturais da prisão: a superlotação, a comida estragada, as brigas entre os detentos, e, claro, o trabalho da polícia que, segundo eles, aguardam uma desculpa para “atacar, emboscar, atirar e matar”. A memória dos mortos do massacre corporifica-se na voz desses poetas-rappers, que trazem à tona também a voz de outros detentos - quando estes participam das performances dos videoclipes gravados neste lugar, bem como cantam em coro os poemas musicados. Dessa forma pode-se compreender o sentido da antifonia musical (chamado e resposta) - conceito crucial das músicas diaspóricas negras, apontado por Paul Gilroy: Os diálogos intensos e muitas vezes amargos que acionam o movimento das artes negras oferecem um pequeno lembrete de que há um momento democrático, comunitário, sacralizado no uso de antífonas que simboliza e antecipa (mas não garante) relações sociais novas, de não-dominação. As fronteiras entre o eu e o outro são borradas, e formas especiais de prazer são criadas em decorrência dos encontros e das conversas que são estabelecidas entre um eu racial fraturado, incompleto e inacabado e os outros. A antífona é a estrutura que abriga esses encontros essenciais. (GILROY, 2001, p.168)

Nesse sentido, ainda conforme o autor, o papel dos músicos cumpre “um marco estético, político ou filosófico”, permitindo-nos depreender que o rap de cárcere, nesse trabalho, exprime uma coletividade por anos silenciada e ignorada. A precisão poética ao descrever o cenário da “indústria do crime” aponta que esse sujeito “marginal” - tanto no sentido daquele que está à margem quanto daquele que possui pendências com a lei - tem ciência do lugar que ocupa, mas para além disso, também sabe como funcionam os mecanismos impostos pelo “sistema”: Hoje sou o perigo que a sociedade criou/ O veneno que o sistema me contaminou/ [...] Vivemos de migalhas ao deus dará/ Sem escola, sem emprego e não aprendemos a votar/ O rico mais rico, o pobre mais pobre/ Um come caviar e o outro só se fode/ Pra melhorar, é a esperança na favela/ O passado se repete a mesma novela [...] Esses dia na TV vi um bicho esbravejar/ "aqui quem rouba não tem jeito, tem a índole má..."/ Disse mais, que pobreza não é motivo pra roubar/ Cada qual tem a sua cruz pra carregar/ Vai de embalo nas campanhas anti-violência/ Usa a faixa branca/ mas é só aparência/ Menospreza minha raça/ só sabe criticar/ Depois não peça a paz quando o bicho pegar (509-E, A indústria, 2000)

Ao explicitar uma crítica ao “sistema” que lhe contaminou, o sujeito poético se coloca numa posição de enfrentamento com essa estrutura que lhe foi imposta, embora saiba que cumpre também seu papel dentro desses “modus operandi”, como deixa claro em diversos poemas-musicais. O “poeta maldito” cujo papel de detento lhe foi literalmente sentenciado nega-se a ser apenas mais um número de prontuário e resolve utilizar sua própria voz - e também seu corpo - para metamorfosear-se esteticamente em “mais um sobrevivente” deste mundo “infernal”. Podemos, então, compreender as artes periféricas, de um modo geral, e o rap em particular, como a “dialética da marginalidade”, termo cunhado pelo professor João Cézar Rocha (2007). O objetivo dessa nova dialética é escancarar as desigualdades sociais e se opor à busca de conciliação, tal qual era previsto na “dialética da malandragem”, de Antônio Cândido. Embora o “malandro” e o “marginal” possam coexistir, este último possui uma ética de coletividade - expressa no rap de cárcere pelo apoio dos “mais de cinco mil manos” diferente daquele que, individualista, busca o status de “pessoa” em detrimento ao “indivíduo”, não importando que para isso tenha que trapacear seus próprios pares. A dialética da marginalidade pretende delinear essas diferentes expressividades presentes nas poéticas de resistência criadas por sujeitos periféricos, a partir de suas experiências, vivências e testemunhos. O professor assinala, ainda, que uma das precursoras deste movimento foi Carolina Maria de Jesus. Em suas palavras: Para ser mais preciso, estou lidando com a colisão entre esses dois modos de compreender o país, uma vez que não se trata da substituição mecânica de um por outro, mas, ao contrário, estamos vivendo uma “guerra de relatos”, para empregar a expressão de Nestor García Canclini. Uma vez mais, minha abordagem procura evitar a armadilha implícita em escolher tanto o modelo apologético quanto o crítico para analisar a formação social brasileira, como também a sua produção cultural contemporânea. Desse modo, proponho que a cultura brasileira contemporânea se tornou o palco para uma batalha simbólica (nem sempre) sutil. Por um lado, uma pontual crítica da desigualdade social tem sido desenvolvida. É o caso do romance “Cidade de Deus”, de Paulo Lins, para não mencionar a música dos Racionais MC’s, e os romances de Ferréz “Capão Pecado” e “Manual Prático do Ódio”. Por outro lado, a crença na velha ordem de conciliação de diferenças é mantida; tal é o caso do filme “Cidade de Deus” e de seu produto derivado, a série da Rede Globo, “Cidade dos Homens”. (ROCHA, 2007, p.31)

Assim, ao visualizar as leituras que o professor faz das duas vertentes que formaram o pensamento social brasileiro - o viés apologético e o viés crítico - podemos aludir que os paradigmas dessas leituras podem conduzir tanto para os mitos da “democracia racial”, do “homem cordial”, quanto para um possível “complexo de vira-latas”8 da identidade nacional. Mas o que fica evidente nessa “guerra de relatos” é, por um lado, se busca uma conciliação de um projeto social e de nação com conceitos universais de igualdade e, por outro lado, se expõe um projeto que deprecia a identidade brasileira em detrimento de outras que possam ser tidas como “melhores” no imaginário (pós) moderno. O professor ressalta que nem uma nem outra são benéficas para se pensar o que ocorre no momento, já que nem a conciliação nem a diferença são capazes de dar conta da diversidade dos artefatos simbólicos e culturais representados nas artes contemporâneas. A dialética da marginalidade rompe com tais paradigmas, ao expor essas e outras problemáticas em suas obras. “Novos” autores, “novos” meios de produção e “novas” formas de divulgação são forjados para levar essa arte aos seus pares. Aqui, começamos a compreender o papel da performance do rap como primordial, e temos tanto a performance linguística quanto a performance corporal e da voz - pois vale lembrar que o mundo letrado ainda não é acessível a todos, como bem lembra o professor. Podemos ver esses detalhes como forma enfrentamento aos modelos culturais dominantes provocados desde o princípio por um movimento que forja seu nascimento a partir das margens da sociedade9. Ou ainda, conforme assinala Zumthor: É por isso que a performance é também instância de simbolização: de integração de nossa relatividade corporal na harmonia cósmica significada pela voz; de integração da multiplicidade das trocas semânticas na unicidade de uma presença. (ZUMTHOR, 1997, p. 157)

Quanto aos meios supracitados, o rap de cárcere também teve suas peculiaridades nos modos de produção e divulgação. O DTS gravou seu primeiro álbum em 1998 sem sair sequer

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Muitos são os teóricos que discutem esses “mitos” na formação do pensamento social brasileiro, articulados a partir de obras como “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Hollanda, e “Casa grande e senzala”, de Gilberto Freyre. O termo “complexo de vira-latas”, foi cunhado por Nelson Rodrigues em uma crônica sobre o futebol brasileiro. A partir de então, alguns teóricos passaram a usá-lo para explicitar o viés crítico ao pensamento sobre o Brasil. Neste trabalho ficaria demasiado complexo aprofundar essas discussões, portanto indico a leitura do texto do professor João Cézar Rocha aqui utilizado para melhor compreensão dos temas, entre outros autores. 9 Vale ressaltar que o professor trata principalmente de romances e filmes brasileiros, mas a partir do ponto de vista adotado neste trabalho, o rap assume papel central nessa dialética.

uma vez do presídio10 e vendeu mais de 30 mil cópias. O 509-E - que além do nome do grupo era também o número da cela dividida por Dexter e Afro-X no pavilhão sete do Carandiru gravou seu primeiro álbum em 2000, além de participarem do documentário Entre a luz e a sombra, de Luciana Burlamaqui (2009). É possível observar neste documentário as saídas do grupo para apresentações de shows conseguidos com um aval de um juiz mais humanista, que também aparece ao longo da produção. Os dois grupos contavam, ainda, com a “irmandade” de grupos e rappers consagrados como Racionais MC`s e MV Bill, tanto na produção quanto na divulgação de seus trabalhos do “lado de cá das grades”. Por último, como registro da memória visual do Carandiru, temos três videoclipes11 dos dois grupos mostram o cenário da prisão, além da já mencionada participação dos próprios detentos durante a performance. É nesse sentido também que podemos aludir ao “realismo afetivo” explicado pelo professor Karl Erik SchØllhammer: Assim como nas outras versões do realismo extremo, os aspectos que ressaltam dessa estética atingem as fronteiras entre realidade e a representação, e também entre o sujeito autoral e as subjetividades envolvidas na realização da obra. Estabelece-se, portanto, uma chamada sensitiva à ação subjetiva no encontro feliz com a obra, presente em tempo e espaço, pela abertura operada a uma dimensão comunitária e participativa (SCHØLLHAMMER, 2013, p. 172).

O “realismo afetivo” envolve afetos e perceptos, segundo o autor, que permitem consolidar ética e estética nas artes contemporâneas, que trazem a violência como a principal protagonista. Esses afetos perpassam tanto o autor da obra quanto o receptor, mas em sentidos que extrapolam temporalidades e espacialidades, permitindo ser ao mesmo tempo representação e não representação da vida. É certo que muitas vezes os rappers afirmam narrar “verdades” e “testemunhos”, mas ao observarmos esse material poético no tempo atual podemos depreender o quanto de “afetos” persistem e outros novos que se apresentam para elaborar uma compreensão dessas memórias fragmentadas e por tanto tempo caladas, ou seja,

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A gravadora Fieldzz levou um estúdio móvel ao Carandiru para garantir a produção. Disponível em: FINOTTI, Ivan. Compor na cadeia é fácil: duro é gravar CD. Folha de São Paulo. São Paulo, p. 1-1. 31 jul. 1998. Disponível em: . Acesso em: 12 mar. 2013. 11 “Triagem” e “Só os fortes” do 509-E, e “Casa cheia” do DTS são os videoclipes que foram gravados dentro do Carandiru.

não há a fixidez daquela representação tal e qual nos realismos histórico e crítico, tampouco a fixidez de uma única leitura, senão a ampliação de visões e percepções da obra12. Ao evocar um realismo que se utiliza de índices - a exemplo de nomes “reais”, fotografias, entre outras (Ibidem) - e performances, tanto linguísticas quanto corporais, o rap se faz vida e obra de seus autores, que se fundem aos narradores e/ou personagens das histórias contadas e cantadas a partir do pano de fundo da prisão brasileira. É importante, ainda, observar que a junção de todos esses signos e índices podem reestruturar o mosaico identitário daquele que se encontra no limbo entre a razão e a loucura, ou entre a vida e a morte, pois sobreviver mais um dia no “cômodo do inferno” parece não ser tão fácil. O principal objetivo torna-se então elaborar-se enquanto palavra e ação para driblar as intempéries deste lugar hostil. “MAIS UM SOBREVIVENTE”13 Ao juntarmos a “dialética da marginalidade” e o “realismo afetivo” nas produções poético-musicais do rap de cárcere, é possível observarmos uma estética de sobrevivência que possibilita a legitimidade da fala desse poeta. Já não são apenas números na contagem diária dos presos, já não são mais “aqueles que vegetam” e definham nas celas solitárias, com medo de que a morte venha lhes visitar. São sujeitos que se reerguem pela “salvação através das palavras do rap”, como afirmam em entrevistas. É a palavra se tornando metaforicamente na “arma” contra o sistema opressor que lhe estigmatizou, como nos diz Dexter: Acharam que eu estava derrotado/ Quem achou estava errado/ Eu voltei/ eisme aqui/ Tô firmão [bem]/ Se liga aí/ Vou te apresentar o que você não conhece/ se liga bem/ vê se não esquece/ [...] É/ seu pesadelo tá de volta/ no puro ódio/ cheio de revolta/ vou te apresentar o que você não conhece/ anote tudo/ vê se não esquece/ você verá que não deixei me envolver/ pra sobreviver por aqui tem que ser/ mesmo no inferno é bom saber com quem se anda/ se não embaça [complica]/ vira/ desanda/ [...] Cadeia/ um cômodo do inferno/ seja no outono/ no inverno/ Sem anistia/ todo dia é foda/ cadeia/ Aí maluco/ tô fora/ Continuar no crime/ não to afim/ não quero mais essa vida pra mim. (509-E, Oitavo anjo, 2000).

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Ressalte-se que, segundo o autor, os aspectos afetivos e performativos traçados no realismo afetivo pertencem à estética literária em geral. 13 Este subtítulo remete à rima do poema-musical Só os fortes, do 509-E, 2000.

O poeta-rapper consegue através das rimas elaboradas reconstituir o grande mosaico de sua vida pré e posterior ao crime, mas longe de se vitimizar ele prefere uma metarreflexão pela ficcionalização de cenas de assaltos, troca de tiros com a polícia, crônicas cotidianas fatídicas convertidas em poesias carregadas de dor, sofrimento e morte, dispostas a serem “descarregadas” em nossos ouvidos tal qual uma arma cujas munições surpreendem e afetam. Também, ao narrar trajetórias dos sujeitos “bandidos” e banidos da sociedade, surgem preocupações que se refletem acerca do modo de vida pós-prisão, porque os resquícios de estigmas podem ser prejudiciais ao ex-presidiário quando for procurar um emprego: “O pesadelo me assola o tempo inteiro/ lá fora tá problema de arrumar emprego/ até mesmo pra quem não esconde um passado/ ao contrário de mim/ ex-presidiário” (DTS, Mó saudade, 2005). Mas é importante perceber como esses estigmas que lhes são lançados, de uma hora para outra são convertidos positivamente numa estética de autoaceitação e reconfiguração de conceitos como “marginal”, “ladrão”, “presidiário”, embora isso seja característica geral das artes periféricas contemporâneas, que se colocam na posição de enfrentamento e resistência cultural, propagando lemas como “nós por nós”, ou seja, eles pretendem contar suas próprias histórias com suas vozes e formas diferentes das tradicionais. Vemos essa conscientização na voz de Afro-X ao reproduzir a performance de uma “Carta à sociedade”: Carandiru,20 de novembro de 1999. Apenas mais um entre 365 dias iguais/ Provando do veneno e do gosto amargo do sistema/ Lágrimas de sangue se misturam na taça do ódio, abandono, sofrimentos, lamentos/A fita não foi apaziguada/ outra vez as escadas vão ser tingidas de vermelho/ misericórdia é raridade/ O amanhã pertence só a Deus/ uma par de feridos/ vários mortos ficaram pelo caminho/ mas nossa vontade de vencer é bem maior/ A gente não tá engrupido com a frase:"Vai melhorar"/ 500 anos, não temos motivos nenhum para comemorar/ Nosso governo é tão justo,que construiu mais presídios e menos escolas/ Os pretos aqui Afro-X e Dexter/ e uma par de manos que são considerados um perigo pra sociedade/ têm uma missão:contrariar mais uma vez a estatística e a justiça cega/ mostrando principalmente a si próprio/ que ser humano é capaz de regenerar-se. (509-E, Carta à sociedade, 2000)

A reconstrução da vida perpassa pela metamorfose das palavras que misturam o passado, o presente e o futuro deste “homem fora da lei” na tentativa de se prever uma “sociologia de emergência” que, segundo Boaventura de Souza Santos:

A sociologia das emergências consiste em substituir o vazio do futuro segundo o tempo linear (um vazio que tanto é tudo como é nada) por um futuro de possibilidades plurais e concretas, simultaneamente utópicas e realistas, que se vão construindo no presente através das actividades [sic] de cuidado. (SANTOS, 2002, p. 254)

Ora, o presente do poeta-rapper abriga memórias que contradizem a possibilidade de um futuro melhor para si, no entanto, é nas palavras da arte do confronto que podem se constituírem as “atividades de cuidado”. São cuidados direcionados ao menor adolescente, potencial futuro presidiário; cuidados em demarcar os seus “manos”, nomeados e que cumprem um papel crucial nessa tentativa de “regeneração”; os sonhos e fantasias de “rolês” (passeios) com os seus amigos ou a divinização da liberdade transformada em terceira pessoa do singular feminino, que lhe dão expectativas de um novo dia: Pela janela/ Eu vejo a cara dela/ Saudades do rolê/ saudade da plateia/ Notícias de como anda tudo/ Notícias de como anda tudo depois desses muros/ Que me separa/ que me limita/ que tirou minha conquista/ Modificou minha vida/ mas eu não desisto/ Por ela eu persisto/ se não por ela/ Eu acabava com isto/ Quem abusa dela/ traz luto pra favela/ Quem aqui não está/ nem sabe o que é ela [...]Por ela ladrão/ eu iria até o espaço/ Reconquistá-la talvez certa prova/ Custe o que custar/ agora é o que me importa/ Outra cultura aqui dentro/ Aprendizado lento/ sem ela chamado de detento. (DTS, Apenas mais um, 2001)

A falta “dela” retrata quadros de distanciamento da vida através das grades das janelas onde o poeta enclausurado “vê o sol nascer quadrado”, ou observa o metrô passar e imagina quais pessoas podem estar lá dentro e querer visitá-lo no próximo domingo. O dia de visita parece ser o momento mais esperado pelo detento, mesmo que isso signifique inclusive a penalização dos visitantes, através das revistas vexatórias14, conforme comenta uma voz feminina em Mó Saudade, do DTS (2005): “agora até espelho tão botando na gente”. Pode-se perceber que a valorização da mulher do detento aqui se contrapõe com algumas críticas sobre o machismo presente em algumas performances e letras de rap, embora esse assunto seja muito mais amplo. As subjetividades e contradições presentes nos discursos dos rappers da prisão permitem-nos visualizar um sujeito fragmentado e transpassado pela condição de enclausuramento que ajuda a compor através da arte os dois movimentos políticos propostos 14

As revistas vexatórias são caracterizadas pela conferência através de espelhos nas partes íntimas das visitantes, tanto mulheres quanto crianças, para verificar se não carregam nada “dentro” de si. Tal ato é abominado por Comissões de Direitos Humanos e teve campanha liderada pelo rapper Dexter no ano de 2014. Muitos estados aboliram tais revistas, no entanto, em diversos locais elas continuam ocorrendo.

por Gilroy, e que dialogam tanto com as “sociologias de emergências”, quanto os conceitos supracitados; a “política da realização” e a “política da transfiguração”: a primeira explicita que “uma sociedade futura será capaz de realizar a promessa social e política que a sociedade presente tem deixado irrealizada”; e a segunda aponta o “surgimento de desejos, relações sociais e modos de associação qualitativamente novos no âmbito da comunidade racial de interpretação e resistência” (GILROY, 2001, p.95-96). Ora, o rap vem “realizando” no país, desde 1980, a projeção de uma crítica a um passado-presente cujos protagonistas e audiência já começaram a perceber e intervir em mudanças, pois essa cultura ocupa hoje um papel central na formação de consciência desses sujeitos, basta visualizarmos a crescente proliferação do movimento, inclusive nas mídias tradicionais15. Assim, as diferentes perspectivas elaboradas no rap, desempenham um papel promissor no que diz respeito a trazer à tona a voz dos excluídos e marginalizados, bem como escrever uma história que por eles está sendo contada, cuja reflexão futura possa transformar e “transvalorar” (Ibidem) os valores simbólicos, artísticos e culturais do presente em novas concepções e compreensões da arte x vida x arte. Esse trabalho ainda está longe de ser concretizado, mas o que se pretendeu aqui foi apontar apenas um viés possível que pode potencializar a visibilidade a partir do rap de cárcere para extrapolar os espaços a que foi relegado e nos contar um pouco do que acontece dentro dos muros da prisão. É importante nesse percurso que se pense o papel do pesquisador também, para que se busquem novas metodologias e negociações dialógicas com os produtores dessas artes, propiciando assim, novas sensibilidades de leitura e acesso aos bens culturais periféricos.

15

O rap por muito tempo evitou se inserir em programas de rádio e televisão tidos como hegemônicos, no entanto, percebe-se que o momento é de transição. Tais discussões serão amadurecidas durante minha pesquisa de doutorado.

ANEXOS

Capa do álbum do grupo Detentos do Rap, Apologia ao crime, 1998. Disponível em: . Acesso em 12 maio de 2014.

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