A estética do real como solução para a crise da imagem no telejornalismo.

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VII POSCOM
Seminário dos Alunos de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC-Rio
22,23 e24 de novembro de 2010
A estética do real como solução para a crise da imagem no telejornalismo.
Ludimila Santos Matos.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Resumo
O presente estudo propõe-se analisar o momento da crise das representações e adoção de estéticas do real como uma tentativa de recuperar o poder de encantamento antes inerente à natureza desta, especificamente no telejornalismo. A base deste estudo centra-se nos paradigmas da imagem propostos por Santaella e da construção do real na contemporaneidade, observando o recorrente pressuposto da saturação das imagens na pós-modernidade, abordado por Nelson Brissac. O presente artigo recupera também a figura do flaneur e do olhar do estrangeiro nesse processo de restabelecimento do lugar das imagens.

Palavras-chave: Crise das Representações; Crise das Imagens; Cinema; Telejornalismo.

O LUGAR DAS IMAGENS
Em "Imagem, Cognição e Semiótica", Lúcia Santaella propõe uma análise das imagens instituindo três paradigmas. Para tanto, Santaella apropria-se do termo sob uma perspectiva didática, com objetivo de "caracterizar as ciências consensualmente consideradas como tais" (SANTAELLA, p.158, 1998). A autora delimita, então, três momentos da imagem e cada um deles aborda as transformações que caracterizaram a ruptura entre esses pressupostos por ela intitulados pré-fotográfrico, fotográfico e pós-fotográfico. Santaella aprofunda cada um detes sob seis aspectos: 1- os meios de armazenamento da imagem; 2- o papel do agente produtor; 3- a natureza das imagens em si; 4- as imagens e o mundo; 5- os meios de transmissão e; 6- o papel do receptor.
O paradigma pré-fotográfico
De acordo com Santaella, esse paradigma é caracterizado pela "produção manual, acentuadamente matérica" (p.163, 1998) que qualifica a pintura, o desenho e as gravuras observando seus modos de produção. Aqui a imagem, observada pelo viés desses modos de confecção, depende de um suporte para a projeção do seu instrumento principal queé o próprio corpo de quem a produz. O pincel é tido como um prolongamento da mão e é gerado um objeto único. O suporte é o próprio meio de produção, visto que é único e irrepetível. É o mais perecível dos suportes para imagem. O agente produtor imagina para figurar, o olhar do sujeito "dá corpo ao pensamento figurado" (SANTAELLA, p.170, 1998), a natureza da imagem remete à figuração por imitação. Retomando Santaella, a relação das imagens pós-fotográficas com o mundo sugerem uma metáfora, o "real é imaginado" (p.172, 1998). Seu meio de transmissão, assim como seu meio de produção, é o próprio suporte, cuja delicadeza e fragilidade exigem armazenamento em museus, por exemplo. "O acesso a elas exige o transporte do receptor" (SANTAELLA, p. 173, 1998). Neste paradigma o receptor tem a função de contemplar a imagem.
O paradigma fotográfico
Caracteriza-se por meio do "afastamento do pintor", o afastamento da mão na tela e pela imagem como resultado de um processo mecânico. Neste pressuposto não é mais a mão que se prolonga no pincel e, sim, o olho que se prolonga na câmera. O sujeito age sobre o real por intermédio do enquadramento escolhido, capturando fragmentos deste. Os meios de produção da imagem fotográfica possibilitam à imagem ganhar "eternidade". No entanto, perde em unicidade. O negativo do filme é exibido, resistente, durável e copiável.

Reprodutíveis a partir dos negativos passíveis de serem revelados a qualquer momento, as imagens do paradigma fotográfico são imagens típicas da era da comunicação de massa. É assim que o meio de transmissão mais legítimo para as fotografias não é o porta-retratos, mas os jornais, as revistas os outdoors, etc. (SANTAELLA, p173, 1998)

A popularização desse meio de produção possibilita a identificação do início de uma era de exacerbação das imagens. Seu agente produtor rouba e captura o real, por meio de uma reação (que seria o olhar pela tela e a captura pelo movimento do dedo no obturador), recortando a realidade de acordo com um ponto de vista particular. A natureza dessa imagem é reproduzida por reflexo. Sua relação com o mundo seria uma representação encenada ou recortada sobre o real; uma imagem documental, cujo conteúdo é irrefutável. Está no centro da relação entre o real e sua imagem. A forma de recepção dessas imagens está diretamente vinculada às percepções da memória e da identificação. É direcionada à observação.
O paradigma pós-fotográfico
A mudança que marca o início do momento pós-fotográfico que , de acordo com Santaella (p.167, 1998), remonta ao surgimento da infografia. A partir de então, o suporte que viabiliza a imagem é resultado da combinação entre o computador e uma tela de vídeo. A imagem infográfica é a combinação de números, que constituem pixels, codificadas em diálogo entre coordenadas cartesianas e cromáticas.
O paradigma atual é definido por três fases que delimitam o modo de confecção da imagem: 1- a elaboração de uma matriz numérica; 2- a inserção dessa matriz numérica num modelo decodificável e; 3- a decodificação das informações constantes no algorítimo que equaciona essa imagem. Baseado nisso, Santaella afirma que a infografia "é o equilíbrio perfeito entre símbolo, índice e ícone". (p.167, 1998)

O que preexiste ao pixel? Um programa, linguagem, números. O que está implícito num programa? Um modelo. O ponto de partida da imagem sintética já é uma abstração, não existindo a presença do real empírico em nenhum momento do processo. Daí ela ser uma imagem que busca simular o real em toda sua complexidade, segundo leis relacionais, que o descrevem ou explicam, que busca recriar uma realidade virtual. (COUCHOT In SANTAELLA, p.167. 1998)

No momento pós-fotográfico as imagens são armazenadas na memória do computador, permitindo sua projeção de forma bidimensional. Portanto, não se trata de imagens, mas de arquivos, imagens abstratas. O produtor (o programador) deve ter conhecimento para manipular os dados que constituem essa imagem. Surge a necessidade de agir sob o real, sem prevalecer a rigidez fixa de um único olhar, que passa a ser descentralizado. A natureza do infográfico é uma "simulação por modelização", segundo Santaella (p.171, 1998) e a relação da imagem com o mundo remete à virtualidade, "funciona sob o signo das metamorfoses" (SANTAELLA, p.172, 1998).
Santaella posiciona a imagem pós-fotográfica na "era da transmissão individual e, ao mesmo tempo, planetária da informação". Nesse momento há uma afirmação pela possibilidade da eternidade e cópia infinitas. Por serem abstratas, suas formas de transmissão são mais fluídas, maleáveis e disformes que nos outros dois paradigmas. Em relação ao receptor, as imagens do paradigma pós-fotográfico vincula-se à interatividade. Para a autora "ao apertar as teclas e mouses, essas imagens estabelecem com o receptor uma relação quase orgânica, numa interface corpórea e mental (...) até o ponto de o receptor não saber mais se é ele que olha para a imagem ou a imagem para ele" (p.175, 1998).
No âmbito da convergência das mídias e no ambiente da rede mundial de computadores, novas maneiras de disseminação de conteúdos de toda natureza são disponibilizados a quem tem acesso à Internet, potencializando as características que constituem o momento pós-fotográfico das imagens. Neste estudo é relevante observar a lógica da participação do usuários na disseminação de conteúdos audiovisuais na rede, remetendo à recente ferramenta de hospedagem de vídeos, o Youtube.com.
O site foi fundado em fevereiro de 2005, o Youtube.com representa um facilitador no reposicionamento dos atores dos processos de produção e disseminação dos conteúdos informacionais. Seu slogan, "Tube yourself" (algo que pode ser traduzido como "televisione você mesmo") incentiva a participação do usuário através de uploads de vídeos dos mais diversos conteúdos.
Sob a perspectiva dos processos de digitalização, a convergência, palavra em voga nas publicações acadêmicas mais recentes, tem instaurado o computador cada dia mais como acessório indispensável para o exercício das mais variadas atividades, quase como uma extensão do corpo humano (MCLUHAN, 2005). Neil Postman, autor de Tecnopólio, entende que "o computador define nossa era ao sugerir uma nova relação com a informação, com o trabalho, com o poder e com a própria natureza" (POSTMAN, 1994, p.117).
A Revolução Industrial, no século XIX seria o início da instituição de novas práticas que resultariam no momento atual. Walter Benjamin, já tratara da reprodutibilidade técnica provisionando a realidade contemporânea, na qual tudo é catalisado pela digitalização. Em seu texto A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, Benjamin exemplifica como a reprodutibilidade técnica transformou a recepção das obras de arte:

Em primeiro lugar, relativamente ao original, a reprodução técnica tem mais autonomia que a reprodução manual. Ela pode, por exemplo, pela fotografia, acentuar certos aspectos do original, acessíveis à objetiva [...], mas não acessíveis ao olhar humano. Ela pode, também, graças a procedimentos como a ampliação ou a câmera lenta, fixar imagens que fogem inteiramente à ótica natural. Em segundo lugar, a reprodução técnica pode colocar a cópia do original em situações impossíveis para o próprio original. Ela pode, principalmente, aproximar do indivíduo a obra, seja sob a forma da fotografia, seja do disco. (BENJAMIN, 1994, p.168)

Embora Benjamin tratasse em seu estudo especificamente sobre as artes, é possível apropriar-se de seus conceitos e aplicá-los à voluptuosa multiplicação dos conteúdos amadores na rede, numa reconfiguração do que o autor define como cópia. Observando-se a transição dos conteúdos de imagens e áudio para bits, facilitando o deslizamento destes conteúdos para a rede e entre dispositivos móveis (aparelhos de telefone celular, Ipod`s, aparelhos de mp4, mp5...) é possível recuperar a reprodutibilidade de Benjamin reposicionando-a na atualidade. No contexto da modernidade, a "Interatividade" tem sido amplamente citada tanto no ambiente científico, quanto na vida social, na própria Internet, e em tantos outros setores da sociedade. Mas o termo ganhou notoriedade a partir da implementação da Web 2.0. Que, de acordo com Alex Primo trata-se da

(...)segunda geração de serviços online e caracteriza-se por potencializar as formas de publicação, compartilhamento e organização de informações, além de ampliar os espaços para a interação entre os participantes do processo. (PRIMO In ANTOUN, 2008, p.101)

Para entender a relação do termo e suas respectivas implicações com a produção e divulgação de conteúdos na rede, é necessário compreendermos o que a terminação define. Neste estudo adotou-se a definição do filósofo contemporâneo Pierre Lévy, para quem "o termo 'interatividade' em geral ressalta a participação ativa do beneficiário de uma transação de informação" (1999, p. 79). O autor desconsidera o receptor absolutamente passivo, pois o mesmo, ainda que sentado em frente à televisão, decodificaria o conteúdo, desta forma, interpretando os dados. Ainda nos apropriamos aqui de outra idéia de Lévy, na qual o mesmo argumenta sobre as possibilidades para formas de interação entre a televisão e seus telespectadores, surgidas com a instituição do ciberespaço:

(...) a digitalização poderia aumentar ainda mais as possibilidades de reapropriação e personalização da mensagem ao permitir, por exemplo, uma descentralização da emissora do lado do receptor: escolha da câmera que filma um evento, possibilidade de ampliar imagens, alternância personalizada entre imagens e comentários, seleção de comentaristas etc. (LÉVY, 1999, p.79)

Ao adaptar a idéia de Lévy de reapropriação e personalização da mensagem, observando a Internet, é possível constatar a materialidade do pensamento do filósofo moderno nas práticas possibilitadas pelo Youtube.com. Os usuários têm a chance de postar todo e qualquer conteúdo em vídeo, desde depoimentos, opiniões sobre qualquer tema, portifólio profissional, vídeos de família e flagrantes, entre outros, reconfigurando completamente as relações entre produtor, receptor, formas de armazenamento e transportes das imagens.

TUDO É IMAGEM
Na história da humanidade "o olhar" e a importância das imagens sofrem modificações possibilitadas pelas tecnologias que surgem e modificam os mais variados modelos de interação com o que é definido por real e suas representações, especialmente a partir do paradigma pós-moderno, cujas relações com as imagens são cada vez mais mediadas pelas tecnologias. As mudanças ocorridas nas estruturas de funcionamento, ordenamento e sociabilidade das cidades, nas escolas arquitetônicas, nos padrões de arte, nas formas de comunicar trouxeram alterações para a definição de realidade. O momento atual, no entanto, é caracterizado pela velocidade e pela movimentação contínua e ininterrupta. Assim, como uma consequência dessa "alta velocidade", fortemente influenciada pelas tecnologias, "o mundo se converte num cenário, os indivíduos em personagens (...) quanto mais rápido o movimento, menos profundidade as coisas têm" (PEIXOTO In NOVAES, p.361, 1988).
O mundo está "superficializado" e, segundo Nelson Brissac (In NOVAES p.361, 1998), "a cidade contemporânea corresponderia a este novo olhar", um olhar raso, rápido e desatento. No artigo "O olhar do estrangeiro" o autor constrói de forma sucinta, porém relevante, um pequeno quadro evolutivo das cidades para uma compreensão desse momento de superficialidades. Enquanto, o mesmo, afirma que o movimento rápido elimina a profundidade das coisas, explica que

As cidades tradicionais, ao contrário, eram feitas para serem vistas de perto, por alguém que andava devagar e podia observar os detalhes das coisas. Um prédio feito para ser observado por quem passa na calçada, a pé, pode ser ornamentado. É através de suas formas arquitetônicas que ele nos diz o que ele é. Um topo recortado nos sugere um castelo medieval, marquises decoradas remetem a uma estrutura futurista. A arquitetura tradicional constrói a representação. (PEIXOTO In NOVAES, p.361-362, 1988)

No contexto dessa cidade tradicional encontra-se a figura do flaneur, "o indivíduo que vivia na rua como se estivesse em casa" (PEIXOTO In NOVAES, p.362, 1988), e a possibilidade do olhar correspondido, ainda segundo Brissac, "de um olhar nos olhos". Para ele, na cidade moderna, contemporânea, as construções, a arquitetura para o olhar, para o detalhar, perde lugar para a construção de fachada, diluída na paisagem e nas imagens e que são construídas para olhares fugazes. Aqui é possível observar a cultura do simulacro, na qual
toda arquitetura pós-moderna consiste nesta transformação do prédio em mural, letreiro, em tela. Painéis luminosos que reproduzem castelos medievais (...). Em vez de construir a representação, se representa a construção (PEIXOTO In NOVAES, p.362, 1988).

Brissac afirma ainda que na recente conjuntura a realidade parece ser constituída de um hiper-realidade, diluindo as fronteiras entre real e representação. "As imagens passaram a construir elas próprias a realidade (...). Entramos na era da produção do real" (In NOVAES, p.362, 1998). Ao resignificar as imagens e realocar seu papel flexiona-se, por consequencia, o lugar das identidades promovendo o reposicionamento dos referenciais ou, talvez, contribuindo para a própria anulação dos mesmos. O "atropelamento" dos homens pelas imagens afasta deste a possibilidade do olhar dotado de distância, o olhar descolado, o olhar do flaneur, destituindo a imagem do poder do encantamento, retomando a perda da aura. Ao aproximar, exaustivamente, as imagens do homem despindo-a do que nela constituía-se sagrado, de encantador.

Esta exigência de distância (...) é um olhar hoje em extinção. A tendência no mundo moderno, da reprodução técnica, da cópia, é se apropriar das coisas. Aproximar-se de tudo. Não há mais tensão entre perto e longe. (BRISSAC, p.73, 1992)

Esta generalização das imagens, embora não tenha sido inaugurada com as tecnologias intrínsecas às teles, não é equivocado afirmar que a popularização de artefatos e interfaces que facilitam o transporte de imagens sintéticas tenha colaborado em um processo de catalisação do esvaziamento das imagens. Principia-se a era do clichê, na qual as imagens são potencialmente repetidas, reutilizadas, re-editadas, reproduzidas, re-significadas. Tudo é imagem. Na contemporaneidade não é mais possível construir o palpável sem uma representação imagística. É necessário ver. Em consequencia, o valor imagético é convulsivamente reduzido, seu impacto cada vez menos "sublime".
"A realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a base da nossa sociedade", já dizia Guy Debord em 1967 (DEBORD, p.15, 1997). As afirmações de Debord em "A sociedade do espetáculo" parecem cristalizadas no bojo da sociedade contemporânea. O pós-moderno parece trazer consigo um arcabouço de crises: crise das identidades, crise econômica, crise dos meios de comunicação, crise da indústria cinematografia, fonográfica, entre tantas outras. Desencadeia-se uma crise das imagens.

A CRISE DAS IMAGENS E AS ESTÉTICAS DO REAL
Desde a fotografia, a produção das imagens é acompanhada pela idéia de captura do real. Aqui, faz-se relevante uma análise focada no cinema, cujas influências modelaram os produtos televisivos que caracterizaram o veículo, contribuindo também para a cristalização de formatos do telejornalismo. A conceituação do termo "real", porém, vem gerando, ao longo da história dos estudos sobre a cinematografia, discussões e opiniões controversas. As primeiras polêmicas a respeito desta temática remontam às indecisas definições para real e realidade e aos filósofos antigos. Com intuito de contextualizar a discussão traz-se aqui Nelson Brissac Peixoto, sociólogo brasileiro que, por exemplo, elaborou idéias curiosas a respeito da construção do real na contemporaneidade, observando o recorrente pressuposto da saturação das imagens na pós-modernidade, aproximando-se dos estudos de mídia, recorte de interesse central para esta investigação. Segundo ele:
[...] a banalização e a descartabilidade das coisas e imagens foi levada ao extremo. [...] Tradicionalmente, o pensamento ocidental fundou-se no princípio da representação: as imagens e os concertos serviam para representar algo que lhes era exterior. [...] As imagens passaram a constituir elas próprias a realidade. Não se pode mais trabalhar com o conceito tradicional de representação, quando a própria noção de realidade contém em seu interior o que deveria representá-la. Torna-se difícil distinguir o que é real e o que não é. (BRISSAC in NOVAES, 1988, p. 361-362)
Transportando as idéias para um local mais próximo ao campo de estudo das comunicações, faz-se necessário localizar algumas interpretações do conceito "Estéticas do Real" no cinema e no audiovisual. Andrew Tudor, em seu livro Teorias do Cinema: arte e comunicação (1985), contrapõe as idéias de Bazin e Kracauer sobre a natureza realística do meio. Segundo Tudor, Bazin trata da "natureza específica" do médium e, essas características específicas da linguagem cinematográfica estariam baseadas na fotografia. De acordo com Bazin, ainda, a essência do cinema residiria no seu poder de pôr as realidades à mostra. "Há uma afinidade natural entre o cinema e o registro e a revelação da realidade, uma afinidade que se torna o axioma central da estética realista" (TUDOR, 1985).
Já para Kracauer, as tecnologias teriam afastado o ser humano cada vez mais do real e este "tocaria a realidade somente com as pontas dos dedos" (TUDOR,1985). O desamparo religioso despertaria nesse homem uma necessidade de um resgate da realidade, que só seria possível através do cinema e uma estética realista. Para Tudor, é necessário resgatar os realistas do século XIX, que enxergavam no novo médium um revelador do mundo em frente às lentes como verdade absoluta. Desse ponto de vista, qualquer ação humana tem efeito formativo (interferência), mesmo uma simples angulação em busca da melhor luz.
Ilana Feldman, em seu O apelo realista: uma expressão estética da biopolítica (2008), articula que o capitalismo contemporâneo "capitaliza, permanentemente, a vida ordinária e a dimensão estética da experiência dos sujeitos. Ao fazer da vida, dos corpos, do imaginário, dos modos de produção subjetiva, da experiência estética, da comunicação e da informação seu núcleo vital e fonte de inesgotável lucratividade, o capitalismo pós-industrial operaria então esteticamente, no seio de um regime de visibilidade, de sensibilidade e de verdade [...]. Quando a vida e as imagens se tornam resistência e foco de poder, por meio dos constantes apelos das indústrias comunicacionais, informacionais e do entretenimento à "vida real", à "realidade" e à "autenticidade", cabe problematizar este movediço regime de visibilidade. Feldman aborda a renovação da narrativa do espetáculo nas mídias audiovisuais e sua inclinação crescente ao que a autora denomina "produção e dramatização da realidade". Numa época onde a "saturação midiática", a "hipertrofia dos campos da comunicação e do audiovisual" e o "incremento de uma convergência de mídias" caracterizam o cenário midiático, o apelo realista viria caracterizar e corroborar as narrativas do espetáculo.

Como se vê na proliferação de reality shows, imagens amadoras utilizadas pelo telejornalismo, acontecimentos não-ficcionais incorporados pela dramaturgia e toda sorte de flagras picantes, flagrantes policiais e vídeos caseiros disponíveis na Internet, além de inúmeros títulos do cinema brasileiro mainstream dos últimos 4 anos e de um cinema contemporâneo prestigiado no circuito de festivais internacionais, essas operações narrativas, marcadas, soberanamente, por um apelo realista, reduzem muitas vezes a imagem e a sua indicialidade, vascularizando pelo corpo social o boom de um tipo de "realismo" vinculado à apreensão de autenticidade das imagens amadoras. (FELDMAN, 2008, p.3)

Cada novo paradigma que toma corpo no campo das Ciências esboça outras métricas de desenvolvimento das áreas. No cenário das mídias audiovisuais é de interesse deste estudo enfocar como a "saturação midiática", abordada por Feldman, tem afetado os tradicionais modelos dos produtos cinematográficos e televisivos, situado aqui, mais especificamente, na produção do telejornalismo.
O pressuposto básico da televisão é a imagem, esta é sua matéria-prima. Sendo o telejornalismo um produto originalmente televisivo, sua essência também se constitui sob o código da imagem, que nada mais são que ícones. Nas últimas duas décadas o jornalismo da televisão brasileira, inspirado pelo modelo americano, é fortemente marcado pela busca da qualidade técnica da imagem, no intuito de melhor corroborar o conteúdo das matérias telejornalísticas. No entanto, a "saturação da mídia" incorporada pela televisão sob o viés econômico e imagético, vem remodelando os paradigmas tradicionais de produção de conteúdo noticioso para a TV.
Flagrantes amadores não são uma prática inaugurada pelo telejornalismo somente a partir da Internet. Porém, a nova plataforma que constitui a rede, a Web 2.0 – baseada na facilidade da inserção, troca e fluxo de informações de toda a natureza – exerce um poder multiplicador e catalisador desse comportamento, que remete aos tradicionais conceitos propostos por Foucalt em Vigiar e Punir, no qual "cada camarada torna-se um vigia" (BENHTAN in FOUCAULT, p.215, 2008). Se a natureza do cinema está vinculada à idéia de captura do real, a natureza do jornalismo e, conseguintemente do telejornalismo, está relacionada à perspectiva da vigilância da sociedade. Seria o "vigia" de Foucalt o flaneur de Brissac? Estaria o "vigia" exercendo o "olhar do estrangeiro" sobre os conteúdos audiovisuais telejornalísticos por meio da produção, disseminação e reprodução de conteúdo audiovisual amador?
O programas noticiosos de televisão demonstram abrir cada vez mais espaço para vídeos amadores, cujas características técnicas (imagem tremida, desfocada, deslocamento da câmera em alta velocidade distorcendo a imagem, enquadramento errado...) estão maciçamente distantes do que o telejornalismo mundial vinha apresentando como padrão de qualidade das imagens.
A convergência das mídias, que segundo Henry Jenkins é o "fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos" (2008, p.27), tem remodelado diversas relações sociais, comportamentos e rotinas. Este estudo concentra-se especialmente na identificação de vídeos amadores postados na rede, com características das estéticas do real, localizados também no conceito de choque do real.
O Youtube.com é posicionado como uma ferramenta para a disseminação de conteúdos de toda ordem. As discussões sobre as novas tecnologias, o novo papel dos públicos das grandes mídias e dos usuários da Internet, a convergência das mídias e das culturas, a produção amadora audiovisual, o jornalismo colaborativo, entre tantas outras realidades que se delineiam neste momento baseadas na digitalização do mundo, estão longe de um fim ou de uma conclusão taxativa.
De acordo com as definições aqui propostas para as estéticas do real, considerando o cenário aqui demonstrado que institui um momento de crise das imagens, especialmente as que se encerram como a ausência de efeito formativo, o amadorismo presente no objeto investigado, caracterizado especialmente pela ausência de conhecimento técnico para manuseio da câmera, corrobora a hipótese deste estudo de que os vídeos amadores se aproximam em grande proporção dos conceitos das estéticas do real aqui abordadas resgatando Bazin e Kracauer, por exemplo.
O flaneur de Brissac parece ganhar corpo e uma nova configuração, um passante equipado com uma câmera digital amadora, que não mais observa em contemplação, mas que está interessado é contribuir ele mesmo para a construção de uma realidade irreversivelmente baseada em estruturas imagéticas, icônicas. A adoção cada dia mais aguda de uma estética do real tanto no cinema, quanto na televisão e no telejornalismo demonstram a utilização de uma nova estrutura visual objetivando uma recuperação do "encantamento" antes proporcionado pela utilização das imagens, ainda que neste momento contribua para encerrar outras formas de manter a lógica do espetáculo.
Este artigo, longe de fixar uma visão dura sobre esse novo cenário digital, ou de encerrar um conceito inflexível para estéticas do real, ou uma solução simplista para a crise das imagens, conclui-se com algumas indagações: estariam os vídeos amadores mais próximos das estéticas do real do que o próprio telejornalismo? Ou seria a estética do amadorismo uma nova etapa dessas estéticas na indústria das notícias?

REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. – (Obras escolhidas; v.1)

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto. 1997.

FELDMAN, Ilana. O apelo realista: uma expressão estética da biopolítica. XVII Compós. São Paulo: UNIP, 2008.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Org. e trad. de Roberto Machado. 26ª ed. Rio de Janeiro, Edições Graal, 2008.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed.34, 1999.

MCLUHAN, Marshal. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2005.

PEIXOTO, Nelson Brissac. É a cidade que habita os homens ou são os homens que moram nelas? Revista USP, no15, set. – out. – nov. 1992.

_________. O olhar do estrangeiro. In: NOVAES, Adauto. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

SANTAELLA, Lúcia; NOTH, Winfried. Imagem, cognição, semiótica e mídia. Ed.4a . São Paulo: Iluminuras, 1998.

TUDOR, Andrew. Teorias do Cinema: arte e comunicação. Lisboa: Edições 70, 1985.

PRIMO, Alex. O aspecto relacional das interações na Web 2.0. In: ANTOUN, Henrique (org.). Web 2.0: participação e vigilância na era da comunicação distribuída. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008.

POSTMAN, Neil. Tecnopólio. São Paulo: Nobel, 1994.



Trabalho apresentado no GT – Teorias do Jornalismo e Narrativas Midiáticas do VII Seminário de Alunos de Pós-Graduação em Comunicação da PUC-Rio
Mestranda em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Especialista em Telejornalismo pela Universidade Estácio de Sá. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Maranhão. E-mail: [email protected]
Descarregamento.
Menor unidade de medida em relação aos dados utilizados por um computador. Cada bit indica um de dois diferentes estados, ligado (representado por 1) ou desligado (representado por 0). Combinação de códigos binários.




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