A estrategia da involução: O devir-menor da filosofia política

July 18, 2017 | Autor: Eduardo Pellejero | Categoria: Gilles Deleuze, Gilles Deleuze and Felix Guattari, Filosofía Política, Filosofía
Share Embed


Descrição do Produto

A estratégia da involução: o devir-menor da filosofia política

Eduardo

lejero

Aníbal Pel

Temos abdicado das utopias. Quiçá nunca nos tornaremos maiores, como queria Kant. A filosofia abriu mão da possessão (de direito) do poder e da propriedade (de fato) do saber. Porém, mesmo que já não depositemos nenhuma fé no advento de um mundo feliz, não podemos renunciar ao exercício de um pensamento político, na difícil, na imprecisível, na perigosa intersecção do nosso impoder e da nossa ignorância. Sem isso, as distopias que se insinuam no horizonte veriam desimpedido o terreno que as separa da sua realização total ou totalitária. O que fazer? A velha pergunta leninista continua a gravitar sobre nós com um peso irresistível, inclusive quando estamos convencidos de que não existe solução que não passe pela criação1 (mas “criar” não é uma resposta satisfatória a essa pergunta). A questão seria, hoje, antes e para além de qualquer programa de ação: Como abraçar uma política assim, que propõe a luta, não como revolução, mas apenas como resistência? Como abraçá-la quando se assume plenamente consciente de que as mudanças às quais podemos aspirar não têm mais que um valor local, estratégico, não totalizável? Talvez pudéssemos encontrar, não vou dizer uma resposta, mas um ponto de partida, na obra de Gilles Deleuze, quem nos propõe um deslocamento da REVOLUÇÃO, enquanto fim da história, para a revolução, enquanto linha de transformação – isto é, a afirmação da resistência, em detrimento da revolução concebida como o advento irreversível e radical de uma sociedade finalmente totalizada, não dividida, reconciliada. Uma lógica do acontecimento efêmero, imprevisível, neutro (événement), em lugar da dialética totalizante, determinista e teleológica do advento (avènement). 1 “Só há soluções criativas. São as soluções criativas que contribuirão a sair da crise atual” (Deleuze, 2003, p.217).

17

Deleuze propõe, nesse sentido, uma filosofia política menor, que teria como núcleo conceitual a ideia singular de um devir-revolucionário sem futuro de revolução2. Isto é, a consideração do acontecimento político por excelência (a revolução), não enquanto ideal ou meta a atingir, mas enquanto devir: “uma bifurcação, um desvio em relação às leis, um estado instável que abre um novo campo de possíveis (…) [e que] pode ser contrariado, reprimido, recuperado, atraiçoado, mas que comporta sempre qualquer coisa de insuperável”3. É uma questão de vida, que passa no interior dos indivíduos como na espessura da sociedade, criando novas relações com o corpo, o tempo, a sexualidade, o meio, a cultura, o trabalho; mudanças que “não esperam pela revolução, nem a prefiguram, ainda que sejam revolucionários por sua conta: têm em si uma força de contestação própria da vida poética”4 – isto é, deslocando o desejo ou reorganizando a vida, tornam inúteis os dispositivos do saber e do poder que serviam para canalizá-los. Noutras palavras: esses processos valem na medida em que, ao ter lugar, escapam ao mesmo tempo dos saberes constituídos e dos poderes dominantes; mesmo se, mais tarde, são prolongados por novos dispositivos de saber e de poder. O devir-revolucionário ocupa no sistema deleuziano o lugar que nas filosofias políticas historicistas era o lugar da revolução; mais precisamente, extrai da revolução a parte do evento, do acontecimento, deixando de lado (por um momento?) a parte do projeto, a parte de sua efetuação na história. O devir-revolucionário aparece, nesse sentido, como o poder de variação e reordenação dos objetos e dos sujeitos, dos signos e das significações de um mundo prévio (e, nessa mesma medida, se assemelha à função do trabalho do sonho). De repente, o objeto da luta deixa de ser a defesa de um estado de coisas e a realização de uma série de possibilidades para se perfilar como divergência essencial e multiplicação de perspectivas. Trabalho de destotalização da vida, o devir-revolucionário é um processo que coloca em questão (que enfraquece) qualquer dialética historicista, que pretenda sancionar de iure o que dificilmente consegue impor de facto através do uso e abuso da violência. 2 DELEUZE; PARNET, 1995, “G comme Gauche”. 3 DELEUZE, 2003, p.216. 4 DELEUZE, 2002, p.200-201.

18

Na obra de Deleuze e Guattari, o devir-revolucionário é uma variação do conceito de devir-menor: processo de des-subjetivação, de in-determinação, de in-volução, no qual os termos envolvidos, passando por uma série de transformações, desbordam aquilo que os determina ao nível da representação; inclusive se não superam nenhum estádio anterior em direção a uma figura mais alta. O devir-menor é um curto-circuito da ordem lineal, cronológica e historicista, um movimento de variações imprevisíveis, onde rompemos com as representações que, de um ponto de vista maior, nos definem como sujeitos. É uma ruptura com as funções que nos são assinaladas, enquanto sujeitos dos dispositivos históricos de poder e de saber nos quais nos encontramos comprometidos: o que nossa sociedade espera de nós, o que o mercado de trabalho espera de nós, o que a escola espera de nós, o que nossas famílias esperam de nós, o que nós próprios esperamos de nós, etc. Indeterminando esses horizontes de expectativa, essas estruturas de controle ou de disciplina, o devir-menor nos abre ao (im)possível. Essa ruptura com qualquer estrutura de expectativa é também uma ruptura com qualquer forma de política maior. A política maior, com efeito, confisca nossa potência de variação e de criação, de mudança e de pensamento, em troca de uma representação e um lugar no status quo. O devir-menor, pelo contrário, liberta as singularidades subjacentes aos padrões de representação histórica ou política, desviando-os da linha de progressão ou evolução de uma maioria, e afirmando os elementos singulares subjacentes como diferenciais de individuações, subjetivações e agenciamentos por vir. De outro ponto de vista, é necessário assinalar que, para que essas aberturas de possível sejam algo mais que um fenômeno de vidência, para que as (novas) sensibilidades associadas a esses acontecimentos ou devires possam se afirmar é imprescindível a criação dos agenciamentos necessários. Essa criação é, depois de tudo, a tarefa que dá consistência a esta singular filosofia política. Deleuze escreve: “Quando uma mutação social tem lugar, não é suficiente deduzir as conseqüências ou os efeitos, seguindo linhas de causalidade econômicas e políticas. A sociedade deve ser capaz de formar os agenciamentos coletivos correspondentes à nova subjetividade, de forma a que permitam amadurecer essa mutação”5. 5 DELEUZE, 2003, p.216.

19

Sem as transformações das relações de força desencadeadas pelos devires, a política maior (tradicional) não conhece outro sentido, não possui outra tarefa que a reprodução dos dispositivos de saber e de poder existentes. Mas sem a invenção e promoção de novas figuras de individuação, não há saída política possível. A procura de agenciamentos que possam estender os movimentos disparados pelos acontecimentos é a alternativa construtiva às clivagens históricas e às segregações sociais dos padrões majoritários6. No registro de Guattari, podemos dizer que devir-menor é só uma das caras desta filosofia política menor; sendo a outra a produção de territórios existenciais (agenciamentos), a partir da parte não-representada, que insiste em nós e fora de nós: parte que é revelada no trance de devir-menor e que acaso poderíamos interpretar na linha do que Rancière denomina “a parte dos sem-parte”. Brevemente: devir-menor é sempre uma relação com o não-histórico, com o não-representativo, com o inumano, com o fora; isto é, com tudo aquilo que se encontra para além das determinações empíricas e transcendentais dos sujeitos em questão. Porém, não é um salto no vazio, um devaneio sem sentido, nem um simples grito de protesto, mera negatividade. É uma forma radical de mudança que nos coloca numa zona de indeterminação, abrindo “nossas” singularidades a articulações inesperadas, desbordando o solo representativo da política maior, em virtude de uma mais-valia não histórica: o fugaz lampejar de relações improváveis (impossíveis) entre nós e os outros, entre nós e o trabalho, entre nós e o sexo, entre nós e o pensamento (relações que, certamente, deverão ser consolidadas em agenciamentos apropriados). Quero dizer que devir-menor não é a chave de uma nova forma de dialética negativa. Deleuze e Guattari aspiram a algo mais do que ao desvanecimento de qualquer subjetividade constituída (fim da alienação); mesmo se esse desvanecimento também está em causa. Devir-menor implica necessariamente uma contrapartida material construtiva: a invenção de espaços políticos sui generis, o agenciamento criativo de territórios existenciais. Noutras palavras, se for permitido o uso de uma fórmula polêmica, devir-menor implica uma dialética menor ou menorizada, enquanto vetor 6

Cf. DELEUZE, 1979, p.124.

20

de subversão dos padrões históricos de subjetivação. A política maior (moderna) acredita ser capaz de superar as contradições sociais e econômicas, através do esclarecimento dos sujeitos envolvidos, que se supõem capazes de exceder os dispositivos de saber e de poder instituídos; logo, em condições de conduzir a história além do seu estado factual (em direção à sua realização ideal ou idealizada). A ruptura ou a abertura inerente a qualquer processo de devir-menor, pelo contrário, não implica uma elevação ao próximo estágio do sistema, nem uma evolução dos sujeitos compreendidos pelo mesmo, mas uma rarefação das condições dadas e uma involução dos sujeitos em causa. As afirmações programáticas de Deleuze apontam precisamente nessa direção: o devir-menor implica a descoberta de que todo o mundo tem seu sul e seu terceiro mundo, que todo o mundo está constituído por pontos de não-cultura e de subdesenvolvimento, isto é, que todo o mundo está atravessado por linhas onde as representações cedem, a linguagem escoa, as maiorias se desvanecem. Nessa medida, por certo, o devir-menor enquanto potência política específica pode aparecer como uma espécie de regressão (pelo menos de acordo com os parâmetros da representação majoritária e da política maior). Contudo, como assinalamos, devir-menor é um processo de criação, antes de constituir uma regressão a um estado prévio, quer seja animal, humano ou mítico. Trata-se da criação de novas formas de individuação, a partir da dissolução das figuras maiores da representação e da libertação das singularidades materiais e expressivas recobertas pelas mesmas. O exemplo da literatura menor mostra que o papel revolucionário da escrita de Kafka – com todas suas variações animais, maquínicas e inorgânicas – vai de mãos dadas com o empobrecimento da linguagem e a renúncia à sua inscrição na história da literatura alemã. Kafka, segundo Deleuze e Guattari, abdica de um lugar na linha que, a partir de Goethe, articula a grande literatura, a consolidação da língua e a identidade alemã. Kafka propõe uma saída para a expressão através de pontos de subdesenvolvimento, de inumanidade, de involução, de não-cultura; pontos, nos quais, por exemplo, um animal se conecta com a escrita. Essa é a chave das linhas de fuga propostas por Kafka, em relação aos becos sem saída materiais e expressivos, nos quais ele e o povo (que falta) se encontram presos. Ao mesmo tempo, essa é razão pela qual Kafka fica fora da história (literá21

ria, mas não só), isto é, fora de qualquer linha de progresso ou evolução de uma identidade maior (cultural, mas não só). (Não devemos esquecer, em todo o caso, que o lugar de um judeu tcheco na linha de progresso desse momento histórico específico não era lugar nenhum.) Ainda ao nível de uma política (cultural) menor, vale lembrar que Guattari sugeria um ������������������������������������������������������� exemplo ilustrativo muito concreto: é o caso das rádios livres nos anos 80, agenciamento onde a evolução tecnológica (em particular a miniaturização dos emissores e a possibilidade de serem montados por aficionados), “coincidiu” com uma aspiração coletiva por novos meios de expressão, num processo micro-político que, involuindo criativamente, isto é, levando a rádio fora dos horizontes maiores de comunicação (a comunicação de maiorias para maiorias), abriu novos campos de possíveis para a expressão, a partilha, a subjetivação, etc. Evidentemente, essa involução (afastamento dos padrões instituídos de qualidade técnica, limitação da potência dos transmissores e do alcance dos sinais, redução numérica do público alvo) seria também o princípio da fugacidade de muitas rádios piratas e o seu calcanhar de Aquiles (as novas leis de radio-difusão apelariam a essas deficiências, nomeadamente, à reduzida potência dos transmissores, para eliminá-las do mapa). (Mas não devemos esquecer, igualmente aqui, que só conseguiram aparecer eventualmente no mapa – nos interstícios de um mapa que não previa espaços de liberdade semelhante – pela instrumentalização criativa dessas fraquezas.) Outro exemplo dessas mutações objetivas e subjetivas, desencadeadas por processos de devir-menor, são as comunidades que aparecem um pouco por todas as partes nas décadas de sessenta e setenta, em consonância com os novos géneros musicais, do rock ao punk – com todas as inovações técnicas que estes géneros pressupunham, dos amplificadores e sintetizadores aos ácidos, assim como com as mudanças nas condições objetivas e subjetivas: baby-boom, estado de bem-estar, etc. Comunidades hippies, por exemplo, que se afastando dos padrões majoritários de nível de vida, levantam seus acampamentos no deserto, ou circulam pelas estradas afora, numa singular forma de nomadismo que torna a vida, de novo, possível. Agenciamentos da vida individual e coletiva que voltam as costas ao sonho americano, e que nessa mesma medida são inaceitáveis para uma maioria que entende a busca pela felicidade (the pursuit of happiness), apenas sob a forma do progresso (inadequação em virtude da qual seriam 22

colocadas em causa as formas desenvolvidas de educação das crianças, as práticas de cuidado de si e dos outros, etc.). Por fim, e já nas fronteiras da macropolítica, numa aberta confrontação com as políticas maiores hegemônicas, a guerrilha surge seguramente como um dos casos com mais implicações desta política menor – caso que Deleuze tematiza no seu ensaio sobre T. E. Lawrence. A guerrilha é, do ponto de vista da ação política, mas também do trabalho social, um exemplo rico (complexo) de devir-menor. Em condições que tornam impossível lutar em (por) territórios maiores, a guerra do espaço do reconhecimento (projetos maiores de liberdade, igualdade ou consenso), a guerrilha se adentra no deserto, na selva, ou nos bairros periféricos, onde articula de facto, em condições inaceitáveis para a maioria, aquilo que reclama de iure como seu direito. É nesse sentido que a luta pelo reconhecimento dos povos originários de México e as aspirações de certos grupos marxistas entraram num devir-menor (revolucionário) em 1994, na selva de Lacandona, a sul de Oaxaca. Estrategicamente (provisoriamente), renunciando à inscrição na história maior de México – onde não tinham lugar, nem representação; onde não existiam sequer signos de uma vontade política confiável de mudar esse estado de coisas –, esses grupos levaram a luta para um campo enrarecido, onde os dispositivos maiores de poder manifestavam uma presença atenuada. Desse modo, foram capazes de intensificar o movimento, conquistando, entre outras coisas, a autodeterminação, a criação de formas singulares de administração e, quiçá mais importante, a emergência de uma nova forma de subjetividade, de um novo tipo de consciência, associada a um “novo” povo: não este ou aquele grupo étnico, não este ou aquele partido de esquerda, mas os Zapatistas, enquanto agenciamento coletivo de enunciação da parte dos sem-parte. Fazendo isso, todas essas pessoas levantaram suas vozes e se apoderaram de suas vidas, muitas vezes por primeira vez, sem a mediação do reconhecimento (é necessário, nesse sentido, considerar as máscaras e o passa-montanhas, que desterritorializam o rosto – já que qualquer um pode estar atrás). Como se pode entender, de um ponto de vista maior, do ponto de vista da classe média mexicana, e inclusive do ponto de vista da classe baixa, que sonha ascender à classe média, esse devir-menor é incompreensível, impensável, uma impossibilidade, uma fantasia irracional: é vista como 23

uma involução. E eu estou de acordo: era incompreensível, era impensável, era inclusive uma impossibilidade; mas não era uma fantasia, porque, enquanto involução criativa, abria uma brecha (linha de fuga), num beco sem saída político, econômico e social (uma série de impossibilidades), e conduzia todas essas pessoas para além da marginalização, da aculturação, da aniquilação. Talvez o pensamento crítico clássico pudesse argumentar que essas minorias étnicas – e correspondentemente as mulheres, os jovens, os desempregados, etc. – não se encontram em condições de renunciar às suas lutas específicas pelo reconhecimento, por uma representação adequada ao nível dos direitos. E esse é um problema importante, no sentido em que coloca a questão sobre a articulação possível entre políticas maiores e menores. Porém, se o devir-menor é proposto como o princípio de uma política alternativa, o é precisamente na medida em que as lutas por direitos ao nível da representação majoritária parecem predestinadas ao fracasso, condenadas a ser sistematicamente ignoradas, quando não traídas em nome de uma representação estabelecida. É uma questão de prioridade. Afirmar a ideia de devir-menor, como princípio de uma praxis política alternativa, não significa abrir mão das lutas pelo reconhecimento de nossos direitos; significa, simplesmente, pospor estrategicamente essa luta, envolvendo-nos num movimento não-representativo de individuação, procurando construir de fato aquilo que reclamamos de direito; ainda que isso só seja possível em espaços menores ou em condições menores, condições que são indesejáveis, inaceitáveis, intoleráveis para as maiorias. Com signos políticos incomensuráveis e em circunstâncias muito diversas, acredito que foi um pathos desse tipo que definiu os poucos grupos minoritários que mostraram alguma vitalidade política nos últimos cinquenta anos; permitindo-lhes articular um território, agenciar um povo, ou, simplesmente disciplinar um corpo capaz de forçar algum tipo de negociação ao nível da política maior. Evidentemente, os devires, como as linhas de fuga, não são necessariamente revolucionários em si; uma linha de migração (subsariana ou cubana) pode terminar na morte (balseiros), ou nas malhas de dispositivos muito mais duros que os que deixa para trás (trabalho escravo). E, evidentemente, os devires não conduzem automaticamente a uma revolução social capaz de dar à luz uma sociedade, uma economia e uma cultura, 24

liberadas dos dispositivos de saber-poder próprios do capitalismo. Por fim, não cabe comparar, segundo uma escala progressista, quais regimes são mais duros ou mais toleráveis (quero dizer, é possível fazê-lo retrospectivamente, mas não na hora de adotar uma linha de ação): “A capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle, se decidem no curso de cada tentativa”7. O que importa é que, de repente, já não nos sentimos os mesmos condenados; e um problema do qual ninguém via a solução, um problema, no qual estávamos todos presos, subitamente deixa de existir, e nos perguntamos de que era que falávamos. De repente, estamos noutro mundo, como dizia Péguy: os mesmos problemas já não se colocam – se colocarão muitos outros, claro. Por outra parte, não dispomos, nem de fato nem de direito, de nenhum meio seguro para libertar e, em seguida, para preservar as linhas de fuga subjacentes aos dispositivos de saber e de poder nos quais nos encontramos comprometidos: “O que nos condena a uma perpétua ‘inquietude’ (...) não sabemos como pode mudar tal grupo, como pode recair no histórico”8. O devir-menor, entendido como linha de fuga ou como máquina de guerra, não estabelece as bases de um programa político revolucionário. Pelo contrário, o devir-menor se desenvolve justamente na direção oposta às lógicas organizativas arborescentes dos movimentos políticos tradicionais. Nesse sentido, Guattari dizia-nos que a procura de uma unificação demasiado grande, por parte das forças de resistência, não contribuiria senão para facilitar o trabalho de semiotização do capital9; e Deleuze insistia que não existe algo como um governo de esquerda (há governos mais ou menos receptivos às reclamações da esquerda, mas a esquerda não tem nenhuma relação com a forma do Estado e as lógicas de governo). Só nos resta, portanto, a noção de um pensamento político que, sem ceder às demandas do poder, mas, ao mesmo tempo, sem aspirar à conquista do poder, abraça – para além do governo e da oposição – a vocação da resistência. Isto é, um pensamento político trágico e, com isso, um sentido a-histórico da luta. O que não significa uma chamada à desmobilização. O devir-menor é algo mais que um conceito da ética, e Deleuze, em nenhum 7 8 9

DELEUZE, 1990, p.239. Idem, 1990, p.234. Cf. GUATTARI; STIVALE, 1985. Cf. QUERRIEN, 2004, p.28.

25

momento, pensa em abandonar o terreno político, fechando-se numa posição inviolável, mas apenas ética, como sugere Philippe Mengue. Passar da política maior (historicista) para uma política menor (não totalizável, irresolúvel, infinita), certamente, traz para o primeiro plano questões complexas ao redor da ética da luta; na medida em que essas questões éticas não são resolvidas pela história (nem sequer por definição); mas implicam um desenvolvimento político, além de serem indiscerníveis da política, enquanto estratégia de luta generalizada. O devir-menor não é da ordem da ética nem da política. É, simultaneamente, uma questão que atravessa a ética e a política, em seus sentidos maiores, problematizando as distinções históricas (como privado e público, individual e coletivo); apaga-as por um momento; dá lugar para novas distribuições do sensível e novos campos de possíveis. Em resumo, a adoção de um ethos militante não pode ser desligado da praxis política associada e dos agenciamentos coletivos, que dão consistência e efetividade a uma autêntica ética da resistência. Logo, a questão seria: de que modo funcionam todas essas formas de resistência desatadas por fenômenos de devir-menor? E qual é seu valor, não absolutamente; mas em cada caso, em relação às condições materiais de impossibilidade nas quais têm lugar? Provavelmente, mais do que provavelmente, nunca nos tornaremos maiores. Mas a menoridade pode ser uma potência política valiosa, se somos capazes de transvalorar nossos ideais em filosofia política. Como vimos, para Deleuze não é questão de devir-maior, de atingir a maturidade, mas de devir-menor, como uma tribo devém nômade no deserto, como um peão devém guerrilheiro na selva. Consequentemente, a dialética muda de signo e o pensamento político encontra um papel singular, cada vez que é confrontado com a miséria, a opressão ou a injustiça. Deleuze escreve: “Artaud dizia: escrever para os analfabetos, falar para os afásicos, pensar para os acéfalos. Mas que significa ‘para’? Não é ‘dirigido a...’, nem sequer ‘em lugar de...’. É ‘ante’. Trata-se de uma questão de devir. O pensador não é acéfalo, afásico ou analfabeto, mas o devém. Devém índio, não acaba de devir, talvez ‘para que’ o índio que é índio devenha ele mesmo algo mais e se liberte da sua agonia”10. 10 DELEUZE; GUATTARI, 1991, p.105.

26

Involução criadora que pode nos abrir para linhas de fuga, em situações de asfixia política; nas quais, antes de progredir ou inscrever-se num projeto maior, é necessário agenciar um novo espaço ou uma nova sensibilidade para a ação e para o pensamento. Na convicção de que é possível, é desejável, é necessário agenciar uma potência singular ou uma força específica, antes de reclamar uma representação adequada. Na convicção, quero dizer, de que é politicamente prioritário agenciar de facto aquilo ao que reclamamos ter direito; mesmo quando não seja senão em espaços reduzidos ou em condições inaceitáveis para o padrão majoritário. Entrar em Damasco antes dos ingleses, como dizia Lawrence. Porque não há política para o fim do mundo. Devir-menor não é uma utopia, mas a possibilidade de alcançar uma linha de transformação em situações históricas que fazem parecer qualquer mudança como impossível. Devir-menor não é uma verdade política universal, mas apenas uma estratégia singular não totalizável. Não responde à necessidade de integrar todas as culturas, todas as formas de subjetividade e todas as línguas num devir comum, mas apenas à necessidade estratégica de salvar uma cultura da alienação, para permitir o florescimento de uma subjetividade, para arrancar do silêncio uma língua. Não é uma solução para tudo nem para todos (e essa é sua fraqueza), mas pode ser o único para alguns (e essa é sua força). Não a arte (técnica) do possível, mas a arte (transformação) do impossível. O colapso de qualquer movimento é muito mais perigoso que o fracasso ou a recaída dos movimentos políticos históricos. Da mesma forma, tanto����������������������������������������������������������������� no pensamento como na ação, é necessário continuar lutando, prolongar o movimento, de modo a relançar a expressão, para além das suas determinações históricas ou institucionais; e impedir que, em nós, e na gente, degenere o labor necessariamente paciente que dá forma à impaciência da liberdade. Ao contrário da pergunta recorrente de Lênin “O que fazer”?, a interrogação crítica levantada por Deleuze e Guattari ainda está viva para nós, e continua dando um sentido efetivo ao pensamento político, independentemente das respostas particulares que as condições materiais, as circunstâncias históricas e as vontades individuais, tornam possíveis. Que devires nos atravessam hoje?

27

Referências DELEUZE, Gilles; BENE, Carmelo. Superpositions. Paris: Éditions de Minuit, 1979. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Éditions de Minuit, 1991. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. L’Abécédaire de Gilles Deleuze, em Metropolis. Paris: Arte (Canal de TV), 1995. DELEUZE, Gilles. Pourparlers 1972-1990. Paris: Éditions de Minuit, 1990. _____ . Deux régimes de fous: Textes et entretiens 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. _____ . L’île déserte et autres textes: Textes et entretiens 1953-1974. Paris: Minuit, 2002. GUATTARI, Félix; STIVALE, Charles. Discussion with Felix Guattari. Detroit: Wayne State University, 1985. Disponível em: webpages.ursinus.edu/rrichter/stivale.html. QUERRIEN, Anne, “Esquizoanálisis, capitalismo y libertad. La larga marcha de los desafiliados”. In GUATTARI. Plan sobre el planeta. Capitalismo mundial integrado y revoluciones moleculares. (Trad. Raúl Sánchez Cedillo). Madrid: Traficantes de Sueños, 2004.

28

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.