A Estrutura da Predicação

September 12, 2017 | Autor: Luisa Coutosoares | Categoria: Aristotle, Philosophical Logic, Gottlob Frege
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A ESTRUTURA DA PREDICAÇÃO Maria Luisa Couto Soares

Desde que a filosofia se libertou das cadeias parmenídeas e consequentemente da condenação ao imobilismo total, a afirmação de que é possível dizer algo sobre algo é uma constante, variando as condições e as regras segundo as quais é possível o discurso. Só a afirmação da possibilidade de dizer algo sobre algo, indica já a admissão de duas categorias linguísticas fundamentais: uma que serve para designar, nomear esse algo, e outra para dizer alguma coisa sobre esse algo, ou seja, a distinção entre nome e predicado, entre uma relação significativa que consiste em nomear, e outra que consiste em atribuir, falar sobre. Platão no Sofista avança já com a afirmação de que a forma mais simples de proposição é composta por dois elementos heterogéneos, um nome (ονοµα) e um verbo (ρηµα), terminologia que é adoptada por Aristóteles no seu De Interpretatione. Tal como Platão, Aristóteles considera estas duas classes de signos linguísticos mutuamente exclusivos: o critério para identificar o verbo (o que se predica, por isso Geach decide chamar-lhe simplesmente predicable  1 é o tempo (tense), introduzido sempre pelo verbo ou predicável. A relação do nome com o designado é atemporal. Este critério talvez não seja o mais decisivo, pois pode admitir-se alguns casos de predicáveis não temporais; Geach aponta como exemplo as predicações da aritmética e geometria, que de facto não parecem ter um sentido temporal. Aristóteles estabelece, no entanto, um critério mais decisivo para a distinção entre a categoria do sujeito e a do predicado: no caso da negação de uma                                                                                                                 1  Cf.  Geach,  P.  -­‐    Logic  Matters,  p.  45  

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proposição, o que se nega é o predicado, não o nome que funciona como sujeito. Um outro requisito importante do nome apontado por Aristóteles, é que este deve ser logicamente simples, requisito que, como é bem sabido será retomado por Russell e Wittgenstein. Este primeiro modelo da forma predicativa mais simples aponta para uma estrutura binária, composta destas duas categorias linguísticas básicas e mutuamente exclusivas. Trata-se agora de penetrar um pouco mais nesta estrutura básica: nomeadamente torna-se necessário esclarecer se estamos perante uma estrutura binária, de facto, ou se pelo contrário, nela devemos ver uma relação, estabelecida pela cópula, entre dois termos, tal como sugere a forma elementar S é P. Segundo Geach, para mal de toda a história da lógica, o próprio Aristóteles foi o primeiro a abandonar a sugestão platónica de que toda a proposição predicativa exibe uma fenda entre dois elementos heterogéneos, para passar a considerar a predicação como a atribuição de um termo a outro termo. Aqui começa, pensa Geach, a corrupção da lógica da predicação: a adopção aristotélica do modelo tendo por base dois termos foi um desastre comparável à queda de Adão2. Segundo este modelo, desvanece-se a radical heterogeneidade entre sujeito e predicado, podendo um termo ocupar o lugar do sujeito numa proposição, e de predicado noutra, como o ilustra toda a silogística aristotélica. Apesar de tudo, Aristóteles reconhece que os nomes não podem nunca ser predicados, embora possam ocorrer como parte do predicado. A categoria linguística e lógica do sujeito último, do qual se pode predicar, mas que não pode ser predicado de outro, tem um papel preponderante em todo o pensamento aristotélico, como é bem sabido. No entanto, o seu tratamento das proposições nos I Analíticos, como uma certa relação entre dois termos, vai dar origem à identificação das relações semânticas de nomear, designar, referir, e ser predicável de, ser dito de ou ser atribuível a... Assim, do modelo proposicional constituído por dois termos, dando mais este passo, passa-se para o modelo proposicional constituído por dois nomes. Esta tese é bem conhecida desde Ockham, até Stuart Mill, passando por Hobbes: segundo esta teoria, uma proposição afirmativa é verdadeira se o termo que ocupa o lugar do sujeito designa o mesmo objecto que o termo                                                                                                                 2. Cfr. Geach, P. - Logic Matters, p. 47.

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que desempenha o papel de predicado3. A cópula, portanto, significa sempre identidade, não há necessidade de estabelecer distinções de sentido. Aristóteles, apesar de ter induzido a "corrupção da lógica", segundo expressão de Geach, com a referência a um esquema de proposição de dois termos, manteve sempre em mente a separação radical das categorias linguísticas e lógicas de sujeito e predicado; por isso, não necessitou de formular uma teoria da cópula, como elemento de ligação. Este elemento torna-se necessário quando se considera que sujeito e predicado de uma proposição não são mais do que duas formas de designar dois objectos: se não houvesse um terceiro elemento que estabelecesse a composição e a unidade da proposição, os dois nomes não seriam senão uma lista. Na teoria dos dois nomes, é necessária a cópula para associar os dois nomes, dando-lhes o estatuto de proposição4. Esta será verdadeira se os dois nomes sujeito e predicado - pertencerem realmente à mesma coisa, reunidos pela cópula que significa identidade. Nesta teoria não há necessidade, como dissémos de distinguir entre vários usos ou vários significados da cópula; mas se, como acontece na lógica extensional, em vez de serem considerados como termos, o sujeito e o predicado de uma proposição forem considerados como classes, então é necessário distinguir vários casos: podemos ter uma proposição entre dois nomes de classes, ou entre o nome de um indivíduo e uma classe. A "ambiguidade" da cópula detectada por Frege e Russell só tem lugar dentro de um contexto extensionalista, no qual a proposição é considerada como uma relação, estabelecida por um sinal que pode significar pertença, inclusão ou identidade entre indivíduo e classes, ou entre classes. No esquema dual da proposição, constituído por dois elementos heterogéneos, que precisamente por serem heterogéneos se podem relacionar                                                                                                                 3. Cfr. Geach, P. - Reference and Generality, p. 34: "If terms are thought of as (at least potential) names, then a natural idea is that the truth of a categorical consists in its putting together two names of the same thing. In fact, a categorical is true if its predicate is a predicable applying to that which its subject is a name of; the two name theory of predication is derivable from this principle if one confounds the relation being a predicable applying to with the relation being a name of". Cfr. Logic Matters, p. 53. 4. Cfr. Geach, P. - Logic Matters, p. 55: "In the two-name theory a copula was needed to stick names together and keep them from being just an unintelligible catalogue..."

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directamente, "encaixar", não há necessidade de uma teoria da cópula, nem tem sentido o problema da "ambiguidade"; há diversos modos de estabelecer essa relação proposicional, porque há diversos modos de designar, referir algo, e diversos modos de dizer algo sobre esse algo5. Daqui a diversificação dos modos de predicar, já estabelecidos por Aristóteles. A concepção de função proposicional de Frege confirma e acentua esta estrutura dual, não só na própria simbolização lógica, fazendo ver na proposição o lugar vazio que pode ser ocupado por um ou vários nomes de objectos e que refigura de uma forma gráfica a importante noção de insaturação. No entanto, não deixam de se sentir também em Frege as repercussões do extensionalismo lógico, nomeadamente ao chamar a atenção para a função da cópula no juízo e denunciar as ambiguidades na lógica tradicional entre os significados de pertença, inclusão e identidade. É a sua hesitação entre intensional/extensional no tratamento do conceito, identificando-o e distinguindo-o da noção de classe, que leva Frege a considerar as diversas funções da cópula, necessárias nas relações entre classes6. No entanto, penso que em toda a teoria predicativa de Frege sobressai nitidamente a sua noção de proposição como um todo constituído por dois elementos heterogéneos, cuja "configuração", precisamente por ser diferente lhes permite relacionarem-se; e a perspectiva intensional da noção de conceito impõe-se à sua transformação em classe. Na sua análise da predicação, Frege isola o próprio conteúdo proposicional do acto de julgar, da afirmação ou negação, o que significa uma clara distinção entre a proposição em si mesma considerada e o acto                                                                                                                 5. Cfr. Strawson, P. - Individuals, p. 143: Strawson sintetiza a caracterizaçäo das duas categorias de sujeito e predicado deste modo: "A B2 (predicative expression) is an expression which gives us an assertion about something if we attach it to another expression that stands for what we are making the assertion about. An A2 (subject expression of an assertion) is an expression to which there is attached a B2 so that the two together form an assertion about what the A2 stands for". 6. Cfr. Geach, P. - Logic Matters, p. 55: "The idea that different varieties of copula are needed comes from the fundamental mistake that is introduced in the two-class theory: the belief that in predicating we are joining with a copula the names of two different things somehow related - the names ot two classes, or of an individual and a class".

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epistémico pelo qual afirmamos ou negamos a sua verdade. Como resultado, obtém uma figuração da estrutura predicativa que não só mantém a dualidade inicial referida, como consegue um isolamento radical do conteúdo da proposição em relação a interferências "psicologizantes", epistémicas. Frege faz notar que um pensamento pode ter o mesmo conteúdo, seja ou não afirmado como verdadeiro; é possível pronunciar uma proposição, expressão de um pensamento, num contexto não assertivo (é o caso do discurso dos artistas no palco, ou da enunciação de uma hipótese científica ainda não comprovada). Esse mesmo conteúdo pode vir a ser reconhecido como verdadeiro ou falso. Esta observação seria trivial, se a partir dela, Frege não tivesse formulado uma teoria da asserção completamente inovadora e uma perspectiva puramente formal da estrutura predicativa. A distinção e separação entre o conteúdo de um juízo e sua asserção7 é expressa na própria simbologia que Frege apresenta na Bs: o sinal para uma afirmação proposicional é um sinal composto de dois traços à que se podem separar; o traço horizontal exprime o conteúdo do juízo, o vertical indica a afirmação da verdade desse conteúdo, portanto é o sinal de asserção, mas não forma parte da expressão funcional. O que este sinal acrescenta ao resto da expressão é a indicação de que este pensamento, este conteúdo proposicional tem o valor de verdadeiro. A proposição propriamente dita é constituída por uma composição de palavras que se apresentam à consideração e que poderão ser afirmadas ou negadas. No entanto o que é dado, o que se apresenta na proposição, é independente do facto de ser verdadeiro ou falso. A afirmação ou negação, enquanto atribuição dos valores de V ou F a uma proposição, estão portanto fora do conteúdo dessa expressão. A cópula do juízo não tem pois nenhum conteúdo para Frege, nem sequer o de traduzir composição (veremos que Frege recorre a outro modo de exprimir na sua simbologia a dualidade originária de toda a forma predicativa). A cópula não é senão a palavra que dá a forma. No texto já                                                                                                                 7. Cfr. Dummett, M. - Frege: Philosophy of Language, pp. 295-364; cfr. também Baker, G. P. and Hacker, P. M. S. - Frege: Logic Excavations, pp. 77 e ss: os autores fazem notar que o único veículo de força assertiva para Frege é o sinal de asserção e não o predicado ou cópula.

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citado8, ao sugerir a possibilidade de exprimir "esta folha é verde" por "esta folha verdeja", Frege dilui a cópula no predicado, ressaltando deste modo a estrutura dual da predicação. Se bem que esta depuração da estrutura predicativa até à sua forma mais pura, isolada de implicações cognitivas ou ontológicas, traga alguns problemas que não podem ser resolvidos a partir de um plano estritamente lógico9, Frege põe-nos diante de um modelo rigoroso da forma da predicação: um termo P que se amolda, encaixando perfeitamente noutro termo S. Não sendo a cópula a responsável por esse "amoldar" o que é que permite a relação dos dois termos e explica essa perfeita adequação? Na introdução à Bs, Frege considera de grande proveito e utilidade para a lógica a substituição do binómio sujeito/predicado por argumento/ função10; a aplicação das categorias gramaticais da linguagem corrente é neste caso enganadora, pois nem sempre deixa transparecer com nitidez o                                                                                                                 8. BG, KS, p.168: "Kann man nicht ebensogut von etwas aussagen, es sei Alexander der Große, oder es sei die Zahl Vier, oder es sei der Planet Venus, wie man von etwas aussagen kann, es sei grün, oder es sei ein Säugetier? Wenn man so denkt, unterscheidet man nicht die Gebrauchsweisen des Wortes 'ist'. In den letzten beiden Beispielen dientes es als Kopula als bloßes Formwort der Aussage. Als solches kann es zuweiten durch die bloße Personalendung vertreten werden. Man vergleiche z.B. 'dieses Blatt ist grün' und 'dieses Blatt grünt' ". 9. Este isolamento na estrutura predicativa do factor subjectual, do acto assertivo, passa ao lado das questões epistémicas da formação do juízo. Com o estabelecimento do terceiro reino das "objectualidades", dos pensamentos, dos sentidos, Frege consegue delimitar o campo próprio para uma análise estritamente lógica e linguística, mas ao preço de eludir a justificação e explicação da relação da faculdade com o seu objecto. 10. Cfr. Bs, Introdução § 3; cfr. Angelelli, I. - "Freges Ort in der Begriffsgeschichte" in Thiel, C. - Frege und die moderne Grundlagenforschung, Meisenheim am Glen, Verlag Anton Haig, 1975, p. 20-21: "Meine Deutung ist, daß die zeitgenossische Analyse der Satze in Subjekt und Prädikat die Betrachtung n-stelliger Pradikate ignorierte und daß dies der einzige wirkliche Grund war, an den Frege dachte". Cfr. carta Frege Husserl 1906 cit. por Angelelli neste artigo, p. 21: "man sollte mit Subjekt und Prädikat in der Logik aufräumen (...) "fügt dann allerdings sofort hinzu: oder man sollte diese Worter auf die Beziehung des Fallens eines Gegenstandes unter einen Begriff (subsumption) einschränken. Die Beziehung der Unterordnung eines Begriffs unter einen Begriff ist so verschieden von jener, daß es nicht erlaubt ist, auch hierbei von Subjekt und Prädikat zu sprechen".

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conteúdo conceptual do juízo. Para Frege, o que tem relevância em lógica é unicamente este conteúdo conceptual, pois só esta parte do juízo é que pode afectar as possíveis inferências. E o conteúdo conceptual não é condicionado pela distinção sujeito/predicado, como se comprova com as duas proposições "os Gregos venceram os Persas em Plateia" e "os Persas foram derrotados pelos Gregos em Plateia", cujo conteúdo se mantém invariável, apesar da substituição do sujeito pelo predicado na segunda. As categorias lógicas constitutivas da estrutura predicativa são argumento/função, traduzidas pelas categorias linguísticas nome próprio/predicado. O que permite estabelecer a relação entre estas duas categorias é o diferente comportamento gramatical do nome e do predicado, tradução e reflexo da heterogeneidade entre argumento e função. Esta heterogeneidade radica no carácter insaturado, incompleto da função. A incompletude, que a simbologia fregeana exprime através de um espaço em branco, um lugar vazio, permite o seu preenchimento por um argumento, ou por um nome. É a insaturação dos predicados ou funções, que determina o seu peculiar comportamento lógico-linguístico: por ter um espaço vazio, que pode ser preenchido por um ou mais argumentos, a função poderá ser empregue predicativamente, isto é, poderá ser atribuída, aplicada a um ou mais nomes de objectos. Pelo contrário, um nome próprio, signo de um objecto, pelo seu carácter de saturado, fechado, só poderá ocorrer como sujeito de uma proposição. Nomes e predicáveis11 não se podem nunca confundir nem intercambiar, porque protagonizam duas relações completamente diferentes: a relação entre um nome e um objecto (um objecto é portador (Träger) de um nome), e a relação entre um predicado e os objectos de que se predica. O nome tem um sentido completo, constitui uma expressão saturada, sem espaço para nenhum outro signo ou expressão, e por isso pode figurar por si só num simples acto de nomear; o predicável, pelo contrário, como predicado potencial, não tem nunca, por si só, um sentido completo,                                                                                                                 11. Geach propõe que se utilize "predicáveis" para as expressões insaturadas: "A predicable is an expression that gives us a proposition about something if we attach it to another expression that stand for what we are forming the proposition about; the predicable then becomes a predicate, and the other expression becomes its subject; I call such a proposition a predication". Reference and Generality, 3ªed., 1980, p. 52.

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enquanto não se aplicar a um ou mais objectos, ou enquanto não se mostra sobre o que é a predicação12. Esta heterogeneidade das duas relações semânticas (nome-portador, predicado-objecto do qual se predica) afecta o modo da negação de uma proposição: a negação actua de um modo directo sobre o predicado e não sobre o sujeito. Os predicáveis sempre ocorrem em pares contraditórios e aplicando os membros desses pares a um mesmo sujeito, obtêm proposições contraditórias, ou uma proposição e a sua negação. A negação de F(a), ¬(Fa) é equivalente a ¬F(a)13. O modelo da predicação que Frege apresenta revela com nitidez e sem interferências, uma estrutura essencialmente dual, na qual dois termos originariamente heterogéneos se podem relacionar visto que, pela sua própria "forma" um desses termos (o predicado, a função) tem um espaço vazio que lhe permite a mobilidade e a abertura para aí "receber" o outro termo. Para justificar a conexão entre os dois termos é absolutamente dispensável o recurso a um terceiro termo, um termo de relação, que tenha a seu cargo estabelecer a conexão dos outros dois. Esta conexão é permitida pela própria configuração "aberta" de um deles, que admite a "incorporação" do outro. Por isso a cópula, na teoria predicativa de Frege, dilui-se, como vimos, no próprio predicado. Esta dualidade que a insaturação institui, reflecte-se com um nítido paralelismo no mundo real, constituído radicalmente por dois domínios - o dos objectos actuais, completos, fechados e o das suas propriedades e relações, aos quais correspondem no universo lógico os objectos lógicos e as funções, e no semântico, os nomes próprios e os predicados ou expressões funcionais. Devido à heterogeneidade das configurações destes dois universos, podem amoldar-se, "encaixar", ocupando os objectos exactamente os espaços deixados vazios pelas propriedades, atributos e relações possíveis, tudo                                                                                                                 12. Geach, P. - ob. cit., p. 57: "A predicable applies to or is true of things; for example "Peter struck..." applies to Malchus (whether it is actually predicated of Malcus or not). This relation must be sharply distinguished from the relation of name to bearer, which is confounded with it in the "aristotelian" tradition under the term "denoting". A predicable never names what it is true of, and "Peter struck..." does not even look like a name of Malchus". 13. Cfr. Strawson, P. - Subject and Predication in Logic and Grammar, pp. 4-13.

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conceitos vazios, se não forem preenchidos pelos respectivos objectos; assim se constitui uma realidade maleável, conceptualizável, onde o movimento da predicação se regula por um sistema de regras que emerge da sua própria configuração. No entanto, esta estrutura assente numa tão radical distinção e separação entre os dois tipos de termos representantes de dois domínios tão heterogéneos, revelar-se-á limitada e rígida para justificar toda a dinâmica predicativa14. Nomeadamente, a separação drástica entre conceitos e objectos será a causa da separação entre predicação e identidade, que tanto dificulta a compreensão cabal da própria identidade, como fundamento de qualquer predicação. Como veremos, Frege não manterá totalmente esta separação, pois na tentativa de explicar a noção de sentido, como modo de dar-se de um objecto, em SuB15 recorrerá a um entrelaçamento, a uma espécie de comércio entre a predicação, atribuição de um conceito, de uma propriedade a um objecto (aqui sentido parece de facto assimilar-se à noção de conceito), e a identidade, a re-identificação do mesmo objecto sob um determinado sentido. Os dois movimentos - do sentido ao objecto, do objecto ao novo sentido - são complementares e absolutamente necessários para justificar a captação da própria noção de sentido. A comprovação, em qualquer das versões, de uma dualidade radical na estrutura predicativa, parece indicar que ela se revela como uma condição necessária de toda a predicação. Se essa condição é de tipo linguístico, uma imposição da gramática que determinará a lógica da predicação e inspirará uma metafísica da substância, princípio de inerência dos atributos, ou de tipo transcendental, uma forma da própria capacidade subjectiva de julgar, é uma questão que não será aqui decidida. De momento, limito-me a apontar esta estrutura dual e a heterogeneidade dos dois termos da predicação, registada tanto pelas análises da linguagem, como pela própria fenomenologia do acto judicativo: esta dualidade está presente, tanto na versão de inspiração                                                                                                                 14. Cfr. Angelelli, I. - Studies on Frege, p. 117: A distinção de Frege entre conceito e objecto é levada ao extremo de se afirmar que entre este homem e homem não pode haver uma relação de identidade: um indivíduo não se identifica nunca com a sua própria "essência", ou conceito individual sob o qual cai. 15. Cfr. SuB, KS, p. 144 e nota.

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metafísica, assente no binómio substância/acidente, no qual a predicação traduzirá uma relação de inerência, tanto mais reforçada quanto mais sublinhada a noção de suppositum, como ponto centrípeto dos seus predicados; como na versão lógica, assente no binómio indivíduo/classe (singular/universal da lógica clássica), no qual a predicação traduzirá a relação de pertença, ou de inclusão, relação muito mais ténue, que muda de configuração com a facilidade com que se estabelecem os infinitos universos do discurso. Nem as aporias da substância (substrato, suppositum), nem as do indivíduo poderão anular a eficácia explicativa da estrutura dual da predicação: se essas aporias constituem problemas quase irresolúveis quanto à natureza das duas noções de substância e de indivíduo, permanece a sua função como pontos limite, ou como focos reguladores na estrutura predicativa.    

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TEORIA DA PREDICAÇÃO EM ARISTÓTELES Tendo em conta a estrutura dual da predicação, a gradual força da "adesão" do predicado ao sujeito é tratada por Aristóteles na distinção de modos de predicar sem, no entanto, fazer referência directa a uma teoria da cópula, ou à diversidade de sentidos do verbo ser na predicação. Referimos já, citando Brunschwig, a instabilidade do equilíbrio dos Tópicos, devida à oscilação entre uma predicação pura e simples, do acidente, e uma predicação "qualificada" do próprio, do género ou da definição. Pode ver-se nesta oscilação a tensão entre predicação e identidade, já que, no caso da definição há identidade numérica entre sujeito e predicado, no caso do género há identidade genérica e no caso do próprio pode falar-se de uma co-extensividade entre sujeito e predicado. Nesta sistematização dos predicáveis apresentada nos Tópicos está já latente a distinção fundamental que Aristóteles explorará mais tarde nas Categorias e na Metafísica, entre predicação καθʹ′ υποκειµενον e κατα συµβεβηκος. Em Tópicos 127b1-4 há nitidamente uma referência à diferença entre ser dito de, ou atribuído a um sujeito e ser inerente a, ou ser num sujeito: "Além disso, é necessário ver se o género atribuído designa qualquer coisa inerente ao sujeito que constitui a "espécie", como "branco", se se trata da neve; é evidente que não pode ser o seu género; porque o género só é predicado do sujeito que constitui a sua espécie".

Tem-se interpretado esta distinção aristotélica como uma assimilação da identidade à predicação essencial, excluindo-a da predicação acidental. Vimos já, com Brunschwig que das duas possíveis leituras dos Tópicos, uma inclusiva, outra   exclusiva, existem fortes razões para preferir a primeira, à luz da qual se pode ver uma continuidade entre todos os modos de predicar, fundamentados sempre na identidade16.                                                                                                                 16. Cfr. Brunschwig, J. - Introduction aux Topiques, p. LXXVIII: "S'il est vrai, en effet, qu'un prédicat incapable de satisfaire aux conditions requises pour être reconnu comme l'accident, le genre ou le propre de son sujet se trouve par là-même débouté a fortiori de ses prétentions à en être la définition, on peut en inférer, par une loi de contraposition qui n'est nullement étrangère à la logique

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Note-se também que esta distinção entre ser dito de e ser dito em, apenas esboçada nos Tópicos, dará origem às duas coordenadas fundamentais da teoria da predicação de Aristóteles. No entanto, não se poderia assimilar esta distinção e as respectivas coordenadas, às dimensões intensionalista e extensionalista. Tanto um tipo de proposição (dito de), como o outro (dito em) podem, por sua vez, ser consideradas sob uma perspectiva extensionalista, como numa perspectiva intensionalista: se digo de um indivíduo que é homem, tanto significo que pertence à classe dos homens, como que o que ele é por si mesmo, em si mesmo considerado, é homem. Mas é evidente que, para Aristóteles, o que tem mais relevo, mais importância tanto do ponto de vista epistémico, como metafísico, é saber o que ele é, e não apenas saber a que classe pertence. O pertencer a uma classe não serve nunca para definir um indivíduo, até porque essa pertença tanto é significada neste tipo de proposições (ser dito de), como nas outras (ser dito em), nas quais se atribui um acidente a um sujeito. Se digo que "esta folha é verde", a proposição é igualmente analisável em termos extensionais, como pertença de um indivíduo a uma classe, sem revelar nenhuma diferença que justifique porque é que uns predicados servem melhor, mais adequadamente, para definir. Ao tratar da definição, Aristóteles propõe como método para testar a identidade entre definiens e definiendum o exame dos seus acidentes: cada                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   des Topiques, qu'un prédicat confirmé dans ses prétentions à être la définition de son sujet doit être du même coup considéré comme remplissant les conditions requises pour être reconnu comme l'accident, le genre et le propre de ce sujet; s'il est vrai, par exemple, qu'un prédicat réfuté au titre du propre, et au moyen des lieux du propre, est par là-même réfuté au titre de la définition, on devra dire qu'un prédicat établi au titre de la définition est par là-même établi au titre du propre, et inattaquable au regard des lieux du propre. Celà revient à soutenir l'interpétation inclusive du système des prédicables (...)". Note-se porém que esta inclusividade tem um sentido único, e não é reversível - vai da definição ao acidente, não do acidente à definição; isto é, a definição satisfaz as condições da predicação do acidente a fortiori, o que não significa que o que satisfaz as condições da predicação do acidente, satisfaça as da definição, ou seja, que todo o acidente entre na definição. Da tópica do acidente à tópica da definição há um crescendo de força predicativa que une os termos da proposição. No entanto, não se poderá inferir uma conclusão de reversibilidade da inclusividade, no texto Tópicos VII, 1, 152a30-37, que parece introduzir o princípio da identidade dos indiscerníveis?

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acidente do primeiro deve ser também acidente do segundo, de contrário não haverá identidade: "qualquer acidente pertencente a uma (das coisas) pertencerá também à outra, e se uma pertence a outra como seu acidente, também a outra pertencerá. Pois se houver qualquer discrepância nestes pontos, é evidente que não são idênticas"17.

Este texto aristotélico define um princípio da identidade dos indiscerníveis, pondo como condição necessária da identidade a absoluta indiscernibilidade, ou a comunidade de todos os seus acidentes. É uma antecipação do célebre princípio de Leibniz, do qual se pode inferir que não há dois indivíduos idênticos, pois cada um é essencialmente constituído pela totalidade dos seus predicados. Esta formulação indica uma nivelação de todos os predicados de um indivíduo num plano essencial, pois bastaria deixar de possuir um desses predicados, para deixar de ser o mesmo indivíduo. Aqui não ocorre a distinção entre os dois tipos de predicação, καθʹ′ υποκειµενον / κατα συµβεβηκος, mas toda a predicação é καθʹ′ υποκειµενον, tudo é inerente, do mesmo modo ao sujeito da predicação. Por não haver aqui a especificação da predicação essencial (καθʹ′ υποκειµενον), na qual o predicado é atribuído a, predicado de, mas não é num sujeito, inerente a um sujeito, todos os predicados são considerados igualmente como inerentes, o que reforça e acentua um princípio de diferença de indivíduo para indivíduo. Não se admite que possa haver um mesmo predicado comum, atribuível a mais do que um indivíduo, sendo todos os predicados de um determinado indivíduo absorvidos, "fagocitados" pelo sujeito de inerência. Esta concepção permitiria uma leitura "inclusiva" nos dois sentidos - do acidente à definição, da definição ao acidente - mas que não admite diferentes modos de predicar, sendo todos reduzidos a um modo "definitório", reforçando portanto a assimilação entre predicação e identidade, por um lado, mas traduzindo a relação sujeito/predicado sempre como uma relação de inerência, nunca como verdadeira identidade: a identidade está sempre presente e sempre ausente em cada acto de predicar, pois se entre cada predicado e o seu sujeito há uma relação de identidade, a                                                                                                                 17. Tópicos, VII, 1, 152a30-37.

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infinidade de predicações possíveis de cada indivíduo não chega nunca a exprimir cabalmente essa identidade. Se esta teoria da identidade dos indiscerníveis se pode entreler nalgum texto dos Tópicos, é evidente que não é esta a versão dominante que Aristóteles aqui apresenta da noção de identidade. Em primeiro lugar, a refutar já esta leitura, está o facto de Aristóteles não admitir nem a definição de um indivíduo, nem a nivelação entre os quatro predicáveis considerados nesta obra de juventude. Ao introduzir a noção de predicável e justificar a sua divisão em quatro termos, Aristóteles indica, como critério para comprovar a correcção desta divisão, o seguinte: qualquer predicado de um sujeito deve necessariamente ou ser reciprocável com o seu sujeito, ou não. Se o for, deverá ser definição ou próprio. Se não for, pode, apesar de tudo, figurar entre os termos da fórmula definicional, e nesse caso será género, ou não figurar, e nesse caso será acidente. Como é óbvio, neste critério está latente um recurso à noção de diferentes modos de pertencer ao sujeito, como o comprova a conclusão de Aristóteles: "visto que o acidente (...) é o que, não sendo nem definição, nem género, nem próprio, pertence no entanto ao seu sujeito"18.

E logo a seguir, depois de enumerar as categorias das predicações, introduz agora explicitamente, a seguinte distinção: "cada uma destas predicações, quando refere uma coisa a si mesma, ou ao seu género, designa uma essência; quando refere uma coisa a outra diferente, designa, não já uma essência, mas uma quantidade, ou uma qualidade ou ainda uma das outras predicações"19.

Ao introduzir a tópica do acidente, Aristóteles refere de novo o critério de reciprocidade, que ocorre na predicação da definição, do próprio e do género, e que as distingue da predicação do acidente, na qual a reciprocidade não se verifica, ou só muito dificilmente20. Este critério                                                                                                                 18. Tópicos, I, 8, 103b18-20. 19. Tópicos, I, 9, 103b35-39. 20. Cfr. Tópicos, II, 1, 109a10-15.

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poderia assentar apenas num teste extensionalista: A e B serão reciprocáveis se todos os A forem B, e todos os B forem A. No entanto, mesmo aqui, Aristóteles propõe uma prova muito mais forte e vinculativa. A razão da verificação e da ausência de reciprocidade nuns casos e no outro, está no diferente modo de predicar: no caso da predicação da definição, do género e do próprio, estas determinações não podem pertencer ou não pertencer a um sujeito, ou pertencer sob um determinado aspecto; pertencem-lhe pura e simplesmente, ou não lhe pertencem em absoluto. No primeiro caso a predicação diz o que a coisa é por si mesma, em absoluto, no segundo, di-lo só em sentivo relativo. Nesta passagem está de certo modo antecipado o "essencialismo aristotélico" - alguns predicados, os essenciais, não pertencem ou deixam de pertencer a um sujeito de um modo relativo, mas pertencem-lhe em absoluto, em si mesmo considerado, porque o constituem essencialmente, enquanto outros lhe pertencem apenas de uma forma "extrínseca", são-lhe atribuídos sob algum aspecto determinado, ou em relação a alguma circunstância particular. Isto parece indicar que para a identidade do sujeito enquanto tal, só teriam relevância os primeiros predicados e não os últimos. Porque apresenta então Aristóteles, como critério de identidade, em VII, I, 152a30-37, a indiscernibilidade, ou a absoluta comunidade de todos os acidentes? Estaria Aristóteles inclinado para um modelo de identidade absoluta, à qual se reduziria em última análise toda e qualquer forma de predicação? Ou, utilizando uma terminologia mais moderna, teria em mente uma redução de todas as verdades de facto a verdades de razão, de todos os juízos sintéticos a juízos analíticos, fundados numa espécie de "princípio de razão suficiente" traduzido na noção de ουσια, substrato, causa e fundamento de todos os atributos? Seria sem dúvida precipitada esta interpretação, visto que existem textos aristotélicos que corrigem, ou pelo menos atenuam o critério de identidade proposto no citado texto dos Tópicos, e que têm sido considerados como complementares deste. Ao tratar das falácias do acidente, nas Refutações, Aristóteles apresenta vários exemplos que infirmam o critério de identidade proposto no texto dos Tópicos: o primeiro grupo de exemplos proposto por Aristóteles ilustra a mesma falácia, que consiste em

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atribuir ao sujeito o que se pode atribuir ou dizer de algum dos seus acidentes. "Conheces o que te vou perguntar?", "Conheces o homem que se aproxima de face velada?", "A estátua é obra tua?"21 Como se pode conhecer o que se vai perguntar, sem saber o que se vai perguntar? Se conheço Corisco e o homem que se aproxima de face velada é Corisco, como posso conhecer e não conhecer Corisco? Se a estátua é obra tua, porque te pertence, como pode ao mesmo tempo não ser tua, porque não é da tua autoria? Aristóteles coloca-nos diante do mesmo problema: o facto de ter a face velada ou de se aproximar, é um acidente de Corisco, mas pelo facto de o conhecer, posso não o conhecer por esse acidente. Pelo facto de dizer que desconheço esse acidente, não se pode inferir que não conheço o sujeito do acidente. Aqui não se verifica a transitividade da predicação, o que se predica do acidente não é necessariamente predicado do sujeito. A solução aristotélica deste grupo de falácias do acidente pode ser considerada como uma restrição ao princípio da identidade dos indiscerníveis aristotélico, que é explicitamente corrigido na seguinte passagem: "É evidente que, em todos estes casos, não se segue necessariamente que o atributo que é verdadeiro do acidente o seja também do sujeito. Pois em geral só pertencem os mesmos atributos àquelas coisas que são indiscerníveis e uma só na essência"22.

Um outro grupo de exemplos ilustra a indistinção entre o que se diz de uma expressão na sua acepção própria e o que se diz dessa mesma expressão mas apenas em relação a alguma circunstância particular: "É possível para o que é, não ser? Certamente que é algo que não é. Assim, ser será não ser; pois não será qualquer coisa particular que é"23.

                                                                                                                21. Refut. Sof., XXIV, 179a30-35; cfr. sobre esta questão o interessante trabalho de Zaslawsky, D. - "Le sophisme comme anomalie" in Cassin, B. - Le Plaisir de Parler, pp. 173-199: o autor aproxima, acertadamente, as falácias do acidente apresentadas por Aristóteles, dos problemas da opacidade referencial que infirmam o princípio da substituibilidade dos idênticos. 22. Refut. Sof., 179a35. 23. Refut. Sof., 180a32-35.

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Outros exemplos deste grupo são os das frases introduzidas por verbos como "ordeno" ("ordeno que desobedeças") e "juro" ("juro que perjuro"), e o célebre paradoxo do mentiroso. A solução comum para este segundo grupo de exemplos não é senão uma segunda versão da primeira: ser em si não é o mesmo que ser em relação a algo determinado. É possível que algo seja em si e não seja em relação a algo determinado24. O que se atribui a uma determinada coisa por si mesma, não tem por que se atribuir do mesmo modo a essa mesma coisa quando considerada em relação a algo, ou sob um determinado aspecto. O que se atribui a Corisco por si mesmo que o conheço - não tem por que atribuir-se a Corisco enquanto homem de face velada. Parece ficar claro, depois destas restrições à primeira tese da identidade como indiscernibilidade, que a incipiente teoria da predicação de Aristóteles evita já as dificuldades de duas posições extremas: 1. a de reduzir toda a predicação à identidade, exigindo como critério e condição de identidade a indiscernibilidade absoluta dos dois termos, e regulando toda a predicação exclusivamente pelo modelo da inerência do atributo ao seu sujeito (e excluindo assim à partida qualquer juízo autenticamente sintético); 2. a de separar, como mutuamente exclusivas, a predicação pura e simples, a do acidente, da identidade que apenas se daria na predicação essencial (separando drasticamente o analítico do sintético). Ao longo dos Tópicos e Refutações Sof. pode detectar-se nitidamente uma tensão entre dois modelos de predicação: um que, para resguardar a tópica do acidente sobretudo na relevância que tem para a identidade e diferença individual, conduziria a um super-essencialismo, reforçando a noção de indivíduo como sujeito clausurado em si mesmo, contendo todas as suas determinações; outro que, fundado na distinção entre predicação απλϖ ς e κατα τι aponta para o que será geralmente considerado e designado por "essencialismo aristotélico", e que garante a estabilidade de um núcleo ontológico em tudo o que existe, ao preço de pôr em risco a noção de                                                                                                                 24. Cfr. Refut. Sof., 180a35-180b.

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indivíduo. Não está aqui já antecipada toda a problemática fulcral do pensamento aristotélico, o problema da ουσια que ocupará os livros centrais da Metafísica? Na ουσια aristotélica entrecruzam-se os dois modelos predicativos, mas a distinção entre καθʹ′αυτο e κατα συµβεβηκος que Aristóteles, não sei se por razões estratégicas de argumentação contra a sofística, manterá de modo firme e inamovível, dificultará uma resolução satisfatória da noção de substância individual. Se o esboço da estrutura da predicação se detecta em muitos dos textos dos Tópicos e Refutações, com a distinção anunciada entre dois modos de predicação, ela é a trave mestra na organização das Categorias: "Entre os seres - escreve Aristóteles - uns dizem-se de um sujeito sem que estejam em nenhum sujeito: por exemplo homem diz-se do homem individual tomado como sujeito, mas não está em nenhum sujeito; outros estão em um sujeito sem que se digam de um sujeito (estar em um sujeito quer dizer aquilo que, sem se encontrar num sujeito como parte sua, não pode existir separado da coisa na qual está): por exemplo, uma certa ciência gramatical existe em um sujeito - na alma - mas não se afirma de um sujeito; e uma certa brancura existe em um sujeito - no corpo (porque toda a brancura existe num corpo), e no entanto não se afirma de nenhum sujeito. Outras afirmam-se de um sujeito e ao mesmo tempo estão em um sujeito: por exemplo a Ciência existe num sujeito - na alma - e é também afirmada de um sujeito, a gramática. Outros seres por fim não existem em um sujeito, nem se afirmam de um sujeito, por exemplo este homem, este cavalo, porque nenhum ser desta natureza existe num sujeito nem se afirma de um sujeito. Em geral, os indivíduos e o que é numericamente um nunca se afirmam de um sujeito; no entanto, nada impede que existam num sujeito, porque uma certa ciência gramatical existe num sujeito"25 (sublinhados nossos).

                                                                                                                25. Categorias, 2, 1a20-1b9; cfr. o já citado texto de Tópicos, IV, 6, 127b1-4.

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No seu trabalho sobre o sistema das Categorias, Vuillemin26 assinala as duas funções atribuídas neste texto à cópula: uma segundo a qual algo é dito de um sujeito, e outra segundo a qual algo se diz existir em um sujeito. As versões latinas de Boécio e de Guilherme de Moerbeke traduzem esta distinção entre Καθʹ′ υποκειµενον e Εν υποκειµενω por dicitur de subjecto e in subjecto esse. As duas expressões dividem os seres em dois grandes grupos: por um lado todos aqueles seres que não se afirmam de um sujeito, nem existem em um sujeito - as substâncias individuais ou substâncias primeiras - e por outro lado tudo o que se diz das substâncias ou existe nestas substâncias. Esta dicotomia determina a natureza da predicação: quando um predicado se diz de um sujeito, sem existir no entanto nesse sujeito, o predicado atribuir-se-á ao sujeito como um sinónimo. "Sinónimas são as coisas que têm nome comum e identidade de noção"27. Por exemplo, homem diz-se de um sujeito, do homem individual e neste caso tanto o próprio nome de "homem" como a sua definição podem ser atribuídos ao homem individual. Pelo contrário quando se trata das coisas que existem num sujeito, se a atribuição do nome por vezes se pode fazer sinonimicamente, esta atribuição é impossível para a definição: por exemplo o atributo "branco" existe num determinado corpo, no entanto, não posso atribuir a este corpo nem o nome, nem a definição de branco. No caso do acidente ser tomado em concreto, este branco individual, o nome do acidente branco pode atribuir-se ao corpo, isto é posso designá-lo ou fazer-lhe referência directa através do nome do acidente, mas não lhe posso atribuir a sua definição28. Só se dá sinonímia, e portanto identidade que permita substituibilidade dos nomes salva veritate, na predicação Καθʹ′ υποκειµενον e não na Εν υποκειµενω. No primeiro modo de predicação (Καθʹ′ υποκειµενον) é permitida a transitividade da identidade do atributo de um acidente para o seu sujeito: o que se diz de homem enquanto espécie                                                                                                                 26. Vuillemin, J. - "Le Système des Catégories d'Aristote et sa signification Logique et Métaphysique" in De la Logique à la Théologie, Paris, Flammarion, 1967, p. 44. 27. Categorias, 1, 1a6-7. 28. Cfr. Vuillemin, J. - ob. cit., p. 46; cfr. Categorias, 5, 2a21-34; no entanto, no caso de atribuição do nome do acidente à substância, normalmente é necessário recorrer a um parónimo, como por exemplo: o acidente gramática inerente a homem; o homem não se designa por gramática, mas gramático.

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poderá dizer-se do homem individual; mas tal transitividade não é permitida na predicação Εν υποκειµενω, ou predicação acidental: o que se diz do branco, enquanto cor, não pode transferir-se para determinado corpo que possui a qualidade de ser branco. É esta indistinção que está na origem das falácias referidas em Refut. Sof. 179a35. As análises das Categorias vêm pois sublinhar e reforçar as elucidações das Refut. para resolver as falácias do acidente. Esta dicotomia, no entanto, como já observámos, começa a delinear dois modelos diferentes da predicação (que os latinos designam por dicitur e inesse) de difícil conciliação29. Os dois modelos convergem num ponto comum - υποκειµενον - como sujeito último de toda a predicação e substracto de inerência, "continente" de todos os acidentes que nele existem. Mas estes dois sentidos ou modos de conceber a substância respresentam dois princípios heterogéneos: o primeiro é um princípio de ordem lógica, enquanto o segundo é um princípio metafísico. A heterogeneidade destes dois princípios dá origem a um desencontro no ponto de convergência das duas séries de predicação dicitur (Καθʹ′ υποκειµενον) e inesse (Εν υποκειµενω). Para ver com mais clareza este desencontro, convem traçar o quadro das combinatórias que permite esta distinção:

Ser dito de um sujeito

Não existir num sujeito

Existir num sujeito

Substância segunda: espécie, género - Homem

Conhecimento acidente universal

                                                                                                                29. Cfr. Vuillemin, J. - ob. cit., p. 46 nota 3: o autor observa que no aristotelismo a relação de predicação é primeiramente caracterizada pelo dicitur e não pelo inesse; enquanto na época leibniziana será a caracterização de inesse que predominará. Como já observámos, o primeiro modo de predicação vai determinar o "essencialismo" que pressupõe em cada indivíduo algumas propriedades necessárias, essenciais, e outras contingentes, acidentais (na III parte deste trabalho discutir-se-á a oportunidade de associar as categorias modais ao binómio essencial/acidental); o segundo modo de predicação, inesse vai constituir o que pode ser designado como um "super-essencialismo", que pressupõe todas as propriedades, atributos, determinações, como internas ao indivíduo, portanto constitutivas da sua essência.

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Não ser dito de um sujeito

Substância individual este homem

Um determinado branco acidente singular

Seguindo a série da predicação do modo dicitur (ser dito de um sujeito), o último elemento não é só a substância individual, mas sim o acidente individual; quanto ao estatuto lógico na escala da predicação, "um determinado branco" não é inferior a "este determinado homem", porque ambos, pela sua singularidade se apresentam como absolutamente "impredicáveis"30. No entanto, do ponto de vista ontológico Aristóteles não se cansará de sublinhar os seus diferentes estatutos: "um determinado homem" existe por si, independentemente, enquanto "um determinado branco" só existe numa determinada substância individual. Este desnível ontológico leva Aristóteles a concluir imediatamente a necessidade da existência de substâncias primeiras, de contrário nada existiria. Mas só mediante um desvio e um recurso ao plano metafísico é que se pode prolongar a predicação lógica até à ουσια, fazendo coincidir assim os dois modos dicitur e inesse. Como acertadamente observa Chen, a teoria da predicação das Categorias revela-se incompleta, porque não é capaz de mostrar porque é que "um determinado homem", enquanto sujeito último, possui um estatuto superior ao de "um certo branco"31. Só nos Analit. Post. é que Aritóteles completará a estrutura estritamente lógica da predicação de modo a fazer coincidir os dois modelos na noção central da sua filosofia - a ουσια - substância individual: Aristóteles discute os seguintes exemplos de proposições32:                                                                                                                 30. Cfr. Chen, C.-H. - Sophia, Hildesheim, G. Olms, 1976, p. 167: " 'A certain white', for example, is not inferior in logical status to 'a certain man'. However, in spite of the same absolute non predicability, 'a certain white' and 'a certain man' are unequal in their ontic status, i. e. in terms of self-existence or independence. Individual substance exists by itself, while accidents (even an individual accident such as τι λευκον) exist only in concomitance with an individual substance. Hence Aristotle concludes: "If these last (primary substances) did not exist, it would be impossible for anything else to exist" (Categorias, 5, 2b3-6). 31. Cfr. Chen, C.-H. - ob. cit., p. 167. 32. Cfr. Analit. Post., 83a1-4.

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1. "o (objecto) branco anda" 2. "aquela coisa grande é de madeira" 3. "o pedaço de madeira é grande" 4. "o homem anda". Os dois primeiros exemplos são, como é evidente, radicalmente distintos dos segundos e Aristóteles só considera os últimos, como exemplos de predicação propriamente dita; no primeiro e segundo, ou não se trata de predicação, ou se trata de uma predicação num sentido meramente acidental. Aristóteles estabelece aqui, como complemento ao tratamento da predicação nas Categorias, uma regra geral para a predicação genuína, em sentido próprio: em qualquer forma de predicação inter-categorial, o sujeito deve pertencer à primeira categoria e o predicado a uma categoria secundária. A ουσια é irrevocavelmente situada no centro da predicação lógica, como único sujeito de pleno direito33. E só os predicados que referem a essência indicam identidade entre o sujeito e o predicado (ou parte do predicado); os outros, que não referem a essência, mas se afirmam de um outro sujeito, que não é idêntico nem com o predicado, nem com parte do predicado, indicam os acidentes. O homem não é idêntico a branco nem a nenhuma forma particular de branco, mas é supostamente idêntico a animal, porque é idêntico a um certo tipo de animal34. A teoria da predicação é aqui completada por este último passo até à substância individual. Em Analit. Post. 83b12-17, Aristóteles conclui, sumariando a sua exposição sobre este tema, que não pode haver uma cadeia descendente infinita de predicações; a primeira série não é infinita porque aqueles predicados últimos que não são nunca sujeito de nenhuma outra atribuição constituem o seu limite superior; a segunda série não é infinita porque a categoria das substâncias individuais que são sujeito, mas nunca predicados, constituem o seu limite inferior. Do ponto de vista das                                                                                                                 33. Analit. Post., 83a24-31: "Os predicados que não denotam a essência têm que predicar-se de algum sujeito; uma coisa não pode ser branca sem primeiro ser qualquer outra coisa". Sem dúvida alguma Aristóteles se refere aqui ao sujeito como substância individual, como o comprova a rejeição frontal que faz logo a seguir das Formas Platónicas como universais auto-subsistentes. 34. Cfr. Analit. Post., 83a24-31.

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Categorias, neste limite inferior poderia incluir-se também o acidente individual - "um certo branco" - considerado sujeito último e não predicado. Mas nos Analit. Post., Aristóteles ultrapassa este limite, pois no caso de categorias secundárias exige que a cadeia da predicação se prolongue até encontrar o seu verdadeiro limite último, na primeira categoria, a ουσια. A tese do individualismo que, nas Categorias exigiu o recurso a um argumento de ordem metafísico da primazia da substância primeira, é agora reconfirmada e resguardada com regras estritamente lógicas, que garantem a exclusividade da função de sujeito para a substância individual. A separação, que já nos Tópicos começara a despontar, entre dois modos heterogéneos de predicação, torna-se agora nítida, taxativa e irrevocável. No entanto, além desta distinção, o que Aristóteles procura esclarecer é a delimitação estreita do campo da predicação possível, estabelecendo as condições e regras bem definidas para a predicação propriamente dita. A última dessas regras, estabelecida em Analit. Post.35, que requer dos predicados não essenciais que sejam predicados de algum sujeito (κατα τινος υποκειµενου), exclui da predicação propriamente dita os casos em que se atribua uma substância a um acidente, ou um acidente a outro acidente. Estes casos, formas derivadas, mas não predicações genuínas, para serem válidos, devem ser reconduzidos, ou retroreferidos a uma forma originária de predicação καθʹ′ υποκειµενον. No fundo, o que Aristóteles exige, com esta regra, é um fundamento de identidade para toda a forma de predicação. Nos casos da predicação acidental, como se vem corroborando desde os Tópicos, tal identidade não está patente, em virtude da não reversibilidade entre sujeito e predicado. Só nos casos de predicação essencial, em que o predicado exprime a essência ou parte da essência, é que se dá identidade entre sujeito e predicado36. No caso                                                                                                                 35. Cfr. 83a30-35. 36. Cfr. Weidemann, H. - "In defence of Aristotle's Theory of Predication", Phronesis, 25 (1980) pp. 76-87: Weidemann discute a interpretação de Kirwan, segundo o qual a distinção aristotélica entre predicação essencial e acidental se deveria precisamente ao facto de no primeiro caso haver identidade entre sujeito e predicado, e no segundo haver apenas coincidência entre uma substância e uma qualidade. Segundo esta óptica, a teoria da predicação seria ambígua, assimilando predicação essencial a identidade.

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da predicação acidental a relação entre os dois termos da proposição terá também, de algum modo que fundamentar-se nalgum princípio de identidade: esse fundamento só pode ser proporcionado pela ουσια substância individual; não se dá a identidade entre as noções de homem e de branco, mas se posso predicar branco deste homem determinado, é porque nessa substância individual, ser-homem e ser-branco são um, são numericamente idênticos e é a identidade numérica, neste caso, que legitima a predicação, tal como no caso da predicação essencial, será a identidade genérica ou específica. A distinção aristotélica não abre brecha entre predicação e identidade, mas sim entre predicação propriamente dita - a que se funda na identidade essencial, específica ou genérica - e a predicação "derivada", que tem um fundamento indirecto na identidade numérica, pois qualquer das suas formas - atribuição de um acidente a outro acidente, etc. - deverá ser referida a uma forma - protoforma - da predicação, na qual o sujeito é uma substância individual, e o predicado um atributo seu. Portanto, todas as formas de predicação encontram o seu foco último, a condição mais radical da sua possibilidade, na identidade da própria substância individual. Por isso a teoria da predicação de Aristóteles ficará suspensa da questão da ουσια, particularmente do problema central do livro Z, 6 da Metafísica: cada coisa, cada ser singular é realmente idêntico com a sua própria essência? Ou há identidade de cada ser singular com aquilo que o constitui nesse indivíduo determinado? Ou, em termos mais actuais - o universo lógico, como o ontológico, é constituído por unidades últimas, estáveis, idênticas a si mesmas? A resposta afirmativa a estas questões assenta, em última análise numa argumentação de tipo   "transcendental": tanto no livro Γ (no qual Aristóteles procura mostrar que os nomes tem um significado determinado, e um só significado, contra os que defendem que tudo se pode dizer de tudo), como no livro Z (em que se procura mostrar a identidade de cada coisa com a sua própria essência), os argumentos que Aristóteles invoca são tirados da própria realidade incontestável do discurso significativo e do conhecimento. Se as palavras que empregamos não tivessem um significado determinado                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   Weidemann atribui a Aristóteles a discutida distinção e separação dos sentidos predicativo/copulativo, existencial e de identidade do verbo ser.

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(se "homem" não significasse o que é ser-homem) e se as coisas não fossem idênticas às suas essências (pelas quais as podemos conhecer), então nenhum discurso, nenhum conhecimento seria possível. A comprovação de que utilizamos a linguagem com sentido e de que temos algum conhecimento do que são as coisas, é a prova cabal de que há identidade de significação das palavras e há identidade de cada ser singular com a sua essência. O universo do discurso assenta em unidades últimas de significação, e o universo ontológico assenta em unidades últimas, em seres que detêm em si um princípio de identidade consigo mesmos.

v v v

Sistematizemos: Podemos opor e combinar, segundo Aristóteles, dois sentidos fundamentais da cópula, como elo de ligação entre os termos da proposição: num primeiro sentido, a cópula permite dizer de uma substância primeira, uma substância segunda. A teoria da analogia permite agrupar neste mesmo sentido, embora debilitando o significado da cópula, a relação de subordinação entre substâncias segundas e as relações de subordinação entre particulares abstractos e generalidades abstractas por um lado, e entre generalidades abstractas por outro. A relação fundamental assim expressa é a do particular com o universal: ser dito de um sujeito37. Este primeiro género de predicação, seguindo o trabalho de Vuillemin, aponta quatro características principais: 1. O predicado é real, não conceptual; embora "homem" não exista independentemente de Sócrates, Platão, etc., Aristóteles não defende um conceptualismo que reduza os universais a produtos do nosso pensamento e da actividade de abstracção; embora a forma seja imanente à matéria, e o universal ao singular, forma e universal são bem reais.                                                                                                                 37. Cfr. Vuillemin, J. - ob. cit., p. 111.

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2. Não há univocidade na determinação da predicação: todas as nuances da analogia se abrem e se desdobram, desde o juízo, protoforma da predicação, "Sócrates é um homem" até à forma "derivada" "o branco é uma cor", a partir de um sentido originário e fundamental que é exemplificado pelo primeiro destes juízos, exprimindo a identidade de um indivíduo com a sua essência. 3. A preeminência da forma que atribui uma substância segunda a uma substância primeira, ilustrada pelo primeiro exemplo acima, é a expressão clara do privilégio atribuído por Aristóteles à substância, particularmente à substância primeira nas Categorias. O "é" destas proposições exprime a unidade, na substância, entre matéria e forma, potência e acto, unidade resistente ao tempo e ao movimento. 4. Como consequência desta perspectiva, Vuillemin crê poder concluir que toda a predicação, por estar implicitamente contida no sujeito-substância, é analítica - conclusão leibniziana que, em todo o caso me parece forçada, visto que Aristóteles não nivelará todos os predicados ou atributos pertencentes à substância individual pelo mesmo grau de identidade. Como o próprio Vuillemin observa, há como que um debilitamento da força predicativa da cópula, entre a atribuição do predicado homem (predicado essencial) a Sócrates, e a atribuição de cor (uma qualidade) a branco. Há uma analogia entre as diferentes formas de predicação, não uma univocidade38. O traço de fronteira entre as várias formas de predicação, não passa no entanto entre identidade e predicação; antes, dentro de toda a predicação, que inclui também a identidade, a principal linha de divisão passa entre o ser dito de e o ser dito em. É na primeira forma de predicação - ser dito de - que encontramos a mais adequada expressão da identidade, a atribuição de uma essência ao respectivo singular.

                                                                                                                38. Cfr. Vuillemin, J. - ob. cit., p. 112-113.

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Num segundo sentido, a predicação exprime que uma coisa existe numa outra, que um ser abstracto - particular ou geral - existe num ser concreto39. Este segundo tipo de predicação (existe em um sujeito inesse) apresenta, segundo a perspectiva de Vuillemin, três características suplementares: 1. Um predicado que existe num sujeito não é tão real como um predicado que é dito de um sujeito40. O realismo dos acidentes está dependente do da substância individual e sua identidade. Neste primeiro traço característico da predicação acidental está implícita a crítica de Aristóteles ao realismo platónico, que constitui a segunda característica. 2. A transcendência que hipostasia todos os atributos e acidentes da substância, leva à confusão entre o ser dito de e o estar ou existir em um sujeito. Para Platão nenhuma propriedade, nenhum atributo pode existir num sujeito, mas tem existência separada. Por isso Platão nivela todo o tipo de predicados: Sócrates participa da forma (ειδος) homem, do mesmo modo que participa da brancura. Este segundo tipo de predicação considerado por Aristóteles, introduz um segundo movimento, vertical, que não implica a transcendência e a hipostasiação dos acidentes, além do movimento horizontal, entre universal/singular. Na predicação segundo a forma de ser ou estar em um sujeito, o movimento vertical não esgota nunca a totalidade dos acidentes predicáveis do singular, por isso não se exprime nunca de uma forma adequada a identidade. Mas é a unidade e identidade do singular que serve de                                                                                                                 39. Cfr. ibidem, p. 113. 40. Ibidem, p. 114: "Le réalisme aristotélicien est donc relatif au premier genre et son conceptualisme au second genre de la prédication: celui-ci à la prédication accidentelle et celui-là à la prédication essentielle. En effet, la prédication du premier genre reflète le rapport naturel de l'universel et du particulier, dont l'image réelle n'est autre que le processus même de la génération; au contraire, la prédication au second sens introduit un procédé psychologique qui force, pour ainsi dire, la nature de la substance, en détachant d'elle par la pensée des accidents qui ne sont qu'en puissance en elle".

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sujeito de predicação, que fundamenta e possibilita toda a predicação acidental. 3. Aristóteles, ao distinguir estes dois modos de predicação, faz ver que a causa do acidente é a matéria, que constitui o "fundo obscuro" da substância: é precisamente pelo facto de a substância sensível comportar a matéria e não estar nunca completamente actualizada, que se vai revelando através dos seus acidentes, sem que se esgote jamais esse "fundo obscuro" que permanece como sujeito41. O fio condutor da dedução das categorias em Aristóteles é portanto a noção de substância individual, ou melhor o princípio de identidade e o princípio de diferenciação implícitos na substância individual. Sem a identidade da substância primeira toda a predicação seria inviável, visto que é na atribuição da forma essencial ao sujeito individual que se exprime o sentido originário e fundamental da cópula que, por analogia se estende às outras formas da predicação. Daí a força tendencial que inclina para a redução de toda a predicação a uma forma de inerência, reconvertendo-a sempre em identidade. Mas, por outro lado, dentro da própria substância individual há um princípio de diferenciação, que não só diferencia cada ser individual de todos os outros, mas também institui em cada indivíduo um desnível, uma diferença ontológica entre o que é e o que há-de, ou pode ser, entre um ser determinado e ao mesmo tempo um ser a determinar: este princípio de diferenciação marca a heterogeneidade entre os dois modos de predicação sempre presentes no pensamento aristotélico. No entanto, como foi dito, sem a identidade real da substância individual, não haveria predicação possível. Toda a predicação se funda num ponto de partida e a ele mesmo retrocede. Por isso a teoria da predicação aristotélica permanece na dependência da resolução da questão central em Metafísica, Z, 6, a da identidade de cada singular com a sua essência. A                                                                                                                 41. Ibidem, p. 115: "Ainsi le surplus obscur du jugement de prédication proprement dit se révèle dans la possibilité du jugement d'abstraction et c'est parce que la substance sensible comporte de la matière et qu'elle n'est donc jamais actualisée, qu'elle se révèle aussi a la sensation par les accidents qui lui adviennent".

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tensão que vimos detectando desde os textos dos Tópicos entre dois modelos de predicação encontrará finalmente uma resolução final na noção da ουσια? Ou prolongar-se-á nesse "fundo obscuro", no abismo metafísico da noção de indivíduo? A teoria aristotélica da predicação assenta fundamentalmente numa diferenciação de duas coordenadas que traçam duas dimensões, uma vertical, outra horizontal (καθʹ′ υποκειµενον e κατα συµβεβηκος): com estas duas dimensões a teoria de Aristóteles cobre toda a gama das possíveis predicações, dando a primazia à atribuição da essência (ou substância segunda) ao singular, mas justificando também a atribuição de um abstracto a outro abstracto, por referência analógica à protoforma da predicação. As distinções das várias formas de predicação remetem sempre para a forma que, dentro da predicação essencial, atribui, identifica o singular com a sua própria essência. Portanto a distinção de Aristóteles não só não pressupõe uma divisão entre predicação e identidade, mas mostra a fundamentação e dependência da primeira em relação à segunda. Apesar de fundamentada na identidade, não se pode, no entanto, assimilar simplesmente predicação com identidade, reduzindo todos os modos de predicar a meras relações de identidade, transformando toda a atribuição numa relação horizontal, entre nomes do mesmo objecto. Tratar toda a predicação de um modo unívoco, como mera relação de identidade referencial de vários nomes, equivaleria a anular a sua dimensão vertical, na qual Aristóteles situa a protoforma da predicação. Reduzidas a dimensões horizontais, as relações predicativas exprimiriam meras relações de um mesmo nível, entre classes, ou entre indivíduos e classes. Esta versão extensionalista da predicação é que sugere a necessidade de distinguir e separar as relações de predicação e de identidade, reservando esta última para a igualdade entre extensões. Se considerarmos um indivíduo como uma classe - a classe de todos os seus atributos, predicados - a relação de predicação será sempre uma relação de inerência, sempre uma relação interna, fundada na mesmidade de um indivíduo consigo mesmo. Esta perspectiva, se por um lado reforça e simplifica até certo ponto a definição de ουσια, de substância individual, primeira, como um centro atractor de todos os seus acidentes, de todos os

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seus predicados, por outro lado fecha de tal modo os contornos de cada singular, que inviabiliza qualquer abertura à diferença, à mudança, ao tempo, aos outros. E, se bem que reduza todas as predicações a um modelo único - o de inesse - e as fundamente na identidade numérica de cada indivíduo, adia indefinidamente a expressão da identidade, pois nunca se esgota o número de predicados de um indivíduo. A principal vantagem da teoria aristotélica é, sem dúvida a sua estrutura assente nas duas coordenadas, vertical e horizontal, que abre uma perspectiva bem ampla, de modo a considerar os diversos problemas lógicos e ontológicos implicados na predicação.

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FREGE E A LÓGICA DA PREDICAÇÃO A lógica moderna, sobretudo a partir de Frege, recuperou a estrutura simplesmente dual da forma predicativa, dispensando o recurso a uma teoria da cópula e suas funções na proposição. No entanto, como referimos já, apesar deste retorno à nitidez da protoforma predicativa, Frege é um dos lógicos a denunciar as ambiguidades do verbo ser no juízo, chamando a atenção para a sua ocorrência, ora como signo de identidade, ora como signo de predicação. Esta aparente incongruência no pensamento lógico de Frege deve-se talvez às suas constantes oscilações entre um tratamento intensional e um tratamento extensional do conceito e da proposição. O predomínio da perspectiva extensional, está bem patente na relação lógica que Frege considera a fundamental, a relação de um objecto com um conceito expressa pela expressão cair sob que traduz sobretudo uma relação de inclusão, ou de pertença a uma extensão. Na estrutura predicativa da teoria de Frege não se pode admitir a dimensão vertical da atribuição de um universal a um singular, ou da identificação de um objecto com um conceito. As relações predicativas são horizontalmente analisadas como relações entre objectos, sempre - objectos singulares e classes ou extensões de conceitos. No entanto, veremos que na concepção da ordem predicativa, Frege introduz uma distinção entre "propriedades" e "notas características" dos conceitos, que permitirá uma abordagem intensional na análise de certos predicados: nomeadamente o predicado "é idêntico", tal como "existe", beneficiarão de um tratamento lógico adequado, graças à noção de "níveis de predicação". Estes predicados não se deixam moldar através de um tratamento meramente extensionalista, pela via das respectivas extensões. Sendo de máxima extensão - a identidade, a unidade, a existência podem predicar-se de tudo - a sua análise terá que recorrer a uma perspectiva intensional. Frege preparará o terreno para uma teoria adequada destes predicados, apesar da sua teoria da predicação assentar basicamente numa estrutura vertical, extensionalista. A distinção radical que Frege traça entre conceito e objecto é determinante para a separação entre predicação e identidade e será determinante também para as relações lógicas fundamentais que constituem

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a estrutura da sua teoria. Um objecto pode cair sob um conceito (das Fallen eines Einzelnen unter einen Begriff) e essa é a relação lógica fundamental, a relação expressa na predicação; dada a radical distinção entre conceito e objecto, um objecto não poderá nunca identificar-se com um conceito, nem mesmo com o conceito individual desse mesmo objecto, e portanto a atribuição de um conceito a um objecto não exprimirá nunca uma identidade. Frege refere inúmeras vezes esta relação lógica fundamental, uma relação predicativa, do cair de um objecto sob um conceito. A relação predicativa poderá tender assintoticamente para a relação de identidade, mas dada a separação radical entre conceito e objecto, pertencentes a dois domínios heterogéneos, nunca entre ambos se poderá estabelecer uma identidade. O que caracteriza e define o conceito é o seu carácter predicativo. De facto Frege introduz a noção de conceito como referência de um predicado gramatical42. Pelo contrário, um objecto, designado por um nome próprio, não pode nunca ocorrer como predicado. Referimos já um texto de BG, onde Frege explicita os casos em que aparentemente se afirma algo de um objecto (nome próprio), como por exemplo quando dizemos de alguém que é Alexander Magno, ou de algo que é o planeta Vénus. Estes casos, depois de analisados, revelam um outro sentido da cópula "é" que não o predicativo, mas sim o de identidade. O exemplo da proposição "esta folha é verde" exibe perfeitamente a relação predicativa: algo (algum objecto) cai sob (unterfallt) um conceito. Este é o único caso em que se dá propriamente predicação, que se caracteriza como a subsunção de um objecto por um conceito. Os outros casos, como "a Estrela da Manhã é Vénus", não constituem exemplos de predicação, mas de identidade, no sentido aritmético de igualdade43. Os dois nomes próprios "Estrela da Manhã" e "Vénus" referem o mesmo objecto, e a expressão "Vénus", que ocorre no lugar do predicado, não corresponde ao predicado completo, que é "é                                                                                                                 42. BG, KS, p. 168 nota 1: "Der Begriff - wie ich das Wort verstehe - ist prädikativ!" Nota: "Er ist nämlich Bedeutung eines grammatischen Prädikats!" 43. BG, KS, p. 168 nota 2: "Ich brauche das Wort "gleich" und das Zeichen "=" in dem Sinne von "dasselbe wie", "nichts anderes als", "identisch mit".

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idêntido a Vénus", ou, como parafraseia Frege "não é outro senão Vénus"44. "Ser idêntico a Vénus" é um conceito e portanto pode funcionar como predicado. Frege é pois terminante na distinção e separação entre conceito e objecto, bem como entre as respectivas expressões gramaticais (predicado e sujeito). Uma relação de predicação implica sempre esta diferença radical entre conceito e objecto, mesmo no caso de ser um conceito que subsuma um só objecto. Em primeiro lugar, porque, afirma Frege, um conceito não deixa de ser um conceito pelo facto de sob ele cair apenas um objecto, objecto que é portanto completamente determinado por esse conceito. Por exemplo, "satélite da Terra" é um conceito, apesar de subsumir um só objecto, a Lua, determinando-o completamente. Neste caso, observa Frege, não há necessidade de um processo de abstracção para alcançar o conceito, o que comprova que não é esse o único modo de adquirir conceitos45. Portanto, na afirmação "A Lua é satélite da Terra" é necessário distinguir do mesmo modo entre o objecto ("lua"), sujeito da predicação, e a propriedade ou o conceito "ser satélite da Terra", predicado. Desta relação fundamental entre um objecto e os conceitos sob os quais cai, distingue Frege outra relação lógica, a da subordinação entre conceitos: (des Fallens eines Gegenstandes unter einen Begriff und der Unterördnung eines Begriff unter einen Begriff)46. Esta segunda relação é a                                                                                                                 44. Cfr. BG, KS, p. 169; cfr. também Gla, § 66: "In dem Satze 'die Richtung von a ist gleich der Richtung von b' erscheint die Richtung von a als Gegenstand". Frege esclarece em nota: "Der bestimmte Artikel deutet dies an. Begriff ist für mich ein mögliches Prädikat eines singulären beurtheilbaren Inhalts, Gegenstand ein mögliches Subjekt eines solchen. Wenn wir in dem Satze 'die Richtung der Fernrohraxe ist gleich der Richtung der Erdaxe' die Richtung der Fernrohraxe als Subjekt ansehen, so ist das Prädikat 'gleich der Richtung der Erdaxe'. Dies ist ein Begriff. Aber die Richtung der Erdaxe ist nur ein Theil des Prädikates; sie ist ein Gegenstand, da sie auch zum Subjekte gemacht werden kann". 45. Cfr. Gla, § 51. 46. Cfr. KB, KS, p. 193; Este artigo foi escrito fundamentalmente para chamar a atenção para a necessidade desta distinção entre subsunção de um objecto por um conceito e subordinação de um conceito a outro conceito, distinção que parece desconhecida por muitos lógicos. Frege acusa Schröder de não fazer a distinção e fundir estas duas relações numa outra, a da parte/todo: um domínio (Gebiet) está contido noutro domínio. "Was Herr Schröder

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que permitirá distinguir predicados de primeiro e de segundo nível, e introduzir a noção de níveis de predicação, fundamental para a análise das noções de número, existência, que são considerados por Frege como predicados de predicados, ou predicados de segundo nível. Nesta ordenação ou hierarquia de predicados deve notar-se, no entanto, duas coordenadas distintas: 1. uma de cariz nitidamente extensional que aponta a relação entre as extensões de dois conceitos, pela qual se podem subordinar ou não uns conceitos a outros. É a relação à qual se refere Frege em KB, insistindo na diferença dos dois tipos de predicação, sendo uma a relação que um objecto mantém com um conceito a cuja extensão pertence, quando esse objecto cai sob esse conceito (subter-Beziehung); a outra, a relação que a extensão de um conceito mantém com a extensão de outro conceito quando o primeiro conceito se subordina ao segundo (sub-Beziehung)47. 2. Outra coordenada de cariz intensional, que parte da distinção entre "propriedades" e "notas características" do conceito: "Por propriedades que são afirmadas de um conceito, claro que não entendo as características que constituem o conceito. Estas são propriedades das coisas que caem sob o conceito, não do conceito"48.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  'Einordnung' oder 'Subsumption' nennt, ist hier eigentlich nichts anderes als dis Beziehung des Teiles zum Ganzen mit der Erweiterung, daß jedes Ganze als Teil seiner selbst betrachtet werden solle". Nesta perspectiva são dispensáveis palavras como "indivíduo" ou "singular" ou "elemento"; a relação de "participação" pode ser pensada até ao infinito. E como se vê, anula-se a distinção entre conceito e objecto - os conceitos são sempre tratados como classes, ou seja como conjuntos de objectos. Cfr. Gla, § 53, BG, KS, p. 168. 47. Cfr. KB, KS, p. 210. 48. Gla, § 53: "Unter Eigenschaften, die von einem Begriffe ausgesagt werden, verstehe ich natürlich nicht die Merkmale, die den Begriff zusammensetzen. Diese sind Eigenschaften der Dinge, die unter den Begriff fallen, nicht des Begriffes". Cfr. BG, KS, p. 174, SuB, p. 155; cfr. também Angelelli, I. "Freges Ort in der Begriffsgeschichte" in Thiel, C. - Frege und die moderne Grundlagenforschung, pp. 17-20.

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Portanto, conclui Frege, "rectangular" não é uma propriedade do conceito "triângulo rectângulo", mas quando afirmo que não existe nenhum "triângulo rectângulo, equilátero, rectilíneo" estou a atribuir a este conceito a propriedade de ser vazio. Esta noção fundamental de propriedade do conceito será o fio condutor da análise fregeana da noção de número e, por analogia, da de unidade e de existência. A atribuição de uma propriedade a um conceito constitui assim uma outra forma de predicação que nos servirá para analisar o tipo de predicado que constituem noções como existência, número, identidade. A distinção desta forma de predicação, na qual se atribui algo a um conceito, é exigida também pela radical separação entre conceito e objecto, pela qual o que se diz de um objecto não poderá nunca ser dito de um conceito, e vice-versa. Qual o factor principal desta diferença entre conceito e objecto? Ou qual a característica fundamental, o critério decisivo que leva a distinguir conceito e objecto? Frege di-lo explicitamente: o que caracteriza um conceito ou uma função é o seu carácter de insaturado (ungesättigt). O sentido primeiro de insaturação é o que se aplica a certas expressões linguísticas: um signo diz-se insaturado quando contém um lugar vazio no qual é possível introduzir outro signo que completa, fecha o sentido da expressão incicial49. Analogicamente, são insaturados os conceitos, funções, relações: a insaturação corresponde à noção tradicional da predicabilidade, universalidade, segundo a qual os conceitos incluem uma referência essencial aos seus "inferiores", ou indivíduos que constituem a sua extensão. Como observa Angelelli, esta referência de Frege à insaturação remete-nos para Aristóteles e sobretudo para Kant e Husserl50. Os conceitos como                                                                                                                 49. Cfr. Gla, § 70; FuB, KS, pp. 134-35 e 140; cfr. Angelelli, I. - ob. cit., pp. 172176. 50. Cfr. Kant, E. - Gesammelte Schriften, Akad. der Wiss., Berlin, 1905, Bd II, KrV, p. 86: "Begriffe aber beziehen sich Prädikate möglicher Urteile, auf irgend eine Vorstellung von einem noch unbestimmten Gegenstand". Cfr. também Husserl, E. - Gesammelte Werke, Bd III - Ideen zu Einer Reinen Phänomenologie und Phänomenologische Philosophie, Haag, Martinus Nijhoff, 1950, § 131: "Die Prädikate sind aber Prädikate von 'etwas' und dieses 'etwas' gehört auch mit, und offenbar unabtrennbar, zu dem fraglichen Kern: es ist der zentrale Einheitspunkt, von dem wir oben gesprochen haben.

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possíveis predicados de um objecto a determinar, apontam já para uma noção do objecto como um constructo via conceito, como um concentrado de determinações ou, para utilizar a própria terminologia de Frege, como um saturado de propriedades, relações. Os exemplos com que Frege ilustra a explicação da noção de insaturado - como "2 (...)", ou "a capital de (...)"51 - mostram bem, através do espaço vazio, aqui visivelmente representado, uma certa indeterminação do designatum por estas expressões. Há portanto expressões saturadas e insaturadas, e as correspondentes entidades designata saturadas e insaturadas. É a insaturação dos conceitos, ou a sua incompletude, que permite a sua predicabilidade, ou, utilizando o termo da matemática, a sua aplicabilidade, aos objectos. A noção de objecto é introduzida por Frege, por contraposição à noção de conceito, como a referência de expressões saturadas. Este modelo de apresentação do objecto via conceito, ou como um concentrado de propriedades é de novo utilizado por Frege em SuB, para a análise das noções de sentido e referência. No caso dos nomes próprios, cujo referente é um objecto, o seu sentido corresponde ao aspecto do objecto que se apresenta, ou a propriedade através da qual o pensamos ou apreendemos. Os vários sentidos segundo os quais o referente vai sendo apresentado, vão determinando, completando a descrição do objecto. No entanto, este processo de determinação paulatina do objecto através dos seus "aspectos", dos seus "lados", não tem limites. Nunca se alcança a determinação completa, acabada, do objecto singular. Assim o afirma Frege,                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   Es ist der Verknüpfungspunkt oder 'Träger' der Prädikate, aber keineswegs Einheit derselben in dem Sinne, in dem irgendein Komplex, irgendwelche Verbindung der Prädikate Einheit zu nennen ware". O objecto é impensável sem os seus predicados, dos quais não é possível separá-lo nem distingui-lo. O mesmo objecto apresenta-se, dá-se à consciência sob vários predicados, várias determinações, mostra-se de diferentes lados. Mostra-se-nos portanto "der identische intentionale 'Gegenstand' von den wechselnden und veranderlichen Prädikaten". Es scheidet sich als zentrales noematisches Moment aus: der 'Gegenstand', das 'Objekt', das 'Identische', das 'bestimmbare Subjekt seiner möglichen Prädikate' - das pure X in Abstraktion von allen Prädikaten - und es scheidet sich ab von diesen Prädikaten oder genauer, von den Prädikatnoemen". 51. Cfr. FuB, KS, p. 134.

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explicitamente neste ensaio: elucidar completamente, de uma maneira exaustiva a referência de um nome próprio é impossível, dado o número infinito de determinações possíveis do objecto designado52. Esta incapacidade de determinar completamente o objecto que, no entanto, se caracteriza precisamente por ser algo completamente determinado, leva a pensar no estatuto de certo modo paradoxal do objecto - algo determinado e sempre por determinar, algo completo, saturado, fechado, e sempre aberto a novas possíveis determinações. É precisamente pelo facto de as determinações de um objecto serem em número infinito, que a predicação não pode nunca atingir, nem exprimir a identidade. Um objecto não está nunca cabalmente identificado, dada a sua abertura, não só pela sua existência no tempo, que permite um arco de predicações entre o seu princípio e o seu termo, como pela infinidade de relações que pode manter com todos os outros objectos, em número também infinito, como pelos próprios aspectos segundo os quais se nos pode apresentar. Parece, portanto, que a insaturação que afecta os conceitos e as funções, se contamina, enquanto incompletude, também aos objectos, o que põe em causa o critério fundamental para a sua distinção dos conceitos. A diferença entre conceito e objecto teria antes que consistir na possibilidade que tem o conceito, e não o objecto, de ser atribuido a uma pluralidade de objectos, e estes últimos, de serem alvos aos quais se podem apontar uma pluralidade de conceitos. O conceito é o que se atribui, o objecto é algo a que se atribui. Mas, se no fundo ambos se apresentam, de certo modo como algo de incompleto, insaturado, qual o critério para decidir se uma entidade é um conceito ou um objecto?53                                                                                                                 52. Sub, KS, p. 144 - "(...) Zu einer allseitigen Erkenntnis der Bedeutung würde gehören, daß wir von jedem gegeben Sinne sogleich angeben könnten, ob er zu ihr gehöre. Dahin gelangen wir nie". 53. Com efeito, a noção de insaturação causa algumas perplexidades: um objecto pode considerar-se insaturado, ou incompleto, podendo receber novas determinações, devido às limitações do nosso conhecimento, que não abarca por si toda a infinidade de propriedades, relações, atributos, etc. de um ser singular. Mas em si mesmo, apresenta-se, é realmente uma entidade acabada, encerrando em si mesmo todas as suas determinações. Neste caso os "objectos" serão uma espécie de "mónadas", ou até, serão os mesmos "objectos simples" que Wittgenstein se vê obrigado a postular no Tractatus. Um conceito é insaturado porque se pode aplicar a muitos... Mas, uma vez

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A estrutura radicalmente dual a que nos referimos atrás, é agora posta em causa pela problematicidade da noção de objecto. A tese fregeana da separação radical entre o domínio dos conceitos e o dos objectos, parece conduzir ao seguinte dilema: 1. ou o objecto - sujeito último de determinações - se encontra infinitamente aberto a receber sempre mais determinações, isto é, a cair sob uma infinidade de conceitos, e, neste caso a identidade do objecto é indefinidamente adiada, já que nunca se esgota a predicação sobre esse mesmo objecto; não se poderá deste modo apresentar um predicado (um conceito sob o qual cai esse objecto) que se identifique cabalmente com o objecto. Se isto fosse viável, anularia nesse mesmo momento a separação que Frege quer a todo o custo manter. O hiato, a discontinuidade entre o objecto e as suas determinações não é nunca re-solvido e é este hiato que leva Frege a distinguir e separar radicalmente a predicação da identidade. A identidade - como indicámos já - poderá estabelecer-se como uma relação entre vários signos, ou vários sentidos de um mesmo objecto, ou entre as extensões ou percursos de valores (que são também objectos) de dois conceitos ou duas funções. Não poderá nunca dar-se uma identidade entre conceitos e objectos; aqui tratar-se-á sempre de uma das relações da predicação referidas (um objecto cair sob um conceito, ou um conceito subordinar-se a outro conceito). Neste caso, tanto o conceito como o objecto se apresentam como "entidades" de certo modo incompletas, abertas a novas predicações, diferindo simplesmente pelo lugar que ocupam na proposição: o primeiro sempre predicado, o segundo sempre sujeito. Deverá tratar-se, portanto, de dois modos diferentes de insaturação, dois sentidos (determinados pelos dois movimentos diferentes da atribuição: o que se atribui, ao que se atribui): um sentido coincidindo com a noção clássica de predicabilidade do                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   esgotado o domínio desse conceito, uma vez predicado de todos os objectos possíveis da sua extensão, continua a ser conceito? Ou identifica-se com um objecto lógico?

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universal, um que se diz de muitos, o outro coincidindo com a indeterminação do objecto, uma vez que a nenhum dos seus predicados é concedido o poder de o identificar, um do qual se podem dizer muitos. A noção fregeana de insaturação como critério de distinção entre conceitos e objectos, teria deste modo que ser reformulada. 2. ou o objecto - entidade saturada - é algo completamente determinado pelos conceitos que o assumem, ou sob os quais cai. Neste caso seria possível identificar o objecto com alguma, ou com o conjunto das suas determinações e portanto a predicação conduziria a uma identidade. A insaturação mantinha-se como nota distintiva do conceito que, pelo seu carácter de insaturado, aberto à predicação, poderia sempre assumir mais objectos; estes últimos, pelo contrário, seriam apresentados como "entidades" completas, saturadas, portanto totalmente determinadas. Haveria assim algum caso em que a predicação de algum ou alguns conceitos (determinações) desse objecto, traduziriam uma identidade. Deixaria então de ter sentido a radical distinção exigida por Frege entre predicação e identidade. Na primeira hipótese, manter-se-ia a distinção entre predicação e identidade, à custa de desvanecer a distinção total entre conceito e objecto à luz do critério da insaturação; na segunda, a determinabilidade do objecto exige que seja possível alguma predicação identificadora, portanto, esbate a distinção entre predicação e identidade. Esta separação radical, defendida no citado texto de BG (1892), não parece aliás ter sido considerada quando Frege, nos Gla invoca a necessidade de um critério de identidade para poder utilizar adequadamente a linguagem no seu movimento mais elementar, o da designação de um objecto através de um símbolo a54.                                                                                                                 54. Gla, § 62: "Wenn uns das Zeichen a einen Gegenstand bezeichnen soll, so müssen wir ein Kennzeichen haben, welches überall entscheidet, ob b dasselbe sei wie a, wenn es auch nicht immer in unserer Macht steht, dies Kennzeichen anzuwenden". Voltaremos à questão do critério de identidade na II parte deste trabalho.

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Isto significa que em toda a predicação também, está implícita uma identificação e reidentificação do mesmo objecto. Aliás, como é bem sabido, foi a questão da identidade que levou Frege à introdução da distinção entre sentido e referência55. Esta distinção permitirá justificar o valor cognitivo das proposições de identidade da forma a=b, nas quais o mesmo objecto é reidentificado sob dois sentidos, expressos por dois signos diferentes. A proposição contém implicitamente dois movimentos predicativos, nos quais atribuo ao objecto o sentido expresso por a e o sentido expresso por b, respectivamente. A identidade pressupõe assim a predicação e por sua vez a predicação assenta na identificação do objecto sob um novo sentido (ou uma propriedade, um aspecto, um modo de dar-se). Há, portanto, uma imbricação estreita entre predicação e identidade, expressa na cópula de uma proposição de identidade. Ao afirmar a é b, a cópula acumula ambas as funções predicativa e de identidade - porque sintetiza o seguinte conjunto de proposições: x (este objecto) é a (predicação) x é b (predicação) x designado por a é o mesmo que x designado por b (identidade) Transposto para o clássico exemplo fregeano: Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde (identidade) Vénus é EM (predicação) Vénus é ET (predicação) Vénus enquanto EM é a mesma Vénus enquanto ET (identidade)

                                                                                                                55. Cfr. Dummett, M. - Frege. Philosophy of Language, p. 179: "The sense of a proper name fixes the criterion of identity for the objects named". Dummett atribui precisamente ao sentido de um nome próprio a função de determinar o critério de identidade, isto é, de estabelecer e apresentar as condições de verdade sob as quais um determinado nome pode ser adequadamente atribuído a um objecto. Cfr. ibidem, p. 95: "In grasping the sense of a proper name we are not merely aware that the name is associated with a particular object as its referent, but we connect the name with a particular way of identifying an object as the referent of the name".

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Os exemplos apresentados por Frege mostram nitidamente como a predicação prepara e conduz à identidade, a uma identidade não a priori, mas fundada na experiência e em sucessivos actos de reidentificação, que por isso mesmo têm valor cognitivo e não é meramente tautológica, nem a mera afirmação de uma correspondência e equivalência convencional entre signos com a mesma referência. A noção de sentido evita a redução da identidade a uma relação de segundo nível, uma meta-linguagem que não afirma senão a equivalência entre sinais. Por outro lado, a análise da noção de sentido leva Frege a sublinhar a importância do juízo de recognição, como meio de percorrer sucessivas vezes o caminho entre os diferentes signos e a mesma referência56. No exercício corrente da linguagem estão, portanto, em acção constantemente, segundo a análise semântica de Frege, as funções atributiva e identificadora, e ambas as funções se desenvolvem de um modo complementar, imbrincando-se estreitamente em qualquer acto judicativo e significativo. Por que razão defende Frege com tanta veemência a separação destes dois sentidos e funções da cópula em BG? Para dar uma resposta é necessário recordar alguns dos pontos essenciais referentes à noção de conceito, defendidos por Frege nos Gla; como é sabido, Frege procura a elucidação da noção de número e apresenta-o, depois de um breve exame das teorias precedentes, como algo que se afirma de um conceito57. O conceito delimita, portanto, de um modo bem determinado tudo o que subsume, a sua própria extensão. Assim o conceito "letra da palavra três" isola a letra t de r, r de e, etc. O conceito "sílaba da palavra três" considera a palavra como um todo, e como indivisível na medida em que nenhuma parte deste cai sob o mesmo conceito58. Este tipo de conceitos, os que delimitam rigorosamente a sua extensão, os objectos que subsumem, são os que interessam sobretudo a Frege do ponto de vista lógico. Nem todos os conceitos obedecem a esta condição. Por exemplo "vermelho" divide o que cai sob o conceito de modos                                                                                                                 56. Cfr. Dummett, M. - ob. cit., pp. 81-109. 57. Cfr. ibidem, § 46: "...die Zahlangabe eine Aussage von einem Begriffe enthalte". 58. Cfr. ibidem, § 54.

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muito variados, sem que as partes divididas deixem de pertencer a esse conceito. Por isso a conceitos deste tipo, não se poderá atribuir um número finito59. Nas suas análises lógicas, Frege considerará fundamentalmente aqueles conceitos cuja extensão está discretamente determinada, e a relação lógica fundamental é a que ocorre entre um indivíduo e o conceito sob o qual cai. Esta relação não é reversível (umkehrbar) e Frege exclui-a por isso da relação de identidade. A relação entre um objecto e um conceito, dada a radical heterogeneidade e separação dos dois domínios, não pode nunca ser a de identidade, relação que, segundo Frege ocorre sempre entre objectos. Portanto, o que exprime uma proposição, ao atribuir um predicado (conceito) a um sujeito (objecto), é apenas a pertença, a inclusão desse objecto na extensão desse conceito, ou seja, a relação entre um membro e uma classe à qual pertence. Trata-se, como é óbvio, de uma perspectiva essencialmente extensionalista que traduz a dimensão vertical da predicação, uma relação que se dá de vários modos, mas sempre entre objectos lógicos, que deixa de lado a dimensão horizontal, atributiva, de relação entre o sujeito e seus atributos. Talvez esta tenha sido uma das razões que levaram Frege a substituir a terminologia de sujeito/predicado pela de argumento/função na Bs, embora em escritos posteriores, concretamente em BG, tenha voltado a utilizar o termo predicado. Mas, tendo em conta o carácter essencialmente lógico do trabalho de Frege e a sua preocupação por construir uma linguagem rigorosa e inequívoca, é natural que tivesse sobretudo em conta a relação lógica fundamental, UF - Unterfallen eines Gegenstand unter einem Begriff - como relação de pertença de um membro à respectiva classe60. Sendo esta a relação predicativa por excelência, é evidente que nunca deverá confundir-se com a relação de identidade, que, segundo esta perspectiva só poderá ocorrer entre objectos, ou entre extensões de conceitos, classes (também objectos), mas nunca entre um                                                                                                                 59. Cfr. ibidem, § 54: "Einheit in Bezug auf eine endliche Anzahl kann nur ein solcher Begriff sein, der das unter ihn Fallende bestimmt abgrenzt und keine beliebige Zertheilung gestattet". 60. Cfr. Grundgesetze, I, p. 240: Frege emprega para a relação de um membro com a classe o termo Hineinfallen, que corresponde ao símbolo ∈ de Peano; em KB, KS, p. 199, Frege critica a confusão entre as relação membro/classe e inclusão de uma classe por outra, tal como criticara a confusão entre UF e UO.

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membro e a classe. É neste contexto que se integra a clarificação e distinção das funções da cópula em BG. No entanto, como o próprio Frege o reconhece, esta relação não pode esgotar o sentido da predicação. E na análise da linguagem que desenvolve ao longo dos seus múltiplos escritos, a relação predicativa revelar-se-á como uma rica e complexa urdidura de relações lógicas, semânticas, epistémicas impossíveis de reduzir a um modelo único. Nesta perspectiva multifacetada da predicação, onde a análise lógica interfere constantemente com a semântica e cognitiva, é difícil senão impossível estabelecer uma estrita separação entre as relações meramente atributiva e a de identidade. Mais ainda: o mais elementar acto predicativo não se entende sem o recurso à função charneira do juízo de re-identificação.

v v v

Uma vez atenuada a radical distinção e separação entre predicação e identidade requerida sobretudo por Frege e Russell, tornou-se patente a estreita imbricação, dentro de um mesmo esquema predicativo das duas relações. Esta estrutura, essencialmente dual, tradicionalmente considerada como uma relação entre um S (sujeito, substrato) e um P (predicado) apresenta, como condição de toda a predicação, a necessidade de uma diferença, de um hiato, discontinuidade, que permita o movimento de passagem de um termo a outro. A diferença é pois, por um lado, um requisito da predicação e instala-se no próprio núcleo de todo o acto judicativo, manifestando-se, tanto no plano lógico (a diferença entre conceito e objecto), ontológico (diferença entre substância e acidente) e gramatical (diferença entre sujeito e predicado). No entanto, em todo o acto judicativo, está bem patente o movimento binário que do sujeito, ou do objecto, parte para algum dos seus atributos, abrindo o espaço da diferença, para retornar ao ponto de que partiu, reafirmando a mesmidade do sujeito da predicação. Se a diferença se revela

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como condição de possibilidade da estrutura predicativa, a identidade do objecto da predicação consigo mesmo, revela-se como fundamento da ligação entre os dois termos. A própria análise que Frege faz das noções semânticas de sentido e referência ilustram bem como a predicação exige um acto de re-identificação, um voltar sobre o objecto captado como o mesmo. Em termos ontológicos poder-se-ia afirmar que é a unidade do objecto que permite a predicação. Daí que o exame das formas predicativas desemboque na questão central da identidade da forma individual, da mesmidade de cada coisa singular. O percurso que seguimos através dos textos aristotélicos sobre a predicação mostrou como toda a questão fica suspensa da resolução que Aristóteles der à pergunta nuclear sobre a identidade de cada singular com a sua essência (Z, 6): a atribuição da essência a um singular, ou seja a predicação de uma substância segunda a uma substância primeira, constitui a forma originária da predicação que sustenta e funda todas as outras formas predicativas. Identidade e predicação estão tão estreitamente imbricadas que a tese central de toda a teoria da identidade determinará decisivamente o modelo da teoria predicativa. No entanto, mesmo no início do livro Z, a pergunta pela ουσια revela uma certa tensão entre as dimensões vertical e horizontal a que nos temos referido61 na noção da ουσια: a pergunta pode ser considerada como sendo sobre aquelas coisas que são ουσια, ou seja, pela extensão desta noção; neste caso a resposta obedecerá ao esquema de uma predicação vertical, entre os indivíduos pertencentes a uma classe; pode ainda ser lida como uma                                                                                                                 61. Esta tensão é provocada pela equivocidade da pergunta formulada por Aristóteles: "O que é a ουσια?" pergunta que contém implicitamente dois tipos de questões: 1º O que é a ουσια, interpretando o que como sujeito da proposição e ουσια como predicado. Neste caso o sentido da questão será: que coisas são ουσια? ou que entes são ουσια? 2º Num outro sentido, a questão pode interpretar-se - O que é essência? O que significa ser essência (ουσια), o que deve entender-se por ουσια? A resposta à primeira questão deverá ser uma enumeração daquelas coisas que são ουσια, será a análise da extensão deste conceito. A resposta à segunda questão será a determinação fundamental da ουσια - será o ser υποκειµενον, sujeito último, forma, universal? Cfr. Boehm, R. - La Métaphysique d'Aristote - Le fondamental et l'essentiel, Paris, Gallimard, 1976, pp. 164-182.

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pergunta sobre o que é ser ουσια, ou, por outras palavras, o que é, para cada singular ser ele mesmo. As questões que levanta a leitura deste texto da Metafísica serão tratadas na III parte deste trabalho. De momento, convém apenas chamar a atenção para as duas dimensões - vertical, horizontal, extensional, intensional - em causa na formulação da pergunta nuclear da filosofia aristotélica. Afirmar a possibilidade de responder à pergunta pela própria ουσια de cada singular, é afirmar a sua identidade com a essência, e portanto assegurar a protoforma de toda e qualquer predicação. Na resposta à questão pelo ser de um singular, encontramos a raiz e fundamento de toda uma série de predicações. Para responder à pergunta "que coisas são ουσια", Aristóteles deverá privilegiar a dimensão singular/universal da predicação, cuja relação fundamental é a da realização, concretização de um universal num singular, ou, transposta para uma perspectiva lógico-extensional, a da pertença de um membro à sua classe. Esta dimensão, como vimos através da teoria predicativa de Frege, dando primazia à relação indivíduo/classe, conduz a uma debilitação da relação predicativa e elude facilmente a sua dependência radical da identidade. É a consideração desta relação de pertença entre um indivíduo e uma classe como relação lógica fundamental que leva Frege a distinguir e separar predicação de identidade. Poderíamos concluir que são os malefícios do extensionalismo que provocam o divórcio entre estas duas relações, ou pelo menos, que ocultam a primazia originária da identidade de cada indivíduo com a sua própria essência, sob a ténue e precária relação de pertença de cada indivíduo a uma multiplicidade de classes. Esta última relação camufla e antepõe-se à mesmidade de cada indivíduo consigo mesmo. A consideração mais detalhada dos diferentes planos da predicação nos seus variados modelos e formas predicativas, apresenta, no entanto, uma perspectiva bem mais complexa e rica da teoria da predicação, e mostra como, se bem que nem toda a forma predicativa traduza uma identidade, esta está presente e implícita na unidade do objecto da predicação, como sua raiz e causa. Esta perspectiva permitirá estabelecer uma analogia entre as diferentes formas predicativas, tomando a identidade como "analogado

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principal", do qual irradiam por progressiva debilitação da força copulativa, todas as outras formas, que recebem o seu sentido possível da referência e reconversão a uma forma originária de identidade. A teoria da predicação está no entanto totalmente dependente do sentido dessa identidade originária, a mesmidade das formas individuais. É esta identidade de cada coisa consigo mesma que servirá de alicerce e fundamento de toda a analogia das formas predicativas. Da resposta a esta questão nuclear dependerá a consistência de uma teoria da predicação.

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