A estrutura e seus efeitos: o simbólico de Lévi-Strauss a Lacan, via Koyré.

July 22, 2017 | Autor: Gilson Iannini | Categoria: Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss, Koyré
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A estrutura e seus efeitos: o simbólico de Lévi-Strauss a Lacan, via Koyré. Gilson Iannini1 Suivre la structure, c’est s’assurer de l’effet du langage. (Lacan, Radiophonie)

Faz meio século, a onda estruturalista atingia seu cume. Em pouco tempo, ela se dissiparia num movimento que pareceria deixar poucas marcas reconhecíveis daquela aventura e de seus impasses. Da lingüística estrutural a Lévi-Strauss e Lacan, o pensamento francês contemporâneo foi marcado não apenas por esforços de formalização que visariam fornecer às ciências humanas um modelo de cientificidade análogo ao das demais ciências; não apenas por realizar uma espécie de linguistic turn à la francesa, em que a tradição da filosofia do conceito encontraria as temáticas do signo e do simbólico, do significante e do discurso; mas também por toda uma singular relação que este pensamento sempre manteve com a arte contemporânea e, mais particularmente, com a literatura e com a poesia, que não será sem efeitos para o ponto de vista desenvolvido aqui. Trata-se de apresentar sumariamente alguns episódios desta aventura que colocou o conceito de simbólico no centro das pesquisas de ponta de meados do século XX, em diversos campos de conhecimento. Trata-se também de distinguir alguns termos que costumamos confundir: o pensamento estrutural e o estruturalismo são coisas distintas, como insiste Lacan; a estrutura não é o simbólico, logo a crise de um não necessariamente coincide com a crise de outro; nem mesmo o Outro é formalmente homólogo ao simbólico, etc. A melhor maneira de desenvolver estas questões é abordando os pontos de continuidade e de descontinuidade entre Lévi-Strauss e Lacan. Buscarei depreender do texto de Lacan um conceito de estrutura que podemos qualificar como especificamente lacaniano, o que nos economizará o ponto de vista da fidelidade ou não em relação ao emprego original do conceito. Finalmente, buscarei, muito sucintamente, apontar um ou outro risco acarretado pelo abandono puro e simples de algumas conquistas da perspectiva estrutural fundamentais para a prática de orientação lacaniana, particularmente no que concerne à idéia de que o significante produz efeitos no real e à idéia de que a partilha entre o sentido e o não-sentido não pode ser determinada aprioristicamente. Mas, antes disso, gostaria de lembrar o papel de Koyré, guia epistemólogico de Lacan, na constituição do pensamento estrutural. A epistemologia de Koyré como patrono do pensamento estrutural Lacan conheceu Lévi-Strauss no ano em que este publicava As estruturas elementares do parentesco (1949), por ocasião de um jantar organizado por Koyré. Os laços de amizade que surgiram e se consolidaram entre o psicanalista e o antropólogo tinham como ponto comum, sobretudo, o gosto pelas obras de arte2. Ao acordo mútuo que se firmava em torno da arte se contrapunha um mal-entendido no plano intelectual, que não cessou de gerar desencontros, até culminar com o distanciamento, muitos anos mais tarde, dos dois homens. Tanto para LéviGilson Iannini é psicanalista em Belo Horizonte. É também professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É doutor em filosofia pela USP. Na Université Paris VIII, obteve o título de “Master en Psychanalyse: concepts et clinique” (antigo “DEA du Champ Freudien”), sob a orientação de François Regnault. É autor de “Estilo e verdade em Jacques Lacan” (Ed. Autêntica, 2011). 2 ROUDINESCO, E., Jacques Lacan: Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento, p. 219. Conforme declara Lévi-Strauss, Lacan costuma organizar almoços em Guitrancourt, em sua casa de campo, junto com LéviStrauss e os Merleau-Ponty. Interessante notar que a partir de meados da década de 50 era lá que Lacan expunha e escondia seu Courbet. 1

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Strauss quanto para Lacan, o pano de fundo do problema é a tentativa de estabelecer as condições mínimas para a formalização algébrica ou matematização de seus respectivos campos de saber: redução estrutural ou literalização. É claro que tudo isso tem relação estreita com a questão do estatuto de cientificidade da etnologia (Lévi-Strauss) e da psicanálise (Lacan). Isso não é sem razão. Um pouco antes, na segunda metade da década de trinta, Lévi-Strauss tentara transcrever línguas indígenas do Brasil Central. Não refeito das dificuldades encontradas, ele assiste, por indicação de Koyré, aos cursos de Jakobson sobre o som e o sentido de 1942-43, no departamento francês ultramarino da Escola Livre de Altos Estudos instalado em New York durante a guerra. Promete, então, a si mesmo encontrar os rudimentos de lingüística que lhe faltavam junto ao ensino de Jakobson. Mas o fato é que o ensino do lingüista praguense haveria de proporcionar algo, do ponto de vista epistemológico, muitíssimo mais valioso, escreve LéviStrauss: a revelação da lingüística estrutural. Esta lhe ensinaria a considerar “as relações mais simples e mais inteligíveis” que unem os termos, em vez de se deixar perder por entre sua multiplicidade3. Nasce aí o programa de pesquisa do pensamento estrutural. O que salta aos olhos é como os dois principais encontros que ajudaram a formar o pensamento estrutural, o de Jakobson com Lévi-Strauss em Nova York e o de Lévi-Strauss com Lacan em Paris, foram patrocinados por um epistemólogo. Para além do episódio contingente destes encontros, o fato é que há uma certa teoria da ciência, fornecida justamente por Koyré, que é o laço que transforma a contingência dos encontros num fato, por que não dizer, de estrutura. Esta teoria consiste, de modo muito rudimentar, na idéia de que a principal característica da ciência não é a experimentação nem a fidedignidade na observação pretensamente neutra dos fatos. Ao contrário, o sucesso da física moderna depende de uma operação epistemológica que consiste em afirmar o caráter matemático do real, a possibilidade de apreender o real pelo simbólico. A física de Galileu, como quer Koyré, é uma física de corpos abstratos movendo-se em espaços abstratos. Esta concepção do primado da forma sobre o conteúdo, ou, mais precisamente, a possibilidade de reduzir o real ao simbólico que atrairá a atenção de Lévi-Strauss e de Lacan ao método fonológico desenvolvido por Jakobson. Evidentemente, os resultados obtidos desta freqüentação são diversos e distanciaram-se cada vez mais ao longos dos anos. Pela razão principal de que, desde o primeiro momento (1953), Lacan ter sempre insistido na idéia de que há algo do real que escapa ou resiste ao simbólico.

A Eficácia simbólica, de Lévi-Strauss a Lacan Não por acaso, “A Eficácia simbólica” é o primeiro artigo de Lévi-Strauss que Lacan cita no conjunto de toda sua obra escrita, precisamente em o “Estágio do Espelho...” (E: 98)4, ainda sem muito distanciamento. Mas em A ciência e a verdade, estenografia da lição de abertura do seminário sobre O objeto da psicanálise (1965-66) realizado na École Normale Supérieure, a posição de Lacan já é outra. Com efeito, ele então examina o problema das relações entre ciência e verdade sob o prisma da noção de causa. Mais especificamente, sua estratégia consiste em investigar “a verdade como causa” nos “quatro modos de sua refração” (E: 890). Estes quatro modos de refração da verdade são inspirados nominalmente pela terminologia da Metafísica de Aristóteles concernentes aos diferentes aspectos da causa (eficiente, final, formal, material). Sua recensão fornece um quadro comparativo de como a verdade funciona como causa, respectivamente, na magia, na religião, na ciência e na psicanálise.

LÉVI-STRAUSS, 1977, p. 8 Para as obras de Jacques Lacan, utilizarei as seguintes convenções: E:, para Escritos; OE, para Outros Escritos; S, para O Seminário [para indicar o livro correspondente, emprego numeração romana após a sigla. Exemplo: S. IV indica O Seminário, Livro IV]. 3 4

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De modo bastante sumário, temos o seguinte quadro. Na magia, a verdade opera como causa segundo seu aspecto eficiente, mas o saber mantém-se velado (E: 886), porquanto a verdade funciona sob o regime do recalcamento (E: 889). O interesse aqui é de diferençar o gênero de cura posto em ação na psicanálise e na magia, em franca discussão com o ponto de vista lévi-straussiano. Com efeito, em A eficácia simbólica (1949)5, Lévi-Strauss analisa a cura xamanística e surpreende-nos, ao final, com uma inusitada comparação com o psicanalista. Depois de analisar o caso concreto de uma intervenção xamanística em um parto difícil, o autor busca entender a eficácia da operação. Em linhas gerais, a argumentação é mais ou menos a seguinte. A cura xamanística consiste em tornar inteligível uma situação dada, a princípio, no registro dos afetos, e tornar “aceitáveis para o espírito as dores que o corpo se recusa a tolerar. Que a mitologia do xamã não corresponda a uma realidade objetiva, não tem importância: a doente acredita nela, e ela é membro de uma sociedade que acredita” (Lévi-Strauss, 1973, p. 228). Por isso, na terminologia de Lacan, a eficiência da cura xamanística, pois, na magia, a verdade opera como causa em seu aspecto eficiente. Diferentemente da relação causal e objetiva entre um microorganismo e uma doença, a relação entre o monstro e a doença é

uma relação do símbolo à coisa simbolizada, ou, para empregar o vocabulário dos lingüistas, de significante a significado. O xamã fornece à sua doente uma linguagem, na qual se podem exprimir imediatamente estados não-formulados, de outro modo informuláveis. E é a passagem a esta expressão verbal (que permite, ao mesmo tempo, viver sob uma forma ordenada e inteligível uma experiência real, mas, sem isto, anárquica e inefável) que provoca o desbloqueio... (Lévi-Strauss, 1973, p. 228).

Lévi-Strauss conclui daí que a cura xamanística se situa a meio caminho entre a medicina orgânica e a psicanálise, e lança mão de conceitos tais como ab-reação para tentar justificar sua posição. De todo modo, é o xamã, em carne e osso, que suporta a operação. Entender a distância que separa o xamã e o psicanalista corresponde a percorrer a distância que separa a verdade como causa eficiente (magia) da verdade como causa material (psicanálise); o saber velado, inefável (magia) ao saber literal, formalizável (psicanálise). Do mesmo modo, vale acrescentar: o simbólico pressuposto por Lévi-Strauss é consistente e, ao mesmo tempo, esta consistência é eficaz também ao produzir crença. Os membros de tal ou qual sociedade crêem na capacidade ordenadora do simbólico, de onde se justifica o termo “ordem simbólica”. Já para Lacan, o simbólico é muito mais da ordem da ficção e sua capacidade de produzir crenças é limitada pela inconsistência do Outro. Não por acaso foi Jakobson quem sugeriu que Lacan lesse a Teoria das ficções, de Jeremy Bentham, no contexto de uma discussão sobre as relações entre a linguagem e o real. Desde o Seminário sobre “A Carta roubada”, os vínculos entre verdade e ficção começavam a se consolidar no ensino de Lacan. Ao apresentar o sujeito do inconsciente dessubstancializado, definido apenas por sua localização na estrutura simbólica – no caso em pauta, a partir da posição do sujeito em relação ao deslocamento da letra/carta do conto de Poe – , Lacan comenta:

Foi por isso que pensamos em ilustrar hoje a verdade que brota do momento do pensamento freudiano que estamos estudando, ou seja, que é a ordem simbólica que é constituinte para o sujeito, demonstrando-lhes numa história a determinação fundamental que o sujeito recebe do percurso de um significante. É essa verdade, podemos notar, que possibilita a própria existência da ficção (E: 12)

Não por acaso, o primeiro artigo de Lévi-Strauss que Lacan cita no conjunto de toda sua obra escrita. Citado em “Estágio do Espelho...” (E: 98). Cf. também Lécuru, 1994, p. 126. 5

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Formalização: fonema, mitema, significante.

O fonema é a menor unidade linguística existente. Ele próprio é desprovido de sentido, sendo uma entidade negativa, opositiva e relaciona. Mas é desta ausência de sentido que, num jogo de oposições, através da diferença, nascerá o sentido: /p/; /r/; /g/, em si mesmos, são fonemas desprovidos de sentido. Mas, precedento “ato”, definem o sentido de “pato”, “rato”, “gato”. O mesmo ocorre com o mitema, na etnologia e com o significante, na psicanálise. Este é, pois, o melhor exemplo desta estratégia de formalização. O que importa é a sua “oposição recíproca no seio de um sistema”. Oposição esta fundada sobre a primeira grande categoria da análise estrutural: a diferença, que Milner apresenta como principal contribuição da lingüística estrutural6. Lacan inspira-se amplamente neste método combinatório, principalmente no que concerne à “forma de matematização” tornada possível através da redução de fenômenos a suas estruturas simbólicas mínimas, que faculta “uma abordagem estrita de nosso campo” (E: 286). Vejamos como Lévi-Strauss constrói o conceito de mitema: Ocorre com os mitos o mesmo que com a linguagem: se um sujeito aplicasse conscientemente em seu discurso as leis fonológicas e gramaticais, supondo-se que possuísse o conhecimento e o virtuosismo necessários, perderia quase que de imediato o fio de suas idéias. Do mesmo modo, o exercício e o uso do pensamento mítico exigem que suas propriedades permaneçam escondidas, senão nós nos colocaríamos na posição do mitólogo, que não pode acreditar nos mitos, pois se dedica a demonstrá-los. A análise mítica não tem, nem pode ter, por objeto mostrar como os homens pensam (...). Não pretendemos mostrar, portanto, como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se pensam nos homens e à sua revelia. Talvez, como sugerimos, convenha ir ainda mais longe, abstraindo todo sujeito para considerar que, de uma certa maneira, os mitos se pensam entre eles (Lévi-Strauss, 1991, p. 20-21).

A empresa vã de compreender que tipo de necessidade interna unia sons e sentidos só se viu resolvida quando a lingüística se apercebeu que a “função significativa da linguagem não está ligada aos próprios sons, mas à maneira pela qual os sons se encontram combinados entre si” (Lévi-Strauss, 1973, p.240). Na mitologia arquetípica de Jung, Lévi-Strauss encontra ocasião de contra-exemplificar o que seria a noção de arbitrário do signo em etnologia. Jung pecaria por crer na existência de elos naturais entre as figuras míticas e sua significação, do mesmo modo como os linguistas, antes de Saussure, procuravam um vínculo natural entre sons e sentidos. Agora, dotado do aparelho nocional da linguística estrutural, é possível estudar os mitos desvinculados de qualquer espécie de vínculos naturais entre a matéria e o significado dos mitos. Passo fundamental para que se possa proceder a uma verdadeira análise estrutural e ultrapassarmos a miragem da compreensão. Por isso é possível dizer com Lévi-Strauss: “mito é linguagem; mas uma linguagem que tem lugar num nível muito elevado, e onde o sentido chega, se é lícito dizer, a decolar do fundamento linguístico sobre o qual começou rolando”. Este fato explica, por exemplo, uma peculiaridade do mito em relação a uma das manifestações mais altas da linguagem, a poesia. A poesia é muito difícil de ser traduzida de uma para outra língua; ao contrário, a despeito da pior tradução, o valor do mito persiste. Isto permite dizer que “a substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração, nem na sintaxe, mas na história que é relatada”. Não obstante, este relato pode ser reduzido a sua estrutura mínima. Lévi-Strauss fornece um exemplo claro da natureza do mitema no Prefácio escrito por ele para um livro de Jakobson. As características principais do fonema, que são unidades opositivas, relativas e negativas, reaparecem, uma a uma, nas unidades elementares do discurso mítico, os mitemas.

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LÉVI-STRAUSS, “Prefácio...”, p. 8. Cf. MILNER, J-C., Les noms indistincts,. p. 33.

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Na língua corrente, o ‘sol’ é o astro do dia; mas tomado em-si próprio o mitema ‘sol’ não tem qualquer sentido [...] É exclusivamente das relações de correlação e de oposição que mantém, no seio de um dado mito, com relação a outros mitemas, que se pode depreender uma significação. Esta não pertence propriamente a nenhum mitema; resulta de sua combinação (Lévi-Strauss, 1977, p. 14)

Isso mostra que os mitemas “só adquirem significação no seio do sistema mítico”. Assim, a demonstração deve ser entendida como o trabalho não de um sábio, mas de um camelô: o objetivo não é desvendar um mecanismo ou desvelar um substrato, mas explicar, rapidamente, o funcionamento da máquina de que se trata de vender. Por mais heteróclitas que possam ser noções como as de fonema e de proibição do incesto, escreve Lévi-Strauss, a concepção que eu viria a ter da segunda inspira-se no papel conferido pelos lingüistas à primeira [...] Num outro plano, à articulação do som e do sentido, correspondia assim, a articulação da natureza e da cultura7.

E quanto ao significante Em 1953, era o símbolo que permitia o acesso do sujeito humano ao reino da linguagem. Em 1955, é já a partir de um significante que o sujeito faz sua entrada na linguagem. É a passagem do pequeno outro ao grande Outro. É já o efeito de uma segunda leitura de Saussure, desta vez com a presença de Jakobson. Interessante notar que a problemática do símbolo é solidária de uma oposição entre natureza e cultura, enquanto a vertente do significante vai pressupor uma oposição mais complexa, entre três termos: natureza, sociedade e cultura (onde Lacan situa a linguagem)8 . Fundamentando-se numa teoria do símbolo seria difícil mostrar a incompletude do Outro simbólico. Já com uma teoria do significante, desamarrado do significado e operando sozinho numa combinatória, não estaríamos longe da tese capital da incompletude do Outro. O inconsciente e o simbólico: polêmicas em torno da apropriação lacaniana A apropriação lacaniana da estrutura foi um dos pontos que gerou maior polêmica em termos da recepção do pensamento de Lacan. Não por acaso, é um dos temas mais malcompreendidos. Duas são as ressalvas mais comumente destacadas: (i) por ser dinâmico, o inconsciente freudiano não pode ser identificado à função simbólica; (ii) a ordem simbólica ou estrutura da linguagem seria um esquema transcendental de tipo kantiano, o que conduziria a uma espécie de “formalismo lingüístico”, em tudo contraditório com o tratamento do sujeito singular implicado pela práxis e com as formas do real tão irrevogavelmente presentes na psicanálise. A tônica geral da crítica refere que o inconsciente freudiano não pode ser reduzido à mera função simbólica, como faz Lévi-Strauss, porque isso consistiria em negligenciar os aspectos dinâmico e econômico do inconsciente. A definição lévi-straussiana de inconsciente é resumida no seguinte texto: O inconsciente deixa de ser o inefável refúgio das particularidades individuais, o depositário de uma história única, que faz de cada um [de] nós um ser insubstituível. Ele se reduz a um termo pelo qual nós designamos uma função: a função simbólica, especificamente humana, sem dúvida, mas que, em todos os homens, se exerce segundo as mesmas leis; que se reduz, de fato, ao conjunto destas leis (Lévi-Strauss, 1973, p.234).

Ou, numa passagem ainda mais célebre,

(...) o inconsciente está sempre vazio; ou, mais exatamente, ele é tão estranho às imagens quanto o estômago aos alimentos que o atravessam. Órgão de uma função específica, ele se limita a impor leis estruturais, que esgotam sua

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LÉVI-STRAUSS, 1977, p. 11. LACAN, J., A instância da letra...,E: 499 [496].

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realidade, a elementos inarticulados que provem de outra parte; pulsões, emoções, representações, recordações (Lévi-Strauss, 1973, p. 235)

É claro que existem convergências marcantes entre os pontos de vista de Lévi-Strauss e de Lacan, quando, por exemplo, lemos que “o inconsciente não é o primordial nem o instintivo e, de elementar, conhece apenas os elementos do significante” (E: 526). Estamos diante, pois, de uma primeira convergência: o inconsciente não é nem instintual, nem biológico; tampouco é um estado de alma ou algo concernente ao domínio da psicologia. Foi aproximadamente este gênero de observação que conduziu Ricoeur (1978), e com ele uma leva de estudiosos, à sua célebre fórmula segundo a qual o estruturalismo seria uma forma de “kantismo sem sujeito transcendental”. Três observações precisam ser feitas a fim de desfazer o equívoco conceitual de uma aproximação demasiado impaciente: (i) se, para Lévi-Strauss, não há sujeito possível no campo da estrutura, para Lacan é a estrutura que “põe em cena o sujeito” ; (ii) as diversas formas com as quais o conceito de real negativiza a estrutura (coisa, objeto a, pulsão, etc.) desautorizam a reprimenda de que Lacan negligencie a dimensão econômica; (iii) as elaborações lacanianas acerca da temporalidade de causação do sujeito e do desejo desautorizam a crítica de que Lacan descuide da dimensão dinâmica. Quanto ao ponto (i), é a perspectiva estrutural que permite a formalização de uma teoria do sujeito que não é nem naturalista, nem psicologiscista, i.e., trata-se de um sujeito vazio, formal, evanescente; quanto a (ii), escreve Lacan “não é porque uma represa decora uma paisagem que a energia é natural (...) pois a energia não é uma substância (...) é uma constante numérica que o físico precisa encontrar em seus cálculos, para poder trabalhar” (OE:520-521). O mesmo ocorre com a energia pulsional: o fato de que ela seja cifrada ou decifrada, no gozo, não contradiz que ela encontre vazão nas estruturas do sujeito; finalmente, em relação a (iii), basta lembrar o que Miller escreveu: “a topologia da estrutura não contradiz desde então sua dinâmica, que escande o deslocamento de seus elementos” (1996, p.11). Mas o ponto a ser destacado aqui não é nenhum destes pontos polêmicos acima referidos. Pois o que Lacan realmente deve ao pensamento estrutural está longe de poder ser confundido com algum conteúdo conceitual que ele importa. Por isso são inócuas as tentativas de auferir o grau de fidelidade em relação aos conteúdos originais dos conceitos incorporados de disciplinas conexas ou o correlativo grau de distorção em relação ao sentido original dos conceitos freudianos. Pois trata-se muito mais de um problema epistemológico, relativo à importação de ferramentas e de estratégias de formalização. Como salienta Granger acerca da Estruturas elementares do parentesco, a novidade do método de Lévi-Strauss “consistiu justamente em romper esse círculo epistemológico, definindo estruturas de parentesco, modelos abstratos dos fatos sociais observados e vividos, construídos sem prejulgar a compreensão que deles nossa própria cultura sugere” (Granger, 1974, p. 301). Por exemplo, ao estudar o funcionamento de parentesco de sociedades indígenas brasileiras, Lévi-Strauss suspendeu a compreensão prévia que um etnólogo europeu devia ter acerca das relações de parentesco, calcada em oposições como pai-filho, tio-sobrinho, etc. Afastada a miragem compreensiva, ele pôde aplicar uma “nova formalização dos fenômenos”, descrevendo “relações entre classes e suas combinações à maneira de uma álgebra” (Granger, 1974, p. 301). É neste sentido que “a análise algébrica define o modelo e determina assim o objeto que o pensamento científico substitui ao fenômeno diretamente observado” (Granger, 1974, p. 307). É esta maneira de “constituir o objeto” através de um estilo de formalização que Lacan encontra no pensamento estrutural. Contudo, disso não se segue que a estratégia seja de tipo kantiano, i.e, que seja priorizada uma forma anterior ao movimento do sujeito e à resistência do objeto . Só é possível perceber um kantismo no inconsciente lacaniano ao preço de negligenciar o essencial de seu ensino, justamente a forma de racionalidade que opõe saber e verdade. Em outras palavras, há um “kantismo” em Lacan do mesmo modo como há um “kantismo” em Hegel: como um momento lógico a ser superado pelo ato mesmo de enunciar seu limite. Por isso, o Outro lacaniano não é o código, nem um esquema transcendental de significação.

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A estrutura lacaniana

O dispositivo inspirado do “galileísmo ampliado” (Milner, 2002, p. 148) não conduz nem à assimilação da estrutura a um modelo, nem à assimilação da lingüística a uma ciência piloto, como acreditaram vários críticos da vertente estrutural do pensamento de Lacan. Para a psicanálise, a ciência não funciona como uma metalinguagem provedora de modelos próprios à apreensão de uma realidade empírica qualquer: estados de coisas, superfície de fenômenos, etc... A propósito da definição de estrutura, Milner escreve: No estruturalismo, nos damos o conceito de estrutura; este funciona então, de fato, como um indefinível. As tentativas de definição direta que podemos citar são de uma consternante banalidade; o que não se deve à insuficiência dos autores, mas a um erro de concepção: a estrutura, no programa de pesquisa que faz dela seu axioma, não se deixa definir; quando muito e pelo menos pode-se mostrar seu. Esta limitação advém da ordem das razões (Milner, 2002, p. 148).

Não obstante, podemos entrever a definição propriamente lacaniana da “estrutura” na crítica que Lacan faz do uso proposto por Lagache. Trata-se ali de uma definição indireta, extraída desta crítica. Em seu relatório La psychanalyse et la structure de la personnalité, que tem por meta descrever “a estrutura da personalidade”, Lagache apresenta duas concepções fundamentais da estrutura:

Duas concepções da estrutura pessoal se depreendem da personologia contemporânea. Para alguns, a estrutura da personalidade é um conjunto hierarquizado de traços diretamente observáveis; concepção estática, formal, classificação lógica de todos os componentes individuais, psicológicos ou somáticos. Segundo outra concepção, a estrutura pessoal é um sistema de relações entre formações que não são diretamente observerváveis, mas às quais a observação de certas regularidades confere uma realidade conceitual no interior de um modelo teórico. É desta segunda concepção, analítica e dinâmica, que tratamos até agora. É dela que a personologia psicanalítica oferece o exemplo mais antigo e mais típico (Lagache, 1961, p. 649).

Segundo ele, há uma antinomia entre (i) uma primeira concepção de estrutura como “conjunto hierarquizado de traços diretamente observáveis”, ou seja, uma estrutura aparente, ou mesmo, empiricamente apreensível e (ii) uma segunda concepção apreendida como “sistema de relações entre formações que não são diretamente observáveis”. Reencontramos aqui um dualismo forma/conteúdo, de tipo kantiano. Lacan refuta esta antinomia e propõe uma estrutura, ou antes, uma terceira modalidade de estrutura, que não é nem organização inferencial de dados, nem esquema transcendental; uma espécie de “terceira margem do rio”.

Portanto, quando Daniel Lagache parte da escolha que nos propõe, entre uma estrutura como que aparente (que implicaria a crítica daquilo que o caráter descritivo comporta de natural) e uma estrutura que ele pode declarar distante da experiência (já que se trata do ‘modelo teórico’ que ele reconhece na metapsicologia analítica), essa antinomia desconhece um modo de estrutura que, por ser terceiro, não deve ser excluído, ou seja, os efeitos que a combinatória pura e simples do significante determina na realidade em que se produz (E: 655).

Importante salientar que, aqui, o conceito lacaniano de estrutura está delineado. Em primeiro lugar, a estrutura não é um modelo, mas define-se por seus efeitos no real. Este é o ponto chave que marca toda a distância de Lacan com o estruturalistas tout-court. Além disso, esse parágrafo luminoso faz furo no estruturalismo que coloca a antinomia fundamental entre o sujeito e a estrutura: a estrutura exclui o sujeito. Ora, em Lacan, os termos ‘estrutura’ e ‘sujeito’ convivem lado a lado, sem fazer economia do caráter antinômico desta convivência. A exegese correta desta definição do terceiro modo da estrutura dá-nos também o conceito de sujeito. Vale acrescentar, antes disso, que este “modo da estrutura” deixou lastro muito maior e muito mais duradouro no pensamento de Lacan do que supõem as periodizações fáceis a que seu ensino é

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constantemente confrontado. É isso que nos permite entender porque ele separa o destino do estruturalismo, como uma temporada efêmera, e o destino da estrutura, duradouro. O estruturalismo durará tanto quanto duram as rosas, os simbolismo e os Parnasos: uma temporada literária, o que não significa que esta não seja mais fecunda. Já a estrutura não está nem perto de passar porque se inscreve no real (OE: 23)

A estrutura que perdura apesar do caráter passageiro do movimento estruturalista é justamente aquela que “se inscreve no real”, i.e., aquela que não se reduz a um esquema transcendental de significantes ou coisa que o valha. Não por acaso, Lacan afirmou tantas vezes que o campo da psicanálise é o campo que concebe o Outro como “lugar onde isso fala” (Lacan, 2005, p. 84). Nada mais longe de um esquematismo kantiano do que um Outro “onde isso fala”. O ponto de vista da estrutura e a teoria do sujeito conduzem a perspectivas teóricas incompatíveis, segundo não somente a doxa estruturalista, mas também segundo eminentes figuras do programa de pesquisa estruturalista, do qual Lévi-Strauss é a mais conhecida9. No entanto, Lacan opera uma radical inversão da perspectiva10; às antípodas do que enuncia o estruturalismo lévi-straussiano, ele faz da estrutura a condição maior da formalização de uma concepção, ao mesmo tempo, não-naturalista, não-substancialista e não-psicologizante do sujeito11: Retomemos o fio da argumentação herética12 de Lacan, sublinhando que “o hiperestruturalismo é o estruturalismo tomado ao pé da letra” (Milner, 2002, p. 166). Tomemos então a letra de Lacan. Se, com efeito, a estrutura se mostra como “os efeitos da combinatória significante”, um simples exercício de substituição lógica nos descortina o sujeito na definição mesma da estrutura: (1) se “um significante é o que representa (ou: ‘veicula’) o sujeito para um outro significante” e (2) se a estrutura é definida como os “efeitos que a combinatória significante determina…”, pode-se concluir que (3) a estrutura pode ser definida como sendo os efeitos que a combinatória ‘do que representa o sujeito’ determina na realidade em que ela se produz. Nas prateleiras das teorias da linguagem O que encontraríamos disponíveis hoje, em termos de teoria da linguagem, caso abandonássemos inteiramente os principais vetores do que Lacan encontrou junto ao pensamento estrutural Para concluir este estudo, pretendo argumentar que pelo menos uma conquista definitiva nós não devemos abandonar: a possibilidade de uma tratamento extra-moral da linguagem. Em outras palavras, o que Lacan procura – e encontra – junto a Jakobson e Cia é uma maneira de tratar a linguagem sem traçar uma fronteira a priori – ou o que dá no mesmo: moral - entre o sentido e o não-sentido. Sem essa posição ética diante da linguagem, seria impossível levar a efeito a clínica psicanalítica. É claro que Lacan encontra isso também em sua longa frequentação da literatura e da poesia, de Poe a Joyce. Mas o que é preciso salientar é que a perspectiva estrutural chancela este procedimento, coisa que a maior parte das filosofias anglosaxônicas da linguagem não o fazem.

Em Périple structural, J.-C. Milner examina as maiores figuras do programa de pesquisa estruturalista, do qual ele exclui voluntariamente Lévi-Stauss, que, no entanto, poderia lhe replicar como ele o fez outrora: “Para voltar às primeiras páginas de seu comentário, confessarei-lhe que acho estranho que pretendam me excluir do estruturalismo, deixando como seus únicos ocupantes Lacan, Foucault e Althusser? É colocar o mundo pelo avesso. Há na França três estruturalistas autênticos: Benveniste, Dumézil e eu; e aqueles que você cita só figuram nesta lista por um efeito de aberração (Clement, s/d, p. 14). 10 Permito-me remeter ao meu artigo “Cartografia de em desencontro: estrutura e sujeito em Jacques Lacan”, primeiro volume da série Dez encontros, sob a direção de Teixeira e Massara (2000). 11 Iannini, 1998, p. 199. 12 Ver o comentário de Milner (2002, p. 166). 9

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“Anômalo”, “parasitário”, “não-genuíno”, “não-sério”, etc. Estas e outras expressões do gênero são frequentemente empregadas por grande parte da tradição anglo-saxã da filosofia contemporânea quando se trata de pensar o estatuto do discurso ficcional, o uso literário ou poético da linguagem. Grosso modo, a literatura não fornece um modelo apropriado para a compreensão de fenômenos lingüísticos. Ao contrário. Devemos partir do funcionamento da linguagem em seu usos cognitivo ou comunicativo e, a partir das teorias elaboradas nestes contextos “primários” ou “normais”, poderemos enfim abordar o discurso ficcional, etc. Não que a literatura não desperte interesse filosófico. Mas ela deve ser abordada a partir das teoria da referência, da verdade, do sentido, da nomeação, dos atos ilocucionários, da metáfora, etc, formuladas no contexto do uso “sério” da linguagem. Tal é o resultado de um processo de racionalização que elegeu a linguagem como objeto, e que, de Frege a Searle, passando por Wittgenstein, sempre insistiu nos aspectos cognitivos ou pragmáticos da linguagem. Transcorrido mais de meio século do ápice do modismo que acompanhou o entusiasmo do movimento estruturalista, estamos em condição privilegiada para reavaliar a dimensão estética da linguagem desde a implantação do pensamento estrutural na França até Lacan. Uma reavaliação do lugar que a reflexão estética ocupa no movimento estruturalista ainda está por ser feita de forma sistemática. A leitura corrente acerca do pensamento estrutural reza a cartilha segundo a qual tratou-se de um movimento de caráter epistemológico que buscava para as assim chamadas ciência humanas o estatuto de cientificidade homólogo àquele encontrado nas ciências naturais. Tal resultado dependeria do emprego de estratégias de formalização de inspiração matemática, levadas a cabo na fonologia e importadas, de lá, para as demais ciências humanas, a começar pela etnologia e, logo em seguida, pela psicanálise. Isso tudo é verdadeiro. Não obstante, parece que lugar que ocupa a reflexão estética no pensamento francês da década de sessenta é subestimado. Num primeiro olhar, costuma-se ter a impressão de que os problemas clássicos da estética e a reflexão sobre a arte contemporânea não foram explicitamente tematizados, ou pelo menos não de forma sistemática. Não obstante, um olhar mais atento mostra justamente o contrário. Os principais autores identificados à vertente estrutural do pensamento do século XX não apenas tematizaram a literatura e outras artes, como as artes plásticas e visuais e o cinema, como também, e principalmente, é possível mostrar que este conjunto de reflexões estrutura o campo epistêmico no qual se movimenta o pensamento estrutural. Mais do que isso: é possível levantar a hipótese de que é justamente a intensificação deste co-funcionamento entre conceito e arte, entre lingüística e literatura, entre formalização estrutural e formalização estética, que determina o passo decisivo que conduz o pensamento da estrutura a um pensamento da diferença. Não que a diferença não fosse um conceito maior já desde os trabalhos de Saussure e Jakobson e, destes até Lévi-Strauss. Mas também que, paulatinamente, o ponto de vista da diferença desponta com mais vigor, reforçado justamente pelo apoio tomado de empréstimo à vanguardas literárias francesas, por meio das quais o pensamento de Nietzsche se infiltrou cada vez mais insidiosamente na filosofia francesa contemporânea. Um curioso efeito desta leitura poderia ser o de tornar inteligível as razões pelas quais a recepção atual do pensamento francês da década de sessenta tenha praticamente se esgotado nos domínios mais próximos da reflexão científica, como a lingüística, e que a recepção dos últimos anos esteja cada vez mais empenhada em estudos estéticos, tendo se firmado muito mais como campo de referências para estudos literários, estudos de cinema e sobre a arte contemporânea. Em outras palavras, os destinos da atividade filosófica na França foram radicalmente diferentes de outros lugares por diversas razões. Uma delas, e certamente não a menor, está relacionada ao ponto de vista que desenvolvemos aqui. A filosofia de língua inglesa adotou, de maneira preponderante, o paradigma da filosofia da linguagem, seja erigindo a forma proposicional e a análise lógica como objeto e método, respectivamente, seja adotando o ponto de vista da linguagem ordinária e da terapia linguística. Cabe lembrar que, do ponto de vista que interessa o inconsciente e a pulsão não há algo como prosa utilitária neutra, isenta de ressonâncias subjetivas, como gostariam de crer, alfineta

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Lacan, os filósofos ingleses. Para estes é claro como a água (dur comme fer) “que a palavra não tem efeito (...). Eles não imaginam que as pulsões, é o eco no corpo do fato de que há um dizer” (S.XXIII, p. 17). Do ponto de vista arqueológico, podemos dizer que uma certa compreensão do entrelaçamento entre arte e pensamento estrutura este campo, limitando a análise linguística séria, genuína, autêntica aos usos não-ficcionais da linguagem, principalmente aqueles que encontramos nas proposições que descrevem estados-de-coisa e nas trocas intersubjetivas da conversação ordinária. Fica claro que, nestes casos, arte não é pensamento, e que o estudo das formas da arte, das obras literárias, ficcionais, poéticas podem sim ter interesse, mas sempre marginal, periférico, quase diria, ornamental. Ao lançar a expressão poética para os confins do fora-do-sentido, e portanto, como incapazes de partilhar do léxico da verdade, a filosofia analítica da linguagem desenhou as fronteiras entre arte e filosofia de uma determinada maneira, que poderíamos chamar, não sem algum risco, de uma forma contemporânea da expulsão platônica do poeta... Ora, a pouca ou quase nenhuma penetração que filosofia da linguagem obteve no pensamento francês tem a ver, ainda no nível arqueológico, com estes fatores. Nenhum dos autores principais do paradigma da estrutura e do pós-estruturalismo desdenhou da arte, da literatura, da poesia como fenômenos marginais, periféricos. Ao contrário. Jakobson, por exemplo, termina seus Essais de linguistique générale da seguinte forma: “cada um de nós aqui compreendeu definitivamente que um lingüista surdo à função poética, assim como um especialista da literatura indiferente aos problemas e ignorante dos métodos lingüísticos são, um e outro, flagrantes anacronismos” (Jakobson, 1963, p.248). Todorov, Barthes e outros não fazem senão realizar este programa. E o que dizer de Lévi-Strauss Acusado de “formalista”, de indiferente à matéria bruta dos fatos em favor da forma pura das estruturas, de negligenciar o sujeito e a história, o que parece escapar é que sua recusa do sujeito é a recusa do sujeito transparente e consciente de si, capaz de determinar reflexivamente o sentido do discurso e de neutralizar os efeitos da estrutura. Com efeito, o autor de “Tristes Trópicos”, não poucas vezes aproximou a teoria estrutural da fonologia à teoria da música. Chega a afirmar, por exemplo, que “na França, em pleno século XVIII, os princípios sobre os quais Saussure fundará a lingüística estrutural são claramente enunciados, mas a respeito da música, por um autor que tem dela uma concepção análoga àquela que atualmente devemos à fonologia” (Lévi-Strauss, 1993, p.75)13. Isso porque as notas musicais não gozam de positividade fora de sua realização numa frase musical, nem possuem sentido tomadas isoladamente; mas comportam-se exatamente como os fonemas que só produzem sentido quando inseridos num conjunto em que as diferenças e oposições se tornam relevantes no plano significativo. Um último e rápido exemplo, na linha do comentário feito acima sobre Jakobson. Quando se debruça sobre o poema Voyelles de Rimbaud, o interesse de Lévi-Strauss (1993, p.99e ss) é justamente o de buscar explicar, a partir da fonologia, a construção de um verso como: “A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles”. Em nenhum momento trata-se de perguntar se o verso tem sentido ou não, ou de relegá-lo exclusivamente como exemplo de uma expressão lingüística desprovida de sentido e, portanto, de teor de verdade. Ao contrário, justamente, ele busca confrontar Rimbaud com a teoria das cores de Castel (1688-1757) e a deste com a teoria de Newton! Nada mais longe da corrente majoritária da filosofia da linguagem de língua inglesa, que costumava, àquela altura, conceder aos usos poéticos e literários da linguagem, quando muito, uma função “expressiva”, desprovida de interesse para compreensão do funcionamento da linguagem e da razão, indignos de figurarem como objeto de investigação filosófica “séria” ou “genuína”. Uma certa concepção acerca do entrelaçamento entre arte e pensamento estrutura internamente o campo discursivo, com suas regras de formação de objetos e de enunciados, do

Lévi-Strauss sempre se interessou pelas artes. Não apenas pela grande arte européia, passando por Wagner, Proust, Rimbaud, Poussin, Rameau, entre tantos, mas também pela pintura de máscaras rituais ameríndias, etc. 13

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que se convenciou chamar de pensamento estrutural, da linguística jakobsoniana a Foucault, passando por Lévi-Strauss e Lacan14.

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