A Estrutura Simbólica do Monumento de Mafra: entre Heliópolis e o número 666

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A ESTRUTURA SIMBÓLICA DO MONUMENTO DE MAFRA Entre Heliópolis e o número 666 Manuel J. Gandra

Resumo O Monumento de Mafra é uma réplica de Heliópolis, a Cidade do Sol. Com efeito, a planta do Real Edifício configura, com base no respectivo módulo regulador ou cânone, o quadrado mágico do Sol. O referido quadrado comporta os primeiros 36 números dispostos segundo uma grelha de 6 x 6, de molde que o valor linear, na horizontal, vertical ou diagonal, seja 111 e o valor global 666, também correspondente ao número total de compartimentos ou casas da obra emblemática do Magnânimo. Este estudo intenta ainda evidenciar os nexos tópicos e semânticos entre o Monumento de Mafra, a Pedra de Mistério da ermida de São Julião (Carvoeira) e o Caminho das Almas, constituído por vários cruzeiros com quadrados mágicos e labirintos de letras inspirados numa tradição hermética de origem helenística e neo-pitagórica, que une esse local, sede da “corte” de Mateus Álvares, o falso Dom Sebastião da Ericeira, ao cemitério de Nossa Senhora do Ó.

__________________ * Licenciado em Filosofia (Faculdade de Letras – Universidade Clássica de Lisboa). Investigador. Docente no IADE. Responsável pelo Centro de Documentação e Informação de História Local do Concelho de Mafra (Câmara Municipal de Mafra). Director do Centro Ernesto Soares de Iconografia e Simbólica [www.cesdies.net]. Um dos subscritores do movimento Monumento de Mafra Virtual [www.monumentomafravirtual.net.]

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E eu declaro a todos os que ouvem as palavras da profecia deste livro: “se alguém lhe acrescentar alguma coisa, Deus fará vir sobre ele os flagelos descritos neste livro; e se alguém tirar alguma palavra do livro desta profecia, Deus tirar-lhe-á a sua parte da Árvore da Vida e da Cidade Santa descrita neste livro. APOCALIPSE, XXII, 18-19

Deixou de gerar controvérsia a assunção, até há poucos anos polémica, de que o Monumento de Mafra teve Heliopolis, a Cidade do Sol, por modelo. Dessa constatação decorre, porém, uma consequência já não susceptível de um consenso tão alargado: a adesão a um tal paradigma implica a adopção de todas as respectivas qualidades intrínsecas, de entre as quais sobressai uma de natureza aritmológica, que se consubstancia no número triplo 666, cuja carga pejorativa, de resto, contestada por distintos hermeneutas da Kabbalah hebraica – segundo cuja doutrina simplesmente manifesta Sorath, o Espírito do Sol –, advém da circunstância de ser a expressão aritmosófica da palavra grega (língua adoptada pelo vidente de Patmos) ATTEIV, a Besta que “subiu da terra”, descrita no Apocalipse. Visando esclarecer, na medida do possível, a questão, enunciarei, sucintamente, algumas das suas facetas mais notáveis. De facto, o Monumento de Mafra é o exemplo vivo de um peculiar modo de conceber e dar testemunho da tradição milenarista e escatológica nacional. Explicitado com irrepreensível rigor iconográfico, o surpreendente programa iconológico definido por D. João V é tudo menos óbvio para o observador, invariavelmente impreparado (outras vezes despreparado). Por ser a Casa de Deus, o espaço de um templo é expressamente concebido para propiciar o contacto da humanidade com a divindade transcendente, mas também com a imanente, manifestando, como tal, um complexo universo de referências cosmológicas, ideológicas e de fé, encarnadas por símbolos e liturgias (que não deixam de ser símbolos). A legibilidade de uns e de outras será tanto mais efectiva quanto mais proficiente for o observador no concomitante conhecimento dos dogmas e sistemas de ideias subjacentes às formas (geométricas, aritmológicas, etc.), bem como no controle e capacidade de direccionar para elas a sua intuição (educada pela oração mental, decorrente dos exercícios espirituais propostos por todos os credos religiosos, sem excepção). Se uma tal empresa é complexa quando se trata de abordar a simbólica de um templo, muito mais problemática se revelará quando,

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como sucede no caso vertente, o mesmo santuário é simultaneamente destinado a Deus e reivindicado pelo Rei para sua habitação 1. Uma das repercussões de tal ideário no Monumento de Mafra é enfatizada pela reiterada alusão à divisão duodecimal, cuja importância doutrinal foi sublinhada por Lucas (VI, 13-17) e Mateus (X, 2) 2, consubstanciada nos 12 pórticos do edifício, nos 12 Apóstolos do Cordeiro, presentes na Galilé da Basílica, ou nas 12 x 12 [144 = Santa Jerusalém] moedas lançadas pelo esmoler do Magnânimo sobre a pedra fundamental. Porém, a repercussão da numerologia sagrada no Monumento de Mafra não se esgota, tão só, neste valor. Outro número recorrente, tradicionalmente associado ao eschaton nacional, merece também referência. Trata-se do número 17, sob esta forma, da de algum dos seus múltiplos (34, 51, etc.), ou ainda sob a do seu valor secreto, 153, que exprime a soma dos valores dos nomes dos Apóstolos, fundamento da Cidade Santa (i. e., 1530), segundo Mateus (9 x 170 [= Nova Jerusalém]) e Lucas (10 x 153 [= Os Espirituais]). Convirá então recordar, meramente a título de exemplo: 1. o lançamento da primeira pedra do Monumento de Mafra teve lugar no dia 17 de Novembro de 1717; 2. a Basílica (Casa ou Tabernáculo do Rei, que encarna a divindade creditada ao Sol!) conta com 3 + 7 + 7 = 17 candelabros, ou Luzes diante do Trono, nas três capelas principais, circunstância naturalmente evocadora da Presença do Todo Poderoso (Shaddai), bem como da teofania de Metraton, Príncipe do Mundo e princípio activo da Shekinah (a presença feminina existente em Deus, que paira sobre a décima séfira, Malkhuth [= Reino], de todos os cabalistas, cristãos incluídos!). A soma de 3 + 7 + 7 é equivalente a 3 + 14 ou ainda a 3,14, i. e., ∏ (Pi), número irracional, por intermédio do qual se passa do esquadro (Terra) ao compasso (Céu), i. e., do Pólo Terreno (Metraton —314— O Príncipe do Mundo — D. João V) para o Pólo Celeste da Criação (Schaddai — 314); 1 Com efeito, etimologicamente entendida, uma basílica (termo derivado do grego, basileus, Rei) é a Habitação Real por excelência, primitivamente destinada a uma mera utilização profana. Em Atenas, era numa basílica que o Arconte-Rei administrava a justiça. Em Roma, as basílicas serviam de tribunais e também de bazares e mercados. Só a partir do séc. IV começariam a ser transformadas em templos. Isto porque os Bispos de Roma, já sob protecção imperial, ao escolherem os mais notáveis de entre os edifícios públicos, para os adaptarem ao culto cristão, preferiram as basílicas, não só porque eram espaçosas, mas porque possuíam planta vagamente cruciforme. 2 Havia de ser retomada pelo Doutor Seráfico, São Tomás de Aquino, o qual faria corresponder os 12 Apóstolos às 12 contemplações da Fé ou artigos do Símbolo, às 12 Tribos, às 12 pedras do peitoral do Sumo-Sacerdote, aos 12 Anjos, aos 12 Patriarcas e às 12 Portas da Jerusalém Celeste.

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3. cada uma das pilastras do corpo da Basílica, sustenta uma cornucópia com três velas e uma vez que as pilastras são 34 (17 do lado Norte + 17 do lado Sul) outrora, quando se rezavam matinas solenes, eram acesas 102 velas (i. e., 34 x 3 velas, ou 17 x 6, ou ainda 17 x 3 x 2) 3; 4. as três ruas, que desenham um tridente diante da Basílica, formam entre si ângulos de 17º; 5. primitivamente, cada carrilhão (um na torre do Norte, outro na torre do Sul) contava com 51 sinos (3 x 17); 6. o Monumento de Mafra possui 17 pára-raios. Todavia, o mais explícito argumento, com vista à dissipação das hesitações que, porventura, possam subsistir quanto à índole solar do edifício, reside num elemento patente a todos quantos rumam à Basílica, etimologicamente a Casa do Rei. Com efeito, o Carrocel, desenhado no empedrado do patim do Adro que antecede o templo, constitui um dos mais evidentes sinais do que venho afirmando. Frei João de Santa Ana descreve-o nos seguintes termos: No meio da grande praça, que fica ao poente do edifício, e para onde olha o principal frontispício dele, principia a formar-se o Adro por uma rampa cercada de 24 pilares de mármore branco formando um semicírculo, cuja principal entrada se acha designada na planta pelo n. 1. O xadrez de toda a rampa é formando de seixos brancos, e pretos com várias cintas de pedra entre eles também em semicírculos. Desde a entrada principal até ao primeiro patim tem de cada lado uma ordem de pedra mais larga cortada com cavidades para que não escorregue quem passar por elas, porque se vão elevando à proporção que a rampa se eleva. Tem esta de comprimento no meio até à entrada do patim, que se lhe segue 85 palmos e de largo de norte a sul junto ao patim 125. O n. 2 na planta designa o primeiro patim do Adro o qual está cercado até aos pilares da rampa com dois lanços de degraus, de sete cada lanço e um patamar entre os dois lanços, os quais também cercam o segundo patim, como logo se dirá. Tem o primeiro patim de norte a sul 125 palmos; e contando também o espaço ocupado pelos degraus, que estão de um e outro lado, tem 180 palmos. Todo o seu pavimento é um xadrez de seixos brancos e pretos. Tem de largo de nascente a poente 70 palmos. Deste se sobem sete degraus para o segundo patim designado na planta pelo n. 3 no qual estão as colunas entre os cinco pórticos do Átrio. Tem este patim de comprimento de norte a sul 25 palmos e de largo desde os degraus até à parede dos pórticos 39. O seu pavimento é de mármores brancos, azuis e encarnados e como fica mais alto que o primeiro patim, por isso é cercado de 21 degraus em três lanços de sete cada um. [...]. Segue-se do exposto, que todo o Adro tem de comprimento desde o princípio da rampa até à parede dos pórticos, 3

Frei João de Santa Ana, Real Edifício visto por fora e por dentro, 1828, fl. 270.

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A pesca miraculosa dos 153 peixes no Lago Tiberíades Este episódio, narrado pelo discípulo amado, foi interpretado por muitos hermeneutas, a começar pela patrística grega, como aquele que encerra a chave da constituição da igreja de Cristo. Note-se que quer o número 153 como o 276 (Actas, XXVII, 37: número de almas salvas num naufrágio) acham-se presentes no Novo Testamento, associados ao tema “saído do mar”. 34 (2 x 17) = está à distância de uma unidade e meia de ser um múltiplo perfeito de 276 (45 x 34). Acresce ainda que as palavras gregas para A Rede (To diktuon) e Peixes (Ichtus) equivalem cada uma ao número 1224, correspondendo os 153 peixes pescados a 1/8 desse valor. O diagrama obtém-se dando expressão geométrica ao cânone exposto pelo Evangelista João (XXI, 3-11): B. Sete Apóstolos encontram-se nas margens do Lago Tiberíades onde vão pescar; Simão Pedro entra numa embarcação e os restantes seguem-no, embarcando também (João, XXI, 3). C. Sem ser reconhecido, Jesus surge na praia ao raiar do dia, perguntando-lhes se têm algo para comer, ao que eles respondem negativamente, circunstância que origina que diga: “Lançai a rede para a banda direita do barco e achareis”; lançando-a, já não a puderam tirar, “pela multidão dos peixes”. O arco deste círculo contém a vesica piscis, isto é, O Peixe — Cristo, o qual, dividido em 16 partes iguais — dezasseis pequenos peixes, perfaz o total de 153 peixes pescados (i. e., 1 + todos os números até 16), (idem, 4-6). A. Reconhecendo Jesus, Pedro cinge-se “com a túnica [porque estava nú]” e lança-se à água para regressar mais depressa à praia. Os restantes regressam a terra no barco (distante da praia, “uns duzentos côvados”), trazendo a rede cheia de peixes, “e sendo tantos não se rompeu a rede” (idem, 7-11). Se se orientar o diagrama de molde a colocar a rede na base, ele traduzirá a cosmologia exposta no Timeu (50a-53c) de Platão: a rede na água representando o mundo sensível em constante mutação; a esfera superior, o mundo inteligível, sede de todas as leis universais, arquétipos da manifestação; a esfera intermédia é a da humanidade que participa de ambos os mundos sensível e inteligível, espiritual e material, eterno e efémero. Numa perspectiva cristã, os três mundos correspondem às três Pessoas ou Hipóstases, num esquema idêntico à representação de uma Trindade trono de graça: A. Pai; B. Espírito Santo (Logos ou mediador entre Deus e o homem); C. Filho. O diagrama aplica-se na perfeição ao Monumento de Mafra, mais uma vez tornando evidente a ideia que presidiu à sua edificação: fazer dele uma réplica da Jerusalém Celeste, a nova igreja destinada a imperar sob o Novo Céu profetizado no Apocalipse.

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que dão entrada para o Átrio, 200 palmos e de largo 180 contando os degraus, que o cercam de um e outro lado 4. Efectivamente, patente a todos quantos rumam à Basílica (e são compelidos a caminhar sobre ele), o Carrocel expõe o seu enigma aos passantes de cujo discernimento e argúcia, não houvessem sido progressivamente deseducados, se esperaria a decifração. De autêntico cosmograma se trata, subtilmente transposto para a Vila de Mafra e, mutatis mutandis, para Portugal inteiro, expressando a iniludível vontade de geometrizar tão característica do Barroco 5.

O Sol físico e da Monarquia, como módulo regulador do Monumento de Mafra Cerca de um século antes da consagração dessa doutrina pela Igreja (1820), O Sol da Monarquia portuguesa rege, a partir da varanda central da Sala da Benção, um sistema heliocêntrico. As quatro faces do quadrângulo “olham em linha recta para os quatro ventos principais e os quatro ângulos dele olham para os quatro intermédios” (Frei João de Santana). O grupo de sete degraus (6 + patamar = Sabat de descanso) implica a semana da Criação. A rampa semicircular contém as esferas ou órbitas (coroas circulares brancas) dos 6 restantes astros então considerados (7, contando com o Sol), separadas por coroas circulares pretas, indicadoras do vazio existente entre aquelas. Na coroa circular branca periférica erguem-se 24 penitentes, simetricamente divididos por um caminho mediano, em dois grupos de 12, na razão das vinte e quatro horas do dia, separadas pelo meio-dia ou meridiana sem sombra. O quadrado, cujo lado corresponde à distância entre o ponto central do Astro Rei e a linha externa da coroa circular periférica, é o módulo regulador de todo o Monumento de Mafra. 4 Real edifício Mafrense visto por fora e por dentro […], fl. 49-50. Sucede-lhe um labirinto marmóreo, estabelecendo a fronteira entre o profano (adro) e a antecâmara do sagrado (galilé). 5 O heliocentrismo, como paradigma da vera monarquia, iniludível neste conjunto, apesar de heterodoxo, tivera já no quinhentista frei Heitor Pinto um lídimo expositor: “[…] o bom príncipe e prelado é um Sol comum a todos, que vigia sobre seu povo com muitos olhos, estando sempre no meio como o Sol, que está no meio dos sete planetas”. Cf. Imagem da Vida Cristã, Diálogo da Justiça, cap. V, v. 1, Lisboa, 1940, p. 173.

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Dois corpos tangentes, um quadrangular, outro semicircular, na razão, respectivamente, do mundo físico (espaço com seus quatro horizontes) e do mundo espiritual (tempo, ritmado pelo movimento circular dos astros), fundem-se para se homogeneizar. No centro, o Astro Rei da Visão de Ezequiel (clone e duplicado do Rei Astro, Dom João V) expede os seus raios em todas as direcções, evocando a imagem de uma roda e desenhando imensa máquina de que o monarca é, concomitantemente, o motor e o eixo, centro imóvel e módulo regulador. Em torno a si evoluem mais ou menos rapidamente, conforme a proximidade ou afastamento, os grandes e os pequenos, numa espécie de fototropismo face ao Corpo glorioso do Sol monárquico, o qual, à semelhança de um relógio, ordenada e cerimonialmente os rege, enquanto membros do seu corpo simbólico. No próprio dia da aclamação de Dom João V, Manuel Lopes de Oliveira definia o papel do Magnânimo nos seguintes termos: “Dia também dos em que o Sol lá dessas altas esferas começa a voltar para este nosso hemisfério seu rosto e seus benéficos raios. E assim El-Rei nosso Senhor, esplendíssimo Sol Oriente da nossa Lusitânia voltando para estes seus vassalos os raios da sua beneficência, queira aceitar os nossos obsequiosos rendimentos” 6.

“Ao Rei o estatuto de Sol e aos conselheiros o estatuto de Lua” Emblema XXXIII (Non in una sede morantur), incluído por Frei João dos Prazeres em O Princípe dos Patriarcas (Lisboa, 1690).

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Cf. Número Vocal, exemplar católico, Lisboa, 1702, p. 407.

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Tridente gerado pelo módulo regulador do Monumento de Mafra O módulo regulador do Monumento de Mafra gera um Tridente (à imagem do que ocorre no Palácio de Versalhes): as duas Vias laterais, perfeitamente simétricas (um ângulo de 17º separa-as da central), constituem a extensão natural dos torreões, ditos do Rei e da Rainha (prefiguração das Ruas do Ouro e da Prata, da Baixa pombalina), do mesmo modo que o caminho meridiano do Sol físico e da Monarquia (que prolonga a Varanda da Bênção na mítica Avenida ou Estrada do Sol que se tem admitido haver sido planeada por D. João V) prefigura a Rua Augusta, via triunfal dos heróis (apolíneos laureados).

Ora, uma vez que o Sol da monarquia lusa passa por ser o próprio Pai da Pátria e a medida de todas as coisas públicas, não poderá o Monumento de Mafra tê-lo tido por bitola também?

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Basílica - Mandala Demonstração da anatomia cúbica da Basílica de Mafra.

Monumento - Cubo Uma lenda afirma que o Monumento de Mafra possui quatro pisos enterrados no subsolo. Tal não se verifica, de facto, mas a tradição contribui para demonstrar na prática a configuração cúbica do edifício, a partir da sua fachada poente (a única sempre adoptada para o identificar).

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Traçados reguladores da montea (alçado) da Basílica de Mafra O duplo quadrado (duplo módulo regulador do Monumento de Mafra), rectângulo Phi (ø) ou Secção Áurea, presente no traçado do frontispício da Basílica, ocorre em alguns dos mais famosos edifícios sagrados do mundo, entre os quais a Câmara do Rei da Grande Pirâmide de Quéops e o Templo de Salomão. Isto porque, para os mestres construtores tradicionais, a sintonia com a matriz universal só será efectiva na condição de o templo haver sido adequadamente edificado, de acordo com um sistema matemático preciso (aritmológico e geométrico). Todavia, a justa medida do templo não se confina apenas à arquitectura. A geometria da imaginária há-de, igualmente, ser sujeita a estrito controlo matemático ou iconométrico, porquanto só uma imagem bem delineada constituirá um convite para que a divindade a habite. Os cânones de proporções serão ainda complementados por um cuidadoso desenho das expressões, posturas, trajes e atributos. Todos estes requisitos foram tidos em conta na estatuária encomendada para a Basílica de Mafra. Aliás, em Carta, datada de 14 de Fevereiro de 1731, remetida para Roma, José Correia de Abreu sublinharia que o cânone da estatuária teria de equivaler “à décima parte do palmo por que está feita a Real Obra de Mafra”. A disposição da estatuária também ela seria meticulosamente ponderada. No frontispício, por exemplo, as duas imagens de São Domingos e de Santa Clara, à esquerda do observador, ostentando luzes visíveis (archote, livro e custódia) representam o mundo sensível, enquanto, à direita, os dois expoentes taumatúrgicos da luz invisível, São Francisco e Santa Isabel da Hungria, tornam manifesto o mundo inteligível, supra-sensível ou da intuição. Na Varanda da Benção, destinada às suas Aparições, competiria ao Rei proceder à harmonização dessas duas categorias de humanidade, à Luz Augusta da sua Majestade Pia e Sacra (reconduzindo-as à unidade, simbolizada pela Secção Áurea). Sucessivos rebatimentos do quadrado que delimita a fachada da Basílica (= módulo regulador do Monumento de Mafra), originam um rectângulo V 5 (paraíso na terra), o qual

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define exactamente o local de contacto (a base do lanternim) do céu (lanternim em cujo dossel se manifesta a pomba do Espírito Santo) com a terra (templo = paraíso na terra).

Traçados reguladores do alçado dos corpos laterais da fachada poente e dos torreões do Monumento de Mafra O módulo regulador do Monumento de Mafra constitui a chave da medida e da proporção obtidas. Convém sublinhar que a planta dos torreões replica exactamente o módulo regulador.

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A comprovação por intermédio do dia ton grammon (com o auxílio de linhas ou construções geométricas) vem corroborar a hipótese exposta acima. Com efeito, o raio da circunferência com centro no Sol, em cujo âmbito se inscreve a máxima extensão do sistema heliocêntrico do Carrocel, é uma medida recorrente no edifício e, se aplicada à sua planta geral, configura um quadrado mágico de 6 x 6 (denominado do Sol), cujo valor total equivale ao famoso número solar 666, citado no Apocalipse e também correspondente ao número total de compartimentos ou divisões do Real Edifício, consoante a computação proposta por Frei João de Santa Ana!

37 x 3 (1+1+1) = 111 (Inteligência do Sol) 37 x 6 (2+2+2) = 222 37 x 9 (3+3+3) = 333 37 x 12 (4+4+4) = 444 37 x 15 (5+5+5) = 555 37 x 18 (6+6+6) = 666 (Besta) 37 x 21 (7+7+7) = 777 37 x 24 (8+8+8) = 888 (Jesus) 37 x 27 (9+9+9) = 999 […] 37 x 40 = 1480 (Cristo)

Aritmosofia do quadrado mágico do Sol (6 x 6) O quadrado mágico 6 x 6 foi um dos mais importantes símbolos adoptados para figurar o Sol em virtude da presença do número perfeito 6, consoante Santo Agostinho no-lo assinala em A Cidade de Deus (livro XI, cap. 30), decerto influenciado pelo pitagorismo neo-platónico: o cubo possui 6 faces e a sua duplicação por números irracionais, que o oráculo ordenou aos sacerdotes délios, havia de converter-se num dos problemas predilectos dos construtores da Antiguidade e do Renascimento; os números 1 (sexto), 2 (terço) e 3 (metade) quando multiplicados e somados igualam 6; os numerais desde 1 até 36 inscritos no quadrado mágico do Sol igualam 111, linearmente (na horizontal, na vertical, na diagonal), e 666, globalmente. O número primo 37, sagrado segundo Pitágoras (no triângulo rectângulo, de lado 3, 4, 5, o ângulo superior mede 37º) e Platão, tem, entre outras, a particular propriedade de produzir múltiplos com dígitos repetidos (números triplos 111, 222, 333, etc.), aos quais sempre a aritmosofia atribuíu significado solar. Além disso 666 e 888 são duas das ratio subjacentes à formação da escala musical e ao princípio da harmonia, uma das hipóstases do Logos (Criador).

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MEDALHAS-AMULETO DO MUSEU DE BERLIM

Deus do sol, em pé, sobre um leão, indicando o domicílio do Sol no signo do Leão. No verso, a inscrição Nachyel, sinónima de “Inteligência do Sol”, juntamente com o quadrado mágico respectivo: 36 quadrículas com os numerais de 1 a 36.

Selo solar em honra da estrela Basilisco, diminutivo do grego basileus (rei), sinónimo do latim regulus (única estrela de primeira magnitude da constelação do Leão). O Sol e a Lua acham-se representados numa das faces, conjuntos com a estrela Regulus, figurando um aspecto astral que ocorreu no dia 19 de Agosto de 1705. O verso ostenta o quadrado mágico do Sol, inscrito num hexágono, expressão do número perfeito 6.

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A planta do Monumento de Mafra como quadrado mágico de 6 x 6 módulos reguladores Os quadrados mágicos são instrumentos capazes de captar e virtualmente mobilizar um poder, circunscrevendo-o na representação do número daquele que é o detentor de tal poder. São guarnecidos de números inteiros positivos, diferentes, de modo que a soma dos números que figuram sobre uma mesma linha (horizontal, vertical ou diagonal) seja sempre a mesma. A planta do Monumento de Mafra é expressão do quadrado mágico do Sol (6 x 6).

De resto, para convenientemente descodificar o Monumento de Mafra torna-se indispensável recorrer reiteradas vezes ao livro atribuído ao vidente de Patmos, e, designadamente, aos enunciados consagrados à Nova ou Celeste Jerusalém pelos exegetas, significativo número dos quais propôs a reconstituição dela à imagem do seu protótipo, o Templo de Salomão. A essa mesma luz, não posso deixar de considerar sintomática a omnipresente insistência da parenética coeva do Magnânimo, mas igualmente dos panegiristas de serviço, na atribuição da Basílica de Mafra ao Salomão da Lei da Graça (Dom João V) 7, para tabernáculo de Santo 7

Ver do subscritor: A ideia do Monumento de Mafra: Arquitectura e Hermetismo, in Boletim Cultural ’94, Mafra, 1995, quadro 2, p. 31.

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António, por antonomásia chamado Arca do Testamento, que o mesmo é dizer Arca da Aliança. Nesse conspecto, o esplendor litúrgico que revestiram os cerimoniais, quer do lançamento da pedra fundamental do Monumento de Mafra, em 17 de Novembro de 1717, quer da sagração da sua Basílica, em 22 de Outubro de 1730, torna-se argumento decisivo.

Tabela iconografando as alfaias litúrgicas indispensáveis na celebração de uma Missa de Pontifical (no interior da Basílica de Mafra, sobre o pórtico axial)

Lançamento da Pedra Fundamental João V mandou armar a Basílica em madeira pintada, de acordo com o projecto ao tempo aprovado. De abóbada, uma vez que a erguida em madeira fora destruída por uma tempestade que se abateu sobre Mafra na madrugada de 14 para 15 de Novembro, serviram velas de navio forradas interiormente com panos de brim, cobertos de tafetás encarnados e amarelos. Razes pendiam das paredes. As portas e janelas foram guarnecidas com cortinas de damasco, de franjas e galões dourados. Mais tafetás vermelhos decoravam a fachada. Na capela-mor erguiam-se dois sitiais de tela branca. O do Evangelho, sobre seis degraus e com dossel, destinava-se ao rei; o da Epístola, sobre três e sem dossel, foi reservado para o Patriarca Dom Tomás de Almeida, achando-se ladeado por credências cobertas de sumptuosos paramentos, destinados à Missa de Pontifical (aquela que,

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por definição, só o Sumo Pontífice pode celebrar ou presidir!), e de opulentas peças de prata. Noutra credência estavam a pedra que devia ser benzida, de jaspe (como preconiza o texto do Apocalipse para fundamento da Nova Jerusalém), marcada com cruzes, medindo 55 cm de comprimento, e a portadora da inscrição comemorativa, além de uma urna de mármore, na qual ficariam encerrados: um cofre de prata dourada com os pergaminhos do voto régio e do benzimento da primeira pedra e da cruz erecta na igreja, dois frascos com os santos óleos, duas caixas de prata dourada com o Agnus Dei de Inocêncio XI e o de Clemente XI e doze medalhas (quatro de ouro, quatro de prata e quatro de bronze). Medalhas de autor desconhecido, lançadas nos Alicerces, junto com a Pedra Fundamental, do Convento de Santo António Não há notícia de existir exemplar algum destas medalhas (em qualquer das variantes de ouro, prata ou cobre), expressamente cunhadas para comemorar o lançamento da primeira pedra do Monumento de Mafra, em 17 de Novembro de 1717. Depois de bentas, as doze medalhas foram colocadas em duas caixas de ouro redondas acompanhadas por duas lâminas do mesmo metal, uma com o Agnus Dei de Inocêncio XI e outra com o Agnus Dei do Pontífice reinante. Essas duas caixas foram seguidamente depositadas nos alicerces da capela-mor, da parte do Evangelho, juntamente com uma arca de ouro contendo a escritura real e dois vidrinhos de óleo santo. 1. Ø (?); cunhada nas variantes de ouro, prata e cobre A - “Os retratos de El-Rei e Rainha com uma letra (na orla), que dizia: JOANNES V. PORTUGALLIAE ET ALGABRIORUM REX, ET MARIANA DE AUSTRIA CONJUX”. R - “A planta do Convento com a seguinte letra: D. ANTONIO LUSITANO. MAFRA 1717”. 2. Ø (?); cunhada nas variantes de ouro, prata e cobre A - “O insigne português Santo António em uma nuvem sobre o altar e El-Rei de joelhos diante dele com as mãos levantadas e a seguinte letra (na orla): IN COELIS REGNAT, INVOCATUR IN PATRIA”. R - “A frontaria do templo com duas torres e zimbório com letra, que dizia: dIVO ANTONIO ULYSSIPONENSI DICATUM. No pórtico do templo a seguinte letra: JOANNES V. PORTUGALLIAE REX MANDAVIT. MAFRAE 1717”. A descrição do Reverso, dada por Frei Cláudio da Conceição, acrescenta alguns detalhes da maior importância: “O sumptuoso templo, que se lhe consagrava,

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mostrando na perspectiva duas altas torres nas ilhargas, no meio o zimbório, as portas do templo para o poente e o Convento da parte esquerda, por assim estar nesse tempo delineado, que depois [...] se variou de planta [...]”. Nela se divisam os contornos específicos do único projecto (dos quatro elaborados, o ultimo dos quais em 1728) que, com propriedade, se pode atribuir a Ludovice. 3. Ø (?); cunhada nas variantes de ouro, prata e cobre A - “O retrato do Pontífice reinante Clemente XI com uma letra (na orla), que dizia: CLEMENS UNDECIMUS PONTIFEX MAXIMUS”. R - “As armas do Pontífice com esta letra: PONTIFICATUS ANNO 17”. 4. Ø (?); cunhada nas variantes de ouro, prata e cobre A - “O retrato do Ilustríssimo e Reverendíssimo Patriarca com a seguinte letra [na orla]: THOMAS I. PATRIARCHA ULYSSIPONENSIS OCCIDENTALIS”. R - “As suas armas com esta letra [no exergo]: SANCTI ANTONII ULYSSIPONENSIS TEMPLUM À JOANNE V. PORTUGALLIAE REGE DESIGNATUM CONSTRUCTUM LAPIDEM IN SIGNUM POSUIT. ANNO DNI M.DCC.XVII”.

Para o monarca havia, junto à coluna do cruzeiro, uma tribuna em forma de leito, com balaústres de ébano e cortinas de brocado vermelho. Juncos e espadanas cobriam o chão, o qual se achava atapetado com alcatifas verdes. Às 8.30 horas da manhã do dia solene chegou o Rei ao terreiro do templo, seguido pela corte, todos a cavalo, cuja pompa dos jaezes se equiparava à das galas dos cavaleiros. Acompanhavam-no: lateralmente a real guarda alemã e atrás a cavalaria com seus clarins. Logo se organizou a procissão para entrar na igreja. À frente marchava a comunidade dos frades arrábidos; depois, sucessivamente, o clero local, os músicos, capelães de sobrepelizes, acólitos patriarcais, subdiáconos, capelães de capa magna com capelos de arminho e pluviais, beneficiados, cónegos de pluviais de tela branca e mitras bordadas com pedras preciosas (cada um precedido pelos seus criados nobres e seguido por caudatários de sobrepelizes sobre os hábitos patriarcais), o Patriarca vestido com peças riquíssimas e coberto com mitra de pedras, os protonotários patriarcais com roquetes e capas magnas, o Rei, a corte, o juiz e o corregedor, os vereadores e, por fim, o povo, à volta de três mil pessoas. Feita a benção, cujo cerimonia D. João V acompanhou com o ritual nas mãos, dirigiu-se a procissão para o local em que a pedra devia ser colocada, junto do altar-mor, da qual foi portador o Patriarca. Depostas, essa e a da inscrição, e também a suprareferida urna de mármore, na cova

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aberta para o efeito lançou o geral de São Bernardo, esmoler mor, doze moedas de cada espécie de dinheiro corrente no reino (12 x 12) de ouro, prata e cobre. Este acto concluído, regressaram todos aos respectivos lugares na igreja, na mesma forma processional, para assistirem às restantes funções e à missa, da qual disse D. Gabriel Chimbali, mestre de cerimónias da Patriarcal, que nunca vira, nem sequer em Roma, tanta magnificência em paramentos e cópia de sacerdotes, nem pomposo rito, nas missas pontificais. Só em lugar de cardeais eram cónegos os celebrantes. Acabada, finalmente, a função, quis o monarca dar uma pública prova do seu empenhamento na obra e da sua devoção. Dom João V pegou numa pedra de palmo e meio, que estava num cesto dourado, e, carregando com ela, foi depositá-la junto da que fora benzida. Os fidalgos que o secundavam tomaram outras pedras iguais, assentes em cestos prateados e acompanharam o soberano, levando o visconde de Ponte de Lima a sua à cabeça.

Sagração da Basílica No dia 18 de Outubro de 1730, chegaram a Mafra os cardeais da Cunha e da Mota, os bispos de Leiria, Portalegre, Pará e Nanquim, em coches de aparato, seguidos de farta criadagem e de muitas azémolas carregadas e cobertas com reposteiros bordados. A 19 chegaram o Rei, o Príncipe do Brasil, Dom José, e o Infante Dom António, em coches sumptuosos, acompanhados pelos criados da Casa Real. A 20, entrou na vila o Patriarca, num coche riquíssimo, ao qual seguiam o de Estado e mais quatro com os seus criados. No dia 21, de manhã, o deão da Sé Patriarcal, revestido de capa de asperges e com mitra encarnada, ante D. João V e a família real, realizou a benzedura dos paramentos e das peças litúrgicas, assim como dos painéis dos altares laterais. A seguir, benzeu o convento com todas as suas dependências: noviciado, refeitórios, dormitórios, celas, etc. À tarde, na capela do Hospício do Espírito Santo (sito no logradouro da actual Quinta da Raposa), fizeram os arrábidos, com a presença do Rei e da corte, as vésperas da dedicação da Basílica, às quais se seguiu uma procissão até à mesma; ao seu desfile assistiu o monarca e a família real da Varanda da Benção. À noite, numa sala do palácio, armada em capela, sigilou o Patriarca as relíquias dos apóstolos e evangelistas que no dia seguinte devia colocar no altar-mor. Depois, cantaram-se as matinas dos Após-

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tolos, com a presença do Rei e da família real, que, de seguida foram ouvir as do Hospício, cantadas desde a meia-noite até às três da madrugada. A mesma exacta sucessão de actos repetiu-se durante os oito dias seguintes. No dia 22, o primeiro da sagração, as funções religiosas começaram às 7 horas da manhã, tendo concluído às 3 da madrugada. No terreiro, cortado por uma rua toldada com panos de brim para passar a procissão, postou-se em forma, às 5 horas da manhã, a tropa, composta de cavalaria e infantaria. Às 6 horas, ingressaram os frades no seu convento, onde já estava o Rei com os príncipes, os quais assistiram à missa rezada na sala De Benedictione, depois da qual João V deu beija-mão à corte por ser esse dia o seu natalício. Pelas 7 horas, chegaram a rainha, a princesa, os infantes Dom Pedro e Dom Francisco. Daí a meia hora surgiu a procissão, debaixo de cujo pálio ia o Patriarca com magnífico pluvial branco e mitra recamada de pedras preciosas, seguido pelo Rei, pelas altezas e pelos fidalgos da corte, cobertos de galas custosas, à compita. Primeiro, o Patriarca deu beija-mão; depois, cantadas uma Antífona e a Ladainha de Todos os Santos, benzeu o sal e a água. Enquanto fez a aspersão em si próprio, nas pessoas reais, nos eclesiásticos e no povo, cantou-se a antífona Asperges Me. Era a seguinte a disposição do vestíbulo, cujo pavimento estava alcatifado: à esquerda, sobre quatro degraus, o trono patriarcal com cadeira e dossel de tela branca e o régio e das altezas com cadeiras e dossel de veludo carmesim guarnecido de ouro. Defronte, encostados aos arcos, bancos de espaldares, cobertos de razes, para os cónegos e bancos rasos, cobertos também de razes, para os beneficiados. Ao fundo, do lado meridional, a tribuna da Rainha, da Princesa do Brasil e das suas damas. À direita, uma credência com várias peças: caldeirinha, hissope, aspersórios, jarros e pratos, de prata dourada, e sal moído; sobre um escabelo um grande vaso de prata, em concha, com água. Junto dos degraus da porta e sobre uma credência ficava o cerimonial e defronte, o faldistório. Findo o sobredito acto, ordenou-se novamente a procissão, levando cada beneficiado um castiçal com vela acesa. Durante o rodeio da Basílica aspergiu o Patriarca as suas paredes com água benta. Chegado à porta nela bateu três vezes com o báculo dizendo: Attolite portas principes vestras... ao que o diácono, do interior, respondeu: Quis est iste Rex gloriae? Retorquiu o Patriarca: Dominus fortis et potens in praelio. Outras duas circumambulações efectuou a procissão, batendo à porta o Patriarca. À terceira, porém, respondeu ele e todo o clero: Dominus virtutum ipse est Rex Gloriae, dizendo depois em triplicado Aperite. Então se abriu a porta. Antes do ingresso fez o Patriarca uma cruz com o báculo acompanhada da frase: Ecce crucis signum, fugiant fantasmata cuncta.

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Pela nave estavam distribuídos, a distâncias iguais e formando cruz, montículos de cinza, sobre os quais o Patriarca gravou com o báculo, os alfabetos grego e latino, com as letras recortadas em papelão. Na capela-mor estavam dois tronos, um para o Rei e a Rainha, à esquerda, o outro para o Patriarca, à direita. Fronteiras, do lado da Epístola, ficavam duas grandes credencias, uma com incenso em grão e moído, e sal, em pratos de prata dourada, aspersórios, uma garrafa de prata com vinho branco, duas bandejas com cal e pó de pedra, outra vazia para nela se fazer a argamassa, pratos de prata com o avental para o patriarca, toalhas para limpar o altar e três velas pequenas, uma taça de prata para a água benta, algodão para limpar os óleos das sagrações; a outra com os castiçais do altar, turíbulos e navetas, caldeirinhas e hissopes de prata, tudo disposto segundo as rubricas do Pontifical Romano. Chegado ao altar-mor o Patriarca benzeu a água, a cinza, o vinho e o sal, descendo, depois, até à porta da Basílica na qual riscou duas cruzes com o báculo. Voltando ao altar-mor, sete vezes o rodeou enquanto cantava o Salmo Miserere e o aspergia com água benta. Passou depois a rodear três vezes a Basílica, como fizera no exterior, aspergindo-lhe as paredes com a dita água. Aspergiu também o pavimento, em cruz, desde o altar-mor até à porta. Cantada a antífona Vidit Jacob, de novo aspergiu o chão e o ar, lançando a água na direcção das quatro partes do mundo. A seguir, pôs o avental e fez o cimento. [...] Em todos estes oito dias os serviços começavam às 8 horas da manhã e acabavam às 3 da madrugada, com permanente assistência de D. João V, da família real e da corte, que tomavam as refeições nas tribunas da igreja. Eram 7.30 horas, quando o Patriarca se retirou para descansar, porém, o rei continuou firme no seu posto. Àquela hora entraram no coro os frades para cantar Sexta e Noa, depois do que passaram ao Refeitório seguidos pelas pessoas reais e pela corte. Aí a iluminação era feita por trinta candeeiros de latão de quatro lumes cada um. Antes de se sentarem cantaram a benção da mesa. Uma vez sentados, entoou o leitor o primeiro ponto de leitura oportuna, depois do qual o provincial deu o sinal para se servir. Então, D. João V, o Príncipe Dom José e o Infante Dom António, depostos chapéus e espadins, começaram a servir os frades, conduzindo os pratos em tábuas redondas apropriadas. À ordem régia, para rápido despacho do serviço, imitaram-nos os camaristas régios: os marqueses de Cascais e do Alegrete, os condes de Assumar, de Aveiras, de São Miguel e de Povolide. Acabado o repasto, voltou a comunidade ao coro, cujos cadeirais tinham sido colocados durante esse intervalo. Neles também se sentaram

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as pessoas reais. E aí, em descanso, estiveram todos desde as 9 às 11 horas, tempo gasto por Frei Fernando da Soledade, ilustre cronista franciscano da Província de Portugal, com o seu erudito sermão. Seguiram-se ao mesmo as Vésperas da dedicação da Basílica e, depois, as Completas. À função, porém, ainda faltava o coroamento, que lhe foi dado pelas Matinas de São João Capristano, cantadas pela comunidade desde a meia hora às 3 da madrugada. Só então o rei e os seus familiares regressaram ao palácio para dormir. Todas estas cerimónias acompanhou atentamente D. João Vi por um Pontifical Romano, verificando se não faltava um gesto, uma palavra, etc. Posto isto, formou-se novamente a procissão para ir buscar à capela do palácio as relíquias lá depositadas. Assentes estas pelo Patriarca em andor próprio, outra volta à igreja executou o préstito. Depois, todos a postos nos seus lugares, pronunciou o Patriarca uma prática acerca das excelências dos templos sagrados, lembrando ao Rei, como fundador deste, a obrigação de o dotar a preceito para sua conservação e para subsistência dos seus ministros, e lembrando aos frades arrábidos o dever de rogar a Deus pela saúde e pelo feliz aumento de sua Majestade. Tal prática foi a meio interrompida pelo primeiro diácono com a leitura adequada de dois decretos do Concílio Tridentino, os quais proibiam, sob graves penas, defraudar os bens eclesiásticos e ordenavam o pagamento dos dízimos à Igreja. Fez-se, depois, o benzimento do altar-mor, acto de grande complexidade litúrgica: antífonas, salmos, unções de óleos santos, aspersões de água benta, incensações, etc. Sagrou, também, o Patriarca, as cruzes do altar-mor, do cruzeiro e da nave, e no meio do altar meteu uma caixa de prata dourada com as relíquias dos Apóstolos. Eram 5 horas da tarde quando acabou esta parte da sagração. Começou, então, a Missa de Pontifical, que foi cantada com extraordinária pompa, quer em virtude do precioso dos paramentos, quer pela qualidade dos sacerdotes e talento dos cantores. Estes eram os da Patriarcal, selecionados entre os melhores que havia em Roma. O acompanhamento musical foi feito por seis órgãos. No exterior, os sinos das torres repicaram estrondosamente. No final, o Patriarca subiu à Varanda da Benção, daí tendo lançado a bênção ao povo que enchia o terreiro. De todos os edifícios religiosos existentes em Portugal, o templo principal do Monumento de Mafra é o único ao qual compete com propriedade o nome de basílica, porquanto seria concebido para desempenhar a função de igreja de um Paço Real e edificado por um

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monarca em cuja pessoa andaram efectivamente unidos Império e Pontificado. Se é, pois, indesmentível que Dom João V governou o Império como Rei-Sol, o Pontificado administrá-lo-ia como Quase-Deus, tendo por capelão um Patriarca Quase-Papa. * Seiscentos e sessenta e seis (666) é o famoso número triangular sagrado de 36 ou valor secreto de 62 : 2 x 333 (divindade e mistério trino de Deus) 123 + 231 + 312 ou 132 + 321 + 213 (manifestações dos três termos da Trindade)

666 = triangulação de 36 153 (número da missão de Jesus) = triangulação de 17 O capítulo XVII, versículo 36 não ocorre em nenhum outro livro bíblico, salvo em 1 Samuel, XVII, 36 (David, o Bom Pastor precursor de Cristo, vence Golias = Anticristo, decapitando-o com uma espada = Palavra de Deus) e em 2 Reis, XVII, 36 (o povo é advertido contra os falsos deuses e avisado de que apenas deve adorar o Senhor)! Os números triangulares 666, 703 e 2701 são múltiplos de 37. 666 = 6 x 111 = 6 x (3 x 37) isto é, 18 x 37 ou (6 + 6 + 6) x 37 Assim: 666 = 18 x 37; 703 = 19 x 37; 2701 = 37 x 73. O perímetro dos satélites do número 2701 (36 x 6) compreende 216 cálculos, isto é 6 x 6 x 6, a soma dos atributos de 666.

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2 2 +3 2 + 5 2 + 7 2 + 11 2 + 13 2 + 17 2 (soma do quadrado dos 7 primeiros números primos) 6 + 6 + 6 + 63 + 63 + 63 (soma dos dígitos de 666 e dos cubos dos seus dígitos) 313 + 353 (soma de dois primos palíndromos 8 consecutivos) DCLXVI (seis primeiros numerais romanos por ordem decrescente do respectivo valor) 9 O número 666, valor guemátrico do termo apousia (= ausência do Espírito Santo) e antónimo de cobertura para a cabeça (= mitra, em Ezequiel, XXI, 25-27) e vinda de Cristo (cujo valor guemátrico, em ambos os casos, é 2015), ocorre na Bíblia em três circunstâncias distintas, aludindo: 1. Ao número de talentos que Salomão recebia anualmente da Rainha de Sabá (1 Reis, X, 14): “E era o peso do ouro que se trazia a Salomão a cada ano seiscentos e sessenta e seis talentos [...]”; 2. Ao número dos filhos de Adonicam repatriados do cativeiro babilónico (Esdras, II, 13): “Filhos de Adonicam: seiscentos e sessenta e seis”; 3. Ao número da Besta que “subiu da terra” (Apocalipse, XIII, 11-18): “E vi subir da terra outra Besta, e tinha dois chifres semelhantes aos de um cordeiro, e falava como o dragão. E exercia todo o poder da primeira Besta na sua presença e fez que a terra e os que nela habitam adorem a primeira Besta, cuja chaga mortal fora curada. E fez grandes prodígios de maneira que até fogo do céu fez descer à terra, à vista dos homens. E engana os que habitam na terra com prodígios que lhe foi permitido que fizesse em presença da Besta, dizendo aos que habitam na terra que fizessem uma imagem à Besta que recebera a ferida da espada e vivia.

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Diz-se do número ou frase que tem o mesmo sentido, quer se leia da esquerda para a direita, quer da direita para a esquerda. 9 A totalidade deles forma o número 1666 (MDCLXVI), razão por que o ano de 1666 chegou a ser apontado como o mais propício para a manifestação, quer da Besta, quer do Messias (beneficiando da circunstância, o judeu Sebatai Sebi autoproclamara-se Messias, em Esmirna). Ver, de António Vieira, Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo e Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício. Cf. Luís Martins, Padre António Vieira e o ano de 1666, in Vária Escrita, n. 5 (1998), p. 139-199. Inúmeras outras variantes hermenêuticas do número 666 são elencadas por Mike Keith, The Number of the Beast [http:// users.aol.com/s6sj7gt/mike666.htm].

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Foi-lhe concedido que desse espírito à imagem da Besta, para que também a imagem da Besta falasse e fizesse que fossem mortos todos os que não adorassem a imagem da Besta. E fez que a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e servos, lhes seja posto um sinal na sua mão direita ou nas suas testas para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tiver o sinal, ou o nome da Besta, ou o número do seu nome. Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da Besta, porque é o número de um homem, e o seu número é: seiscentos e sessenta e seis.” Por seu turno a expressão O Sinal da Besta, Charagma ([Khar’-ag-mah] derivado do verbo charasso = gravar), selo, sinal 10, distinto de stigma [estigma, incisão], do verbo stizo = estigmatizar, incidir 11, ocorre sete vezes no Apocalipse: XIII, 16-17: “E fez que a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e servos, lhes seja posto um sinal na sua mão direita ou nas suas testas para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tiver o sinal, ou o nome da Besta, ou o número do seu nome. XIV, 9: “E seguiu-os o terceiro anjo, dizendo com grande voz: “Se alguém adorar a besta e a sua imagem, e receber o seu sinal na sua testa ou na sua mão, [...]”. XV, 2: “E vi um como mar de vidro misturado com fogo e também os que saíram vitoriosos da Besta e da sua imagem e do seu sinal e do número do seu nome, que estavam junto ao mar de vidro, e tinham as harpas de Deus”. XX, 4: “E vi tronos e assentaram-se sobre eles e foi-lhes dado o poder de julgar; e vi as almas daqueles que foram degolados em virtude do testemunho de Jesus e da palavra de Deus e que não adoraram a Besta, nem a sua imagem e não receberam o sinal nas suas testas nem nas suas mãos; e viveram e reinaram com Cristo durante mil anos”.

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Alguns exegetas asseveram que o Sinal da Besta (da segunda que há-de “subir da terra”), aposto na mão direita (a do trabalho) ou na testa (o pensamento), sem o qual ninguém poderá vender ou comprar seja o que for, será qualquer coisa semelhante a um selo ou marca, havendo até quem advogue tratar-se de um chip subcutâneo, do código de barras ou do acrónimo da World Wide Web (www = vau + vau + vau = 6 + 6 + 6). Num sentido espiritual, o Sinal da Besta ou Anticristo será a antítese do Crisma ou Baptismo da Face (marca do Espírito Santo e da sua presença). 11 Forma que apenas se lê em Gálatas, VI, 17: “Desde agora, ninguém me inquiete, porque trago no meu corpo as marcas do Senhor Jesus”.

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XVI, 2: E foi o primeiro e derramou a sua taça sobre a terra e fez-se uma chaga má e maligna nos homens que tinham o sinal da Besta e que adoravam a sua imagem”. XIX, 20: “E a besta foi presa e com ela o falso profeta que diante dela fizera os prodígios, com que enganou os que receberam o sinal da Besta e adoram a sua imagem. Estes dois foram lançados vivos no ardente lago de fogo e de enxofre”. XIV, 11: “E o fumo do seu tormento sobe para todo o sempre; e não têm repouso, nem de dia nem de noite, os que adoram a Besta e a sua imagem e aquele que receber o sinal do seu nome”. Em três casos distintos há menção na Bíblia de uma marca aposta em alguém, sempre literal e visível: Ezequiel, IX, 4 e 6: “Deus disse-lhe: ‘Vai pela cidade, atravessa Jerusalém e faz uma marca na fronte dos homens que gemem e se lamentam por causa das abominações que nela praticam. [...]. Velhos, jovens, virgens, meninos e mulheres, matai-os a todos e exterminai toda a gente; mas não toqueis naqueles que foram marcados na fronte’. [...]”. Apocalipse, IX, 1-4: “E o quinto anjo tocou a sua trombeta e vi uma estrela que do céu caíu na terra e foi-lhe dada a chave do poço do abismo. E abriu o poço do abismo e subiu fumo do poço, como o fumo de uma grande fornalha e com o fumo do poço escureceu-se o sol e o ar. E do forno vieram gafanhotos sobre a terra; e foi-lhe dado poder, como o poder que têm os escorpiões da terra. E foi-lhes dito que não fizessem dano à erva da terra, nem a verdura alguma, nem a árvore alguma, mas somente aos homens que não têm nas suas testas o sinal de Deus”. Apocalipse, XIII, 16-17: “E fez que a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e servos, lhes seja posto um sinal na sua mão direita ou nas suas testas para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tiver o sinal, ou o nome da Besta, ou o número do seu nome”. O facto de o texto bíblico referir que o número da Besta “é o número de um homem” (o homem foi criado no sexto dia), originou a atribuição dele a personalidades muito diversas, preferencialmente chefes militares e estadistas 12. Contudo, nem a instituição pontifícia seria 12

António Vieira, rejeita a hermeneutica católica, a qual interpreta a Besta como o Anticristo, preferindo identificá-la com Maometis (Maomé = Islão). Cf. Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício, v. 2, p. 14-15, 256 e 261. No século XIX, foi Napoleão o candidato mais popular, na

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poupada, porquanto o nome da Besta não é aplicável apenas a uma pessoa específica, podendo constituir também um título.

[Napoleão] Buonaparte, equivalente guemátrico da Besta, segundo um códice da BN de Lisboa.

Alguns exegetas admitem que o conteúdo do Apocalipse se reporta à própria época da sua redacção e que o número 666 se aplica especificamente a Cæsar Nero, que governou Roma de 54 a 68 d. C, e não a algum outro indivíduo posterior. Este ponto de vista, adoptado pela Igreja Católica, esvazia o Apocalipse de toda a sua carga profética, sendo conhecido por preterismo. centúria seguinte seria Hitler o designado. Aleister Crowley, por exemplo, auto-intitulou-se A Besta (Master Therion). Anoto, a propósito, que nenhum dos 769 deputados da União Europeia ousa ocupar o lugar 666 do hemiciclo do Parlamento Europeu, o qual é mantido sempre vago.

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Os preteristas adoptam formas inusitadas do nome de Nero, tais como Nero Cæsar ou Cæsar Nero, adicionando-lhe um N, de que resulta a fórmula Neron Cæsar. Seguidamente transliteram o latim em aramaico, obtendo a expressão NRWN QSR, a qual, quando utilizados os equivalentes numéricos das respectivas letras, soma 666 (sem o N acrescentado o resultado será 616, número que ocorre em alguns manuscritos, sendo, porém, considerado por vários exegetas, caso, entre outros, de Ireneu, como erro de algum copista): Nun = Resh = Waw = Nun =

50 200 6 50

Qoph = 100 Samech = 60 Resh = 200 Um exemplo desta fórmula foi, recentemente, detectado num dos Manuscritos do Mar Morto. Contudo, existe um problema insanável no cálculo supracitado, pois, consoante as regras da guematria hebraica, quando a letra N ocorre duas vezes na mesma palavra, a segunda ocorrência assume o valor de 700, o que faz NRWN QSR equivaler a 1316 e não já a 666. Na língua grega, à semelhança da hebraica, não há algarismos. As letras gregas e hebraicas servem também de números. Um dos sistemas numéricos helénicos mais remotos (o dos números áticos) foi introduzido por Atenas e usava símbolos para os números chave 1, 5, 10, 50, 100, etc. Os símbolos individuais eram repetidos sempre que necessário (até um máximo de quatro vezes) para se obter o número desejado. Este sistema apresentava semelhanças com o ulterior romano, excepto porque era sempre aditivo (repetitivo), ao invés do sistema romano que era também subtractivo. Outro sistema, o jónico ou milésio, deve ter sido criado no séc. VI a. C., tendo sido oficialmente adoptado em Atenas no século I a. C, em substituição do sistema ático que entrara em decadência. Para representar números os helénicos usavam as letras do seu alfabeto (alfa-numérico), segundo um sistema décimal ao qual faltava o zero. Assim, necessitavam de 27 diferentes símbolos para representar números até 999: nove para as unidades; nove para as dezenas; nove para

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as centenas. Porém, uma inevitável dificuldade surgiria, uma vez que o alfabeto grego apenas possuía 24 letras e eram necessários 27 símbolos. Para suprir tal defeito, recuperaram letras de alfabetos obsoletos, como digamma (6) koppa (90) e sampi (900). Digamma tornar-se-ia conhecida pela designação stigma porque se aparentava às letras sigma e tau ligadas entre si. Quando era preciso representar um número onde ocorria um zero, como por exemplo 209, escreviam-se apenas as letras sigma e theta, ou como 300, apenas a letra tau.

GREGO

HEBRAICO

Digamma, Koppa e Sampi são, no quadro dos valores numéricos das letras do alfabeto grego, signos exclusivamente utilizados para designar números, não possuindo o estatuto de letras do alfabeto.

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Para distinguir as letras normais dos números, era adicionada uma linha horizontal sobre as letras que os figuravam, ou apenas um apóstrofo, no final da representação.

Chi

Xi

Stigma (digamma)

600

60

6 *

De acordo com a mundividência tradicional, um número não se limita a exprimir uma mera quantidade, sendo detentor de carácter e identidade próprias, efectivamente o vínculo sintáxico essencial à geometria oculta da língua. A disciplina, que faz dos números palavras (e vice-versa) e consiste no cômputo do equivalente numérico de cada letra numa palavra, expressão ou nome (e por extensão, no somatório dos valores numéricos dessas letras, com vista à obtenção de um número único), denomina-se isopsephia [isso = igual + psephos = pedrinha (kalkuli)] ou guematria. Amplamente divulgada, raras são as fontes clássicas, a Bíblia incluída, que a dispensaram. Os Padres da Igreja não poderiam, por conseguinte, prescindir dela no seu afã exegético dos Evangelhos. Ireneu, no ano 170, testemunha a vitalidade do método, precisamente ao debruçar-se sobre o significado do número da Besta. Apesar de tudo, mostrar-se-ia mais inclinado a “esperar pela realização da profecia” que deitar-se a adivinhar a quem poderia adequar-se, porquanto, admitia, “há muitos nomes conhecidos que possuem este número” 13. As tentativas para encontrar um candidato para o número 666, haviam de tornar o Papa, uma das suas mais verosímeis encarnações. De entre a panóplia de títulos adoptados pelo Papado 14, um dos mais recorrentes, o de Vicarius Filii Dei (= substituto, ocupante de um lugar em vez do Filho de Deus), utilizado pela primeira vez no Sínodo de Roma (495), reportando-se ao papa Gelásio, tornou-se também um dos preferidos dos hermeneutas (designadamente os protestantes) para 13

Adversus Haereses, livro 5, cap. 30. Episcopus (Supervisor) e Papa (Pai) são considerados os mais antigos de quantos títulos haviam de ser creditados ao bispo de Roma. Outros: Pontifex (construtor de pontes, à imagem dos Imperadores Romanos), Pontifex summus (séc. VI), Dux Cleri (Capitão do Clero), etc. Inocêncio III (1189-1216) marcou o culminar do processo de definição dogmática das prerrogativas e da supremacia papais, a ele se devendo a enfâse especial doravante atribuída ao título de Vigário de Cristo. 14

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sugerirem a sinonímia entre o substituto de Cristo, e a Besta, ou Anticristo (à semelhança do antipapa = substituto do papa 15). Durante o pontificado de Eugénio III (1145-1153) a expressão Vicarius Filii Dei designava o bispo de Roma, tendo, ulteriormente, sido escolhida pela própria Igreja para designar genericamente todos os seus ministros, desde o Papa, aos sacerdotes paroquiais. Inocêncio III (1198-1216) seria o primeiro pontífice a explicitamente atribuir ao Papa o estatuto de Vigário de Cristo (Vicarius Christi = substituto de Cristo), ideia ulteriormente avalizada e definida pelos concílios de Florença (1439) e Vaticano I (1870). Já o concílio Vaticano II denominaria os bispos, em geral, vigários e legados de Cristo (Lumen Gentium). O título de Vicarius Filii Dei havia de ser enfatizado pela própria Santa Sé, recorrendo a um documento apócrifo, conhecido por Doação de Constantino, creditado à segunda metade do séc. VIII, eventualmente forjado na sequência da legitimação (754) de Pepino, o Breve, e da dinastia carolíngia em detrimento da merovíngia, pelo papa Estêvão II, o qual havia de receber do monarca recém-ungido a promessa da cedência dos territórios itálicos, posteriormente chamados do Vaticano, conquistados pelos lombardos a Bizâncio. ROMIITH ou ROMITI

DUX CLERI (Capitão do Clero)

Titulo citado pelo luterano Johannes Gerhard (1582-1637), in Adnotationes in Apocalypsin, p. 110 e pelo reitor de Berlin, Andreas Helwig [ou Helwich] (1572-1643), in Antichristus Romanus.

Titulo citado por Walter Brute (ou Britte), sectário de Wycliff, in Registrum, p. 356 e pelo reitor de Berlin, Andreas Helwig [ou Helwich] (1572-1643), in Antichristus Romanus.

15

Anti, em grego, não só significa contra (oposição), como em lugar de, em substituição de. A palavra grega antichristos não consta do Apocalipse, ocorrendo no Novo Testamento apenas na 1ª Epístola de João (II, 2-22) e na 2ª Epístola de Paulo aos Tessalonicenses (II, 3-4).

40

LATEINOS – ECCLESIA ITALIKA

Títulos citados pelo luterano Johannes Gerhard (1582-1637), in Adnotationes in Apocalypsin, p. 110. Antes, Ireneu (Adversus Haereses, livro 5, cap. 30, § 3) interpretara Lateinos (homem que fala latim) como o nome do quarto império de Daniel (VII, 7).

Pormenor da Doação de Constantino por Gianfrancesco Penni, na Sala di Costantino (Vaticano)

41

VICARIUS FILII DEI

Título citado pelo reitor de Berlin, Andreas Helwig [ou Helwich] (1572-1643), in Antichristus Romanus.

VICARIUS FILII DEI NA TRIPLA TIARA PAPAL

1.

2

3

1. Reprodução da tripla tiara usada pelo papa Gregório XVI (1831-1846), na missa da Páscoa de 1845, a qual ostentava o título Vicarius Filii Dei; 2. O papa João XXIII, coroado com a tripla tiara; 3. João Paulo II trocou a tripla tiara pela mitra, referida por Ezequiel (XXI, 25-27) como o antónimo aritmosófico do número 666...

42

Primitivamente, integrada nas Decretais do Pseudo-Isidoro (c. 847-853) e, ulteriormente (c. 1148), consagrada no Decreto de Graciano (Corpus Iuris Canonici, prima pars, dist. 96), também conhecido por Concordia Discordantium Canonum, seria Leão IX o primeiro pontífice a citar oficialmente a Doação de Constantino, numa carta que remeteu ao Patriarca de Constantinopla, Michael Caerularius. A Igreja abandonou a defesa da autenticidade da Doação de Constantino, apenas após César Baronius ter publicado os Anais Eclesiásticos, em 1592, o que não impediu que o título Vicarius Filii Dei continuasse a constar do Canon e de outras publicações católicas até ao século XIX. Pretendia a Igreja com tal reivindicação provar a legitimidade da sua jurisdição e soberania sobre Roma e os Estados pontifícios 16. A elaborada fraude, uma das mais famosas da História Europeia, já fora denunciada, em 1440, por Lorenzo Valla, o qual, por ter provado que havia sido forjada alguns séculos após a morte de Constantino (337 d. C.), condenaria as suas obras a serem incluídas no Index Librorum Prohibitorum de 1559 17. * Um exame atento ao contexto morfológico de Mafra e seu aro pode revelar-se de enorme pertinência para corroborar os contornos semânticos do exposto até aqui. Assim, a povoação da Paz, outro dos nomes de Salém ou Jerusalém, sita a Norte de vila, justamente no alinhamento da fachada poente do Real Edifício, é contemporânea da fundação do Monumento de Mafra. O padroeiro da igreja paroquial trecentista, o apóstolo Santo André (do grego: an, andrós, homem, i. e., Adão), situa-se entre João Baptista e a Jerusalém Celeste, encarnando a passagem da Aliança do Sinai à de Cristo, encerrando, por conseguinte, o ciclo da profecia na posteridade de Jacob. O seu papel inscreve-se entre dois mundos (este e o vindouro), duas cidades santas (a terrestre e a celeste), duas portas (da Fé e do Conhecimento Perfeito ou Caridade) dois santos (o Baptista e o 16

Contrariando a reivindicação da Igreja, na Doação de Constantino, a frase Vicarius Filii Dei é título exclusivo de Pedro, jamais aplicado aos seus sucessores, tão só denominados vigários de Pedro (Vicarius Petrus). 17 Cf. Christopher B. Coleman, The Treatise of Lorenzo Valla on the Donation of Constantine, Yale University Press, 1922. A Doação de Constantino foi publicada por Brunner-Zeumer, Die Constantinische Schenkungsurkunde, Berlim, 1888, achando-se traduzida para inglês por Ernest F. Henderson, in Select Historical Documents of the Middle Ages, Londres, 1910, p. 319-329. Deste autor conservam-se duas obras na Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra: Elegantiarum Latinae Linguae, libri sex (Lião, 1541 e 1551 [2-18-6-5 e 6 = 2 exemplares]) e Ferdinandi, Regis Aragoniae, libri tres (Paris, 1521 [2-56-6-11]).

43

Evangelista). Juntamente com Pedro, Tiago e João, foi um dos que colocaram a Jesus a questão primordial quanto à destruição do Templo e ao Fim do Mundo: “Quando hão-de suceder estas coisas? E que sinal haverá de quando todas elas se começarem a cumprir?” (Marcos, XIII, 3-5).

A localidade da Paz situa-se no exacto alinhamento da fachada poente do Real Edifício.

Na Jerusalém Celeste toda a Natureza Humana dispersa se reunirá no Adão Primordial, reparador e divino, símbolo da Vida Eterna, expresso na cruz aspada (X) que identifica Santo André com o Sol de Justiça e a Cidade Solar (Heliópolis) que desce do Alto (X = 10 = Tétractys = número perfeito por excelência) 18. Porém, se esta circunstância constitui a fase ómega (final) do enigma mafrense, o momento alfa (inicial ou principial) e sua autêntica pièce de resistence, esconde-se sob a aparência de uma história de contornos pitorescos, quase prosaicos, que achei consignada pela primeira vez por José António de Abreu, vogal secretário da Comissão do Tombo dos Bens da Coroa, em Agosto de 1851, da qual o jornalista Paulo Freire havia de tornar-se o arauto no século XX 19. Refiro-me à Avenida ou Estrada do Sol que se tem admitido haver sido planeada por D. João V para unir em linha recta o seu Monumento ao Atlântico. O Dr. Carlos Galrão aventa a hipótese de se tratar de lenda 20, talvez desfigurada com o tempo, inspirada num folheto do humorista Tomás de Pinto Brandão: 18 19 20

Cf. Manuel J. Gandra, Apocalipse de Esdras: ecos nas letras e na arte portuguesas, Mafra, 1994. Mafra, in Guia de Portugal, v. 1, Lisboa, 1924, p. 567. O Concelho de Mafra (27 Mar. 1937).

44

[...] E é que há-de vir, da Ericeira direito a Mafra um canal, por onde os barcos caminhem, e seja estrada naval [...]. 21 Avanço agora uma explicação diversa. É que prolongando o eixo do já referido Tridente para poente (pela R. Serpa Pinto), até atingir o litoral, a linha resultante une a Real Obra à ermida de São Julião e da sua consorte, Santa Bazilissa (Carvoeira), virgens e mártires de Antioquia 22, justamente a cidade da actual Síria, onde os discípulos de Jesus adoptaram o nome de cristãos (Actos, XI, 26) e onde a Igreja de Pedro institui a sua primeira sede.

A Estrada do Sol, iniciada na Basílica de Mafra, termina na ermida de S. Julião e Santa Basilissa

Nesse templo, autêntica antecâmara do de Mafra, porquanto os seus patronos corporizam, conforme as iniciais dos seus nomes atestam, as colunas Jakin e Boaz, acha-se a demonstração definitiva da cubatura do 21

Descrição de Mafra: Romance, 1725. O Santoral festeja S. Julião de Antioquia a 16 de Março, porém, localmente (Carvoeira), a tradição manda celebrá-lo no dia 9 de Janeiro, efeméride reservada a S. Julião Hospitaleiro (séc. IV), natural e mártir (em Antínoo) do Egipto, cuja divindade tutelar, Isis, é, por sinal, figurada num dos magníficos (apesar de maltratados pelo salitre e pelo homem) painéis azulejares da capela, consagrados às proezas hagiográficas do casal. Confusão, ou sincretismo, decerto intencional, conforme se extrai de uma obra contemporânea dedicada a D. Maria I pelo seu autor, Joaquim da Nóbrega Cão e Aboim, e intitulada Vida de S. Julião, esposo de Santa Baziliza virgens, e martyres de Antioquia […] com huma Dissertação previa sobre a pluralidade dos Santos do mesmo nome […], Lisboa, Régia Oficina Tipográfica, 1790 [BN: R 27507 P]. 22

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Monumento de Mafra. Com efeito, sob a galilé de São Julião abriga-se a Pedra de Mistério 23, na realidade a planificação da Pedra Cúbica, cujos quadrados mágicos já transformados em pentáculos, são o corolário da mestria guemátrica de um ilustre cabalista 24, porventura familiarizado com o acervo da Biblioteca do Palácio Nacional, onde os investigadores encontrarão quanto necessitam para refazer o percurso filosófico que proponho 25.

A Pedra de Mistério da ermida de São Julião e Santa Bazilissa (Carvoeira)

23

Cf. Gabriel Pereira, Pelos Subúrbios e Vizinhanças de Lisboa, 1910, p. 188. Exímio cultor da Guematria (cálculo do valor numérico das letras e das palavras), da Temura (permutação de letras e de palavras) e do Notarikon, escrita abreviada (de Notarius), a qual assume duas formas principais: 1. cada letra é considerada abreviatura de uma palavra; 2. as letras iniciais, as médias ou as finais de uma palavra são deslocadas de modo a formarem outra ou várias palavras. 25 Nomeadamente, um par de edições proibidas do De Occulta Philosophia de Agrippa [PNMafra: 2-51-13-1 (s. l., 1535); 2-51-4-3/4 (Haia, 1727, 2 vols.)], além dos quatro volumes raríssimos, e igualmente proibidos, da Kabbala Denudata de Knorr von Rosenroth [PNMafra: 2-49-4-8/11 (Salzbach, 1677-1678)], a qual inclui o AEsch Mezareph (Fogo Purificador), expressa e exclusivamente dedicado às operações com quadrados e pentáculos mágicos. Ver Manuel J. Gandra, A Filosofia Hermética em Portugal e no acervo da Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra, in Boletim Cultural ‘93, Mafra, 1994, p. 11-74; Mafra Mítica, Hermética e Simbólica de A a Z, in Da Vida, da Morte e do Além, Mafra, 1996, p. 197-199 e Da Face oculta do Rosto da Europa: prolegómenos a uma História Mítica de Portugal, Lisboa, 1997, p. 136-138. 24

46

A Pedra de Mistério Trata-se, em suma, de um labirinto octogonal centrado num delta ocupado por um sol radiante (a Trindade divina), a cujas faces se acham adossados três quadrados mágicos: um de ordem 7 (Vénus) e dois de ordem 9 (Lua). Transformados em pentáculos mediante a substituição dos números por labirintos de letras, legíveis a partir do centro de cada um dos quadrados (podendo as casas vazias ser completadas com o mesmo texto disposto do centro para a periferia). O labirinto de ordem 7 (cruzeiro de 13 letras) contém o nome de SIVLIAM (S[ão] Julião), enquanto nos de ordem 9 (cruzeiro de 17 letras) se lê o de SBAZILIZA (S[anta] Bazilissa) e  MATVTINA (Estrela Matutina), uma das denominações tradicionais da Vénus auroral, mas, acima de tudo, uma das Litânias da Virgem, a RAINHA (Bazilissa) ou AVE MARIA cuja protecção é duas vezes invocada: ORA PRO NOBIS. A legenda ECCE CRUCEM DOMINI (Eis a Cruz do Senhor), associada ao monograma crístico JHS, pode querer aludir à Cruz (ou trabalhos) a que o candidato a decifrador se condena para lograr a decifração. Se associados, os dois quadrados de ordem 9 geram outro de ordem 27, contendo 729 números (9 x 9 = 81 x 9) = o cômputo exacto de dias (365) e noites (364) num ano! Anote-se ainda que a casa central de tal quadrado mágico é ocupada pelo número solar 365.

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Eis-nos, pois, em presença de um espectacular exemplo, aliás, o único conhecido em Portugal, de associação de quadrados mágicos com labirintos de letras. Em conexão com ele, unindo a capela de São Julião ao cemitério da Carvoeira (anexo à igreja de Nossa Senhora do Ó), subsiste o Caminho das Almas, espécie de Via Sacra, edificada entre 1779 e 1833, actualelmente constituída por cinco cruzeiros: São Julião (ex-voto), Valbom, Baleia, Estrada da Senhora do Ó e Cemitério da Senhora do Ó 26. Além de relacionados com a devoção das Almas do Purgatório, quatro desses cruzeiros, inspiram-se numa tradição hermética antiquíssima de origem helenística e neo-platónica. †









Localização do Caminho das Almas que une a capela de São Julião ao cemitério de Nossa Senhora do Ó

26 Félix Alves Pereira reporta a existência de mais um “cruzeiro do género” na Fonte das Amoreiras, o qual, entretanto, terá sido destruído. Cf. Por Caminhos da Ericeira: notas arqueológicas e etnográficas, in O Arqueólogo Português, v. 19 (1914), p. 329-331. O Caminho das Almas foi, ulteriormente, acrescido de uma alminha, no Rossio de Valbom, e de dois outros cruzeiros: o do milagre da burra (ex-voto, datado de 1880, sito junto do antigo caminho entre Valbom e a Baleia) e o da Carvoeira. Ocupei-me do assunto na comunicação S. Julião: do maravilhoso pagão ao cabalismo cristão através dos enigmas barrocos, apresentada no Simpósio Mafra Barroca, realizado no âmbito da Homenagem a Ayres de Carvalho (26 de Setembro de 1992). Sobre o cruzeiro ex-voto de 1880, cf. do subscritor, o verbete Alminha, in Da Vida, da Morte e do Além: aspectos do Sagrado na região de Mafra, Mafra, 1996, p. 161-162 e Ex-votos bidimensionais do Concelho de Mafra, in Boletim Cultural ’98, Mafra, 1999, p. 283.

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Desconheço quem possa ter sido o autor, ou autores, do programa deste conjunto a todos os títulos notável pelo ineditismo de que se reveste, mas não me admiraria que Manuel Teixeira 27, o ilustre cabalista já citado, pudesse ter estado implicado na sua concepção que creio ter subjacente a imperiosa necessidade de sufragar (conduzindo-as ao descanso eterno) as almas em tribulação de todos os massacrados pelas tropas do duque de Alba, exactamente no território em apreço, em consequência da sua adesão ao levantamento popular liderado pelo açoriano Mateus Álvares, episódio que havia de ser consagrado como o do Falso D. Sebastião da Ericeira (1585) 28. Porém, antes de prosseguir, convém tentar lançar alguma luz sobre a origem misteriosa e a história dos quadrados mágicos e dos labirintos de letras. 1. Quadrados

mágicos

Obtêm-se quadrados mágicos mediante a disposição de uma sucessão mágica (conjunto de numerais inteiros, positivos, diferentes e sucessivos), de 1 a n2, numa matriz de n x n casas ou quadrículas, de modo que a soma dos n números que figuram sobre uma mesma ortogonal (linha ou coluna, horizontal, vertical ou diagonal 29) seja constante (sempre a mesma). O número n de casas ou quadrículas de cada um dos seus lados constitui a ordem do quadrado (3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9), enquanto o número total de casas ou quadrículas corresponde ao quadrado da ordem. No caso de um quadrado mágico regular, a soma de todos os n números calcula-se com recurso à fórmula n (n2 + 1) / 2, denominando-se constante mágica 30. 27

O seu apelido cifrado encontra-se gravado em baixo-relevo no cruzeiro das Almas, situado junto à ermida. É citado no testamento de João Fernandes da Conceição, ermitão de S. Julião (2 de Dezembro de 1764), falecido no ano de 1766, tendo herdado o seu capote. 28 Consulte-se a este propósito: O Falso D. Sebastião da Ericeira e o Sebastianismo, Mafra, 1998; Manuel J. Gandra, Dicionário do Milénio Lusíada: Impérios do Divino, Sebastianismo e Quinto Império, v. 1, Lisboa, 2003, sv. Mateus Álvares (inclui resenha sistemática da bibliografia e da iconografia, p. 314-317). 29 Diz-se da recta que une o canto superior esquerdo ao canto inferior direito (ou o canto superior direito ao canto inferior esquerdo) de um quadrado, contendo um número de cada linha e um da cada coluna. As paralelas a esta diagonal principal contêm n elementos, um de cada linha e um de cada coluna, e formam diagonais quebradas. Um quadrado que não é mágico por as suas diagonais principais ou por uma delas não o serem chama-se semimágico. Por outro lado, um quadrado é panmágico se todas as diagonais (principais e quebradas) são mágicas. Não existem quadrados panmágicos de ordem 3, nem cuja ordem seja divisível por 3. Existem três quadrados panmágicos diferentes de ordem 4, dezasseis quadrados panmágicos regulares de ordem 5 e cinquenta e quatro panmágicos regulares de ordem 7. 30 Um quadrado mágico diz-se bimágico quando substituindo cada número pelo seu quadrado continua mágico. Um quadrado bimágico chama-se trimágico se os cubos dos seus

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Todo o quadrado mágico pode sofrer certas transformações geométricas que não modificam realmente os números que o formam. As seguintes são aplicáveis a todos os quadrados mágicos. 1. Troca concomitante de duas linhas equidistantes do centro; 2. Troca dos quartéis do quadrado. No caso de um quadrado de ordem ímpar, a troca dos quartéis é acompanhada de uma troca nas ortogonais medianas, horizontal e vertical; 3. Subtracção de uma mesma constante a cada um dos seus elementos; 4. Multiplicação de todos os seus elementos por um mesmo número (diferente de zero); 5. Supressão da orla (ortogonais extremas: 1ª e última colunas e 1ª e última linhas) de um quadrado mágico orlado.

Melancolia I[maginativa] (1514) Gravura (239 x 168 mm) de Albrecht Dürer, inspirada nos escritos de Henricus de Gandavo, e de Cornelius Agrippa (cf. Panofsky, 1923), bem como nos conceitos expostos por Marsilio Ficino, no De Vita Triplici, e por Pico della Mirandola, na Apologia de Descensu ad Inferos(cf. Francês Yates, The Occult Philosophy in the Elizabetian Age, 1979). Recuperação neoplatónica do conceito de Melancolia, o mais inferior dos humores, subordinado a Saturno, simbolizado pelo cão e pela ampulheta (Chronos). Ao invés do admitido vulgarmente, o quadrado mágico de ordem 4 nada tem a ver com Saturno, andando antes associado a Júpiter, justamente o curador da Melancolia.

elementos formam também um quadrado mágico. E assim sucessivamente, denominando-se multimágicos tais quadrados.

50

Breve História dos Quadrados Mágicos 650 a. C. Shu Ching menciona pela primeira vez o Lo Shu (Carta do Rio), eventualmente o quadrado mágico de ordem 3, segundo a lenda, desenhado na carapaça de uma tartaruga que saía de um rio.

Lo Shu e respectivas versões hebraica e islâmica

c. 500 a. C. Lun Yu reporta-se à Carta do Rio. 300 a. C. Chang Tzu refere o Lo Shu. 56 A planta do templo chinês Ming-T’ang reproduz um quadrado mágico de ordem 3. 80 Ta Tai Li Chi faz a primeira menção indubitável a um quadrado mágico. Séc. I É devida a Nagarajuna a primeira referência a um quadrado mágico de ordem 4, na Índia. 130 Theon de Esmirna alude, no Biblion, a um quadrado natural, vulgarmente confundido com um quadrado mágico. 190? A Xu Yiu é creditada a primeira descrição de um quadrado mágico de ordem 3, embora a fonte onde ocorre (Shu Shu Chi I), datável de c. 570, seja atribuída a Zhu Luan.

51

Séc. VIII O alquimista muçulmano Jabir ibn Hayyan (baseando-se nas obras de Zozimus e de outros autores herméticos) explica a constituição do cosmos fazendo apelo ao quadrado mágico de ordem 3. 983 Quadrados mágicos de ordem 5 e 6 ocorrem numa obra do matemático Ikhw’n al-Saf Ras’il, de Bagdad. c. 1200 Quadrados latinos são usados como amuletos (sigilos associados aos planetas?) pelo matemático muçulmano Al-Buni, no Shams al-Marif. 1275 Yang Hui alude a quadrados mágicos de ordem diferente de 3. 1315 O matemático bizantino Emanuel Moschopoulos é o primeiro autor ocidental a referir os quadrados mágicos. c. 1384 Primeira associação explícita dos quadrados mágicos aos planetas no Qtabs al-Anwar de Nadruni. Séc. XV A primeira série integral de quadrados mágicos de ordem 3 a 9 a ocorrer no ocidente, surge num manuscrito latino existente em Cracóvia [Jagiellonian ms 753]. 1450 Luca Pacioli estuda os quadrados mágicos no De Viribus, adoptando as equivalências planetárias anteriormente propostas por Nadruni. 1510 Cornelius Agrippa, no De Occulta Philosophia (impresso em 1531), adopta tabela de equivalências dos quadrados mágicos de ordem 3 a 9 aos planetas exposta por Nadruni e Pacioli. 1514 Melancolia I de Dürer inclui quadrado mágico de ordem 4. 1539 Hieronimus Cardanus publica Practica Arithmetica, onde adopta uma tabela de equivalências entre quadrados mágicos e planetas inversa à exposta por Nadruni e adoptada por Pacioli e Agrippa. Séc. XVI O rabi cabalista Joseph Tzayach (1505-1573), de Damasco, expõe um sistema de equivalências entre quadrados mágicos (de ordem 10, 11, 15, 20, etc.), planetas e os sephirot. 1640 Cubos mágicos de Fermat. c. 1660 Frenicle descobre os 880 quadrados mágicos de ordem 4. 1710 Sauveur descobre o primeiro cubo mágico. 1750 Quadrados mágicos elaborados por Franklin.

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Quadrados mágicos de ordem 3 (Saturno), 4 (Júpiter), 5 (Marte), 6 (Sol), 7 (Vénus), 8 (Mercúrio) e 9 (Lua)

Ordem do quadrado

Quadrado da ordem

Constante mágica (soma global)

Soma de qualquer ortogonal (soma linear)

Planeta

Metal

3

9

45

15

Saturno

Chumbo

4

16

136

34

Júpiter

Estanho

5

25

325

65

Marte

Ferro

6

36

666

111

Sol

Ouro

7

49

1225

175

Vénus

Cobre

8

64

2080

260

Mercúrio

Liga de Prata

9

81

3321

369

Lua

Prata

Valor secreto = n2 + n / 2

Valor secreto = n3 + n / 2

53

Quadrado mágico do sítio do Adro do Judeu (Pêro Gil, Tavira) O quadrado de ordem 3 com inscrição hebraica, acha-se inscrito numa ardósia, encontrada em 1979 (cf. Dois documentos arqueológicos recentemente achados, sobre os judeus no Algarve pelo Dr. J. Fernandes Mascarenhas, Faro, 1980, p. 7-13).

Um quadrado mágico particular tem feito correr rios de tinta. Reporto-me, evidentemente, ao que ostenta a fórmula Sator Arepo Tenet Opera Rotas (Deus domina a Criação e as Obras do Homem), o qual chegou a ser interpretado como uma invenção cristã destinada a cifrar o Padre-Nosso (Pater Noster), quando rezar tal oração constituía crime punido com a pena de morte 31. Porém, a constatação de que esse quadrado mágico, utilizando frases palíndromas (versus recurrentes), se encontra documentado em contextos não cristãos antes de haver sido adoptado pelo cristianismo, fez essa tese cair por terra, suscitando desencontradas hipóteses 32, aventadas à medida que a arqueologia ia exumando sucessivos testemunhos da sua difusão em Pompeia (Itália) 33, em 31

Cf. G. de Jerphanion, La Formule magique SATOR AREPO ou ROTAS OPERA. Vieilles théories et faits nouveaux, in Recherches de Science Religieuse, v. 25 (1935), p. 223-225 e J. Carcopino, Les Fouilles de Saint-Pierre et la Tradition - Le Christianisme secret du carré magique, Paris, 1953, p. 9-91. 32 Ver, entre inúmera outra bibliografia: Hildebrecht Hommel, Die Satorformel und ihr Ursprung, in Theologia Viatorum, v. 4 (1952), p. 133-180; D. Fishwick, On the origin of the RotasSator square, in Harvard Theological Review, n. 57 (1964); John Ferguson, The Religions of the Roman Empire, Itaca, 1970, p. 168 e fig. 70; Walter O. Moeller, The Mithraic Origin and Meanings of the Rotas-Sator Square, Leiden, 1973. 33 Oriundos daqui, acham-se referenciados o da Casa de Publius Paquius Proculus e o da Palestra de Pompeia, anterior a 79 d. C., encontrado em 1938. Ver: J. Carcopino, ob. cit., p. 56; Charles Cartigny, Le Carré Magique Testament de Saint Paul, Cahors, 1984, p. 114-120; Justino Mendes de Almeida, Um curioso criptograma cristão (?) ou um enigma etno-epigráfico, in Anais da Real Sociedade Arqueológica Lusitana, s. 2, v. 1 (1987), p. 37-43; etc.

54

Circenster (Gloucestershire, Grã-Bretanha) 34, em Oppéde (Vaucluse, França) 35, em Acquincum (Budapeste, Hungria) 36, em Dura-Europos (Síria) 37, em Rochemaure (Ardèche, França) 38, em Jarnac (Champagne, Charente, França) 39, em Conimbriga (Portugal) 40, etc. O mundo cristão, é indubitável, não permaneceu imune ao fascínio que o artefacto produzia, cristianizando-o como atestam exemplos (embora não palíndromos) de Castellum Tingitii (actual Ech-Cheliff, Argélia) de cerca de 328 e da igreja de Santianes de Pravia (Oviedo), do séc. VIII ou IX: SANCTA ECCLESIA e SILO PRINCEPS FECIT, respectivamente. No século IV, por exemplo, entre coptas e etíopes, era talismã afamado contra doenças e profiláctico utilizado pelas mulheres em trabalho de parto. Em Bizâncio, as palavras inscritas no quadrado serviram para denominar ora os três primeiros pastores que supostamente acorreram à gruta da Natividade, ora os próprios Reis Magos. A partir do século XVI, o hermetismo proporcionar-lhe-ia uma vitalidade acrescida, chegando mesmo a ser referido por um médico milanês como remédio infalível contra a mordedura de serpente, citando o caso de um homem que se teria curado por ter engolido três papéis com a fórmula Sator inscrita num quadrado 41. Surgirá com frequência em Miscelâneas portuguesas dos séculos XVII e XVIII, onde é, geralmente, referido como uma forma de “escrita diabólica”, por se poder ler em mais de um sentido, incluindo o retrógrado. Durante o século XIX há notícia de haver sido utilizado contra as dores de dentes, as mordeduras de serpente e de cães raivosos e os incêndios, tanto em Portugal, como no Brasil. Rocha Peixoto afirma ter observado o quadrado Sator tatuado nas costas de um presidiário português 42. 34

Encontrado no campo fortificado romano de Corinium (Museu de Manchester). Cf. Cartigny, ob. cit., p. 126-127. 35 Insculpido na porta de uma casa antiga da localidade. Idem, p. 125. 36 Gravado numa telha. Idem, p. 122-124. 37 Franz Cumont descobriu quatro artefactos nesta cidade, bastião da cultura helenística, fundada, cerca de 300 a. C., por Nikanor, general de Antígonos, irmão de Alexandre Magno. Idem, p. 120-121. 38 Na igreja de São Lourenço desta localidade. Idem, p. 126-128. 39 Idem, p. 128. 40 Robert Étienne, Le “Carré Magique” à Conimbriga (Portugal), in Conimbriga, v. 17 (1978), p. 15-34. Este autor advoga que o palíndroma em apreço é de inspiração estóica, uma vez que a expressão Sator omnias continet, com o sentido de que o cosmos é o gerador e o garante de tudo e o demiurgo mantém a sua criação, ocorre no De Naturam Deorum (II, 86) de Cícero. Cf. também, Museu Monográfico de Conimbriga: Colecções, Lisboa, 1994, p. 65 e 165, n. 556. 41 Cf. Jerphanion, ob. cit., p. 213. 42 Cf. A Tatuagem em Portugal, in Revista das Ciências Naturaes e Sociaes, v. 2 (1893), p. 26-27 e fig. 23.

55

Por seu turno, Leite de Vasconcelos registaria a ocorrência do criptograma em Santarém, onde adquiriu uma pequenina medalha em prata com ele inscrito 43, referindo-se-lhe reiteradamente como “fórmula mágica” destinada a afugentar as bruxas, “quando recitada à direita e às avessas” 44.

1. Medalha da colecção do numismata Dr. Isidoro Ferreira Pinto, adquirida por J. Leite de Vasconcelos;

2. Tijolo em argila crua, com a fórmula palíndroma SATOR, AREPO, TENET, OPERA, ROTAS, exumado em Conimbriga [inv. 70.193].

2. Labirintos de Letras Não sendo este o momento oportuno para historiar a evolução do labirinto, tarefa árdua, de resto já empreendida por ilustres pesquisadores do símbolo e do mito 45, sempre convirá recordar que se trata de um cosmograma universal, indissociável de liturgias mágicas e religiosas, que partilha com as combinações circulares (concêntricas, duplas e 43

Cf. Uma fórmula mágica, in O Archeologo Português, v. 23 (1918), p. 226 e 321-323 e in Opúsculos, v. 5, Lisboa, 1938, p. 542-546 e v. 7, Lisboa, 1938, p. 1314. 44 Cf. Ensaios Ethnographicos, v. 3, p. 174; Revista do Minho, v. 1, p. 74-75; Revista Lusitana, v. 6, p. 244, etc. No Fausto I de Goethe, a chamada Taboada da Bruxa (Hexenküche) é um quadrado mágico de ordem 3. 45 Ver, designadamente: Paolo Santancangeli, Le livre des labyrinthes: histoire d’un mythe et d’un symbole, Paris, 1974; Lima de Freitas, O Labirinto, Lisboa, 1975; idem, Almada e o Número, Lisboa, 1977; Gilbert Durand (coord.), Le Labyrinthe, Paris-Lisboa, 1985 (separata de Colóquio/Artes, n. 62, 63 e 64, Set.-Dez. 1984 e n. 65, Mar.-Jun. 1985); Patrick Conty, La Géométrie du Labyrinthe, Paris, 1997.

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triplas, com ou sem covinha central) e as covinhas, o simbolismo do percurso da alma para o submundo uterino, seu ulterior regresso e consequente renascimento 46. No Ocidente, a comum prevalência do símbolo e da alegoria nas mentalidades mediévica, renascentista e barroca, havia de transformar o labirinto no Caminho de Jerusalém, figura de um itinerário místico, pleno de ciladas e dificuldades, que confronta a alma em demanda da Salvação e da Graça, a qual, mediante a penitência, as logra alcançar na Cidade de Deus ou Jerusalém Celeste. O paradigma literário de tal processo passa por ser a Psychomachia de Prudêncio (348-410), depois retomado por Dante (Divina Comédia), Juan de Mena (El Laberinto), Jean Bouchet (Le Labyrinthe de Fortune), João Amós Coménio (O Labirinto do Mundo e o Paraíso da Alma), para só citar os autores mais relevantes. Entre os portugueses cujas obras descrevem a peregrinação da alma no mundo como alegoria moral, salientam-se: Bernardim Ribeiro (Menina e Moça), José Pereira Veloso (Desejos da Alma Piedosa, 1688), Soror Maria do Céu (A Preciosa, 1731), Leonarda Gil da Gama, pseudónimo anagramático de Soror Madalena da Glória (Reino da Babilónia ganhado pelas armas do Empyreo, 1741), etc. Mas se o labirinto, como conceito sinónimo de Tesouro, Compêndio ou Súmula, foi, ao longo da Idade Média até ao Barroco (séc. XVII e XVIII), explorado pela literatura quase até à exaustão, as artes visuais não escapariam a uma contaminação previsível, face à riqueza e carácter multifacetado do simbolismo desse percurso, simultaneamente dificultoso e lúdico, magistralmente teorizado pelo retórico Juan Diaz Rengifo, autor de uma Arte Poética Española, cuja edição princeps, de Salamanca, data de 1592 47. Assim, três serão as modalidades principais de textos-visuais labirínticos, a ter em consideração 48: 46

A espiral expansiva que cria e protege o centro e a espiral contractiva que o conduz à dissolução, são conceitos implícitos no labirinto. A entrada no labirinto e a dissolução no centro ocorrem apenas quando alcançada uma exigência indispensável: saber como percorrer o caminho que até lá conduz. Petróglifos figurando labirintos são muito vulgares em estações rupestres, especialmente nas do Norte de Portugal e da Galiza, acompanhadas por covinhas e zoomorfos. 47 Em Portugal, é notória a influência desta obra, cujo verdadeiro autor foi o jesuíta Diego Garcia Rengifo (e não seu irmão Juan, em nome de quem circulou), em Filipe Nunes (Arte Poética e da Pintura e Symmetria, 1615) e Manuel da Fonseca Borralho (Luzes da Poesia Descuberta no Oriente de Apollo, séc. XVIII). 48 Consulte-se Ana Hatherly: A experiência do Prodígio: bases teóricas e antologia de textos-visuais portugueses dos séculos XVII e XVIII, Lisboa, 1983 (na fig. 42 reproduz pormenor do cruzeiro de S. Julião que denomina, por lapso, de “S. João da Ericeira”); Labirinto, in Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Lisboa, 1989, p. 251-252; A casa das Musas: uma releitura crítica Tradição, Lisboa, 1995.

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Instruções destinadas à composição e decifração de Labirintos de versos (séc. XVIII)

Labirintos de versos Directamente relacionados com o princípio do acróstico, o poeta tem de decidir quais as letras que quer colocar nas casas que convêm à formação das figuras que deseja compor, as quais podem assumir uma variedade de formas quase infinita. São exemplos paradigmáticos os 23 labirintos que abrem o Primus Calamus – Metametrica (Roma, 1663) de Juan Caramuel Lobokwitz, um dos quais, com a indicação de 14.996.480 versos, apresenta o mesmo número de casas e no centro as palavras carmine concelebret que também ocorrem no Labirinto Métrico, atribuído a Luís Nunes Tinoco. Esta modalidade assenta no domíno da Arte Combinatória, sistematizada por Raimundo Lullo e depois depurada por Atanásio Kircher e Leibniz (Dissertatio de Arte Combinatoria). Baseado no mesmo princípio de transposição combinatória de palavras existe ainda o caso do Proteo Poético, divulgado por Ana Hatherly 49.

Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, 1989, p. 251-252; A CAsa das Musas: uma releitura crítica da Tradição, Lisboa, 1995. 49 CF. A Experiência do Prodígio, p. 102.

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Labirintos de letras Os acrósticos cruzados (cancellatiflexus) de Porfírio (séc. IV) são, geralmente considerados precursores dos de Venâncio Fortunato (530-c. 600), Rábano Mauro (780-826) 50 e respectivos discípulos medievais e barrocos. Manuel de Faria e Sousa (Fuente de Aganipe o Rimas Varias) cita Porfírio como o iniciador da técnica dos labirintos visuais.

Labirintos cúbicos: epígrafes do séc. XI, da igreja de S. Salvador de Moreira da Maia (Maia, Porto), formadas por Labirintos de Letras (desaparecidas no séc. XVII) Não se trata de verdadeiros quadrados mágicos, uma vez que os textos não são palíndromos. A leitura destes labirintos, que ainda eram observáveis na parede da igreja na segunda metade do séc. XVII, foi realizada por Mário Jorge Barroca (cf. Epigrafia Medieval Portuguesa, n. 39, p. 117-121 e n. 51, p. 145-149) a partir da descrição consignada por Frei Timóteo dos Mártires (?-1686) na sua Crónica de Santa Cruz (v. 3, 1955-1960, p. 21-22). 1. Inscrição comemorativa do início da construção da igreja: ERA MCXXX [1092] TRUCTESINDES GUTERREZ FECIT 2. Inscrição comemorativa da sagração da igreja do mosteiro, fundado em 1027: ERA MCL [1112] MENDO ABBATE SACRATUR

Labirintos cúbicos Composições acrósticas, cujos lados possuem todos igual número de letras, achando-se estas de tal modo escalonadas, que ocupam a mesma ordem qualquer que seja o sentido da leitura, invariavelmente realizada do centro para a periferia. São exemplos desta modalidade justamente os quadrados da maioria dos cruzeiros do Caminho das Almas (Carvoeira). 50

O padre João Baptista de Castro comenta os poemas de Mauro, fornecendo indicações sobre o método de leitura do De Laudibus sanctae crucis (831), na sua Recreaçam Proveytosa.

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CRUZEIRO DE SÃO JULIÃO

Registo azulejar policromo (4 x 3 azulejos), quase ilegível, em consequência da sua vandalização. Sabe-se, apesar disso (por uma legenda que evocava o evento: MEMORIA DE HUM GRAND/E [milagre] Q. FES S. JOLIÃO A JOA[o] / DASAFOR. NO ANO DE [?] ) ter figurado o Milagre, alegadamente protagonizado por um gaiteiro que acompanhava o Círio da Água-pé, o qual seria resgatado ileso, depois de ter caído na furna (ou Boca do Inferno), situada sob o cruzeiro. Emoldurando-o, a legenda epigrafada: ECCE CR/UCEM D/OMINI (Eis a Cruz do Senhor). A expressão PELAS ALMAS separa este registo de um labirinto de letras (de ordem 11), onde se lê PADRE NOSSO. Por sua vez, o d´sitico AVEMARIA, aparta-o do monograma de [Manuel] TEIXEIRA, mais que provável organizador do percurso cabalístico, que denomino Caminho das Almas, unindo esta finisterra ocidental ao cemitério de Nossa Senhora do Ó. Como na generalidade dos demais caos, tradicionalmente reminiscentes da tradição clássica, segundo a qual as almas dos defuntos eram conduzidas para as Ilhas afortunadas, situadas no extremo ocidente europeu, também neste particular, anualmente revisitado pelo Círio da Água-pé, se assevera que “quem num biere cá em bida, de morto tem que bire” para lograra a entrada no Céu. A sílaba EI do monograma, porque ocorre duas vezes no nome, tem o dobro da dimensão das restantes, e a mesma que o T inicial, maiúsculo. Ainda associado ao monograma e a uma caixa para esmolas (há muito desaparecida) a justificação: P.[ara] A [ce]RA / I AZEITE D[e] S[ão] / IVLIAM. Num degrau: MDCCLXXXIIII.

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CRUZEIRO DE VALBOM

O mais simples dos monumentos que constituem o Caminho das Almas. Sito num alto, semelhante ao próprio Monte do Calvário, curiosamente denominado Valbom (i. e., Vale Bom), revela, epigrafado no pé da cruz, o ano da respectiva erecção: 1794. No braço superior dela, próximo da extremidade, o monograma INRI epigrafado; já no braço inferior apresenta insculturas, avivadas a tinta azul, figurando (de cima para baixo): Vaso dos santos óleos, cálice do Santíssimo Sacramento, martelo, cavilha, lança de Longino e esponja de fel cruzados em aspa sobre uma escada, torquês e caveira. Nas faces laterais observavam-se, outrora, diversos azulejos de figura avulsa, entretanto vandalizados, cujos temas, à excepção de um, iconografando uma alma do Purgatório, é impossível identificar.

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CRUZEIRO DA BALEIA

Dois registos azulejares, sob os quais se observa uma depressão circular esvaziada (cuja função nenhum dos residentes na localidade logrou esclarecer), ocupam-lhe a face Poente: o registo superior (3 x 3 azulejos) figura N. SRA. DA LAPA, consoante a legenda que o subscreve; o inferior (3 x 3 azulejos) iconografa uma entidade angélica no acto de resgatar almas do Purgatório, sendo subscrito: PELAS ALMAS DO P. /P.N. AVE MARIA / 1767.

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CRUZEIRO DA ESTRADA DE NOSSA SENHORA DO Ó

Epigrafado e azulejado, em todas as quatro faces. Face Norte: dois registos azulejares, figurando, o superior (2 x 4 azulejos), o Calvário e, o inferior (3 x 3 azulejos), S. Francisco intercedendo pelas Almas do Purgatório. Em torno daquele, a frase: ECCE CRV/CE M/DOMINI (Eis a Cruz do Senhor); emoldurando este: ALMAS / MATER DOLORO/ZA PELAS. À laia de supedâneo do conjunto, em duas linhas: PATER / NOSTRE. Num degrau: A ESMOLA Q DAIS / A VOS MESMO A DAIS. Face Sul: superiormente, registo azulejar (3 x 3 azulejos) figurando a VIRGEM/ DA PI/EDADE, conforme o dístico circundante. A expressão ORA PRONOBIS (Orai por nós) separa este registo do palíndroma de letras (de ordem 11), em baixo, onde se lê SALVE RAINHA: nos quadrantes à direita (esquerda do observador), a figuração do Sagrado Coração de Jesus (em cima) e de três pregos (em baixo); à esquerda (direita do observador), o Sagrado Coração de Maria (em cima) e a escada, a lança e a esponja de fel, estas cruzadas sobre aquela (em baixo). Num degrau, a data MDCCLXXIX. Face Nascente: quatro azulejos de figura avulsa, dos quais só o 1º e o 4º são identificáveis: Jesus preso à coluna e Alma do Purgatório, com a legenda P.N. AVE Mª, respectivamente; sob eles a frase: IRMAM /SALVA / A CRUS / ACOMPA / NHE-TE / IEZVS. Num degrau (sobre uma caixa de esmolas desaparecida): PARA A MISSA / DAS ALMAS. Face Poente: quatro azulejos de figura avulsa, de cima para baixo: Cristo carrega a Cruz; Ecce Homo; Senhor da Cana Verde; Alma do Purgatório, com a legenda P.N. AVE Mª. Num degrau ANNO DE 1779.

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CRUZEIRO DO CEMITÉRIO DE NOSSA SENHORA DO Ó

Epigrafado apenas na face voltada a Nascente, na qual se observam dois quadrados mágicos bípedes (detentores de uma ou mais casas de valor zero), separados pela data: 1833. Salta à vista que, no caso vertente, foi adoptado um sistema simbólico distinto do que se constata nos restantes marcos do Caminho das Almas, autêntico dédalo psicopompa (condutor daquelas para a sua morada celeste), onde prevalecem os labirintos quer de letras, quer cúbicos, com ou sem recurso ao método guemátrico. Aqui o preenchimento das casas de ambos os quadrados foi realizado mediante Notarikon. O quadrado superior, tradicionalmente denominado de Salomão (de ordem 3, com uma casa de valor zero), anda creditado a Apolónio de Tiana, ocorrendo em miscelâneas mágico-herméticas muçulmanas dos séculos X e XI, onde, sob o nome de selo de Ghazadi, é descrito como pentáculo destinado a facilitar o parto. A sua presença no centro de um cemitério conduz-me a presumir que se trate de uma alusão explícita à palingénese (morte e renascimento simbólicos), mas, porventura, não só, porquanto a frase B[a]Z[ileu]S EST X[ristu]M, i. e., O Rei é o Cristo, torna-o susceptível de conotações messiânicas e, decerto, também sebásticas (o contexto não podia ser mais adequado), numa simbiose da mensagem veterotestamentária sobre o Messias (Êxodo, IV, 22) com a palavra do Evangelho (Marcos, I, 11; Mateus, XVII, 2-8): o Messias há-de encarnar, fazer-se Homem, ser Rei-Soberano do Universo (1 Cor., VIII, 4-6) e Luz das Nações (Isaías, IX, 1; Lucas, I, 78-79; etc.). Já a epígrafe insculpida no quadrado inferior permanece (ainda) parcialmente indecifrada, devendo sublinhar-se que as letras iniciais da 1ª e da 3ª linhas, P e C, respectivamente, por se acharem associadas a um ponto [.] são abreviaturas. Enfim, a palavra na 4ª linha sugere, glosando Camões, que consoante a subordinação ao AMOR do Cristo-Rei, tanto mais proficiente será a Alma Staurofila (amante da cruz) e adjuvante da Segunda Vinda do Salvador.

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ADENDA

O Monumento de Mafra no Quinto Império: uma colectânea

Eis que vos dou poder para pisar serpentes e escorpiões e toda a força do inimigo e nada vos fará dano algum. LUCAS, X, 19

Erram ou fazem profissão de fé no desconhecido todos quantos peremptoriamente asseveram que a esperança sebástica implodiu em setecentos. Só por inércia essa opinião discutível, de resto como todas as opiniões, tem podido persistir. A verdade é que, no século XVIII, o sebastianismo ora assumiu contornos consentâneos com o despotismo iluminista, ora o adversou corajosa e intransigentemente na mira de fazer passar a tese de que o monarca esclarecido se achava nos antípodas da Graça sacralizante do Encoberto Desejado. Seja como for, D. João V, seu irmão, o Príncipe do Brasil, o filho, Dom José, e até Sebastião de Carvalho e Melo, entre outros, chegariam a ser veementemente exaltados e identificados quer como os precursores, quer como a própria encarnação do Redentor oculto.

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Sebastião Pacheco Varela Numero Vocal, Exemplar Catholico, e Politico, proposto no Mayor entre os Santos o Glorioso S. Joam Baptista: para imitaçam do Mayor entre os Principes o Serenissimo Dom Joam V, Nosso Senhor [...] Lisboa, Manuel Lopes Ferreira, 1702, p. 41-49

[...] Ao tempo que Vossa Alteza [Dom João V] alegrou com seu nascimento a Portugal [1686], esperava a curiosidade vã de alguns que aparecesse o prodigioso Encoberto, cumpridas as circunstâncias de seus ilusórios auspícios. Fundavam-se estes nos sinais e portentos que precederam a perda de El-rei Dom Sebastião, o desejado, e nas várias opiniões com que incertamente se refere o modo e o lugar de sua morte. Corroboravam-se com a protecção especial que Cristo a este Império prometeu: dando-lhe inextinguível sucessão. Confirmavam-se com os genéricos prognósticos que se hão-de cumprir no fim dos séculos e com outros fatídicos individuais testemunhos, que a sincera credulidade fazia verídicos, por mais que o tempo os fosse descobrindo apócrifos. E tudo isto não era mais que um desafogo do amor com que a seus Reis veneram os Lusitanos, os quais vendo-se a estranho domínio sujeitos, vinculando a mistérios a isenção do temido jugo, buscavam (se não foi favor divino para consolação de cativeiro penoso) alívios ao sentimento, pretextos ao desagrado, às opressões refúgio, à liberdade estímulo. Mas passando a ser engano da conjectura aquele entretimento da esperança, ainda depois de restaurada a Monarquia, não se acabaram de extinguir os desejos, até que em Vossa Alteza se viram cumpridos. Parece que a Divina Providência satisfez aos Sebastianistas com Vossa Alteza da sorte que aos Discípulos com o Santo Baptista. Corria naquele tempo fama vaga, que conforme a predição do Profeta viria o Encoberto e prometido Elias a restaurar (como se diz) a Terra Santa. E consultado Cristo Senhor nosso, desenganou a seus Apóstolos sagrados com o que já outra vez lhes tinha dito: que o Baptista era o prometido Encoberto. Assim também dirigiu Deus a verdadeiro objecto a fidelidade ansiosa de alguns Lusitanos, porque achando em um Príncipe nascido os requisitos que supunham no imaginado, demitindo a esperança de milagres supérfluos, sem tirar ao Reino o privilégio de escolhido, creem da generosa índole de Vossa Alteza os que sonhavam triunfos ao desejado Monarca e dizem que este João é aquele Elias, legítimo sucessor de sua dignidade suprema, vantajoso imitador de sua virtude heróica. Certifica esta identidade de sujeitos a exacta computação de seus números, pois, conforme o estilo dos Anagramas numéricos, que já usavam os Gregos antigos e hoje frequentam os modernos curiosos, tanto soma o título de Vossa Alteza nascido, como a vinda do prometido Encoberto. Escrevo-o com a usada abreviação, sem a reverente declaração do D. G., porque sem duplicadas repetições, em o próprio nome de João se apelida Vossa Alteza, Rei por graça de Deus:

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Sebastianus . . . . . . . 628 Promissus . . . . . . . . . 699 Veniet . . . . . . . . . . 359 1686 Joannes . . . . . . . . . . .235 V ............... 5 Portug . . . . . . . . . . . 497 Et Alg . . . . . . . . . . . . 133 Rex . . . . . . . . . . . . 385 Natus . . . . . . . . . . . . 431 1686 Falando Cristo daquele tempo último, em que há-de ser o verdadeiro Encoberto, dá a entender que o tempo se prove para se conhecer com pontualidade. E se provarem os Sebastianistas o tempo que assinalam os Anagramas, acharão que é Vossa Alteza o Encoberto que esperam, pois soma então o tempo de sua vinda o ano do nascimento de Vossa Alteza. [...]. Descendo pois a singularizar a pessoa para adaptar proporcionalmente a semelhança, é Vossa Alteza por João e por Quinto o esperado vencedor dos Maometanos: pois o primeiro João foi o seu conquistador primeiro e o primeiro Quinto foi o seu temido assombro. O apelido numérico do futuro Dragão é seiscentos e sessenta e seis [...]. Este número do vaticinado Monstro há-de vencer aquele Rei soberano, que até no nome quer mostrar-se Encoberto, mas os que pretenderam decifrá-lo entendem que será o inefável JEHOVA, que corresponde ao ditoso João. Logo João deve chamar-se o Encoberto prometido, para ser semelhante ao profetizado. E por que se achem parecidos em tudo, precisamente há-de ser João V, porque o nome de JOANNES não enche perfeitamente as vogais de JEHOVA, senão quando se lhe junta a letra V. E pois em Vossa Alteza concorrem todas as circunstâncias que na vinda do Encoberto se assinalam, Vossa Alteza é o Desejado, por quem Portugal suspira há tantos anos, e como tal destruirá os Impérios dos Agarenos e dos Otomanos, não com a presença da sua pessoa, mas com a eficácia de sua palavra, por Capitães felizmente obedecida. Prognostica a Vossa Alteza estas felicidades o Signo em sua formação dominante, que desde então deve levantar-se a figura [...]. Teve pois Vossa Alteza seu princípio ao tempo que o Sol entra em Aquário e se este Signo (ao que imaginam os Astrólogos) promete em seus influxos venturas e domina sobre a Cidade Santa, será Vossa Alteza o Príncipe mais ditoso e conquistador do Santo Sepulcro. [...]. Receba Vossa Alteza deste Signo a influência, prevenindo-se com a devoção para a semelhança que, como é nimiamente venturoso, o fará a Vossa Alteza grandemente feliz.

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Anselmo Caetano Munhós de Abreu Gusmão e Castello Branco Ennoea, ou applicaçaõ do entendimento sobre a Pedra Philosophal, pro e defendida Com os mesmos argumentos com que os Reverendissimos Padres Athanasio Kircker no seu Mundo Subterraneo, e Fr. Bento Hieronymo Feyjoo no seu Theatro Critico, concedendo a possibilidade, negaõ, e impugnaõ a existencia deste raro, e grande mysterio da Arte Magna. Parte primeira. Offerecida ao Illustrissimo Senhor D. Francisco de Menezes, Conego da Santa Igreja Patriarchal, e do Conselho de Sua Magestade, etc. Por [...] Doutor da Universidade de Coimbra, Familiar do Santo Ofício, Médico do Excellentissimo Senhor Duque de Aveiro natural da antiquissima Villa de Soure. Lisboa Ocidental, Nova Oficina de Maurício Vicente de Almeida morador ao Arco das Pedras Negras, 1732-1733 [PNMafra: 2-33-9-19]

Dedicatória a D. Francisco de Meneses, cónego da Patriarcal [...]. Viu o Evangelista João uma Igreja, ou uma Sé colocada no Céu, que tinha à sua vista um mar cristalino como vidro e diante do seu trono ardiam sete lâmpadas. Na circunferência desta Sé havia vinte e quatro Tronos, ou assentos, em que se assentavam vinte e quatro Anciãos, coroados com Mitras Episcopais, ou Coroas de ouro. Estes vinte e quatro Anciãos [...] eram Sacerdotes que reinavam e dominavam sobre a terra e sendo Reis que dominavam e reinavam, eram também o Reino de Deus [...]. [...] como nenhuma Igreja ou Sé tem mais semelhança do que com a Santa Igreja Patriarcal; porque tem à vista o mar e o Tejo que é quase mar [...]. E desta sorte se estabeleceu na Sacrossanta Basílica Patriarcal o Quinto Império do Mundo e de Cristo, prometido por Cristo ao primeiro Rei de Portugal [...]. De maneira que o Quinto Império do Mundo sendo espiritual e de Cristo também é temporal e dos Reis Portugueses. E tendo-o fundado Cristo na Santa Igreja Romana o estabeleceu depois na Sacrossanta Basílica Patriarcal [de Lisboa], que por ser Igreja junta e unida com o Palácio de El-Rei, entre El-Rei e o Eclesiástico está repartido sem divisão o Quinto Império [...]. Finalmente, chegando o Reino de Portugal a ser Cabeça do Império universal de todo o Mundo e a Santa Basílica Patriarcal [de Lisboa] o trono da cadeira de S. Pedro, serão os Ilustríssimos Senhores vinte e quatro Cónegos Eminentíssimos Cardeais da Santa Igreja Romana. Esta conclusão infiro eu das premissas em que tão solidamente tenho fundado este discurso, porque se os Senhores Cónegos da Santa Basílica são os mesmos vinte e quatro Sacerdotes e Bispos Anciãos do Apocalipse, que se representam nos Sacerdotes que antigamente havia no Templo de Jerusalém, como diz Alapide 25, porque também tinham suas cadeiras e tronos dentro do Templo, sólios verdadeiramente 25

Cornélio Alapide, Com. in Apoc., cap. 4,4.

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augustos, como são os dos Príncipes e Reis, e como agora têm os Bispos e os Pontífices, por cujo respeito se chamam as suas igrejas Catedrais 26. Sendo os mesmos vinte e quatro Sacerdotes e Bispos Anciãos no sentir do padre Alapide, figura dos Cardeais da Santa Igreja Romana, chamada vulgarmente Capela do Sumo Pontífice, em que se vê a imagem da Celeste Jerusalém, donde se derivou e tirou a Santa Igreja de Roma como cópia de tão perfeito original, segundo conclui o mesmo Alapide. Bem se segue que também serão Eminentíssimos Cardeais da Santa Igreja Romana os Ilustríssimos Cónegos da Sacrossanta Basílica Patriarcal [de Lisboa], que é tão semelhante à Santa Igreja de Roma, como a Igreja Romana à Cidade de Jerusalém Celeste, porque assim como da Celeste Jerusalém se derivou a Igreja de Roma, da Igreja Romana, como de perfeitíssimo original, se tirou a perfeita cópia da Sacrossanta Basílica Patriarcal [de Lisboa]. À Santa Igreja de Roma também se chama vulgarmente Capela do Sumo Pontífice e até nesta circunstância se parece com a Igreja Romana a Santa Basílica Patriarcal [de Lisboa], porque, sendo antigamente a Capela Real dos Monarcas Lusitanos, ainda hoje é Capela dos mesmos Reis e o vulgo lhe chama Capela. Porém, não só é imagem da antiga Jerusalém e da Jerusalém Celeste, mas nova Cidade de Jerusalém descida do Céu à terra e colocada onde a vêem os olhos do Grande João. [...]. Nenhuma coisa traz João o Grande mais diante de seus olhos do que o culto Divino e o ornato desta nova Cidade de Jerusalém, a quem a sua magnificência tem dado tanta riqueza que no Ouro e Prata e pedras preciosas excede ao Templo da antiga Jerusalém no reinado de Salomão. Por isso Deus o ama, como amou ao mesmo Salomão, eternizando-lhe o Reino, dilatando-lhe o Império e, sobretudo, prometendo a El-rei D. Afonso I pelo Ermitão do Campo de Ourique de pôr os olhos de sua misericórdia, como também Deus prometeu a El-rei David pelo Profeta Nathan de estabelecer o Reino e firmar o trono de Israel em seu descendente Salomão, segurando que não apartaria dele a sua misericórdia 27. E se Deus pôs os olhos da sua misericórdia em João, o Grande, grande fundamento tenho para dizer que também como João está em graça de Deus, porque na graça de Deus está aquele Monarca com quem Deus usa da sua misericórdia. Por isso verá a Jerusalém Celeste o mesmo João que viu a nova cidade de Jerusalém descida do Céu à terra. [...].

26 27

Idem. Paralipómenos, XVII, 11-13.

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Anselmo Caetano Munhós de Abreu Gusmão e Castello Branco Oraculo Prophetico, Prolegomeno da Teratologia, ou Historia Prodigiosa, em que se dà completa noticia de todos os Monstros, composto, para confuzao de pessoas ignorantes, satisfaçaõ de homens sabios, exterminio de prophecias falsas, e explicaçaõ de verdadeiras prophecias. Parte primeira. Em que se exterminaõ as prophecias falsas. Consagrada a Marte, como quinto entre os planetas. Por [...], Doutor pela Universidade de Coimbra, Familiar do Santo Officio, e natural da Villa de Soure. Lisboa Ocidental, Nova Oficina de Maurício Vicente de Almeida, morador nos Sete Cotovelos junto a S. Mamede, 1733, p. 86-96 [BN: SA 3112 P]

[…] VII [...]. Porém como Deus, quando, e como quer, restaura no tempo futuro os mesmos sucessos, que já nos séculos passados aconteceram: Et Deus instaurat quod abut; quem poderá, pergunto com Salomão, compreender os incompreensíveis juízos de Deus, penetrando, e sabendo com toda a certeza os seus conselhos, ou poderá excogitar aquilo mesmo, que Deus quer fazer com a sua divina, e livre vontade: Quis enim hominum poterit scire consilium Dei? Aut quis poterit cogitare quid velit Deus? (Sap. IX, 13) A esta pergunta, que não tem fácil reposta, satisfez o mesmo Salomão desenganado a todos os homens presumidos, e temerários, para que se não atrevessem a exceder os termos, que Deus tinha limitado ao seu conhecimento; porque com as suas imaginações tímidas, e incertas não podem excogitar, nem penetrar este segredo: Cogitationes enim mortalium timidae, et incertae (Ibid., 13.); e com as imaginações humanas temerosas, ou temerárias são muito incertas: Timidae, et incertae; incertas ficam também sendo todas as coisas passadas, que Deus oculta no futuro à nossa imaginação: Ommia in futurum servantur incerta (Eccles., IX, 2). E a razão do que a mesma razão não alcança vem a ser; porque ignorando os homens, e não podendo conhecer a razão de todas as coisas, que Deus obrou no tempo passado, segundo entendeu Salomão: Et intellexi quod omnium operum Dei nullam possit homo invenire rationem (Eccles., VIII, 17); com esta ignorância do passado não pode a imaginação humana saber por algum modo o futuro: Quia ignorat praeterita, et futura nullo scire potest nuncio. Nenhuma dúvida haveria em conhecerem os homens o futuro, se com toda a certeza penetraram, ou souberam o passado; porém a ignorância do passado lhes oculta o futuro. Como não sabem o que já foi, ignoram também o que há-de ser; e desta sorte não profetizam, porque não sabem. É, contudo, tão confiada, atrevida e temerária a ignorância e imaginação dos homens, que até do nascimento dos Monstros pretende[m] tirar fundamentos para adivinhar os futuros. Imaginam, que o mesmo nome Monstro está dizendo, ou mostrando, ser qualquer Monstro um mostrador do futuro. Não é isto imaginação minha, senão etimologia de Santo Isidoro referida por Ambrosino: Monstrum, ex mente Isidori itanuncupatur, quia aliquid futurum monstrando, hominos moneat (Ambrosino, In Monstror. Historia,

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cap. 2, fl. 325). Alucinados com esta etimologia, censuram alguns Momos, que me imputam, e não impugnam o X dato; e não gostam, em gastam da Ennoea, zombar eu dos prognósticos, que se fazem pelos Monstros. Dizem que seguindo, ou devendo eu seguir aos Teratoscopos podia, ou devia prognosticar naquele papel grandes felicidades a Portugal; porque este Reino é tão venturoso, que até os Monstros lhe vaticinam bons anúncios. No ano de 1638 nasceu em Lisboa, conforme escreve Ambrosino, um Menino monstruoso, e ferozmente armado; porque na cabeça tinha um capacete, nas pernas umas botas, e pelo corpo todas as armas defensivas, com que os homens militares costumam ir à guerra, formadas prodigiosamente de vários apêndices de carne e pele: Nuper etiam na Civitate Olysiponensi, antiqua Regum Lusitaniae Sede, anno salutis post millessimum, et sexcentesimum trigesimo octavo, ex honestis parentibus in lucem prodivit infans armatissimus: quandoquidem variae cutis et carnis appendices ratione figurae, illa arma tutelaria representabant, quibus se homines ad bellum profecturi munire solent, imò, eadem materia galeatus, et acreatus erat (idem, cap. 7, fl. 585.); e não se pode negar, que este Monstro, nascido em tal ocasião, e com tão misteriosa figura, anunciou a feliz aclamação do Senhor Rei D. João IV sucedida no ano de 1640 e o venturoso sucesso que teve este reino com a guerra defensiva. Fundando-se neste discurso, queriam que eu fizesse este prognóstico: estado a corte de Lisboa dividida em duas Cidades Oriental e Ocidental, que ambas juntas fazem um monstruoso corpo, nasceu na cidade de Lisboa Oriental um monstro de dois corpos femininos, que no primeiro de Outubro de 1732 pariu uma mulher preta, de tal sorte unidos pelas costas, que representavam um X. Porém, como um destes corpos tinha tão grande cabeça, que lhe impedia o nascimento, e antes de sair do útero excitava funestíssimos sintomas, degolada por um cirurgião português, morreu antes de sair à luz, e matou a própria mãe que lhe tinha dado a vida; e deste símbolo queriam, que eu inferisse, ou conjecturasse, que o ferro, ou a espada dos portugueses degolará no Império do Oriente uma Grão Cabeça, e com este golpe morrerá também a negra mãe, que a tiver gerado; e deste modo ficará unido o Império do Oriente com o do Ocidente debaixo do domínio de um só Imperador, assim como em Lisboa já estão unidos o Ocidente, e o Oriente debaixo do Império de um só monarca. De maneira que a divisão de Lisboa em Oriental e Ocidental, mas unida em uma só Corte, prognostica que será a cabeça do Império Ocidental, e Oriental, quando os portugueses degolarem no oriente uma Grão Cabeça. Em semelhantes vaticínios não fundamos nós os nossos prognósticos. Com outros Monstros provaremos estas mesmas profecias. Não consta do Sagrado Texto, que Deus admoestasse aos homens, nem lhes revelasse nenhuns futuros com o nascimento dos Monstros; mas em monstruosos símbolos fundou Deus as profecias. Em sete Vacas monstruosamente robustas, ou fracas, e em sete Espigas monstrificamente gradas, ou falidas, mostrou Deus a Faraó a grande abundância, ou esterilidade do Egipto. Em uma estátua monstruosamente formada de quatro metais revelou Deus a Nabucodonosor todos os Impérios do Mundo. Em uma monstruosa Árvore, que plantada no meio da terra assombrava todo o mundo, e tocava com os remates no

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céu, representou Deus a Nabucodonosor a futura tragédia da sua inconstante fortuna. E em quatro monstríficas Feras descobriu Deus a Daniel as futuras Monarquias. Com estes símbolos monstruosos, ou com estes, e outros Monstros celestes, em que Deus profeticamente fala aos homens, e não com outro género de monstros, profetizaremos a Portugal as suas maiores e futuras felicidades; porque se Deus assim falou, quem com as palavras de Deus não profetizará: Dominus Deus locutus est, quis non prophetabit? (Amos, III, 8) Seguindo, e entendendo nós aos verdadeiros profetas, não podemos enganar-nos em os nossos vaticínios, e guiando-nos só pelo Monstro não podíamos acertar nos seus prognósticos; porque aos Monstros naturalmente gerados, e preternaturalmente produzidos, chamou, discreta e sabiamente, Aristóteles erros da Natureza; e guiado pelos seus erros ninguém acerta.

VIII Bastava, leitor cristão, este último fundamento, para exterminar do Mundo todas as profecias falsas, que sobre o nascimento e figura dos Monstros, produzidos e gerados pela Natureza, fundaram supersticiosamente os Teratoscopos, e sobejam neste papel razões sólidas, e argumentos eficazes, para mostrarmos com toda a verdade e certeza, que os monstros celestes, criados, ou revelados por Deus, são as suas verdadeiras, e últimas vozes. Para ouvirmos só as vozes de Deus, emudecemos primeiro as palavras dos homens. Exterminámos então as profecias falsas, para explicarmos agora as verdadeiras profecias; porque deste modo se conhecerá melhor a verdade à vista da mentira. Não introduzimos na primeira parte deste Oráculo Profético todos os Monstros celestes, nem outros Monstros, que se puderam ver na Teratologia, ou na História Prodigiosa, em que se dá completa notícia de todos os Portentos; porque para o nosso intento não era necessário referir agora todos, senão alguns destes prodígios. Com esta mesma disposição compusemos e principiamos já a impressão da segunda parte do mesmo Oráculo, interpretando nele alguns monstruosos símbolos, e discorrendo moral e politicamente sobre as suas profecias; porque pediu a matéria (sobre que provocados escrevemos) esta mesma proporção de figuras monstruosas, para que as duas partes deste monstrífero corpo, correspondessem ao todo desta obra, e ficasse por este modo monstrífica em tudo a nossa ideia. Não lançámos os fundamentos deste dividido edifício, segundo os oradores ensinam os preceitos da Retórica, senão conforme os artífices guiam as regras da Arquitectura; porque para também ser monstruosa esta máquina era mais necessária a proporção na firmeza, do que a disposição na formosura. Sobre alicerces tão sólidos, e firmes levantaremos, com a divina graça, não a Cidade e Torre de Babel, para subir e não chegar da terra ao Céu, porém mostraremos edificada uma Nova Igreja e Santa Cidade de Jerusalém, que desceu e chegou desde o Céu à nossa terra. Esta é a santa e nova cidade de Jerusalém, que do Céu viu descer o Evangelista S. João, preparada primeiro por Deus e adornada, como a Esposa para seu Esposo: Et ego Joannes vidi Sanctam Civitatem Jerusalem

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novam descendentem de Caelo a Deo paratam, sicut Sponsam ornatam viro suo (Apoc., XXI, 2); e como João viu já esta nova e Santa Cidade de Jerusalém descida lá do Céu, facilmente a descobriremos agora cá na terra; porque se não pode esconder à nossa vista uma Cidade, posta, ou colocada sobre o alto monte deste Mundo: Non potest Civitas abscondi supra montem posita (Mateus, V, 14). Os olhos de João foram os primeiros exploradores, que viram e descobriram esta nova e última, ou única Maravilha do Mundo; e nós mostraremos ao Mundo as grandes Maravilhas do Céu, que Deus fez para nos mostrar por João. O primeiro arquitecto, que lançou o fundamento a esta grande Cidade, foi o Divino e Supremo Artífice; porque desceu do Céu traçada pela infinita sabedoria de Deus: Descendentem de Caelo a Deo paratam; e tudo isto, que Deus tinha disposto, é o mesmo, que João tem visto: Et ego Joannes vidi; mas sobre esta Celeste Maravilha, que João viu com seus olhos, e sobre o mesmo fundamento, que Deus pôs a esta Santa, e Nova cidade, descobriremos nós agora (com os seus auxílios) o maior e melhor Templo que vê e venera o Mundo; porque sendo Templo de Deus, fundado em uma Pedra angular, ou quadrada, que é Jesus Cristo, nosso senhor, também é uma Cidade Santa, que domina, como Imperatriz, e Senhora das Gentes, a todo o mundo. Falando o Apóstolo S. Paulo nesta grande Cidade de Deus, confessa na primeira Epístola aos Coríntios, que sobre o fundamento, que ele (ajudado com a Divina graça) pusera a este edifício, como tão sábio Arquitecto, sobreedificará outro Artífice: Secundum gratiam Dei, quae data est mihi, ut sapiens Architectus fundamentum posui: alius autem super aedificat (I Ad. Corinth., III, 10); e na carta, que ao depois escreveu aos Efésios descreve esta cidade tão grande, populosa e unida com o Templo de Deus, fundado sobre a Divina Pessoa de Jesus Cristo, como em uma Pedra quadrada, ou angular, que todos os homens do mundo são seus Cidadãos, sem haver entre todas as suas Nações nenhuns hóspedes, estrangeiros, nem peregrinos; porque todos são moradores da mesma cidade, em que habitam Católicos e todos os domésticos da Casa de Deus, sobreedificados sobre o fundamento dos Apóstolos e dos Profetas, que é Jesus Cristo, como Pedra angular, ou quadrada, em quem todo aquele Edifício cresceu, para ser o Templo do Santo Deus: Ergo jam non estis hospites, et advenae: sed estis cives Sanctorum, et domestici Dei: super aedificati super fundamentum Apostolorum , et Prophetarum, ipso summo angulari lapide Christo Jesu: in quo ommis aedicatio constructa crescit in Templum Sanctum in Domino (Ad. Ephef, II, 10-20); e conforme a descrição, que o Apóstolo fez deste Templo, unido, ou identificado com esta Santa Cidade: sobre a Cidade Santa se descobre o Templo de Deus; porque ficando o Templo superior à mesma cidade: Aedificatio constructa crescit in Templum, fica por este modo, como separado e por cima da Cidade o Templo, ou Santuário, que possui um só príncipe, como viu profeticamente Ezequiel: Principi quoque hinc et inde in separationem Sanctuarii et possessionem Civitatis (Ezequiel, XLV, 7). Este Santuário, ou Novo Templo de Ezequiel viu este profeta separado sete léguas da Cidade marítima, chamada Oriental, e Ocidental; porque tem por um lado ao Oriente, e pelo outro ao Mar, e a sua longitude se estende (como vemos em Lisboa) desde a parte Ocidental, até ao termo Oriental: Et contra faciem possessiones urbis: a latere maris usque ad mare, et a latere Orientis usque ad Orientem:

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longitudinis autem juxta unamquamque partem a termino Occidentali, usque ad terminum Orientalem (idem). Mas ainda que se não pode esconder uma Cidade posta sobre um Monte, nem se podia ocultar este Templo edificado sete léguas por cima de tão grande Cidade, nenhum dos Expositores Sagrados descobriu até agora esta Cidade, nem mostrou ao Mundo aquele Templo. Todos os intérpretes confessam com as mesmas palavras de Ezequiel, que não puderam vadear a profunda (conforme S. Jerónimo, e Vilhalpando) subterrânea corrente de um rio tão caudaloso e profundo (como o Tejo) que corria por baixo do mesmo Templo e da Cidade, em que se representa (além do Baptismo, e doutrina Evangélica) a obscuridade e profundidade das profecias, como de si, e em nome de todos afirma o grande Alapide: Ego de me illud possum dicere, quod Ezechiel de se (cap. 47) et post eum docti interpretes: torrentem non potui pertransire, quoniam intumuerunt aquae profundi torrentis, quae non possunt transvadari (Alapide, Com. in Proph. Maior, fl. 16.). Porém, ainda que S. Jerónimo lhe chama labirinto intrincado e tenebroso; Santo Agostinho o nomeia escuro labirinto e profundo oceano; S. Gregório o compara a estrada desconhecida e encoberta com a noite, e ao caminho só conhecido dos Espíritos celestes; e finalmente o Padre Alapide o assemelha a uma vereda incógnita a todos os homens. O mesmo Doutor Máximo sem nomear o Reino, nem a Província aonde esteja estabelecido este Templo, sobre tão Santa e Católica Cidade, afirma ser a Igreja de Cristo, edificada sobre esta firmíssima Pedra, para edificação quotidiana dos seus Santos: Et nos ad Christi Ecclesiam referimus, et quotidie in Sanctis ejus aedificari cermmus; e acrescenta o Padre Alapide por lição de S. Gregório, Viegas, Maldonado, Barradas, Heitor Pinto, e António Fernandes, que este Templo de Deus e Santa Cidade de Jerusalém, que viu o profeta Ezequiel, é o Principado da Igreja de Cristo tão duplicado como Eclesiástico e Secular: Per templum, et urbem Ezechielis significari duplicem in Ecclesia Christi principaeum, Ecclesiasticum et Saecularem (Alapide, Com. in Ezech. Synop., cap. 40, fl. 1173). Este Principado Secular, e juntamente Eclesiástico da Igreja não esta na Itália, mas existe separado, e fora de Roma estabelecido em uns mosteiros, e varões religiosos, consagrados de todo a Deus como declara o mesmo Alapide: Templum, esse monasteria, virosque religiosos, qui a Roma separati sunt, non tam loco, quam mente, actione, et contemplatione, ut se totos Deo consecrent (idem). Muitos conventos há hoje fora de Roma, em que está edificada a Igreja de Cristo, que é a Nova, e Santa Cidade de Jerusalém, descida do Céu à terra, segundo entendeu o Padre Alapide, explicando com as palavras de S. João o referido texto de S. Paulo: Sanctus Joannes videns Sanctam Civitatem Jerusalem novam descendentem de Caelo, id est, Ecclesiam Christi (Alapide, Com. in Epistol. ad Ephes., cap. 2, 20, fl. 488); mas nenhum Mosteiro de religiosos se acha na Cristandade, que esteja edificado sete léguas fora, ou por cima da Cidade marítima, chamada Oriental, e Ocidental, fundado sobre águas subterrâneas e tão adornado como a Esposa para o seu Esposo: Sicut Sponsam ornatam viro suo, senão esta nova e única Maravilha do Mundo, que ao mundo mostraremos estabelecida em Portugal, edificada em Cristo, sobreedificada em Mafra e sobre o fundamento, que lhe pôs S. Paulo, pelo Real, e invicto braço do Sábio e Augusto Apolo Lusitano, e pelas

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mãos dos Portugueses, para Corte do Quinto Império de Cristo, conforme a inteligência, que às palavras do Apóstolo deu o seu melhor expositor Cornélio Alapide: Fundamentum Ecclesiae vestrae ego posui Apollo, et alii videant quod illi super aedificent, non autem quid de novo fundent (Com. in Epistol. ad Corinth, cap. 3, 11, fl. 215). Para falarmos sem lisonja, diremos tudo pelas bocas e língua alheias, que são os Monstros celestes propostos aos Infiéis e as profecias explicadas aos Católicos; e nem assim seremos ouvidos neste Povo, como disse também Deus pela boca de S. Paulo: Quoniam in allis linguis et labiis aliis loquar populo huic: et nec sic exaudiet me, dicit Dominus. Itaque linguae in signum sunt non fidelibus, sed infidelibus. Prophetiae autem non infidelibus, sed fidelibus (idem, cap. 14, 21). Não se pode entender este texto de S. Paulo, senão com a difícil inteligência deste lugar, que cita no profeta Isaías: In loquela enim labii et lingua altera loquetur ad populum istum (XXVIII, 11); porque este texto, como diz Alapide, acomoda, ou com ele alude o Doutor das Gentes ao dom de línguas de fogo que deu o Espírito Santo aos Apóstolos: Quia locum Izaiae adaptat dono linguarum Apostolis dato (Alapide, idem, cap. 14, 21, fl. 316); mas se não ouvir o Povo o que dissermos e temos falado por tantas línguas de fogo, quantos são os Fenómenos, Cometas, Meteoros, e outros Monstros Celestes, ouçam ao menos as Profecias, que não ficaram escuras, depois de alumiadas com estas Luzes do Céu. Tinha Deus profetizado a Abraão uma descendência tão multiplicada como as Estrelas, a posse da Terra de Promissão, a peregrinação de seus descendentes, o cativeiro do Egipto, o trânsito do mesmo Abraão, e a restituição dos Hebreus à terra Prometida; e como a escuridade das profecias era tão grande como a noite, em que Abraão viu tudo isto com os olhos fechados, como quem estava dormindo, com um Meteoro, ou Fenómeno de fogo, semelhante a uma fornalha e a lâmpada acesa, que passava por entre as divisões, ou partes divididas dos animais sacrificados, alumiou Deus ao mesmo Patriarca, para ver, como diz Alapide, com aquela luz celeste o mistério de tão escuras profecias: Cum ergo occubuisset sol, facta est caligo tenebrosa,etE apparuit clibanuss fumans, et lampas ignis transiens inter divisiones illas (Alapide, Com. in Genes., cap. 15, 17, fl. 163). E se para entenderem as suas profecias alumia Deus aos Patriarcas, e Profetas com Meteoros do Céu, e Monstros Celestes, porque não acenderíamos nós também até agora estas Luzes Celestes, ou estas Línguas do Céu, para explicarmos vaticínios dos Profetas e Patriarcas aos homens, ou alumiarmos daqui em diante com elas escuríssimas profecias?

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Anselmo Caetano Munhós de Abreu Gusmão e Castello Branco Sistema Medico, galeno – químico do Morbo Hungárico, ou do Sumo grau das Febres agudas, coléricas, ardentes, atrabiliárias, intermitentes, perniciosas, contínuas, malignas, e pestilentas, complicadas com todos os sintomas funestos, e mortais, especialmente com vómitos negros, e dejecções atrabiliárias, como foram as que na quadra do Outono do ano de 1723 infestaram esta Corte de Lisboa Oriental, e Ocidental, chamadas vulgarmente: Vómitos Pretos. Segunda Parte. Consagrada, ao Misterioso, e Real numero quinário. Do Augusto, Potentíssimo, e Invictíssimo Senhor Dom João V. Rei de Portugal. [BN: cod. 10553] Dedicatória Senhor, Nunca esteve mais florense no orbe literário, a República das Letras, do que no tempo, em que Vossa Majestade dominando o Mundo político se fez nele tão respeitado pelas ciências, como obedecido pelas armas. Neste venturoso século admirou o Mundo racional em Vossa Majestade a sabedoria de Mercúrio, junta com o valor de Marte; como nos tempos passados viu no Império de Octávio e de Tito, a ciência unida com o valor e o ceptro na mão da pena; porque ambos estes grandes heróis foram valorosíssimos Césares, e doutíssimos Imperadores Romanos, muito honradores das ciências, e magníficos remuneradores dos varões sábios. Com estas duas excelências e prerrogativas, fingiu a supersticiosa gentilidade a Júpiter com a mão direita armada de raios, e com a cabeça tão sabia, e fecundamente entendida, que dela nascera Minerva, Deusa das Ciências. Mas a sabedoria, e valor, que em Júpiter é fábula com encarecimento, em Vossa Majestade é verdade sem hipérbole; porque nas empresas militares é Marte insensivelmente armado com os raios de Júpiter; e na compreensão de todas as ciências, é Mercúrio universalmente consumado com a sabedoria de Minerva. Assim o testemunham as Universidades e Academias, de quem Vossa Majestade é Mestre e Protector. E o aclamam também as vitórias com que Vossa Majestade meteu as luas otomanas, debaixo dos pés da Igreja Católica 28. Por isso todas as coroas do Universo, ou sejam de ouro como os Diademas dos Monarcas, ou de Louro como as aureolas dos sábios, em Vossa Majestade buscam e conseguem a protecção, ou a defesa. Isto publica as alianças de todas as Potências Dominantes e as obras de todos os Escritores; porque nenhum livro aparece hoje em Portugal, que não mostre no Real retrato, ou não diga na primeira folha, que Vossa Majestade é o seu Augustíssimo e Magnificentíssimo Protector. Nem reinam pacíficos e seguros nos seus Tronos aqueles Monarcas e Príncipes mais soberanos, a quem o invencível braço de Vossa Majestade, não segura e sustenta firmes nas cabeças as coroas. Este conhecimento, e notícia que tenho dos obséquios, que a Vossa Majestade fazem os autores estrangeiros, sendo em mim obrigação, como vassalo, 28

Apocalipse, 1, 2 e Salmos, LXXI, 7.

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me anima também oferecer e consagrar estes cinco livros ao Misterioso e Real numero quinto do Augustíssimo nome de Vossa Majestade, por serem compostos em seu obséquio, e impressos para utilidade dos seus vassalos. Considerando que receberia Vossa Majestade esta pequena oferta, tão útil e necessária ao bem comum, com a mesma clemência e incomparável piedade, com que mandou socorrer os seus vassalos na ocasião em que sua Liberalíssima magnificência livrou a corte de Lisboa de uma funesta Endemia, excedendo nesta piedosa e generosa acção ao grande Imperador Tito I, quando com a sua excessiva prodigalidade, como verdadeiro Pai da Pátria, mandou socorrer a Roma aflita, e infeccionada com uma cruel pestilência. Por isso, com melhor fundamento, que a Tito se deu então a Vossa Majestade o Epíteto de Pai da Pátria, Regalo, Delícia do género humano; porque com delícias, regalos e com inumeráveis remédios, consolou todos os enfermos e livrou da morte a infinitos homens. Também, Senhor, servem algumas vezes as Majestades aqueles autores que escrevem livros necessários para utilidade dos seus vassalos. E se, de passagem, ponderam, ou imortalizam as acções heróicas dos soberanos, com as mesmas penas fazem voar pelo Mundo a fama dos Reais Ceptros. Sepultadas estariam hoje nos mesmos túmulos, que escondem as cinzas dos Césares e dos Alexandres, as suas proezas e vitórias, se as não divulgaram no Mundo as penas imortais dos Cúrsios e dos Suetónios. Não dependem as acções heróicas, e régias de Vossa Majestade em tudo excelsas e supremas de tão pequeno brado, para serem ouvidas com admiração em todo o Mundo, porque os clarins da fama, com o seu contínuo e imortal alento, as publicaram sempre na dilatada esfera do Universo. Mas também elogiam às Majestades da Terra as vozes e os silêncios dos Mudos e dos Pequenos, que louvam, como disse El Rei David, a Majestade do céu 29. E quando eu não publicara, na primeira parte desta obra, a grande caridade com que Vossa Majestade socorreu a pobreza e o povo de Lisboa, na mesma ocasião, em que será o Mundo, que a vitória que alcançaram os Portugueses de tão cruel contágio, foi glorioso troféu da sua Real magnificência. Chamariam as mesmas pedras desta corte (como no triunfo de Cristo as de Jerusalém 30) em seu merecido aplauso, quando ingratamente emudecessem as nossas vozes, tomando por sua conta o insensível, o agradecimento de tão grande e imortal benefício, que só pode compreender o racional e não sabe explicar a Língua. Como Vossa Majestade fez estas grandiosas esmolas pelo amor de Deus, e por sua real grandeza, justo me parece repartir com Deus e Vossa Majestade as primícias dos meus estudos ou dos estudos que não são meus, que só por serviço da Divina e humana Majestade, e para utilidade dos homens, transcrevi de muitos volumes, para juntar em seis livros, em que saem outra vez à luz, como Fénix renascida das suas próprias cinzas. No primeiro livro, que é a primeira parte desta obra, provo com a certeza infalível da Fé Divina, que com as máximas da Política humana, que o verdadeiro e mais eficaz remédio de todas as moléstias, é recorrer primeiro a Deus, implorando os seus auxílios. E nos últimos cinco livros, de que 29 30

Gálatas, VIII, 3 e Mateus, XXI, 26. Lucas, XIX, 40.

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consta a segunda parte, mostro conforme os preceitos da Arte Médica, que depois dos auxílios Divinos obram seguramente os remédios humanos. Com esta mesma coerência consagro a primeira parte a Deus, para que, sempre que o implorarmos, nos assista com os seus auxílios. E dedico a segunda ao número quinto do Maior Monarca dos homens 31, para que a sua Real grandeza lhe facilite nestes livros os remédios, porque como ensina Cristo supremo senhor e Máximo Monarca de todos os Dominantes, quando os súbditos satisfizerem o que deverem a César e a Deus, hão-de dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César 32. Não comparo, nem equiparo a César, a Real, e Augustíssima Pessoa de Vossa Majestade, porque vence Vossa Majestade a César, quase como a César infinitamente excede o mesmo Deus. De Júlio César, que sem controvérsia foi o maior Monarca do Mundo, tomaram, ou herdaram, o nome de Césares, todos os imperadores romanos, que por sucessão, eleição, ou tirania lhe sucederam no império. E compondo-se o nome César de cinco letras, com uma só e última letra dos cinco caracteres, com que se escreve o Augustíssimo nome João V vence também Vossa Majestade a Júlio César, como com uma só batalha desbaratou Josué aos cinco reis das Amorreus, ou como David, com uma só das cinco pedras, derrubou por terra ao gigante dos Filisteus 33. Porque é tão superior às cinco letras de Júlio, e de César, o Real número V, como o quinto Império do Mundo, do qual Vossa Majestade é o primeiro Monarca, é supremo ao Império quarto de que Júlio César foi o principal imperador. Na ordem misteriosa dos quatro impérios dos Assírios, Persas, Gregos e Romanos, foi o Romano o quarto império. Todos estes impérios revelou Deus aos profetas na figura de quatro metais, Ouro, Prata, Bronze e Ferro, como na primeira visão diz Daniel 34; ou quatro carroças, tiradas por outros tantos cavalos Castanhos, Murzelos, Pombos e Remendados, como viu Zacarias 35; ou quatro feras, Leão, Urso, Pardo e de outro Bruto, a quem o texto sagrado não dá outro nome, declarando somente que é forte, terrível e admirável, como na segunda visão descreve Daniel 36; ou, finalmente, de quatro rodas, pelas quais tiravam quatro animais enigmáticos, Homem, Leão, Boi e Águia, como se vê na carroça de Ezequiel 37. E a todos estes quatro impérios destruiu uma Pedra misteriosa, que na visão de Zacarias se chama Dominador de toda a Terra e na segunda profecia chama Daniel quase Filho do Homem, que é também aquela Águia Real, que na carroça de Ezequiel, voa sobre todos os quatro Animais 38, e significa (como as outras figuras), o Imperador do quinto império, porque aparece no quinto lugar, imediatamente depois do número quarto, em que esteve o Império Romano. 31 32 33 34 35 36 37 38

Apocalipse, XIX, 17. Mateus, XXII, 21. Josué, X, 16 e 26 e 1 Reis, XXVII, 40 e 49. Daniel, I. Zacarias, I. Daniel, VII. Ezequiel, 1. Idem.

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Nesta carroça de Ezequiel símbolo dos quatro impérios 39, representa a Águia conforme os melhores Expositores a S. João Evangelista, que voando sobre todos os quatro Animais, também figura o Império quinto, e o seu Imperador 40. É certo que este é o quinto Império de Cristo, que o mesmo senhor fundou no primeiro Rei de Portugal, para se perpetuar na sua décima sexta geração, que foi o Senhor Rei D. João IV, para se estabelecer ou eternizar na sua descendência, ou prole atenuada 41, que sem controvérsia foi o Augustíssimo Senhor Rei D. Pedro II a quem Vossa Majestade sucedeu no ceptro, como legítimo sucessor e filho. E como S. João sendo um e o último dos quatro Evangelistas, parece que não podia voar sobre todos os outros animais, que ocupavam os primeiros lugares, ficando ele no último. Por isso, João, quando voa sobre João o quarto animal enigmático da carroça de Ezequiel, era expressa figura de João V, porque em quinto lugar fica João, remontando-se no voo sobre João o IV. Porque sobre o quarto não voa, nem pode subir imediatamente outro número senão o quinto. Esta me parece razão altíssima, porque o quinto Império do Mundo, figurado em João, e prometido por Cristo a outro João, descendente do Senhor D. Afonso I e da prole atenuada da sua décima sexta geração, não compete, nem pode competir a outro Monarca, senão a um Rei de Portugal, chamado João V, porque só ele, sendo João, voa sobre João o IV e como Águia, sobre outra Águia, símbolo e insígnia do quarto Império dos Romanos. Assim voa, ou se remonta Vossa Majestade sobre César e sobre todos os Monarcas dos quatro Impérios dos Assírios, Persas, Gregos e Romanos, não só por razão do nome de João, senão também por respeito do Real número V, porque é mais augusto e pré-excelente, do que foi o número e nome dos mesmos Césares, por ser animado o número quinário e sem alma o símbolo quarto 42, como são também desanimados os metais e as rodas, que simbolizavam os quatro Impérios. Por isso, nas visões misteriosas de Daniel aparece o Império quarto comparado ao ferro, que é o mais vil e forte dos metais, ou uma terrível fera, sem nome, nem alma, que é maior vileza entre os brutos. Representando, pelo contrário, Ezequiel ao número V na Águia, que só tem cinco letras no nome e com grande espírito voa sobre o número quarto, como se remonta sobre todas as aves do céu, consagrada por esta causa (como Imperatriz de todas), ao Deus Júpiter Supremo Monarca do fabuloso Olimpo. E se na visão do profeta Daniel é o nome de Vossa Majestade, quase Filho do Homem, se como Dominador de toda a Terra não chega a ser divino, o seu heróico e elevado ânimo, o seu Real e sublime espírito, o canonizam por mais que humano. Para exaltarem a Júlio César sobre os homens e para também o colocarem entre os Deuses, escreveram os historiadores e poetas romanos que a sua alma se transformara em estrela, ou cometa brilhante, depois da morte do mesmo César 43, 39

Cornélio Alapide, Com. in Apoc., cap. 4,4. Idem, fl. 959. 41 Monarquia Lusitana, parte 3, cap. 5 e Crónica de Cister, V, 3 cap. 3. António Vieira, Palavra de Deus Empenhado, § VIII, fl. 58. 42 Petrus Bung, De Myster. Numer.: De numer. V, fl. 249. 43 Suetónio, lib. 1 n. 88, fl. 138. 40

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porque no fim da sua vida, apareceu no céu por tempo de sete dias este luminoso meteoro, e por memória deste imaginado prodígio, coroaram todas as estátuas de César com uma Estrela. Ainda quando fora verdadeiro este fingimento, ou crédula imaginação dos antigos romanos, fica Júlio César tão escurecido e inferior à vista de João V, como fica um cometa comparado com um Astro e um meteoro à vista de uma Estrela. Porque se os Egípcios pintavam um Astro para significar o número V, com o número quinário mostra o seu nome Augusto que Vossa Majestade é não só um grande e brilhantíssimo Astro do céu 44, mas que em si compreende sempre todas as luzes nas conversões dos setes planetas. Porque Vénus e Mercúrio fazem a mesma conversão com o Sol 45. Porém, que muito é, senhor, que o número quinto representa a Vossa Majestade como estrela da primeira grandeza e como todos os sete Planetas juntos, se este mesmo número com cinco círculos máximos compreende toda a Esfera Celeste 46. Esta é só a medida do Real número do Augustíssimo nome de Vossa Majestade, e o dilatado espaço do seu quinto Império, porque todo o Mundo obedece a um Monarca, que só com o seu nome ocupa e compreende toda a Esfera do Universo. E se por memória daquela meteorológica Estrela, coroaram os romanos com um só Astro todas as Estátuas de César, por razão do número V coroam a Vossa Majestade todas as luzes do Firmamento, aonde também há uma constelação em forma e com o nome de Cruz, para remate de seu Imperial Diadema. Finalmente, senhor, com cinco palavras entendidas em seu verdadeiro sentido, queria antes falar na Igreja o Apostolo S. Paulo, do que com dez mil vocábulos proferidos com a língua 47. E com cinco letras quero eu também elogiar sem lisonja o misterioso número quinto com o Majestoso, Augusto, Famoso, Real e Admirável Templo de Mafra, quinta essência de todas as maravilhas do mundo, que só admiram os cinco sentidos e não explicaram dez mil línguas, o qual Vossa Majestade edificou com a maior magnificência, para consagrar com grande piedade à Religião Seráfica. Porque o seu grande Patriarca S. Francisco, e os Augustíssimos senhores Reis de Portugal são tão amados e favorecidos de Cristo Nosso Senhor, que só eles mereceram e conseguiram a honra de receber as cinco chagas que o mesmo Senhor estima tanto, que ainda hoje as conserva em seu santíssimo corpo, como imortal troféu da sua morte. Com altíssima providência, e grande mistério, edificou Vossa Majestade em Mafra o Real Palácio, unido com o Augustíssimo Templo, como edificou Salomão o Templo de Jerusalém junto com o seu Palácio 48. Porque unindo-se também os religiosos e os exércitos, os militares e os pregadores e, armados todos com as cinco chagas de Jesus, conquistarão o mundo todo como César e a Terra Santa como Josué e a defenderão como David, com braços tão invencíveis como o do famoso Judas Macabeu. Entre os Imperadores, ou Césares Romanos, que se chamaram 43 45 46 47 48

Suetónio, lib. 1 n. 88, fl. 138. Idem, ibidem. Idem. Epístola aos Corínteos, I, 14 Paralipómenos, I, 25.

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Constantinos, deveu o primeiro, chamado por antonomásia o Magno, toda a sua grandeza ao milagroso aparecimento da cruz, que do céu lhe segurou com esta insígnia todas as suas vitórias. E muito mais certificam os troféus e triunfos de João V, ou Magno, as cinco chagas de Jesus, que em forma também de cruz são as armas, ou cinco quinas de Portugal, principalmente quando na mesma cruz onde Cristo prometeu a Vossa Majestade o quinto Império estão unidos os dois braços de Cristo e de Francisco, para defenderem os portugueses com as suas cinco chagas, que por triunfarem já da morte, não podem dar a Portugal senão vitórias e troféus. Tão glorioso e misterioso é o número quinto, que até parece conduziu em os nomes daqueles grandes heróis Jesus, Josué, David, Judas, César, aos quais junto um Imperador chamado por antonomásia o Magno, para vencerem tantas vitórias e alcançarem por elas imortais triunfos. E agora noto eu, que só no quinto preceito do Decálogo proíbe Deus o Homicídio, porque parece providência sua, que o número V seja o seguríssimo asilo da imortalidade. O quinto não matará: Imortal faria a Vossa Majestade só o número V do seu Augustíssimo nome, se as suas heróicas acções e as suas virtudes católicas e cristãs o não tiveram já imortalizado. Guarde Deus a Real e Augustíssima Pessoa de Vossa Majestade por eternos anos, para que, no felicíssimo Império de Vossa Majestade, domine Portugal o quinto Império do Mundo, que o mesmo Senhor em Vossa Majestade tem estabelecido para aumento da Igreja Católica, exaltação da Fé, glória de Portugal e ruína de seus inimigos. Lisboa Ocidental, 7 de Setembro de 1729.

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PADRE TIMÓTEO DE OLIVEIRA Sermão da Dedicação da Santa Igreja Patriarchal (Lisboa, 1748), p. 6 e 27 [BN: R 23279 P] [...] Se ressuscitara Salomão, veria com assombro imitadas as riquezas do seu famoso templo; admiraria na Corte de Portugal uma Jerusalém nova, ou uma nova esposa, soberanamente enriquecida para receber dignamente o Divino Esposo [...]. Os Padres Alcazar e Turriano, explicando a visão, dizem com outros, que a Jerusalém nova é a Igreja Católica, a qual sucedeu à Igreja Hebreia [...] Seja embora assim. Mas como a torrente dos Padres e Intérpretes aplicam esta visão do Apocalipse aos templos dedicados a Deus, vendo eu no nosso as mesmas circunstâncias que naquela viu o Profeta, com maior razão posso dizer, e digo, que falou particularmente do nosso a profecia [...].

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ANÓNIMO Eccos funebres das Vozes Saudosas, que chegárão de Portugal á India pela morte do muito Alto, Poderoso, e Fidelissimo Rey, e Senhor D. João V. Communicados ao mesmo Reyno de Portugal pelos religiosos da Companhia de Jesus, da Provincia de Goa. Lisboa, Francisco da Silva, 1753, p. 37-41 [BN: L 1308 A] [...] fale por todos aquela maravilha erigida em Mafra consagrada ao insigne Português Santo António, porque basta esta para El-Rei perpetuar o seu nome na eternidade de seus mármores [...]. Cedam finalmente todas as sete maravilhas do mundo, porque os fins das suas erecções não foram decorosos a seus fundadores e o fim daquele magnífico Convento foi tão glorioso a quem o fundou, quanto nos manifestam hoje os afectuosos Cultos e Religiosos obséquios que nele fazem a Deus os esclarecidos Filhos do grande Patriarca S. Francisco [...] que outra coisa haviam de dar Salomão e D. João V sendo Reis e que outra coisa havia de receber quem põe e tira Reis, sendo Deus, senão Templos igualmente singulares pela matéria, que pelo artifício, para que neles se visse louvada e adorada a Suprema Majestade. Foram sem dúvida uma [Templo de Salomão] e outra obra [Mafra], um e outro Templo, um e outro Santuário empresas magníficas de um e outro Monarca; mas não chegaram a ser Padrões em que ficassem completas as memórias da sua Sabedoria, que é outra qualidade de que se reveste o nosso Sol Lusitano, quando entrou no Signo de Aries. Porque do Signo de Piscis, por onde passou em silêncio, tomou somente o segredo, que é também efeito de Sábios [...] Mas o segredo para quê? Para dar alma aos negócios e para se conter nos ditos, entendendo que os de um Rei devem ser muito comedidos e muito considerados, e como nele foram sempre muito premeditadas as suas obras, foram também, conforme as de Isaías, muito advertidas e circunspectas as suas palavras [...].

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