A eternidade na esquina: David Perlov e a fotografia. ZUM - Revista de fotografia. Instituto Moreira Salles, #6, 2014.

May 29, 2017 | Autor: Ilana Feldman | Categoria: Fotografia, David Perlov
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A eternidade na esquina: David Perlov e a fotografia Por Ilana Feldman *Texto publicado na ZUM – Revista de Fotografia, Instituto Moreira Salles, número 6, abril de 2014.

Em setembro de 2001, após um opressivo verão em Tel Aviv, David Perlov vai a Paris em busca de uma mudança de atmosfera e de estado de espírito. Como das vezes anteriores, se hospeda em um pequeno hotel em Saint German de Près, na esquina da Rue Bonaparte com a Rue Jacob, uma área repleta de memórias do tempo em que, em 1952, aos 22 anos, era um jovem desenhista recém-chegado do Brasil. Como parte de sua rotina na capital francesa, Perlov se instala em um café dos arredores, frequentemente na mesma mesa e no mesmo ângulo, de onde saca sua ainda analógica Olympus-Pen. Em Paris, assim como em Tel Aviv, frequentando diariamente o café ao lado do edifício onde mora, um dos primeiros arranha-céus na região central da cidade israelense, Perlov procede pelo mesmo método e interesse: flagrar o que há de ritualístico na rotina e o que há de rotineiro nos mais fortuitos rituais cotidianos – como olhar o relógio, caminhar sob o guarda-chuva, checar uma mensagem no celular, ler o jornal com preocupação ou simplesmente fechar os olhos diante de uma xícara, já quase vazia, de café. Tendo vivido em Israel de 1958 a 2003, e por lá se consagrado como “o pioneiro do cinema moderno israelense”, David Perlov sempre pensou seu cinema a partir da relação com a fotografia, sobretudo no que diz respeito ao processo de composição das imagens e, em alguma medida, à recusa do encadeamento meramente causal entre elas. Em Diário 1973-1983 (1985), sua obra mais importante e vigorosa, filmado, escrito e montado durante mais de 10 anos (cuja narrativa desloca-se entre Tel Aviv, Paris, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte), Perlov trabalha a partir de uma perspectiva seletiva: filma de maneira econômica, com muita precisão formal, e elege sempre um mesmo ângulo frontal, o da altura de seu próprio olhar. Posição tomada, o cineasta busca um modo de narrar baseado na organização de fragmentos do cotidiano, captados e construídos por sua câmera voluntariamente “amadora”: “Maio de 1973. Eu compro uma câmera 16 mm. Eu começo a filmar para mim mesmo e por mim mesmo. O cinema profissional já não me interessa mais”, diz ele no primeiro capítulo de seu diário, recusando a partir de então um cinema de tramas, intrigas e dramas, um cinema de ilusões, trapaças e mistificações – embora mais adiante admita que, em diversos momentos, recaia nos dramas que a própria realidade oferece. E a realidade pessoal de Perlov foi, de certo, dramática. Judeu laico, filho de um mágico itinerante e de uma mãe iletrada, David Perlov nasce no Rio de Janeiro em 1930, mas passa sua primeira década de vida em Belo Horizonte. Aos 10 anos, para sobreviver, muda-se para a Vila Mariana, em São Paulo, onde passa a viver com o avô, abandonando uma infância sofrida e nada protegida. Entre os estudos em um colégio estadual, as viagens de bonde e as idas à Estação da Luz, onde passa horas desenhando e descobre o recorte “fotográfico” imposto pela moldura de cada janela de vagão de trem (“Foi aqui, olhando para esses frames, que meu amor pelo cinema nasceu?”, ele se pergunta no sexto e último capítulo do diário), Perlov dedica-se às artes e ao movimento juvenil socialista-sionista Dror. No movimento, faz grandes amigos, como o jornalista Alberto Dines, e conhece Mira, que será sua companheira por toda a vida e também produtora de Diário 1973-1983. Tendo sido no Brasil aluno do pintor Lasar Segall, de quem, aliás, Mira Perlov fora modelo, Perlov emigra para Paris em 1952, com apoio financeiro da Agência Judaica, onde realiza informalmente seus estudos na Escola de Belas Artes francesa, período durante o qual mora em Vitry, um arrabalde de Paris. Entretanto, após a impactante experiência de ter assistido por acaso a Zero em comportamento (Zéro de Conduite, 1933), de Jean Vigo, e nada contente com a guinada

abstrata da pintura, Perlov abandona os pincéis (embora continue dedicado a uma intensa produção de desenhos) e se aproxima da Cinemateca Francesa. Mais tarde, torna-se assistente de Henri Langlois, então diretor da Cinemateca, e colabora com Joris Ivens, um dos mestres das vanguardas da década de 20. No terceiro capítulo de seu diário, Perlov comenta ao retratar o cineasta holandês em seu pequeno apartamento em Paris: “Trabalhando com Ivens eu aprendi como a lente da câmera pode descrever o amor, o amor pelos homens. No entanto, todos os filmes de Ivens são filmes de combate.” Entre o amor e o combate, a fotografia e o cinema se apresentam como uma nova paixão, pela possibilidade, por meio da montagem de fragmentos autônomos do cotidiano, de vislumbrar em cada pequeno e contingente momento individual um lampejo do acontecimento total. Reposição da distância Se em Israel, a partir de 1963, David Perlov realiza dezenas de filmes, os mais expressivos e eloquentes são aqueles em que vida e obra, passado e presente, ficção e documentário, particular e coletivo, estão fundidos, como que amalgamados. Além de Diário 1973-1983, em Perlov a composição de um estilo a partir da experiência biográfica ainda contempla os Diários revisitados 1990-1999 (2001) e o ensaio fílmico Minhas imagens 1952-2002 (2003), seu filme-testamento e quase integralmente constituído de fotografias. Somam-se a essas obras dois outros filmes que, embora não tratem diretamente da própria vida do cineasta, inauguram em Israel a questão do testemunho no cinema e a particularização da narração por meio da voz off do documentarista, em detrimento da enunciação “neutra” própria aos discursos oficiais e genéricos da grande política. Em um deles, Memórias do julgamento de Adolf Eichmann (1979), Perlov entrevista, na própria sala de estar de sua casa, algumas das testemunhas, ou filhos de testemunhas, do emblemático julgamento ocorrido em 1961, fundindo nesse simples gesto, literalmente, o privado ao político. Embora tenha começado a fotografar em 1952, quando de sua chegada a Paris, ocasião em que tira dois rolos de fotos nas cercanias entre as Gare du Nord e Gare de L’Est, próximas ao hotel barato em que se hospedara, é só em 1961, já em Tel Aviv e depois do nascimento das filhas gêmeas Yael e Noemi, presenças fundamentais em sua obra autobiográfica, que Perlov vai se dedicar à fotografia como treino indispensável para o seu olhar de cineasta e documentarista. Durante as décadas seguintes, suas imagens se concentrarão basicamente nas imediações de sua casa, na esquina da Avenida Shaul Ha-Melech com a Rua Ibn-Gvirol. “Quando tiro fotografias das coisas cotidianas a minha frente, faço isso com certo sentido de necessidade. Sempre do mesmo ângulo, que corresponde ao modo como vivo a minha vida, não como um repórter correndo atrás do evento”, afirma ele na proposta escrita para o filme Minhas imagens 19522002. Respeitando esse princípio, Perlov nunca leva sua câmera para um lugar que não lhe seja familiar, pois interessa o que o ordinário, o fugidio e o rotineiro podem revelar. Interessa o que do cotidiano pode emergir como um momento epifânico, por meio da observação atenta e insistente dos pormenores que compõem uma vida. Ao mesmo tempo, tanto na fotografia como nos diários cinematográficos, aproximarse do cotidiano e do familiar não significa produzir uma fusão indistinta com o objeto enquadrado, mas, justamente ao contrário, tentar repor uma distância justa em relação ao mundo e aos seres filmados – seja, nas imagens em movimento, por meio da montagem e da narração, seja, nas imagens fixas, por meio da presença da própria

câmera de Perlov (como um anteparo ou uma máscara), que, nas fotografias mais recentes, vemos refletida em espelhos e reflexos diversos. Como também se nota em alguns de seus autorretratos, o vicário uso do flash diante de espelhos constitui a condição de possibilidade do reflexo de Perlov na imagem e, simultaneamente, a impossibilidade de vermos a integralidade de seu corpo refletida, o que produz um efeito de “distância mediada” frente a um modo de produção da imagem aparentemente tão imediato. Entre 1961 e 1999, além de utilizar uma câmera Polaroid SX-70 para retratar em close ups sua família e seus amigos, Perlov fotografava apenas em preto e branco. Nessa época, seu principal interesse em relação à fotografia era o próprio processo e o desenvolvimento de um método, sem necessariamente vislumbrar reconhecimento e legitimidade artística. Para ele, a fotografia se assemelharia ao exercício de desenhar rapidamente em um caderno, criando um conjunto de impressões acidentais sobre uma realidade permanentemente alterada em função das horas e dos dias. Entre 2000 a 2003, porém, Perlov adere à cor, momento em que sua produção fotográfica tem um intenso despertar, rica em abrangência e qualidade. Esse material acabou servindo-lhe de base para seu último filme, Minhas imagens 1952-2002, e para a exposição “David Perlov: Color Photographs 2000-2003”, que teve lugar no The Eli Lemberger Museum of Photography, em Israel, com a curadoria de Shuka Glotman. Como explica Glotman no texto que abre o catálogo da exposição, do negativo produzido pela Olympus-Pen de Perlov, câmera que faz 72 fotografias com um rolo de filme, pares de imagens separadas por uma borda negra podiam ser ampliados e impressos em uma única folha de papel fotográfico. Isso teria permitido que, com a fotografia, Perlov praticasse uma espécie de edição cinematográfica, com a borda negra funcionando como um “corte” entre duas sequências de cinema. Minhas imagens Reaprender a enxergar – por meio da política como atividade do próprio olhar – foi o desafio de David Perlov ao longo de sua carreira, encerrada em 2003 com o ensaio fílmico Minhas imagens 1952-2002. Dividindo o filme em três momentos, Perlov propõe uma reflexão sobre a memória pessoal e coletiva a partir das fotografias, suas e de outros fotógrafos, que marcaram sua trajetória. Nessa história particular, três fotógrafos foram decisivos em sua vida: o escritor Émile Zola, que, tendo precocemente descoberto a nova técnica, fotografou sua mulher e suas filhas em um ambiente cotidiano e familiar; Henri Lartigue, fotógrafo do movimento fugaz, do corpo e da joie de vivre, como diz Perlov, mesmo quando há tempestade e o mar está de ressaca; e David Seymour (Chim), o fotógrafo do horror das guerras e da captura de olhares de crianças aterrorizadas. A família, a joie de vivre e a guerra constituem assim, impressas na história da fotografia, as bases fundamentais da obra e da vida de Perlov. Já na terceira e última parte do filme, o cineasta debruça-se sobre as fotos que ele mesmo tirara nos últimos anos de sua vida e sempre naquele mesmo ângulo: uma mesa num café de Tel Aviv, na esquina de sua casa. Perlov não busca o melhor ângulo, mas um ângulo possível e propício a que algo de rotineiro e transitório se passe diante de sua câmera. Um ângulo que restitua a nosso delirante mundo a sua “normalidade”. Entretanto, aquilo a que chamamos de normalidade, no caso das imagens produzidas por Perlov, constitui a própria argamassa dos rituais cotidianos: sentar em um café, abrir um jornal, hesitar, conversar com as mãos, olhar à deriva. Em Minhas imagens

1952-2002, ao buscar a restituição ritualística da vida, Perlov empreende uma narração incessante, repetitiva, melodiosa, entre a descrição do que vê e a especulação do que pode ser. Perlov empreende uma narração que, pouco a pouco, vai se tornando cada vez mais vertiginosa, como uma liturgia que celebra o aspecto sempre contingente do mundo. Minhas imagens 1952-2002, cujo título original é My Stills 19522002, constitui uma espécie particular de still life: não a natureza morta eternizada, mas a natureza viva que continua nesse perpétuo ainda. Finalizado no ano de sua morte, esse filme-testamento, além de uma reflexão sobre a prática fotográfica, é uma declaração de amor ao cotidiano, como na famosa frase do pintor Pierre Auguste Renoir, da qual Perlov tanto gostava: “Encontrar a eternidade bem ali na esquina”.

Nota biográfica: Ilana Feldman (Rio de Janeiro, 1978) é doutora em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da USP, com passagem pelo Departamento de Filosofia, Artes e Estética da Universidade Paris VIII. Em 2011, foi curadora da mostra “David Perlov: epifanias do cotidiano”, realizada no Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro e na Cinemateca Brasileira em São Paulo. Atualmente, realiza pós-doutorado em Teoria Literária na UNICAMP, com a pesquisa “Os diários cinematográficos de David Perlov: do privado ao político”.

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