A ÉTICA AMBIENTAL EM JOHN RAY

May 31, 2017 | Autor: Ana Schaffer | Categoria: Educational Research, Translation and Gender, Etichs
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A ÉTICA AMBIENTAL EM JOHN RAY

Ana Maria de Moura Schäffer

Antes de falar sobre a ética ambiental a partir da perspectiva de John Ray, consideramos aspectos relevantes sobre a vida e obra deste importante personagem britânico, responsável por lançar os fundamentos da botânica e da zoologia na Inglaterra, além de ser considerado um dos fundadores da ciência moderna. A história de John Ray não pode ser contada longe de uma de suas principais paixões: o estudo meticuloso das plantas, o qual ocupou toda a sua vida e lhe rendeu títulos e honras, mas também dissabores e exclusões. Seu ponto de partida em suas pesquisas era uma profunda e cuidadosa observação da natureza criada, cujo propósito era glorificar a Deus e usufruir o dom da vida concedido pelo Criador e ser útil ao próximo. Com isso em mente, busco apontar os postulados defendidos por Ray para estabelecer uma ética direcionada ao meio ambiente. Espero que sua história, bem como seu percurso de pesquisa e descobertas como biólogo, botânico e zoólogo nos capacitem a tomar decisões eticamente fundamentadas sobre nosso papel como mordomos e cuidadores do ambiente em que vivemos.

Quem foi John Ray? John Ray (até 1670, escrevia seu nome como John Wray), nasceu em 29 de novembro de 1627, na pequena cidade de Black Notley, no Condado de Essex, parte leste da Inglaterra e morreu em 17 de janeiro de 1705, na cidade de Preto Notley. Filho de um ferreiro e de uma curandeira, teria ele herdado da mãe o gosto pela natureza, sobretudo pelas plantas, pois ela gostava de pesquisar sobre as propriedades medicinais das ervas para ajudar os vizinhos doentes com suas misturas e chás. Segundo Lamont (1998), Ray ajudava sua mãe a colher ervas nos campos desde bem pequeno, e essa rotina despertou nele o interesse pelo estudo das espécies de plantas. Embora de família humilde e sem recurso algum, Ray frequentou as melhores instituições educacionais da época, pois tinha inteligência privilegiada, o que lhe rendeu uma bolsa de estudos na Universidade de Cambridge, onde ingressou

aos 16 anos. Lá Ray especializou-se em várias áreas como línguas (entre elas, o grego), ciências naturais, matemática, geologia, entre outas. É interessante considerar que no século XVII, na Europa, o estudo acadêmico baseava-se principalmente em autores clássicos, pois a “Ciência” também chamada filosofia abrangia muitos campos de estudo. A teologia era a rainha das Ciências, e o que conhecemos hoje como “biologia” era caracterizado como filosofia natural e, mais tarde, história natural. Então, áreas como química, geologia, zoologia e biologia não faziam parte do currículo universitário, e a maioria dos primeiros cientistas eram amadores que trabalhavam na área no tempo livre. Ray, embora trabalhasse como botânico e zoólogo, era também especialista em línguas, geologia, ministro da Igreja Anglicana, entre outras áreas, pois seu conhecimento prático de plantas era considerado assunto de fazendeiros e dos entendidos em ervas e plantas medicinais. Após concluir seus estudos foi convidado a continuar como professor. Por diversas vezes, Ray assumiu cargos nobres, em Cambridge; no entanto, foi forçado a deixar a universidade em 1662, por não querer comprometer suas crenças pessoais que eram contrárias às da Igreja Anglicana, da qual era membro e ministro. Desapontado com as divergências ideológicas e políticas da Igreja, entre 1660 e 1671, Ray inicia um ciclo de viagens pela Inglaterra e outras partes da Europa com Francis Willugby, seu patrocinador, recolhendo rochas e espécimes animais e vegetais, com o principal objetivo de os analisar e classificar. Ele preparou o caminho para Linnaeus (1707-1778), mais conhecido como Lineu, tanto em termos de método como de dados, inspirando também uma geração de naturalistas. Lineu, em 1735 publicou Systema Naturae, no qual tratou dos reinos animal, vegetal e mineral agrupando os seres vivos (neste caso as plantas) em classes, ordens, gêneros e espécies). Ao contrário de seu sucessor Lineu, Ray sempre se empenhou em encontrar um “sistema natural” de classificação que refletisse a ordem divina da criação. Acreditava que a verdadeira classificação deveria se dar nos aspectos morfológico, fisiológico, funcional e comportamental do ser vivo, e não apenas em um conjunto restrito de características. Suas viagens pela Inglaterra lhe permitiram estabelecer o mais elaborado e inteligente sistema de classificação da época. As suas observações começaram com as plantas locais de onde ele vivia, em Cambridge, resultando em várias obras. Pelo

seu elaborado sistema classificatório, Ray é retratado como “o primeiro taxonomista legítimo do reino animal” (CUVIER, 1843).

Principais obras e influência Em primeiro lugar, atribui-se a John Ray o primeiro livro-texto de Botânica Moderna (ALLMAN, 1856). Entre suas obras mais importantes estão The Wisdom of God Manifested in the Works of the Creation (1691), que foi muito influente e traduzida para várias línguas, reeditada por mais de 50 anos após sua publicação e Three Physico-Theological Discourses (1692). Ambos os livros resultam dos sermões pregados em Cambridge e neles Ray deixa claro suas concepções sobre a criação, organização e destino final da Terra e dos seres viventes. Embora os pontos de vista religiosos possam parecer fora de lugar em um texto científico da atualidade, não devemos nos esquecer que a obra de Ray representou e ainda representa um grande avanço para a ciência. Muitos teólogos medievais ensinavam que o mundo natural desviava as pessoas da salvação e, por isso, deveria ser evitado; Ray, por sua vez, afirmava o contrário, ao advertir contra a aceitação cega das autoridades e enfatizar que a Natureza era tema digno de estudo e pesquisa, pois agradava a Deus. As outras publicações de Ray apresentam propostas de catalogação de diferentes grupos de seres vivos: Catalogue of Cambridge Plants (1660); Historia Plantarum Generalis (3 volumes – 1686/1688/1704); e, editado postumamente, Synopsis Methodica Avium et Piscium (1713). Ray é considerado um dos primeiros fisiologistas experimentais, e sua obra Historia Plantarum é vista como a primeira síntese botânica. De acordo com o historiador botânico Alan Morton (1981), a influência exercida por Ray na teoria e na prática da botânica, na segunda metade do século XVII, ultrapassa de modo incomparável a de qualquer outro cientista, estudioso ou pesquisador. Ele também foi responsável por alguns trabalhos em embriologia e fisiologia das plantas, e, entre outras coisas, a partir de suas pesquisas, apontou que a madeira tirada de um tronco de árvore é capaz de conduzir água. Os seus estudos e trabalhos receberam tantos elogios e tornaram-se tão populares na época, que Ray foi indicado em 1667 para ser recebido como membro da prestigiada e recém fundada Sociedade Real de Londres, uma instituição até hoje destinada à promoção do conhecimento

científico. No entanto, apesar da honra, sua saúde debilitada o impediu de continuar suas viagens, tendo passado os últimos anos da sua vida escrevendo e se correspondendo com cientistas importantes da época. Além de um dos mais importantes naturalistas de sua época, foi filósofo e teólogo influente; o homem com quem a aventura da ciência moderna teria tido início (BROWN, 2013). John Ray é reconhecido até hoje na Grã-Bretanha, como o pai da história natural e um dos primeiros sacerdotes naturalistas ingleses. Enquanto viveu, fez do estudo da ciência uma rotina incessante, pois ansiava pelo conhecimento sobre o funcionamento da natureza e do universo. As obras sobre botânica, zoologia e teologia natural e sua classificação das plantas em seu livro Historia plantarum generallis (História geral das plantas) foram um passo importante na direção da taxonomia moderna (ciência que classifica os seres vivos, estabelece critérios para classificar todos os animais e plantas sobre a Terra em grupos, de acordo com as características fisiológicas, evolutivas e anatômicas e ecológicas de cada animal ou grupo de animais). Ele rejeitou o sistema de divisão dicotômica pelo qual as espécies eram classificadas, de acordo com um sistema ou tipo de sistema pré-concebido; em vez disso, classificou as plantas conforme as semelhanças e diferenças surgidas a partir da observação. Com isso, ele desenvolveu o empirismo científico contra o racionalismo dedutivo dos escolásticos. Outro aspecto digno de nota diz respeito à primeira definição biológica do termo “espécie”, formulada por Ray, em sua obra Historia plantarum (London, 1686-1704, v. 1), como “o conjunto de indivíduos idênticos entre si que dão origem, através da reprodução, a novos indivíduos semelhantes a eles próprios”. O conceito de espécie se fundamenta, essencialmente, num critério de reprodução. Segundo Davis et al (2014, p. 314), “esse conceito apresentado primeiro por John Ray, em 1686, ainda sustenta a taxonomia, na qual a genética tem importante papel hoje”. Ray também foi o primeiro a dividir as plantas com flores (angiospermas) em mono e dicotiledôneas, cuja divisão foi adotada por todos os botânicos posteriores.

A importância de Ray para uma reflexão sobre ética ambiental A trajetória acadêmica e o projeto de vida pessoal de John Ray contribuíram para a valorização do meio ambiente, visto que por sua constante ênfase no cuidado

com o mundo natural criado, despertou a consciência e a responsabilidade dos seres humanos quanto ao nosso papel como mordomos do ambiente natural sob uma perspectiva cristã. Além disso, ele não só foi pioneiro no século XVII da classificação de plantas e animais, mas também inovou com sua atitude cristã, ao celebrar a sabedoria divina manifesta na criação que ele classificava. Como consequência, seus ensaios e iniciativas despertaram reflexões teológicas sobre as questões ambientais e o cuidado com a Terra. Ray sempre esteve preocupado em traduzir a sua fé em ações práticas que protegessem e sustentassem a criação de Deus. Por meio de suas pesquisas e descobertas científicas importantes no reino da biologia, buscou unir conhecimento científico, educacional e cristão para lançar os fundamentos éticos em relação à natureza, admoestando os seres humanos a promoverem uma gestão ambiental responsável em conformidade com os princípios cristãos e à utilização racional da ciência e da tecnologia. Por meio de sua classificação de plantas e animais, ele proclamou a sabedoria divina manifesta na criação. A ética puritana exerceu forte influência na educação científica, e Ray, na condução de seus trabalhos, sempre esteve impregnado pelos valores dessa ética, assim como seu melhor amigo Francis Willughby. Teruya (2004), ao fazer referência sobre como a ética puritana influenciou o progresso científico no século XVII, defende que a promoção do bem-estar da humanidade como um desejo divino estava por trás das conquistas científicas da época. A glorificação a Deus e o alívio das tarefas humanas, por meio do estudo da natureza eram influenciados pelos valores protestantes que faziam parte do momento histórico e eram vistos como objeto da ciência. É nesse sentido que Ray desloca a questão ética para além da relação do homem com o mundo natural; para ele, ética envolve também a preocupação com os animais, plantas, rochas, enfim, a natureza como um todo ou o próprio meio ambiente. O lema dominante como bem-estar social do ethos puritano e dos cientistas da época fundamentava a ciência e sua invenção tecnológica como um processo necessário para melhorar a vida social e material dos homens. Para a comunidade científica protestante, os dois valores apreciados eram o utilitarismo e o empirismo (TERUYA, 2004, p. 118)

Clarence Glacken (1976, p. 379) justifica a descrição de John Ray como o Pai da História Natural, após fazer uma análise de uma de suas principais obras: “The Wisdom of God Manifested in the Works of the Creation” [A Sabedoria de Deus

Manifesta nas Obras da Criação] (1691). Segundo Clacken, é provável que esse seja o melhor tratado de teologia natural já escrito. Diz Ray: É geralmente aceito que todo o mundo visível foi criado para o Homem; que o Homem é o fim de toda a Criação como se não houvesse outro propósito de qualquer criatura que o de servir à humanidade [...] os homens mais esclarecidos, todavia, entendem de forma diferente [...] os animais e plantas existem pelos seus próprios fins e méritos (RAY, 1691, p. 175).

Ray acreditava que a criação se mantinha, em grande parte, da mesma forma que no princípio e defendia os três princípios básicos referentes ao estudo do meio ambiente bíblico: 1. A Terra pertence a Deus; 2. Deus confiou a nós o cuidado da Terra, em seu nome; 3. Ele cobrará de nós responsabilidade pelo cumprimento daquilo que nos confiou. Esses princípios foram expandidos pelo Sínodo Geral da igreja da Inglaterra, enaltecendo o valor atribuído por Ray às obras criadas por Deus, ao declarar que todos somos dependentes do mesmo mundo e compartilhamos seus recursos finitos e nem sempre renováveis (BERRY, 2001, p. 34). Os cristãos acreditam que este mundo pertence a Deus pela criação, redenção e sustento; que Deus o confiou à humanidade, feita à sua imagem, tornando-a responsável pelo planeta criado. Estamos na posição de guardiães, mordomos, locatários, administradores, curadores e tutores, quer reconheçamos quer não tal responsabilidade. Ser mordomo da Terra implica uma gestão cuidadosa, exploração não egoísta; cuidado pelo lugar em que se habita no presente e no futuro, além do reconhecimento de que o mundo sob nossa responsabilidade tem valor em si por ser criação de Deus, independente se atribuímos valor a ele ou não.

À guisa de conclusão Berry (2001), ao traçar um relato sobre “John Ray, pai dos historiadores naturais”, enfatiza que a influência de Ray não se limitou ao seu período de vida, mas alcançou os séculos XVIII e XIX que foram palco das tensões que se desenvolveram entre a teologia natural e a história natural devido ao impacto do darwinismo e ao avanço do cientificismo. Depois de mais de três séculos de sua morte, Ray continua a ser referência enquanto modelo e estímulo para uma abordagem cristã do mundo

natural. O que apreendemos a partir de Ray é que vale ressaltar é que a preservação do meio ambiente é uma ordem divina e uma oportunidade de evangelizar, além de uma necessidade de sobrevivência. A importância de John Ray vai além da constituição de uma ética ambiental fundamentada nos pressupostos divinos da criação, embora pouco ou quase nada se fale sobre o autor na atualidade. Pela pesquisa feita, foi possível entender que o mundo das ciências naturais muito deve a Ray, suas descobertas e desenvolvimentos nos vários campos mencionados. No entanto, parece haver um silenciamento no mundo científico sobre o valor de Ray para a própria concepção de ciência. Seria pelo fato de o autor defender sua religiosidade, contrariando a alegação de que fé e ciência não combinam? Seriam motivos suficientes para que pesquisadores como Ray que apresentou as condições teóricas para que princípios científicos viessem à tona, ficassem relegados a segundo ou terceiro planos? Por vezes, estes são preteridos por outros que apresentaram ideias próximas, como parece ser o caso de Lineu, sucessor de Ray que, como denuncia Raven (1942, p. 87), sem o trabalho preliminar de Ray, nunca se teria ouvido falar de Lineu; no entanto, a fama de Lineu e sua atitude crítica e invejosa quanto a Ray ofuscou o valor da obra do mais famoso botânico. Sem considerar que graças ao sistema completo de classificação de Ray, Lineu pode classificar e documentar os organismos, visto que todo o processo taxonômico já havia sido desenvolvido por Ray. É o que Lavina (2012) denomina “efeito da visão em retrospectiva; surge quando olhamos para o passado, procurando apenas elementos que se ajustem aos paradigmas do mundo atual, por vezes selecionando apenas pequenos segmentos ou mesmo frases soltas”. Para o autor, John Ray é um exemplo lamentável desse esquecimento.

Referências ALLMAN, George James. A monograph of the fresh - water polyzoa, including all the known species, both British and foreign. London: The Ray Society, 1856. BERRY, R. J. John Ray, Father of Natural Historians. Science & Christian Belief, Vol 13, n. 1, 2001. BROWN, Douglas Arthur. Seeds. Canada: Boularderie Island Press, 2013. CUVIER, Georges (Baron). Biographie Universelle. Paris: J.-P. Migne éditeur, 1843.

DAVIS, A.H.; et al. O livro da Ciência. Tradução Alice Klesck. São Paulo: Globo Livros, 2014. GLACKEN, C.J. Traces on the Rhodian Shore. Berkeley, CA: University of California Press, 1976. LAMONT, Ann. John Ray–founder of biology and devout Christian. Creation 21, n. 1, 1998. LAVINA, Ernesto Luiz Correa. O Dilúvio de Noé e os primórdios da Geologia. Rev. bras. geociênc., São Paulo, v. 42, n. 1, mar. 2012. Disponível em . Acesso em 21 de abril 2015. MORTON, Alan G.. History of botanical Science. London: Academic Press, 1981. RAY, Jonh. History of Plants. 1686 TERUYA, Teresa Kazuko. A ética puritana, a educação, a ciência e a tecnologia na Inglaterra do século XVII. Acta Scientiarum. Human and Social Sciences, v. 26, no. 1, 2004.

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