A etica ambiental em Tomás de Aquino

May 25, 2017 | Autor: Patrick Ferreira | Categoria: Tomás de Aquino, Ética Ambiental
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A ÉTICA AMBIENTAL EM TOMÁS DE AQUINO Patrick V. Ferreira

INTRODUÇÃO Tomás de Aquino (c.1225-1274), descendente da nobre família dos condes de Aquino, nasceu no castelo de Roccasecca, no então reino de Nápoles (atualmente parte da Itália). Calcula-se seu nascimento a partir da data de sua morte. Torrel (1993; 2005, p. 1) declara que ele teria falecido na manhã de 7 de março de 1274, antes de concluir 49 anos de idade, situando assim o seu nascimento em 1225 no reino da Sicília. Sua família era proprietária de um pequeno feudo e ligada politicamente ao imperador Frederico II. Tomás foi levado, ainda criança, para o mosteiro de Monte Cassino, com o objetivo de ser instruído a fim de seguir carreira religiosa. Depois de nove anos, ele foi tirado do mosteiro e enviado para a Universidade de Nápoles, onde entrou em contato com a obra de Aristóteles. Pouco depois, decidiu juntarse à ordem dos frades dominicanos. Sob forte oposição de sua família, seus superiores o enviaram para a Universidade de Paris, mas sem sucesso, pois acabou sendo impedido de chegar ao destino pelos próprios familiares. Embora tenha ficado um ano proibido de sair da propriedade da família, o desejo de Tomás prevaleceu e ele se mudou para Paris. O resto de sua vida foi bastante simples, se resumindo à atividade acadêmica, com apenas a interrupção de alguns anos para trabalhar como conselheiro da Cúria Papal, em Roma. Sua passagem pela Universidade de Paris foi marcada por polêmicas com outros pensadores, quase sempre em torno

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da obra de Aristóteles. Já perto do fim da vida, Tomás voltou à Universidade de Nápoles para lecionar. Foi regente de Teologia em Nápoles, entre 1272 e 1273, falecendo aos 49 anos na abadia de Fossanova, região central da Itália, esgotado, segundo todos os indícios, por um trabalho legitimamente sobre-humano. Por essa razão, foi canonizado pelo Papa João XXII, em 1323. Em 1567, o Papa Pio V proclamou-o Doutor da Igreja, com o título de “Angélico” (AMEAL, 1961; LAUAND, 1999). Deixou uma imensa obra que deve ser considerada, sem reservas, entre os mais notáveis monumentos intelectuais da história cultural do Ocidente. Sua vida como teólogo e estudioso desdobrou-se toda entre as paredes dos conventos dominicanos e os ambientes das aulas e das disputas acadêmicas, sendo marcada, com uma nitidez rara, pela vocação ao exercício da ciência e da sabedoria. A lealdade constante a essa vocação é o traço mais acentuado no perfil humano, intelectual e espiritual de Tomás de Aquino. Essa apresentação biográfica levaria naturalmente a concluir que a atividade intelectual de Tomás de Aquino teria sido atraída quase exclusivamente pela teologia e filosofia, mantendo-o distante das abordagens da razão prática, sendo, até certo ponto, surpreendente verificar que a análise ética do pensamento tomástico é perfeitamente comparável à vertente especulativa. Deve-se levar em consideração o fato de que, para Tomás, como para toda a tradição clássica, a ética tem como fundamento necessário uma metafísica, e a estrutura inteligível do agir humano repousa na continuidade entre o especulativo e o prático. As grandes teses do pensamento metafísico de Tomás prolongam-se, portanto, nas grandes teses de seu pensamento ético e lhe conferem uma significação e unidade que vão muito além de uma análise de situações típicas do comportamento (VAZ, 2006, p. 212). A primeira grande contribuição de Tomás para a história geral do pensamento filosófico foi tomar posse da filosofia de Aristóteles e a conduzir para o domínio do pensamento cristão, adaptando-a, sistematizando-a e tornando-a um

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instrumento para o estudo teológico. Sua filosofia tem como nota fundamental o realismo, pois parte da realidade das coisas e não das ideias imaginadas pelo filósofo, originando-se “da percepção sensível do mundo para, depois, tirar dela, no plano intelectual, um adequado conjunto de teses” (TEIXEIRA, 2012, p. 10). O pensamento de Tomás de Aquino teve grande influência em sua época, estendendo-se mesmo até o período contemporâneo, quando é representado pelo neotomismo. Ele se tornou, de fato, um pensador de grande criatividade e originalidade, desenvolvendo uma filosofia própria em um sentido fortemente sistemático e tratando praticamente de todas as grandes questões da filosofia e da teologia de sua época, bem como tomando Aristóteles, e não mais o platonismo e o agostianismo como era costume, como ponto de partida para a elaboração de seu sistema. São Tomás demonstra, assim, que a filosofia de Aristóteles é perfeitamente compatível com o cristianismo, abrindo uma “nova alternativa para o desenvolvimento da filosofia cristã” (MARCONDES, 2008, p. 128). Outro importante aspecto referente ao impacto exercido por sua obra é o fato de a filosofia de São Tomás ter sido adotada e grandemente promovida pela Igreja Católica. Na obra escrita de São Tomás de Aquino, encontram-se grandes sínteses teológicas, como as sumas; comentários à Sagrada Escritura e às obras de filósofos; opúsculos teológicos e filosóficos; questões disputadas; sermões etc. Ao longo, contudo, de sua grande obra, não há um tratado acerca da ética ambiental. Porém, a falta da reflexão filosófica direcionada especificamente a esse tema não impede que exista em São Tomás uma coerência interna na sua teoria sobre o domínio e governo do homem exposta ao longo de textos dispersos em sua obra e principalmente na denominada Suma teológica (2001).

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TEXTO Quaestio XCVI (AQUINAS, 2009) DE DOMINIO, QUOD HOMINI IN STATU INNOCENTIAE COMPETEBAT, IN QUATUOR ARTICULOS DIVISA Deinde considerandum est de dominio, quod competebat homini in statu innocentiae. Et circa hoc quaeruntur quatuor. Primo. Utrum homo in statu innocentiae animalibus dominaretur. Secundo. Utrum dominaretur omni creaturae. Tertio. Utrum in statu innocentiae omnes homines fuissent aequales. Quarto. Utrum homines hominibus dominarentur in illo statu. ARTICULUS I Utrum Adam in statu innocentiae animalibus dominaretur Ad primum sic proceditur. Videtur, quod Adam in statu innocentiae animalibus non dominabatur: dicit enim Aug. 9. super Genes. ad lit. (cap. 14.), quod ministerio angelorum animalia sunt adducta ad Adam, ut eis nomina imponeret: non autem fuisset ibi necessarium angelorum ministerium, si homo per se ipsum animalibus dominabatur; non ergo in statu innocentiae habuit dominium homo super alia animalia. 2. Praeterea. Ea, quae ad invicem discordant, non recte sub uno dominio congregantur: sed multa animalia naturaliter ad invicem discordant; sicut ovis, et lupus; ergo omnia animalia sub hominis dominio non continebantur. 3. Praeterea. Hieron. dicit (nullibi id habetur apud Hieron. at simile aliquid apud Bedam in suo Hexam. et refertur in Gloss. ordin), quod homini ante peccatum non indigenti Deus

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animalium dominationem dedit: praesciebat enim hominem adminiculo animalium adjuvandum fore post lapsum. Ergo ad minus usus dominii super animalia non competebat homini ante peccatum. 4. Praeterea. Proprium domini esse videtur praecipere: sed praeceptum non recte fertur nisi ad habentem rationem; ergo homo non habebat dominium super animalia irrationalia. Sed contra est, quod dicitur Gen. 1. de homine: Praesit piscibus maris, et volatilibus coeli, et bestiis terrae. Respondeo dicendum, quod, sicut supra dictum est (q. 95. art. 1.), inobedientia ad hominem eorum, quae ei debent esse subjecta, subsecuta est in poenam ejus; eo quod ipse fuit inobediens Deo; et ideo in statu innocentiae, ante inobedientiam praedictam, nihil ei repugnabat, quod naturaliter deberet ei esse subjectum. Omnia autem animalia sunt homini naturaliter subjecta: quod apparet ex tribus. Primo quidem, ex ipso naturae processu: sicut enim in generatione rerum intelligitur quidam ordo, quo proceditur de imperfecto ad perfectum (nam materia est propter formam, et forma imperfectior propter perfectiorem): ita etiam est in usu rerum naturalium: nam imperfectiora cedunt in usum perfectorum. Plantae enim utuntur terra ad sui nutrimentum, animalia vero plantis, et homines plantis, et animalibus; unde naturaliter homo dominatur animalibus. Et propter hoc Philos. dicit in 1. Polit. (cap. 3.), quod venatio sylvestrium animalium est justa, et naturalis; quia per eam homo vindicat sibi, quod est naturaliter suum. Secundo apparet hoc ex ordine divinae providentiae, quae semper inferiora per superiora gubernat; unde cum homo sit supra caetera animalia, utpote ad imaginem Dei factus, convenienter ejus gubernationi alia animalia subduntur. Tertio apparet idem ex proprietate hominis, et aliorum animalium: in aliis enim animalibus invenitur secundum aestimationem naturalem quaedam participatio prudentiae ad aliquos particulares actus: in homine autem invenitur universalis prudentia, quae est ratio omnium agibilium:

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omne autem, quod est per participationem, subditur ei, quod est per essentiam, et universaliter; unde patet, quod naturalis est subjectio aliorum animalium ad hominem. Ad primum ergo dicendum, quod in subjectos multa potest facere superior potestas, quae non potest facere inferior: angelus autem est naturaliter superior homine; unde aliquis effectus poterat fieri circa animalia virtute angelica, qui non poterat fieri potestate humana; scilicet quod statim omnia animalia congregarentur. Ad secundum dicendum, quod quidam dicunt, quod animalia, quae nunc sunt ferocia, et occidunt alia animalia, in statu illo fuissent mansueta, non solum circa hominem, sed etiam circa alia animalia: sed hoc est omnino irrationabile. Non enim per peccatum hominis natura animalium est mutata; ut quibus nunc naturale est comedere aliorum animalium carnes, tunc vixissent de herbis; sicut leones, et falcones. Nec Gloss. Bedae dicit Gen. 1. (Quid simile habet glos. Nicol. de Lyr. in illud: Ecce dedi vobis. Ex Beda enim potius contrarium habetur) quod ligna, et herbae datae sunt omnibus animalibus, et avibus in cibum, sed quibusdam; fuisset ergo naturalis discordia inter quaedam animalia. Nec tamen propter hoc subtraherentur dominio hominis; sicut nec nunc propter hoc subtrahuntur dominio Dei, cujus providentia hoc totum dispensatur; et hujus providentiae homo executor fuisset, ut etiam nunc apparet in animalibus domesticis: ministrantur enim falconibus domesticis per homines gallinae in cibum. Ad tertium dicendum, quod homines in statu innocentiae non indigebant animalibus ad necessitatem corporalem: neque ad tegumentum, quia nudi erant, et non erubescebant, nullo incitante inordinatae concupiscentiae motu: neque ad cibum, quia lignis paradisi vescebantur: neque ad vehiculum, propter corporis robur: indigebant tamen eis ad experimentalem cognitionem sumendam de naturis eorum, quod significatum

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est per hoc, quod Deus ad eum animalia adduxit, ut eis nomina imponeret, quae eorum naturas designant. Ad quartum dicendum, quod omnia animalia habent quamdam participationem prudentiae, et rationis secundum aestimationem naturalem: ex qua contingit, quod grues sequuntur ducem; et apes obediunt regi; et sic tunc omnia animalia per se ipsa homini obedivissent, sicut nunc quaedam domestica ei obediunt.

TRADUÇÃO Questão 96 (AQUINO, 1956) SOBRE O DOMÍNIO QUE TOCAVA AO HOMEM NO ESTADO DE INOCÊNCIA Em seguida devemos considerar o domínio que tocava ao homem, no estado de inocência. E, sobre esta questão, quatro artigos se discutem: 1º se o homem, no estado de inocência, dominava os animais; 2º se dominava todas as criaturas; 3º se, no estado de inocência, todos os homens eram iguais; 4º se, nesse estado, um homem dominava o outro. ARTIGO I Se Adão, no estado de inocência, tinha domínio sobre os animais O primeiro se discute assim: vê-se que Adão no estado de inocência não tinha domínio sobre os animais. 1º. Pois diz Agostinho que, pelo ministério dos anjos, os animais foram trazidos a Adão para que lhes desse nomes. Ora, não seria necessário para isso o ministério deles, se Adão, por si

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mesmo, tivesse o domínio sobre os animais. Logo, no estado de inocência, o homem não tinha domínio sobre os animais. 2º. Ademais, seres opostos entre si não podem se reunir sob o mesmo domínio. Ora, muitos animais são naturalmente inimigos, como a ovelha e o lobo. Logo, todos os animais não estavam submetidos ao domínio do homem. 3º. Ademais, Jerônimo diz: o homem, antes do pecado, não tinha necessidade que Deus lhe desse o domínio sobre os animais; pois, tinha presciência de que ele, depois da queda, teria neles um adminículo. 4º. Ademais, é próprio de um senhor ordenar. Ora, uma ordem só se pode sensatamente dar a quem tem razão. Logo, o homem não tinha domínio sobre os animais irracionais. Mas, em contrário, diz a Escritura, falando do homem: presida sobre os peixes do mar, as aves do céu, as bestas e todos os répteis que se movem sobre a terra. Solução: como já disse antes, a desobediência, para com o homem, dos seres que lhe deviam estar sujeitos, foi-lhe pena subsequente a ter sido desobediente a Deus. Daí, no estado de inocência, antes da supramencionada desobediência, não lhe resistia nenhum dos seres que lhe deviam estar naturalmente sujeitos. Ora, todos os animais estão naturalmente sujeitos ao homem, o que resulta claramente de três razões: Primeiramente, do processo menos do que da natureza, pois, como na geração das causas manifesta-se certa ordem, pela qual se sobe do imperfeito ao perfeito, sendo assim a matéria por causa da forma, é uma forma mais imperfeita por causa de outra mais perfeita, assim o mesmo se dá com o uso dos seres naturais. Pois os seres mais imperfeitos servem para o uso dos mais perfeitos; assim, as plantas tiram da terra a sua nutrição; os animais, das plantas; o homem, enfim, das plantas e dos animais. Por isso, diz o filósofo que a caça dos

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animais silvestres é justa e natural porque, por ela, o homem vindica para si o que é naturalmente seu. Segundo, da ordem da divina providência, que sempre faz com que as causas superiores governem as inferiores. Daí, sendo o homem superior a todos os animais por ter sido feito à imagem de Deus, é racional que eles lhe estejam sujeitos ao domínio. Terceiro, da propriedade dos homens e da dos animais. Pois estes têm, na estimativa natural, uma participação da prudência, para certos atos particulares; enquanto que o homem tem a prudência universal, que é a razão de todas as suas ações. Ora, tudo que é participado é dependente do que é essencial e universal. Donde resulta ser natural a sujeição dos animais ao homem. Daí a resposta à primeira objeção: nos seres sujeitos, muitas causas podem fazer o poder superior que não pode o inferior. Ora, o anjo é naturalmente superior ao homem. Daí, a virtude angélica podia agir sobre os animais, de um modo pelo qual não o podia o poder humano, a saber, que, imediatamente todos se reunissem. Resposta à segunda: certas pessoas dizem que os animais atualmente ferozes e que matam os outros, eram, no primeiro estado, mansos, não apenas relativamente ao homem, como também aos outros animais. Mas tal é absolutamente irracional. Pois, pelo pecado do homem não se mudou a natureza dos animais, de modo que vivessem de ervas os que agora, naturalmente, comem as carnes dos outros, como os leões e os falcões. Nem a Glosa de Beda diz que os vegetais e as ervas fossem dados como alimento a todos os animais, mas só a alguns; pois do contrário, haveria discrepância natural entre alguns deles. Mas, nem por isso haviam de subtrair-se ao domínio do homem, como atualmente não se subtraem ao de Deus, cuja providência governa a todos. E desta o homem seria o executor, como agora ainda se dá com os animais domésticos; pois damos as galinhas em alimento aos falcões domésticos.

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Resposta à terceira: os homens no estado de inocência não precisavam dos animais para as necessidades corpóreas, nem para se cobrirem, pois estavam nus e não se envergonhavam, não sendo excitados por nenhum movimento de concupiscência desordenada; nem para se alimentarem, pois se nutriam dos vegetais do paraíso; nem para se transportarem, pois tinham a força do corpo. Deles necessitavam, porém, para haurirem o conhecimento experimental da natureza dos mesmos. E isso o significa o fato de ter Deus apresentado ao homem os animais para que lhes impusesse nomes designativos da sua natureza. Resposta à quarta: todos os animais participam, de certo modo, pela estimativa natural, da prudência e da razão; assim, os grous seguem o chefe e as abelhas obedecem ao rei. E, desse mesmo modo, todos os animais de então haviam de obedecer, por si mesmos, ao homem, como, agora, os domésticos a ele obedecem.

COMENTÁRIO Tomás de Aquino, embora não tenha usado nem o termo nem o conceito “ecologia” como tal, expõe mais do que um tratado sobre o tema, organizado a partir das perspectivas cosmológica, antropológica, ética e teológica. Sua exposição sobre a criação revela uma intensa preocupação com a natureza, cuja defesa e articulação fazem parte de sua visão do mundo natural. Em sua antropologia, Aquino procura harmonizar a presença do homem no cosmos com a existência dos animais e do Supremo Criador e Provedor. Sua perspectiva moral é articulada para que a dignidade da liberdade reafirme as próprias tendências naturais que orientam a existência humana rumo a seu destino e felicidade neste mundo e à alegria celestial na vida após a morte (DE GANDOLFI, 2011, p. 166). Sendo assim, não pode haver dúvida de que São Tomás de Aquino tenha deixou um profundo e duradouro

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impacto sobre a filosofia e teologia cristãs. Sua apropriação da filosofia aristotélica e seu envolvimento com o pensamento de outros filósofos são nada menos que brilhante. Estudiosos contemporâneos, no entanto, têm levantado questões sobre o legado de Aquino em relação aos cuidados da criação, já que há, em sua obra, textos que permitem interpretações polêmicas com sérias consequências. O texto é um trecho de sua extensa Suma teológica, considerada sua principal obra (CAVALCANTE; OLIVEIRA, 2009, p. 5). Consagrada ao conhecimento sobre Deus, a obra tem como objetivo central analisar os caminhos pelos quais os homens podem alcançar “o bem”, ou seja, a vida eterna. É justamente por esse motivo que a obra recebe destaque neste capítulo, uma vez que a teologia proposta pelo mestre não atentava apenas para o conhecimento de Deus, mas principalmente para o comportamento humano e suas ações diante da responsabilidade social a ele incumbida. No texto, Aquino trata do assunto do domínio do homem sobre os animais. Contudo, essa questão era vista na história da filosofia como tema marginal, servindo de ponto de apoio a partir do qual se ergue a humanidade do homem, demonstrando sua superioridade intrínseca à racionalidade, a mesma da qual os animais não são dotados. No pensamento de Aquino, a questão da animalidade não destoa desse quadro, uma vez que há, por ordem divina, uma hierarquia dos seres segundo a perfeição de cada um. A sequência estabelecida nessa hierarquia parte da vida em seu estágio mais elementar, passa pelos animais e chega ao homem. O espaço que cada ser ocupa na escala de perfeição repercute no plano moral e a proteção absoluta é reservada apenas ao último estágio. Nesse ponto é que se encontram as maiores controvérsias, quando, a partir desse pensamento, postula-se que os animais ocupem espaço no mundo para proporcionar conforto, segurança e alimento ao homem. Singer (2004) amplia e polemiza essa abordagem, interpretando que, para Aquino, só era possível pecar contra Deus, contra a própria pessoa e contra o próximo. De fato,

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na Suma teológica, Aquino não dá o precedente do pecado contra os animais ou contra o mundo natural. Além de Aquino não repudiar a crueldade para com os animais irracionais, ele os exclui dos limites de sua ética. Isso fica mais claro no trecho em que diz que Não interessa o modo como o homem se comporta com os animais, pois Deus submeteu todas as coisas ao poder humano e é neste sentido que o apóstolo diz que Deus não se preocupa com os bois, porque Deus não pede contas ao homem daquilo que este faz aos bois ou a outro qualquer animal (Suma teológica 2, Q102, art.6 ).

A influência de Tomás de Aquino foi persistente. Em meados do século XIX, o papa Pio IX recusou o estabelecimento de uma organização contra a crueldade para com os animais em Roma, argumentando que a sua existência sugeriria que os seres humanos têm deveres para com os animais. E esse pensamento podia ser encontrado ainda na segunda metade do século XX sem grandes alterações na posição oficial da Igreja Católica Romana (SINGER, 2004, p. 183). Apesar dessa posição, Culleton (2006) discute que, para Aquino, a ideia central da ecofilosofia é a de que o Céu e a natureza dependem da razão e até mesmo Deus se rege por razões. Não se trata, porém, de um racionalismo cego. Sendo assim, há um componente holístico em Aquino que pode interessar à educação ambiental. Sua postura holística diz que conhecer a ordem do todo é conhecer a ordem da parte e conhecer a ordem da parte é conhecer a ordem do todo (CULLETON, 2006). Mesmo quando Aquino defende o filósofo quando este condenou o domínio cruel sobre os animais, ele o faz tendo um pressuposto estritamente humanístico (SILVEIRA; FERREIRA; SOUZA JUNIOR, 2009). Contudo, adotar um posicionamento centrado exclusivamente nos interesses dos seres humanos encoraja a exploração abusiva da natureza. A despeito da polêmica interpretação do texto, na questão 96 da primeira parte da Suma teológica, no artigo primeiro, Aquino analisa a possibilidade de Adão ter exercido

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domínio sobre os animais quando ainda vivia em estado de inocência no paraíso terreno. Aquino interpreta a passagem de Gênesis 1:26 e se, de fato, os animais estavam sujeitos ao domínio de Adão antes da queda e se esse estado permanecia válido e natural mesmo após a queda. A análise de Aquino pode ser sintetizada da seguinte maneira: primeiramente, ele contrapõe quatro argumentos a respeito da ideia de que Adão exercia domínio sobre animais antes da queda: 1) se Adão tivesse perfeito domínio sobre os animais, então não seria necessário que os anjos os conduzissem até ele para que ele os nomeasse; 2) seria impossível para Adão manter sob seu domínio animais com instintos opostos como, por exemplo, a ovelha e o lobo; 3) Deus concedeu domínio a Adão sobre os animais, mas ele não o exercia efetivamente visto que não necessitava deles; esse domínio só teria se tornado necessário a partir da queda quando, então, o homem teve necessidade dos animais e passou a fazer uso deles; 4) dominar significa estabelecer preceitos e normas, o que só poderia ser feito em relação aos seres racionais, o que não se aplica aos animais. Aquino finaliza declarando, porém, que Adão já no estado de inocência exercia domínio categórico sobre todos os animais. Elucida que o domínio humano se dava por três causas: 1) o imperfeito deve servir ao mais perfeito, sendo essa a ordem natural; assim como a planta vive da terra, os animais das plantas e o homem das plantas e dos animais; ou seja, o domínio dos animais pelo homem é absolutamente natural; 2) a ordem natural divina determina o governo do inferior pelo superior; sendo o homem criado à imagem de Deus, ele está naturalmente acima dos animais e, por isso, os domina; 3) a obediência dos animais ao homem decorre naturalmente de ser o homem dotado de poder sobre o mundo prático, e o instinto natural disponibiliza os animais aos interesses do homem. Destaca-se na réplica de Aquino que: 1) foi necessária a intervenção dos anjos para reunir os animais diante de Adão apenas porque o poder angelical ultrapassa o humano e Adão sozinho não teria como reunir todos os animais

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simultaneamente; 2) a desarmonia natural entre os animais não limita o domínio do homem sobre eles (TERRA, 2010). Certas mudanças de pensamento no âmbito cristão em relação à ética ambiental não se caracterizam, porém, como desmembramento da ideia tomista, mas como desenvolvimento dela. É possível conceber uma ética favorável ao ambiente a partir do pensamento tomista. Sua discussão aponta para o fato de que os cristãos de sua época já se preocupavam com a situação dos animais diante de sua exploração pelo homem e, embora Aquino sancione o uso dos animais em caso de necessidade, ele não autoriza a crueldade gratuita.

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