A ÉTICA CRISTÃ

June 20, 2017 | Autor: Atahualpa Fernandez | Categoria: Religion, Philosophy, Ethics, Filosofía, Ética, Religião
Share Embed


Descrição do Produto

A ÉTICA CRISTÃ


Atahualpa Fernandez(

"Mi Reino es todo de este mundo".
ALBERT CAMUS





Em seu livro «The Folly of Fools. The Logic of Deceit and Self-
Deception in Human Life» (2011), Robert Trivers, ao tratar da religião e o
autoengano, recorda que a deificação do profeta Jesus (o mito evangélico
de Cristo) não tem paragão na concepção dos profetas no islamismo e o
judaísmo. Não há nessas outras duas religiões nada similar ao seu insólito
nascimento, nada parecido aos milagres que lhe atribuem, nada que se
assemelhe ao sofrimento de uma morte cruel que expia o pecado da humanidade
e posterior ressurreição três dias mais tarde, e definitivamente nada que
implique uma sorte de transformação de Jesus, enquanto Deus encarnado, em
um terço (1/3) do espetáculo constituído pelo Pai, o Filho e o Espírito
Santo.
E quanto mais os cristãos deificam o mito de Cristo e maior é o
delírio da imaginação ou "fé cega" em uma divindade arquitetada pelo judeu
helenizado Paulo de Tarso[1] (e elaborada pelos evangelistas teologicamente
ex post e, a sua vez, com a tergiversação ominosa do Jesus histórico[2]),
menor é a atenção que prestam à doutrina que, segundo os Evangelhos,
predicou o profeta em sua breve travessia pela terra. A "cristomania" e o
"jesuismo", essa esquizofrênica amálgama de crenças sui generis centrado na
secular convicção e eufórica exaltação da deidade de Jesus, estão de moda,
um fenômeno cada vez mais extremo e difuso, consumível por todos e a todas
as idades, à gosto do consumidor, em todo momento, em casa, fora de casa, à
distância e on-line[3] (nota bene: isto no que respeita aos fatos; outra
coisa é a fé, obviamente, que com orgulho Paulo considerava «loucura» e os
cristãos dos primeiros séculos proclamavam também com orgulho no «credo
quia absurdum»).
De fato, a ideia de Jesus como um exemplo de excelência moral é um
tópico cultural que se dá por firme e iniludível, inclusive entre
mentalidades agnósticas e não crentes. Consiste em crer que a vida de Jesus
(supondo que existiu, pois sua existência real segue sendo objeto de
polêmica[4]) oferece um modelo de comportamento ético que deve ser
emulado[5], e suas doutrinas éticas umas regras de conduta que devemos
seguir - quer dizer, que temos que residir aqui abaixo segundo as leis e
valores de outro mundo. Um modo de pensar em que se embarca a gente
rapidamente em crenças e posturas normativamente «corretas» e onde os
anelos de unanimidade coletiva superam sua motivação para apreciar com
realismo maneiras de pensar alternativas.
Nada obstante, Michael Martin, filósofo e autor do livro The Case
Against Christianity (1991), propõe certos argumentos morais que questionam
a exemplaridade do mitológico "fundador" do cristianismo. Partindo do juízo
de que não está claro quais foram exatamente os princípios morais que
ensinou, do discutível ideal ilustrado supostamente por sua conduta e de
que a moral cristã é de duvidosa valia, confusa, contraditória e difere de
outros sistemas aceitáveis de ética profana, este professor emérito da
Universidade de Boston questiona que a ética proposta por Jesus resulte
desejável ou (inclusive) praticável desde algumas (entre outras)
particularidades, a saber:
1. O principal mandamento de Jesus é amar a Deus (Mt. 22, 37-38). Na
firme crença da iminência do Reino de Deus, Jesus, tal como aparece nos
evangelhos sinópticos, não se interessou pelos problemas mundanos (como a
família, a própria vida, a liberdade e a propriedade - Lc. 18, 22), se
desentendeu de sua família por seu evangelho (Mt. 12, 46-50), sustentou que
seus discípulos deviam odiar aos membros de sua família e sua própria vida
(Lc. 14, 26), disse que quem não renunciara a todas suas possessões não
podia ser discípulo seu (Lc. 14, 33), e também ameaçou com terríveis
castigos a quem rechaçara seus ensinamentos (Mt. 10, 14-15).
2. As práticas morais de Jesus contrastam com as imagens pacifistas
idealizadas e com sua suposta perfeição moral. Predicou, por exemplo, o
castigo eterno para quem blasfemasse contra o Espírito Santo, empregou a
força para expulsar os que vendiam e compravam no templo, valorou a
obediência cega, ensinou o dever de humilhar-se e rebaixar-se (Lc. 18, 14;
Lc. 9, 48), a não enfrentar-se ou opor resistência aos malvados (Mt. 5, 39-
41)[6], e no que se refere às virtudes intelectuais importantes tanto suas
palavras como suas obras parecem indicar que depreciou e não valorava a
razão e os conhecimentos (Mt. 18, 3).
3. Embora muitos cristãos declarem encontrar nos ensinamentos de Jesus
respostas à todas as questões morais da vida moderna, as preocupações da
sociedade atual abordadas por Jesus de maneira explícita foram poucas. Por
exemplo, não disse nada diretamente sobre a moralidade ou imoralidade do
aborto, da pena de morte, da guerra, da discriminação racial ou sexual[7] e
da escravidão, tão comum no mundo antigo (e não está claro que se possa
deduzir de suas máximas e suas práticas algo a respeito desses temas).
Também parecia advogar pela pobreza material quando afirmava que "un rico
no puede entrar en el reino de los cielos (Mt. 19, 23-24), y, según la
versión de la bienaventuranzas de Lucas, los pobres son dichosos y el reino
de los cielos les pertenece (Lc. 6, 20)".
4. A mensagem de Jesus está tão condicionada pela iminência do Reino
de Deus que desprezou a preocupação e provisão pelo futuro (característica
de qualquer civilização ou ética), guardou silêncio contra (e praticou) o
trato inumano dado aos animais (Lc. 8, 28-33) e nunca ofereceu uma
justificação racional para suas afirmações (aliás, um aspecto sumamente
desagradável na prédica de Jesus: a contínua ameaça com o fogo infernal -
ao castigo eterno no lugar mais horrível, para sempre -, muito distante da
persuasão racional[8]).
Há também outra ironia: o autêntico e certo é que o Nazareno, "el
profeta judío apocalíptico", abrigava a absoluta convicção de que a
história do mundo tal como nós a conhecemos (melhor dito, como ele a
conheceu) ia experimentar uma interrupção estridente, que Deus ia intervir
de um momento a outro nos assuntos deste mundo, derrubar as forças do mal
em um ato de juízo cósmico, destruir uma grande parte da humanidade e
abolir as instituições humanas, políticas, e religiosas existentes. Tudo
isso seria o prelúdio da chegada de uma nova ordem sobre a terra, o Reino
de Deus. Ademais, Jesus esperava que este fim cataclísmico da história
teria lugar em sua própria geração ou, ao menos, em vida de seus discípulos
(B. D. Ehrman, Jesus. Apocalyptic Prophet of the New Millenium, 1999).
Como assinala G. Puente Ojea (El mito de Cristo, 2000), Jesus esperou
totalmente convencido que o "Reino escatológico-mesiánico estaba al llegar,
a la mano, y que sería un impresionante acontecimiento visible y datable,
tangible y público. Por ello hay que estar alerta, «no sea que, viniendo de
repente, os encuentre dormidos». No es posible decirlo más claro: estad
despiertos, no vaya a ser que «de repente venga sobre vosotros aquel día…»
(Lc. 21.34). Pero no hubo caso, porque jamás llegó".
E por último, mas não por isso menos importante, embora exista
aspectos louváveis na ética cristã, esses não são originais do
cristianismo, já que a "novidade" da mensagem de Jesus não consistiu em
postular novas normas ou adicionais preceitos. Na verdade, já se despejou
toda dúvida sobre seu rigoroso respeito à Lei (Torah). Em Mc. 12, 28-34,
Jesus, em amigável diálogo com um escriba, formula os dois mandamentos
básicos do judaísmo: amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo
como a si mesmo. Nenhuma novidade. Na aplicação prática dos preceitos,
Jesus foi um observante da Lei (Torah) e um judeu leal[9]. Sua religião foi
o judaísmo, e sua fé se baseava na Bíblia judia. Não se lhe ocorreu pensar-
se a si mesmo como uma figura divina[10]. Tal crença haveria sido, para
ele, uma transgressão direta do primeiro dos Dez Mandamentos.
Assim as coisas, parece que são cinco os aspectos relevantes da
mensagem de "urgência e radicalidade" do Nazareno: a perspectiva
messiânica, o Reino de Deus como utopia religiosa-política[11], a iminência
do Reino e a exigência urgente da reconversão pessoal, o radicalismo da
ética escatológica (de uma moral de entrega total e incondicional de
controverso valor universal e atemporal para o tempo brevíssimo que
precederia à eclosão iminente do Reino), e o cumprimento das promessas de
Deus ao povo de Israel (G. Puente Ojea, 2000).
Sobra dizer, e aqui termino, que não sou ateu em absoluto porque, de
sê-lo, estaria seguro de que nenhum Deus existe. Mas não é assim. Muito
pelo contrário; claro que existe: como toda e qualquer ideia construída
pelo cérebro humano[12], Deus existe metido dentro da mente de alguns
membros de nossa espécie. Agora, toda essa inscrível narrativa em que
intervém um Deus, uma ave e uma mulher casada, quero dizer, sobre o "fato"
de que um pássaro sedutor (Espírito Santo) foi capaz de fecundar e
emprenhar a uma fêmea humana virgem (Maria), francamente me supera[13]...
"Lo juro por Dios".

-----------------------
( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto
de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent
Researcher.
[1] Todos sabemos o que lhe ocorreu. Uma deslumbrante conversão quando
viajava caminho de Damasco lhe transformou, literalmente da noite à manhã,
de assassino e despiedado caçador de cristãos no converso mais importante
da história da religião cristã e em uma das figuras mais importantes na
história do mundo ocidental: "San Pablo, como se le conoce hoy en día
comúnmente, es autor de casi la mitad del Nuevo Testamento (catorze de los
vientisiete libros que constituyen el corpus están atribuidos a él); es el
héroe de outro, los Hechos de los Apósteles, y el protagonista de algunas
de las mejores maquinaciones y vidrieras del negocio. Pero además era, con
mucha probabilidad, un psicópata; un misterioso bandido psicológico con esa
habilidad que tiene el experto y pragmático manipulador, suave como la
seda, de presentarse a sí mismo: «Entre los judíos me volví judío, para
ganarme a los judíos. Entre aquellos que están bajo la ley, me convierto en
uno de los que están bajo la ley (aunque no estoy bajo la ley). Entre los
que están fuera de la ley me convierto en uno fuera de la ley (no estando
fuera de la ley de Dios, sino bajo la ley de Cristo) para poderme ganar a
los que están fuera de la ley. Entre los débiles me vuelvo débil, para
poder ganarme a los débiles. Me he convertido en todo tipo de cosas, para
todo tipo de gente… (1 Corintios 9:20-22).» Si realmente fue Jesucristo el
que apareció en aquel camino a Damasco, y quería un emisario para que le
ayudara a difundir su palabra, no podía haber elegido a un hombre mejor
para el puesto. Ni tampoco, entre los cristianos, uno más temido ni más
impopular. En la época de su conversión, Pablo, sin duda, estaba en la cima
de sus poderes persecutorios. De hecho, el motivo de que fuese a Damasco
era para instigar más derramamientos de sangre.[…] Hoy en día, bajo los
dictados de la Convención de Ginebra, se le podría haber acusado de
genocidio" (Andrew N. Wilson, Paul: The Mind of the Apostle, 1997; Kevin
Dutton, The Wisdom Of Psychopaths, 2012; Alan Harrington, Psychopaths,
1972). Os expertos modernos no campo da «neuroteologia» consideram que a
experiência de Saulo (nome hebreu de São Paulo), em sua legendária caída do
cavalo já perto de Damasco, é mais sintomática da aparição de uma epilepsia
do lobo temporal que de algum encontro genuíno com o divino. "La «luz del
cielo », las alucinaciones auditivas («Saulo, Saulo, ¿por qué me
persigues?») y la posterior ceguera temporal son compatibles con tal
diagnóstico, desde luego, igual que la propria misteriosa alusión relativa
a la salud del proprio Saulo (2. Cor. 12:7-10) de una «espina en la carne»,
un «mensajero de Satán», «para evitar que me volviera un engreído»." (Kevin
Dutton, 2012; Francisco J. Rubia, El cerebro nos engaña, 2000; Brorson JR.
& Brewer K. St Paul and temporal lobe epilepsy, 1988; Landsborough D., St
Paul and the temporal lobe epilepsy, 1987).
[2] Bart D. Ehrman, Jesús no dijo eso. Los errores y falsificaciones de la
Biblia, 2007; P. Rodríguez, Mentiras fundamentales de la Iglesia católica,
2011.
[3] Como é possível seduzir uma doutrina da renúncia, do sofrimento e da
obediência dogmática a uma sociedade da implicação mundana afetada por um
fundamentalismo consumista e uma compulsão quase enfermiça pela felicidade,
a aparência, o individualismo possessivo e o êxito terrenal a qualquer
preço? Pois renunciando à renúncia, relativizando a obediência e
instaurando uma nova ordem moral baseada no «dever» de «ser feliz em
Cristo» (sempre e quando «este fim» justifique «qualquer meio»; e dado que
não há nada mais impreciso que a ideia de «felicidade», nos encontramos,
«ad absurdum et ad nauseam», no perigoso reino do «tudo vale»). Quer dizer,
como se fosse um suplemento oficial de contrapeso da alma materialista,
servindo versões lights e multifuncionais de um cristianismo mais adequado
para nosso delicado e sobreexcitado ego; um tipo de discurso camaleônico ao
alcance de todos e que serve, à custa de um sem-número de interpretações
bíblicas, para qualquer ouvinte que anele aceitar Jesus Cristo como seu
Senhor e salvador pessoal. Como disse Dante, "hemos perdido el camino
recto".
[4] Sobre a existência histórica de Jesus e sua ética (entre muitos
outros): Bart D. Ehrman, How Jesus Became God: The Exaltation of a Jewish
Preacher from Galilee, 2014, Did Jesus Exist?: The Historical Argument for
Jesus of Nazareth, 2012, Jesus: Apocalyptic Prophet of the New Millennium,
1999, ¿Dónde está Dios? El problema del sufrimiento humano, 2008; E. P.
Sanders, The historical figure of Jesus, 1993; Piergiorgio Odifreddi,
Perché non possiamo essere cristiani, 2007; C. G. Novella, ¿Dónde está
Dios, papá? Las respuestas de un padre ateo, 2012; Pascal Boyer, Y el
hombre creó a los dioses, 2010; A. C. Grayling, Contra todos los dioses,
2011; Peter Singer (Ed.), Compendio de Ética, 2010; Barón de Holbach,
Moisés, Jesús y Mahoma, 2011; F. de Waal, El bonobo y los Diez
Mandamientos, 2014; e J. E. Galán, El catolicismo explicado a las ovejas,
2009.
[5] Daí a inevitável algofilia dos cristianismos protestante, ortodoxo e
católico: que o emblema de uma religião seja um crucificado em sua cruz
significa que aquela inscreveu a morte de Deus no coração de seu ritual. Ao
agonizar, Jesus se converte em "proprietário do sofrimento e da morte"
(Paul Valéry) e transmuta estes em alegria: dor e ressurreição. O filho de
Deus na cruz afirma o trágico da condição humana e a supera para acercar-se
à ordem sobrehumana da esperança e do amor: cada desgraçado tem que
carregar com sua própria cruz e encontrar em Jesus um guia, um guru
espiritual e um amigo (invisível) que lhe ajude; e com esta condição, seu
sofrimento deixará de ser um inimigo mortal para converter-se em um aliado
com um grande poder de purificação, de "renovação da energia espiritual"
(Pascal Bruckner, L´euphorie perpétuelle, 2008). Por isso a virtude cristã,
renunciando a autonomia do indivíduo, não é obra exclusiva de seu portador
(e isto aclara o caráter compulsivo da moralidade cristã): o virtuoso não
se modela a si mesmo; a virtude se consegue por assistência divina, pela
graça, a qual se recebe em troca de determinada conduta ou por capricho
divino (Gratia gratis data, diz Santo Agostinho). E embora o cristianismo
não se engane metafisicamente sobre os horrores da vida, sobre a natureza
"caída" da criatura, exorta os homens, paradoxalmente, a livrar essa
batalha sem transformar o conjunto exterior de oportunidade (pois não se
pode remediar a "caída") e – isto é o crucial – sem tocar o conjunto de
oportunidade interior. O bom cristão há de vencer mediante o sofrimento, há
de triunfar sobre o mundo sem modificar suas preferências de primeira
ordem, sem alterar ou extinguir os desejos. E mais: há de se expor a
eles... e frustá-los, e assim sofrer e mostrar seu padecimento (sua
"paixão") ao mundo.
[6] Paulo de Tarso, o "décimo terceiro apóstolo histérico e masoquista"
(para usar as palavras de Michel Onfray), foi o verdadeiro fundador do
cristianismo e quem expôs as ideias com as que este triunfou: o elogio do
gozo da submissão, a obediência, a passividade, a escravidão baixo os
poderosos com o pretexto falaz de que o poder vem de Deus e que a situação
social do pobre, o modesto e o humilde emerge da vontade celestial ou da
decisão divina (Michel Onfray, Traité d´athéologie, 2005). Com sua apologia
da dominação e renúncia ao mundo, Paulo fixou claramente desde o começo a
doutrina da natureza humana pecadora, caída e maleável, e, a partir dela,
sua dura (e misógina) postura acerca dos poderes terrenais. E esse
pessimismo antropológico da doutrina paulina se reproduz já na Primeira
epístola universal de Pedro desde sua Cadeira (1 Pedro, 2, 13-18): "Sed
pues sujetos a toda ordenación humana por respeto a Dios: ya sea al rey,
como a superior" (13); "ya a los gobernadores, como de él enviados para la
venganza de los malhechores, y para loor de los que hacen bien" (14);
"porque esta es la voluntad de Dios" (15); "como libres, y no como teniendo
la libertad por cobertura de malicia, sino como siervos de Dios (16);
"honrad a todos. Amad la fraternidad [philadelphía, palavra que nessa
cultura encontrava-se intimamente ligada ao despotismo e à servidão
avassalada]. Temed a Dios. Honrad al rey" (17); "Siervos, sed sujetos con
todo temor a vuestros amos; no solamente a los buenos y humanos, sino
también a los rigurosos" (18).
[7] Quatro séculos depois de Paulo outro Santo, Jerônimo (coetâneo de Santo
Agostinho), o pai ocidental da Igreja e autor da versão latina – a Vulgata
– da Bíblia oficialmente admitida pela Igreja romana (e a única versão
canônica depois de Trento, em 1548), havia transformado a misoginia paulina
em aberta ginecofobia: "La mujer es el portal del diablo, el camino de la
maldad, el aguijón del alacrán, en una palabra, una cosa peligrosa". "Dicho
sea de pasada, otra fórmula ginefóbica de Jerónimo gozó de mucha reputación
durante toda la Edad Media y el primer renacimiento: es aquella que declara
la sabiduría filosófica incompatible con la atención a la mujer: "non posse
simuli uxori et philosophiae servire" (Adversus Iovianum). Hans Baron
describe la influencia de esta consigna de Jerónimo entre los humanistas
italianos del trecento." (A. Domènech).


[8] Afortunadamente, nem sempre esse signo de intransigente
condenação/salvação presidiu este tipo de iniciativa. A função dos
sacramentos, sobretudo o da penitência, é aliviar ao fiel de uma terrível
tensão e permitir-lhe alternar a culpa, o arrependimento e absolução em um
vai e vem que escandalizava tanto a Calvino como a Freud. Por outro lado,
não há dúvidas de que foi um verdadeiro golpe de gênio por parte da Igreja
inventar no século XII, baixo pressão popular e em resposta aos
milenarismos, a noção de Purgatório, essa grande sala de espera, um lugar
entre o Paraíso e o Inferno que autoriza aos seres humanos de vida
medíocre, nem muito boa nem muito má, a saldar suas dívidas com o
Altíssimo. Ao modificar "la geografía del más allá", o Purgatório instaurou
todo um sistema de "mitigação de condenas", introduziu na fé a noção de
ragateio com todos os excessos que conhecemos e que desencadearam a fúria
dos reformados, e se converteu em uma técnica, um tranquilizante
psicológico que permite que qualquer falta deixe de acarretar uma infinita
e eterna degradação no Inferno (S. Freud, em seu prefácio a Los hermanos
Karamazov, de F. Dostoyevski). Ademais, esta espécie de recuperação
póstuma, sempre condicionada e dependente da infinita misericórdia do
Criador, também proporciona aos vivos um meio para obrar e dialogar com os
defuntos graças às orações (P. Bruckner, 2008).
[9] "El hecho de que Jesús no abogase por ninguna desviación de la religión
judía está probado por la práctica de los seguidores que formaban la
"Iglesia de Jerusalén" bajo el liderazgo de Santiago, Pedro y Juan. Éstos
fueron todos adherentes piadosos al Judaísmo, que observaban la
circuncisión, el sábado, las leyes alimentarias, los festivales y ayunos,
el culto sacrificial del Templo, y las otras observancias del judaísmo
farisaico. Es evidente que nada de lo que Jesús les decía les hizo pensar
que estas observancias fueran a quedar interrumpidas" (Hyam Maccoby,
Judaism in the first Century, 1989).
[10] "Jesús no fue nunca cristiano. Era un hebreo observante, que
permaneció como tal hasta su muerte y que jamás habría imaginado dar origen
a una nueva religión y mucho menos fundar una «Iglesia». No se proclamó
jamás y rechazó siempre el título de Mesías. Joshua bar Joseph era un
profeta judío itinerante, exorcista y sanador, un misionero apocalíptico
que anunciaba en las aldeas de Galilea el euangelion (buena noticia) de la
llegada inminente, más aún amenazadora, del Reino por obra de Dios, el
triunfo del Reino en donde los últimos serían los primeros. Predicaba en
arameo, exclusivamente para sus correligionarios judíos, y si alguno de los
apósteles barruntó que fuese Cristo (traducción griega del hebreo meshiah y
del arameo mashiha, «ungido») lo fulminó con un anatema: «Vade retro me
Satana!» (Marcos 8, 33) [expresión de la Vulgata latina, incorporada al uso
proverbial, con el que Jesús rechaza violentamente la esperanza de Pedro
(«Tú eres el Cristo», 8, 29)]. La idea de ser considerado «Dios verdadero
de Dios verdadero, engendrado, no creado, de la misma naturaleza que el
Padre» - según el «Credo» del concilio de Nicea, aún en vigor en la Iglesia
católica – le habría ocasionado un indecible horror. […] Para darse cuenta
de eso basta leer con atención y sobre todo por entero el Nuevo Testamento,
que la mayor parte de los fieles conoce solo a través de los fragmentos
leídos durante la misa." (Paolo Flores d´Arcais, Jesús. La invención del
Dios cristiano, 2012).
[11] No cálculo cristão da utopia religiosa está, por exemplo, a «aposta da
eternidade»: prometer uma recompensa pelas misérias deste mundo, uma
esperança de outra vida e retribuição de felicidade celestial no Paraíso,
um lugar de delícias absolutas donde já não existem nem a fome nem a sede,
nem a maldade nem o tempo, e o único modo de pôr fim ao escândalo da
prosperidade do malvado e do infortúnio do justo. E posto que a felicidade
cristã foi sempre um assunto «del más allá», para um cristão virtuoso e
comprometido com a causa, o «temor» e/ou a «dor» da morte não deveria
implicar nenhuma carga cognitiva e/ou emocional, porque "lo maravilloso de
la muerte", escreve S. Bossuet citando a Santo Antônio, "es que, para el
cristiano, no pone punto final a la vida, sino a los pecados y peligros a
los que ha estado expuesto. Al abreviar nuestros días Dios abrevia nuestras
tentaciones, es decir, todas las ocasiones de perder la verdadera vida, la
vida eterna, puesto que el mundo tan sólo es nuestro común exilio".
Contudo, como a «fé» parece não ser suficiente para eliminar ou diminuir
nem o «temor» nem a «dor» da morte, Richard Dawkins (El espejismo de Dios,
2007) formula esta sensata reflexão a respeito: "Si uno cree de veras en la
vida después de la muerte, cómo es que no reacciona como el abad de
Ampleforth que, cuando Basil Hume le dijo que estaba moribundo, le repuso:
«¡Felicidades, hombre! Es una noticia maravillosa. Me encantaría poder
acompañarte»". Quanto aos ateus, os agnósticos, os ignósticos, os
hipercríticos e os indivíduos de pouca fé, nenhum problema: estes,
parafraseando um antigo provérbio, «nunca mueren, solo van al infierno y se
reagrupan».
[12] Uma função do cérebro, uma ideia construída pela atividade fisiológica
dos tecidos cerebrais como todas as demais ideias, "sin ninguna connotación
especial más allá de cómo lo hace con otras ideas, como la belleza o la
moral. No hay, pues, realidad alguna de Dios. Dios no existe más allá de la
existencia del hombre." (Francisco Mora, El dios de cada uno, 2011).
[13] Outro estranho "mistério", este "curioso mecanismo que permite, graças
à ausência de resposta, que tenhamos resposta para tudo; uma noção
empregada à tort et à travers que se converte em um mero sofisma para
justificar o injustificável" (Marcel Conche, Orientation philosophique,
1990). Aliás, seja dito de passagem, uma das maiores vantagens
constitutivas das religiões sobre as ideologias laicas é a denominada
"inutilidade da prova". As ideias, contos e fabulações que nos apresentam
não têm escala humana ou temporal, ao contrário de nossos ideais
terrestres, obrigados a resignar-se às leis da verificação e da persuasão
racional. Como a sentença de Descartes que Spinoza adotou como máxima para
orientar-se: "Nada debe ser considerado como verdadero excepto aquello que
haya sido probado con buenas y sólidas razones".
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.