A ÉTICA (MENTIRA) E A ESTÉTICA (IRONIA) DO DISCURSO POLÍTICO NA MÍDIA

June 5, 2017 | Autor: J. Oliveira | Categoria: Pragmatics
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VII Encontro Nacional de Interação em Linguagem Verbal e Não-Verbal I Simpósio Internacional de Análise de Discurso Crítica

A ÉTICA (MENTIRA) E A ESTÉTICA (IRONIA) DO DISCURSO POLÍTICO NA MÍDIA Jair Antonio de Oliveira Universidade Federal do Paraná – UFPR

Resumo Os termos "ironia" e "mentira" são empregados indiscriminadamente como designações nos discursos políticos, contrariando a idéia de "transparência jornalística". Em uma perspectiva pragmática, propomos uma "ecologia lingüística" para esclarecer ao leitor/espectador a intenção comunicativa de tais usos e evitar que os relatos se transformem em uma seqüência de fórmulas prontas (clichês) aptos a constar em toda e qualquer circunstância noticiosa. Palavras-chave: Discurso Político; Mídia; Pragmática; Ecologia Lingüística.

0. Introdução O que interessa aos leitores/espectadores e merece ser pauta jornalística para o dia seguinte? Esta pergunta tem sido feita e respondida das mais diversas maneiras. A resposta tradicional - que já se transformou em clichê- é a seguinte: se um cão morde um carteiro, isto não é notícia. No entanto, se um carteiro morde o cão, isto é notícia. O critério para a escolha de um fato como pauta é o inusitado da situação, o cômico, o conflito. O embate entre o "irracional", o cão, treinado para atacar aos que entrarem em seu espaço e o pretenso ser "racional", o homem, que repete o animal no labirinto behaviorista da cidade para entregar correspondências, é notícia. Obviamente, tal resposta peca pela simplicidade; mas é necessária para direcionar a nossa reflexão. Foram-se os tempos de jornalismo romântico e aventureiro: o repórter que ingressa na selva para achar Livingstone perdido ou encontrar o Santo Graal, não existe mais. Como observou Max King, do Philadelphia Inquirer: " Somos absorvidos pela pressão comercial e os lucros e perdas no balanço anual"( apud Kovack; Rosenstiel, 2003:19). Temos um jornalismo baseado no mercado onde a noção de comunidade – no sentido político ou cívicofaz pouco sentido. A geografia que interessa aos diretores da empresa jornalística é a da localização estratégica do setor comercial no organograma e a quantidade de recursos disponíveis pelos anunciantes: o que determina o grau de influência do cliente na elaboração do que é notícia ou é simplesmente "apagado". Apagar não quer dizer omitir, suprimir; mas recontar o acontecimento de outra maneira: o que era relevante transforma-se em mero side, mitigado, na terceira página do caderno "Cidade". Com esse cotidiano para as redações, é de se esperar que os leitores de jornais se comportem como verdadeiros "carneiros de panurgio" 1 . Mas este tipo de imprensa não reflete o mundo em sua diversidade. Embora os indivíduos estejam submetidos a uma lógica do mercado e o consumo seja o objetivo que determina comportamentos, as pessoas são simplesmente mais complexas do que as categorias e estereótipos que são criados para elas. Seguindo os ensinamentos de Dave Burgin (1980), há três tipos de público leitor: o envolvido, 1

Panurgio, personagem do Pantagruel de Rabelais. Tendo sido injuriado por um certo Dindenaut, negociante de carneiros, e querendo vingar-se dele, Panurgio, que conhecia o espírito de imitação desses animais, comprou-lhe um e atirou-o ao mar. Os outros carneiros precipitaram-se atrás deste e o próprio Dindenaut foi arrastado pelo último, afogando-se com todo o seu rebanho. A expressão "carneiro de panurgio" passa a designar os que procedem por espírito de imitação.

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o interessado e o desinteressado. E todos nós somos integrantes dos três públicos, dependendo do assunto. Neste viés, cabe aos jornalistas fazer com que cada página de periódico, ou cada bloco de telejornal, tenha uma boa variedade de matérias para que os leitores/espectadores queiram ler/escutar pelo menos uma delas. Diante desses públicos, ou como disse Calhoun (1995): "esfera dos públicos", as designações jornalísticas para os discursos políticos nos meios de comunicação adquirem um caráter simbólico com diferentes instâncias da realidade sendo superpostas e dotadas de sentido, quase sempre despreendidas da faticidade imediata do mundo cotidiano, mas próximas de um imaginário onde ironia e mentira são coadjuvantes. A ironia, ora vai apontar para um sentido oposto do que é dito e constituir uma legitimação da teatralidade política 2 ; ora será uma avaliação negativa do fenômeno, a serviço de interesses diversos. A mentira, ora é o dizer coisas que não são; ora é o ato blasfemo. Como disse Nietzsche (1986): "(...) tudo o que é criado no mundo é submetido à potências que as usarão de acordo com os seus propósitos específicos". Neste aspecto, não é difícil entender a "a-comodação" da sinceridade diante dos costumes empresariais; hegemônicos, hoje, nos espaços da família, da escola, da igreja, das relações interpessoais, das instituições políticas e, principalmente, nos meios de comunicação. Assim, torna-se categórico refletir sobre a contradição que surge com o emprego indiscriminado dos termos "ironia" e "mentira" ou a referência a ações que possam ser rotuladas como tais nos discursos políticos veiculados pelos jornais 3 . Este uso lingüístico requer um esforço interpretativo maior para os leitores/espectadores – o que contraria noção de "transparência jornalística". Ao utilizar tais recursos, os jornalistas estão intuitivamente transgredindo as Máximas Conversacionais propostas por Grice (1975), embora este princípio pragmático nem sempre garanta a recuperação da intenção comunicativa nos casos de ironia e não seja apropriado para "lidar" com a mentira. 1. As Ironias Jornalísticas A leitura criteriosa de alguns jornais apontará para alguns usos emblemáticos da ironia . Obviamente, tais empregos estão sujeitos aos limites institucionais previamente traçados, ou seja, limites que determinam o que o jornalista pode dizer (de acordo com as circunstâncias) e o que deve dizer (devido às expectativas dos interlocutores). O primeiro caso dessas designações é aquele em que o jornalista emprega a ironia em seu sentido dicionarizado, isto é: como um modo de exprimir-se que consiste em dizer o contrário daquilo que se está pensando ou sentindo, ou por pudor em relação a si próprio ou com intenção depreciativa ou sarcástica em relação a outrem (Ferreira, 1975:785). O jornalista emprega essa designação e deixa explícito que pretende significa o contrário do que está dizendo. Esta é a versão mais comum nos relatos e usada à exaustão, desgastou-se enquanto estratégia retórica, transformando-se em uma espécie de "clichê", com baixo conteúdo informativo e efeitos mínimos sobre os leitores. Envolve pouco esforço para a sua produção e interpretação, e os manuais de redação e estilo recomendam cautela em seu uso (Manual da FSP, 1992:83).

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Benjamin chamou de "estetização da política" a encenação, a simulação e a teatralidade operada nos regimes fascistas para ritualizar a ideologia. Como não sou leitor de Benjamin, deixo a observação inacabada. 3 O termo "jornais" será empregado para se referir aos jornais impressos e televisionados; embora cada um desses meios de comunicação tenha suas especificidades no que toca à "linguagem".

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O segundo caso de designação envolve usos onde o jornalista produz uma ironia pretendendo significar alguma coisa diferente do que está dizendo. Isto é, diz X mas pretende significar Y ou Z. Este recurso exige experiência para a sua elaboração e produz efeitos inesperados nos leitores. É um recurso disponível pelo articulista para transgredir as restrições institucionais e dizer ( pelo não-dito), as informações desejadas. Finalmente, há aquelas designações onde o termo ironia é mencionado mas o jornalista não pretende ser irônico. Isto é, o emprego do termo ironia não é suficiente para constituir uma designação irônica ou representar, situacionalmente, o fenômeno; apenas um termo "tampão" para resolver problemas de articulação textual, repertório vocabular restrito ou preguiça para pesquisar. É claro que há situações onde o articulista apenas menciona o termo ironia e pretende ser irônico com isto. Antes de continuar a reflexão, é necessário ressaltar que este paper é uma tentativa de estabelecer uma "ecologia lingüística" em torno dos relatos noticiosos sem a pretensão de delimitar sentidos para as palavras em uso ( os sentidos são em parte "negociados" nas interações). Em cada designação é preciso considerar a rede de crenças dos usuário, as restrições que permeiam o seu mundo, os efeitos pretendidos e, principalmente, como os usuário da linguagem articulam os recursos disponíveis para realizar as suas intenções, o que nós chamamos de Pragmática. Se por um lado isto significa que ironia é tudo aquilo que você quer chamar ironia; por outro, é necessário considerar a presença de uma "força" 4 constituída pela contradição e pela avaliação . Isto não irá restringir o escopo das designações irônicas, mas apontar de forma contingencial para o caráter estético ( teatralidade do uso) em cada momento. 2. As Mentiras (Não) Jornalísticas Em Provérbio (6:16-17) a Bíblia menciona o que o Senhor abomina. Entre elas estão a "língua mentirosa". No livro santo, tal é a gravidade da mentira, que Ananias e Safira são mortos por D'us após mentirem aos apóstolos (Atos, 5:1-10). Correndo esse risco, desafiando ao Supremo 5 , os jornalistas mentem. Teria mudado a noção de mentira, despojada de sua profundidade e circunstâncias perigosas? Ou teria mudado a atividade jornalística? Creio que ambas mudaram. Teoricamente, os participantes de uma conversação reconhecem que ao iniciar o processo têm a obrigação de ser sinceros e que isso integra o contrato social que regula as relações. Evidentemente, essas regras vão sendo "renegociadas" ao longo do processo para ajustar-se às obrigações que refletem o conjunto de forças predominantes em tais circunstâncias (o interesse político, por exemplo). Essa renegociação vai tornar mais relevante a obediência às normas de polidez que a manutenção da própria sinceridade (Oliveira, 2003:3-5). Há esforços permanentes na atualidade, delineados pela mídia, que procuram garantir outro status quo para a mentira a partir de um modo de comunicação publicitária; que se tornou decisivo em nossa cultura. Quer dizer: os esforços não visam deixar os indivíduos ignorantes daquilo que estão fazendo, mas visam impedi-los de equacionar isso com o seu 4

A contradição e a avaliação devem ser considerados atos pragmáticos ( Mey, 1993), ou seja: atos que só podem ser avaliados em uma situação concreta de uso da linguagem; diferentemente de fórmulas prontas como " The cat is on the mat" (Searle, 1984). 5 Talvez, diante desses sinais de apostasia (abandono da fé de uma igreja), é que o governo pretende criar um Conselho Federal de Jornalismo. A lógica é: "Se D'us não impõe; nós impomos".

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"antigo" e "normal" conhecimento do que é mentira. Nesse sentido, o que o jornal "fala" a respeito de algo é hierarquicamente superior ao que os leitores "falam". A noção de hierarquia supõe que, o que o jornal "fala" é o que "ele" decide como material adequado e "verdadeiro" para a conversação. Embora o jornal busque os ganchos (pauta) para tal colóquio na sociedade, o jornal determina a seleção do assunto, a direção do intercurso, quando, onde, como o tema será tratado. Mesmo existindo unanimidade de que os jornalistas devem falar a verdade, não há muita clareza com o que se quer dizer com veracidade. Lippmann (1922) já havia dito que notícia e verdade não designam a mesma coisa. A função da notícia é sinalizar um acontecimento. A função da verdade é trazer à luz fatos ocultos, formando um quadro da realidade dentro do qual as pessoas possam agir. 3. Cego como Milton 6 O jornalismo, por sua natureza, é prático e pouco afeto à filosofia. Geralmente, os jornalistas, quando desejam dizer o que não pode ou não deve ser dito usam de forma intuitiva as implicaturas griceanas. No ambiente redacional as implicaturas são chamadas de "entrelinhas". Obviamente, não se trata da mesma coisa, pois enquanto as implicaturas constituem um fenômeno essencialmente pragmático, as entrelinhas são basicamente semânticas. Em outras palavras, as entrelinhas têm o seu sentido apreendido a partir dos sentidos convencionais implícitos em cada vocábulo e as implicaturas têm o seu sentido apreendido a partir do contexto extralingüístico ( embora o ponto de partida seja o sentido convencional). Por exemplo, a foto em que o presidente Lula está com um boné do MST e segura uma garrafa (Folha, 12/08/04) com a seguinte legenda: (I) Lula recebe de assentada do MST em Rondônia boné e garrafa de cachaça. Nesse quadro, a chamada "exatidão" jornalística é uma espécie de distorção, pois embora factualmente correta é substancialmente não veraz e irônica! A legenda não traz à luz os reais motivos da visita de Lula ao Estado e nem em que circunstâncias o presidente se encontra com uma integrante do MST. Por outro lado, a cobertura completa da visita de Lula (caderno Brasil A4) não menciona o encontro e os presentes recebidos. Para um leitor assíduo 7 da Folha não é difícil "sacar" que a intenção comunicativa da legenda e da foto tem como pressuposto o "escândalo" da expulsão do jornalista americano Larry Rohter, do jornal New York Times, que citou em reportagem sobre lula, a preocupação nacional com o fato de o presidente beber em excesso (FSP, 12/05/04). O enunciado (I) transgride a máxima de modo proposta por Grice (evite ambigüidade, evite expressões confusas) e a foto, como disse Barthes (1993:68) "é construída demais". Portanto, é no "mundo do uso" (Mey, 1993) e não ao nível do enunciado que se deve ancorar o processo interpretativo. Mas não se pode esperar que todos os leitores levantem as mesmas inferências, até, porque, a interpretação é uma "negociação".

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Milton (1608-1674) . No fim de sua vida, pobre e cego, ditou à sua mulher e às suas filhas o imortal poema " O Paraíso Perdido". A expressão "cego como Milton" só é adequadamente compreendida no contexto mais amplo das interações. 7 A idéia de "leitor assíduo" significa alguém que conhece a linha editorial do jornal , compartilha com os articulistas de um certo conjunto de suposições sobre o mundo, e está acompanhando os desdobramentos das notícias.

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Grice (1975) diz que quando duas ou mais pessoas se propõem a interagir, elas irão cooperar para que a interlocução transcorra de maneira adequada. Segundo Grice, toda a comunicação é regida pela cooperação e existem determinados princípios gerais que regulam a maneira pela qual, numa conversação, o ouvinte pode reconhecer, por um raciocínio seu, a intenção do locutor e assim depreender o significado do que ele diz. Cada participação nos diálogos é uma espécie de esforço cooperativo e os interlocutores reconhecem que em cada uma dessas intervenções há um propósito comum, ou um conjunto de propósitos, ou, no mínimo, uma direção mutuamente aceita (Oliveira, 2002:19-20). Em resumo, Grice postulou algumas máximas conversacionais, que especificam o que os falantes devem fazer: falar sinceramente, ser relevantes, claros, fornecer informações de acordo com o que é requerido na ocasião. 8 O que se verifica é que a ironia, embora surja como uma implicatura, não se restringe à simples transgressão de uma das máximas propostas por Grice. No entanto, no exercício das designações, o princípio pragmático griceano pode justificar algumas das aparentes irrelevâncias conversacionais que surgem nos relatos noticiosos, frutos da intenção comunicativa do jornalista, e garantir um cenário para a teatralidade do discurso político. Essa dimensão estética que as máximas permitem, ora manifesta por uma avaliação, ora por uma contradição (condições de força da ironia), revela a força do fenômeno pragmático nos relatos e, exatamente, por isso ocorre um emprego desenfreado de tal recurso. Mesmo com esse "porém", as máximas não podem ser abandonadas. Nesse aspecto, a idéia proposta por Horn (apud Mey, 1993:78-9) é um caminho rumo à ecologia lingüística dos relatos noticiosos. Trata-se de dois princípios pragmáticos chamados de Princípio Q, sendo Q = Quantidade, referindo-se a: "dizer tanto quanto nós podemos" e Princípio R, sendo R=Relação, referindo-se a: " não dizer mais do que nós devemos". O Princípio Q exige que o usuário forneça todas as informações que pode ser dada de acordo com as circunstâncias. O Princípio R o usuário deve permitir que as circunstâncias "falem" e não dar mais informações que o exigido. Isto é, o usuário ao efetuar o cálculo do sentido deve levar em conta a situação e as entidades evocadas a partir do próprio contexto onde se realiza a interação. Na escrita jornalística, os Princípios Q e R, devidamente integrados em uma perspectiva pragmática, constituem um modelo aceitável para operar com as constantes violações conversacionais, em especial, o "equívoco" de se considerar as designações como a expressão direta de fatos objetivos, em vez da expressão de crenças de quem escreve. Mas a eficácia do Princípio Q e do Princípio R diminui diante de variáveis como: a) escamoteação (mentira) por parte dos jornalistas/empresa; b) falha do jornalista no processo de captação ou transcrição dos dados; c) negligência, preguiça, falta de preparo do jornalista ("o espaço da incompetência", segundo Chaparro, 1993:55); d) capacitação das fontes; e) horário de fechamento da edição (pressa e imprevistos); f) organização e poder das fontes em determinar pautas e informações exclusivas; g) perspectiva da observação e da captação dos dados por parte dos jornalistas (pressupostos) etc. De fato, é preciso cautela para examinar o que as designações escondem, falham em cobrir, ou apresentam de forma ininteligível. Não se pode meramente enquadrar uma designação na esfera do não-dito, pois tal uso lingüístico nem sempre corresponde ao oposto do que é dito nos relatos noticiosos e o fato de não-dizer o contrário abre o leque de inferências possíveis. 4. "A missa terminou" 9 8 9

Leech (1983) acrescentou uma Máxima de Polidez e uma Máxima de Ironia. "Ite missa est". Crônica de Cony publicado na Folha em 05/06/2000, p.2.

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Ao fazer a liturgia das antigas missas, a igreja obrigava o padre a dizer que a missa tinha acabado, para que todos fossem embora. Do contrário, os fiéis ficariam ali, esperando grandes coisas, quem sabe um milagre ou a própria aparição do divino. Os relatos jornalísticos, ao contrários das missas, acontecem em tempo integral e não há como interrompê-los: "blocking the news supply is like cutting the umbilical cord that is our life and worl-awareness conection, or like pulling the plug on a terminal patient" (Mey, 1985:314). 10 As notícias nunca terminam, não há uma mensagem final; os produtores de textos pouco se preocupam com a limitação de inferências pois é preciso atender à "esfera dos públicos". O abuso das designações revela a limitação dos relatos, ou seja: o que a notícia esconde ou o jornalista deixou de cobrir, as mediações em ação (hierarquização dos fatos), a angulação para o relato que pode encobrir por que as coisas realmente acontecem e, naturalmente, pela abrangência dos recursos de preparo e disposição do material jornalístico nas páginas, contribuir para a inadequação entre o conhecimento ativado pelo sentido do texto e o conhecimento e universo cognitivo dos leitores. Como a liturgia jornalística não prevê uma finalização para o que é veiculado diariamente, uma espécie de aviso ou advertência nos seguintes moldes: "salvo alguma tragédia que possa acontecer nas próximas horas, nada mais temos a informar", é preciso que leitores e espectadores sejam "cautelosos como as serpentes" (Mateus, 10:16) . E aos jornalistas é preciso lembrar que Jesus nem sempre dizia toda a verdade, especialmente quando revelar todos os fatos poderia colocar em perigo a ele e aos discípulos. Mas, mesmo nessas ocasiões, ele não mentia. Em vez disso, ele optava por ficar calado ou mudar de assunto (Mateus, 21:23-27). 11 É pouco provável que uma ecologia lingüística possa ser implementada nos discursos políticos veiculados pela mídia dependendo apenas do "Altíssimo", haja vista que o próprio criador do universo, em sua onipotência, emprega ironias de forma diversificada; e isso é uma espécie de salvaguarda para os jornalistas 12 . No entanto, alguns procedimentos heurísticos podem ser estabelecidos para os interlocutores sem os chamar de um "bando de néscios", incapazes de perceber por outros meios as designações (ironia e mentira) nos veículos de comunicação! Assim: a) deve-se rejeitar o sentido literal do enunciado: não porque simplesmente não se concorda com o mesmo, mas se alguém está prestando atenção ao que ouve ou lê, será capaz de perceber incongruências entre as palavras, entre as palavras e alguma coisa que conhece, entre as palavras e a realidade 13 b) deve-se testar ou tentar explicações alternativas: isto é, à medida em que interpretações plausíveis falhem em apontar a ironia, deve-se considerar se houve lapso do emissor, se está brincando, se está bêbado, delirando, se algo dito/escrito anteriormente não foi perdido, se as palavras empregadas constituem gíria, jargão jornalístico, termos técnicos, sentidos não usuais para os interlocutores; 10

Preferi não traduzir a fim de manter os efeitos pretendidos pelo autor. Usava implicaturas (parábolas) e apelava para a racionalidade dos falantes . 12 Basta constatar o emprego de ironias na Bíblia. 13 O sentido é em parte"negociado" e em parte "dado/escolhido" em uma situação interativa concreta. Assim, a rejeição a determinado enunciado ou palavra que apresente incongruência com a situação comunicativa ou contexto pode variar , de acordo com os interlocutores envolvidos. Umberto Eco (FSP, 18/02/92, p.6-4) observa que foi procurado por um editor que desejava publicar o "Inédito de Dante sobre Saussure", título de um de seus artigos irônicos! 11

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c) deve-se deliberar sobre o conhecimento de mundo, conhecimento lingüístico, conjunto de crenças e intenções dos interlocutores; d) deve-se buscar "pistas" no contexto extralingüístico. Esses procedimentos estão associados ao Princípio de Cooperação e funcionam como um mecanismo de "descoberta" para os leitores/espectadores. No entanto, não garantem que os produtores de textos sigam o que foi proposto por Marcel Bernhardt, que, com o pseudônimo de Alcanter de Brahm, publicou em 1899 um trabalho intitulado L'Ostensoir des Ironies, onde sugere que os jornalistas usem uma marca de pontuação especial ao lado de cada enunciado irônico! Inicialmente, a proposta de uma "ecologia lingüística" para o texto noticioso é contraditória. Por um lado, há os critérios específicos da atividade jornalística que estipulam diferentes forças ilocucionárias para cada um dos chamados gêneros periodísticos. No caso da notícia, essa força é caracterizada como: afirmar com certeza, com segurança (o que não quer dizer a verdade dos fatos). De outro, existe a constatação de que não há gêneros puros 14 , o que implica em "outras" forças presentes no mesmo texto, entre as quais, a ironia e a mentira; por isso há que se considerar o que disse Mey (2003:334-6): "facts are never just facts(...)" 15 . No entanto, se considerarmos a idéia de "ecologia lingüística" em termos políticos e morais, e os meios de comunicação comprometidos com as tendências culturais e os interesses das elites, então é preciso implementar uma "educação midiática" nos vários segmentos da sociedade com o objetivo de trabalhar os códigos e técnicas dos meios de comunicação. O objetivo não é formar jornalistas, mas educar para familiarizar os indivíduos com as convenções específicas dessas atividades e dismistificar a onipotência dos diversos veículos. Nesse contexto, as designações continuarão a compor a teatralidade política dos discursos, mas os interlocutores inicialmente irão indagar: "de quem é a linguagem que o jornalista está usando?" Afinal, o jornal, a televisão, a internet, representam o que há de mais extraordinário em termos de criatividade humana; o problema, porém, é quem os controla. Não se trata de uma questão de neutralidade, pois ninguém é neutro, mas de independência! "Que a primeira das vossas leis consagre para sempre a liberdade de imprensa. Esta é a mais intocável, a mais incondicional liberdade – sem a qual as outras liberdades nunca poderão ser asseguradas" (Mirabeau). 5. Referências Bibliográficas BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Bertrand Brasil, 1993. BÍBLIA Sagrada. Rio de Janeiro: Gama Editora, 1981. BURKE, Peter. Hibridismo Cultural.São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003. CHAPARRO, Manuel. A Pragmática do Jornalismo. São Paulo: Summus, 1993. FERREIRA, Aurélio. Novo Dicionário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. GRICE, H.P. Logic and conversation. In: COLE, P.; MORGAN, J. (Eds.). Syntax and semantics 3: speech acts. New York: Academic Press, 1975. KOVACK, B. ; ROSENSTIEL, Tom. Os Elementos do Jornalismo. SP: Geração, 2003. LIPPMANN, W. Public Opinion. New York: Free Press, 1922. 14 15

Como não há línguas puras. Segundo Lutero: Omnes linguae inter se permixtae sunt (apud Burke, 2003;49). Novamente, preferi não traduzir para não alterar o sentido pretendido pelo autor.

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