A EVOCAÇÃO DA MORTE NO SÉCULO XIX PAULISTA: A VISÃO LITERÁRIA

May 29, 2017 | Autor: Sandra Guedes | Categoria: Cultural History, Historia Social, História e Literatura, História da morte
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Sociedade Brasileira de Pesquisa Hitórica (SBPH) Anais da VII Reunião São Paulo -1988

A EVOCAÇÃO DA MORTE NO SÉCULO XIX PAULISTA: A VISÃO LITERÁRIA Sandra P.L. de Camargo Guedes (Mestre peta USP)

A literatura pode nos fornecer valiosos depoi mentos sobre a vida cotidiana que, geralmente, não aparecem em outros tipos de documentos. Por isso, os romances, poesias e memórias constituem fontes de grande interesse para o historiador das menta lidades. Tendo em vista esta íntima ligação entre História e Literatura, procuramos recolher nesta última informações a respeito do pensamento sobre a morte dos paulistanos no século XIX. A produção literária da cidade de São Paulo no oitocentos esteve grandemente ligada à Academia de Direito criada em 1828. Os jovens que ali estudavam foram os principais transmissores das ideias mais avançadas trazidas da Europa. Por isso, o pensamento que suas obras deixam transparecer representa uma das camadas mais privilegiadas da população paulistana, camada esta bastante atuante nos âmbitos políticos, económicos e culturais. Enquadravam-se os estudantes no movimento romântico que se desenvolvia na Europa já em finais do século XVIII e chegava ao Brasil em princípios do XIX. Eram eternos insatisfeitos e críticos de todos os padrões pré-estabelecidos. Alguns desses românticos da Academia seguiram apaixonadamente os ideais preconizados por Byron. Deste modo, deixavam -se levar pelo extremismo e "exacerbação de sua sentimentalidade e mesmo as fantasias da imaginação mórbida". As obras de Álvares de Azevedo (1831-1852) são exemplos típicos desse tipo de atitude. Noite na Taverna revela todo o narcisismo que cercava a vida do autor. Como reflexo típico do byronismo, Álvares de Azevedo demonstra nessa obra como todas as "suas paixões amorosas são macabras e demoníacas, ou mórbidas e incestuosas, de qualquer maneira cínicas".1

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Conferir CÂNDIDO, Antóno; CASTE LLO, J. Aderaldo. Presença da literatura Brasileira

A palidez de uma defunta causa -lhe a paixão e delírio, sendo capaz de amar perdidamente uma mulher que pensou estar morta: "Era uma defunta [...]. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo... Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo os despe à noiva. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela[..]." Apesar daquela mulher ter, pouco depois, despertado de uma catalepsia, veio a falecer horas depois, após alguns momentos de amor. O amante, com o que não querendo separar-se dela, enterrou-a sob o piso de seu quarto, logo abaixo de sua cama. Antes, porém, teve o cuidado de chamar um estatu ário para fazer uma estátua da amante morta. Guardou também a grinalda de flores, parte da mortalia, como recordação.2 A ficção de Álvares de Azevedo atesta o já observado por Phillipe Aries através de seu estudo sobre a morte no Ocidente. Tornou-se comum as pessoas apegarem-se aos restos mortais de seus entes queridos. Conservar o túmulo bem perto de casa ou guardar algum objeto que pertencesse ao cadáver amado era uma maneira de tê-lo pela eternidade. 3 Reunir num

I. das Origens do Romantismo, São Paulo: Difel, 1968, p. 245 e segs. 2

AZEVEDO, Alvares de. Noite na Taverna. Rio de Janeiro: Universidade Popular, 1963. p. 26-7.

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ARIES, Philiipe. História da Morte no Ocidente, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. p. 46-7.

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só ponto do cemitério os restos mortais dos familiares também passou a ser importante.4 Um dos personagens de Alvares de Azevedo em Noite na Taverna revelou só ter duas únicas boas lembranças de sua vida: uma rosa murcha e a fita que prendia os cabelos de sua amada falecida e a caveira de um poeta. 5 Essa relação entre morte e amor, frequentemente registrada nas obras de Álvares de Azevedo, foi também constatada por Jamil Almansur Haddad, O Romantismo Brasileiro e as Sociedades Secretas, quando descreve o famoso caso da "Rainha dos Mortos" ocorrido em meados do século XIX, numa noite quando um grupo de estudantes declamava Byron em cima dos túmulos do cemitério:

passa a ser bela. A beleza da morte e sua "doçura narcótica" fora evidenciada pelos iluministas através da Encyclopédie e essas características foram bravamente defendidas pelo romantismo. Pretendia-se criticar a Igreja e o clero pela imagem terrível e assustadora que imprimiam da morte. Porém, o que era para ser crítica passou a ser uma volta cada vez mais ardorosa à religiosidade.8 Junqueira Freire (1832-1855) demonstrou em poesia esse sentimento controvertido a respeito da morte. Num momento de "desespero interior" escreveu um poema dedicado à morte, onde revela seu profundo apreço por ela, a ponto de chamá-la de "amiga".

"Dirigiram-se a uma loja maçónica onde apanharam vestimentas e mantos de tétrica aparência e, em seguida, a casa de uma mundana débil mental. Pegaram-na, envolveram-na em um lençol, colocaram-na em um esquife e rumaram para o cemitério. No caminho, um jovem que estudara em Heidelberg, declamava Goethe no original. No cemitério outro foi escolhido para amante da rainha. Arrancou a tampa do caixão, agarrou a moça e viu que ela tinha morrido de pavor. "Osculei um cadáver"! Gritou, entre horrorizado e triunfante. 6

MORTE (Hora e delírio) "Pensamento gentil de paz eterna Amiga morte, vem. Tu és o termo De dois fantasmas que a existência formam, — Dessa alma vã e desse corpo enfermo. Pensamento gentil de paz eterna Amiga morte, vem. Tu és o nada. Tu és a ausência das moções da vida. Do prazer que nos custa a dor passada. Amei-te sempre: — e pertencer-te quero Para sempre também, amiga morte. Quero o chão, quero a terra, — esse elemento Que não sente dos vaivéns da sorte".9

Segundo Aries, do século XVI ao XVIII, cenas ou motivos inumeráveis, na arte e na literatura, associam a morte ao amor". A morte era, por vezes, um objeto de desejos sexuais. A época caracterizou-se por uma grande quantidade de temas "erótico-macabros ou temas simplesmente mórbidos, que testemunham uma extrema complacência com os espetáculos da morte, do sofrimento, dos suplícios". 7 É exatamente esse tipo de conduta que encontramos nas obras de Álvares de Azevedo e no episódio narrado por Jamil A. Haddad, o que significa um reflexo, na literatura brasileira, de ternas macabros, reflexo,este tardio, se comparado ao que se verificou nos países ocidentais estudados por Aries. Ao mesmo tempo, uma outra maneira de encarar a morte, também registrada por Aries, é encontrada nos romances e poesias brasileiros: o sentimento da morte como sendo uma ruptura entre a vida presente e a que viria depois da morte. A morte em si, não é mais "desejável", mas sim desejada. Morrer significava terminar os tormentos-e problemas de uma existência conturbada e dar início a uma vida nova. A morte

Para os românticos a morte era o final dos problemas e das tristezas, era a salvação e não a perdição. Assim se expressou Fagundes Varela (1841-1875) a respeito: "Livre dos vícios, livre dos pecados. Sobe à eterna morada, revestido de formas luminosas. Mas a essência imortal, aquece-a oh! Agnís-E leva-a docemente à clara estância onde os justos habitam. Para que aí receba um novo corpo E banhada em teu hálito celeste outra vida comece. . ." 10

8 4

Ver ATAS DA CÂMARA DA CIDADE PAULO, 1864, V.L., p. 129. 5

Álvares de AZEVEDO, Noite na Taverna, p. 51-2. Apud MORSE, Richard M. Formação Histórica de São Paulo. São Paulo: Difel, 1970. p. 125. 7 Phílíppe ARIES, op. cít., p. 41-2. 6

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10

A ideia de ruptura aparece nas obras de Philippe Aries, História da morte no Ocidente, p. 42 e em O Homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. v. 11, p. 446 e segs. In: A. CANDIDO; A CASTELLO, Presença da Literatura Brasileira, v. II, p. 40-3. Oração Fúnebre, in A. CÂNDIDO; A. CASTELLO, ob. cit., p. 70-1.

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É comum encontrarmos em diveras poesias românticas sentimentos de carência como esses acima descritos. Gonçalves Dias (1823-1864) também invejou em "Se se morre de amor!" aqueles que encontram o fim de todos os seus males na morte:

Esse, que à dor tamanha não sucumbe. Inveja a quem na sepultura encontra Dos males seus o desejado termo t"11 A morte também podia ser a salvação daqueles que tivessem seus sentimentos muito feridos. Desejar morrer e mesmo alcançar a morte por causa de um amor frustrado, tornou-se lugar comum entre os românticos oitocentistas. Contudo, não só na ficção se morria de amor: um livro de memória da época relata que uma mulher, chamada Laura, levou um estudante da Faculdade de Direito ao suicídio: ela trocara o seu amor pelo de outro, mais rico do que ele. O então aluno, Francisco Ferreira de Rezende, registrou a morte e sepultamento deste moço, Feliciano, que envenenou-se com arsénico, chocando toda a cidade de São Paulo. "A mocidade de Feliciano, o ano em se achava (5 o ano), as suas qualidades pessoais, o repentino do acontecimento, e todas estas cousas combinadas com o fato tão excepcional da morte de um estudante, explicam da maneira a mais perfeita o grande abalo que um tal fato produziu". 12 Embora essas ideias com relação à morte tentassem permanecer no seio da sociedade paulista, elas não frutificaram realmente. As manifestações macabras dos estudantes de Direito de formação byroniana tiveram o seu tempo, mas não conseguiram atingir grandes proporções através do século. Elas foram inseridas num contexto religioso que predominou no século XIX, não só paulista como também de todo Ocidente cristão, como salientou Aries. As "fantasias erótico-macabras" passaram a ser expressas por um "fascínio mórbido da morte" sob forma religiosa.13 Foram nas poesias de Castro Alv es (18471871) que encontramos muitos exemplos dessa tendência à religiosidade. Além disso, elas revelam um lado que pouco aparece na documentação da época e que, por isso, tornou-se importante exemplo para este trabalho: a morte do negro. Apesar de Castro Alves pertencer à sociedade baiana e não paulistana, foco de nosso interesse, suas obras mostram com esplendor tanto o apego à religião como o ideal de liberdade que a morte inspirava.

11

DIAS, Gonçalves. Poesia, 5 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1969.

12

REZENDE, Francisco de P. F. De. Minhas Recorda ções, Rio de Janeiro: José Olimpio, 1944, p. 254.

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Para os negros, a morte era sinônimo de liberdade total, ou seja, fim não só das amarguras da vida, como diziam os "românticos-brancos", mas, principalmente, o fim do cativeiro. Em "Mater Dolorosa" (1865), o grande poeta descreve o sofrimento pelo qual passa a mãe escrava que prefere matar seu filho a v ê-lo escravo como ela. Sofreria com sua morte mas, ao mesmo tempo, ficaria feliz tendo a certeza que ele estaria livre e ao lado de Deus.

Não me ma/digas... Num amor sem termo Bebi a força de matar-te. . . a mim... Viva eu cativa a soluçar num ermo... Filho, vá livre... sou feliz assim...

Perdão, meu filho... se matar-te é crime.., Deus me perdoa.. . me perdoa lá. A fera enchente quebraria o vime.. . Velem-te os anjos e te cuidem lá".14 A mesma atitude de mãe matando o filho para que pelo menos ele alcançasse a liberdade aparece em "A mãe do cativo" (1868). "Ó mãe do cativo que fias à noite A rede que ataste nos galhos da selva'. Melhor tu farias se à pobre criança Cavasses a cova por baixo da relva. Ó mãe do cativo que fias à noite As roupas do filho na choça de palha Melhor tu farias se ao pobre pequeno Tecesses o pano da branca mortalha.”15 "A cruz na estrada", outra poesia de Castro Alves, datada de 1865, revela que apenas em sua sepultura, abandonada num campo qualquer, o negro tem liberdade. 1 6 Só ali, de encontro com a natu reza e com Deus, ele é feliz e ninguém tem o direito de o molestar mais: "Caminheiro que passas pela estrada. Seguindo pelo rumo do sertão. Quando vires a cruz abandonada, Deixa-a em paz dormir na solidão

É de um escravo humilde sepultura. Foi-lhe a vida a velar de insônia atroz.

14

Poetas Românticos Brasileiros, v. l, p. 167-8

15

Poetas Românticos Brasileiros, v. l, p. 189-91.

16

ARIES, Philippe, O Homem diante da morte, v. II, p. 448 e segs. Ver também História da morte no Ocidente, p. 43.

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Geralmente, os pobres e escravos eram enterrados nos campos cada qual da forma que suas posses permitiam, pois não era conveniente aos senhores de escravos dispender qualquer quantia no sepultamento dos negros que estiveram a seus serviços.

Deixa-o dormir no leito da verdura. Quê o Senhor dentre as selvas lhe compôs

Caminheiro! do escravo desgraçado O sono agora mesmo começou! Não lhe toques no leito de noivado. Há pouco a liberdade o desposou".17 O próprio Álvares de Azevedo, nos últimos anos de sua vida, talvez sentindo a doença consumi-lo, transformou suas fantasias erótico-macabras em reflexões sobre a própria morte. Pede perdão a Deus por sua vida pecadora, dizendo que na morte encontrará descanso. Nesse momento, o poeta apresenta um atestado da educação religiosa recebida no seio da família declarando acreditar no grande julgamento final, quando todos os mortos comparecerão frente a Deus para serem julgados.18 "Quando o trovão romper as sepulturas. Os crânios confundidos acordando no lodo tremerão. No lodo pelas tumbas impuras Os ossos estalados tiritando dos vales surgirão. Perdoa, meu Senhor. O errante crente Nos desesperos em que a mente abrasas Não o arrojes pelo crime Se eu fui um anjo que descreu demente E no oceano do mal rompeu as asas, Perdão! arrependí-me”19 A beleza da morte tornou-se cristã na medida em que o defunto atingiria uma vida muito melhor junto a Deus. A morte seria boa para os que morressem, mas terrível para os que ficassem, pois a separação passaria a ser intolerável. O grande abalo causado por um falecimento só poderia ser diminuído pelo apego à religião. A extrema-unção, a presença do padre ao lado do moribundo e as numerosas rezas pela salvação da alma, adquirem nova força com o romantismo. O apego à família e aos entes queridos, também produto da época romântica, garantia a execução de sufrágios, que antes deveriam ser pedidos através dos testamentos. A falta destes sufrágios implicaria numa morte intranquila e temerosa. As orações e a fé fariam os vivos conformarem-se com a morte e perceberem que existia outra vida

melhor do que essa. Os necrológios estão repletos de declarações de religiosidade. O consolo dos vivos só seria encontrado na fé. Além disso, o romantismo ensinou as pessoas a chorar, suplicar e se desesperar de emoção frente a um cadáver. É a época dos grandes funerais, dos desmaios e lutos prolongados. Tornou-se bonito e elegante ter um funeral, com muita gente chorando e demonstrando dor e pesar. Quanto maiores fossem essas demonstrações, maior teria sido a popularidade e importância do falecido. O luxo das salas mortuárias de pessoas de destaque, ou que pretendiam tê-lo mesmo depois de mortas, tornou-se, no decorrer do século XIX, cada vez mais notório. Uma pessoa que pudesse ter, após sua morte, uma grande suntuosidade, certamente fora uma pessoa muito importante, querida e, sem dúvida, merecedora de muitas lágrimas. Essas atitudes comoventes deveriam continuar também durante o enterro. O sepultamento de Feliciano, descrito por Francisco de Paula F. de Rezende, é uma expressão da importância social que um funeral adquirira: "o seu enterro foi um desses acontecimentos que por muito tempo e por diferentes motivos nunca deixaram de se conservar na memória daqueles que o assistiram". Ele não havia visto nenhum antes que tivesse sido "tão solene" e "tão triste". 20 A literatura da época faz questão de salientar a grandeza dos funerais "dos grandes homens". Os necrológios tinham presença constante em todos os jornais, onde podemos evidenciar, dentre outras coisas, a linguagem utilizada para expressar a dor pela perda de uma pessoa querida. Os subsídios que a literatura fornece à História são, sem dúvida, inumeráveis em todos os aspectos. O historiador que se valer deles certamente acrescentará informações preciosas aquelas encontradas em outras fontes. O estudo interdisciplinar, tão evidenciado pela História Nova, torna-se cada vez mais indispensável na compreensão das mentalidades humanas, ramo tão complexo do conhecimento hist órico, já que é nas entrelinhas que se encontram os reflexos do pensamento mais Intimo das pessoas. As atitudes perante a morte enquadram-se plenamente nesse contexto e revelam uma preocupação constante em desvendar um dos mistérios mais antigos da natureza. A análise dessas atitudes nos permite compreender as ações humanas nos mais diferentes momentos de suas vidas. Deixamos aqui registrada, portanto, mais uma vez, a necessidade de se fazer, cada vez mais, estudos sobre a morte, sem nunca esquecer da importância crescente das demais Ciências Sociais para o aprofundamento da Ciência Histórica.

17

. Poetas Românticos Brasileiros, v. l, p. 176.

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19

Ver sobre esse assunto em nossa dissertação de mestrado. Atitudes perante a morte em São Paulo sécs. XVII a XIX), apresentada à F.F.L.C.H. da USPem 1986.

20

Poetas Românticos Brasileiros, v. II, p. 206.

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Francisco de Paula Ferreira de Rezende, Minhas Recordações, p. 253.

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