A evolução da linguagem: uma recontextualização pela ótica da linguística

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO DEPARTAMENTO DE LÍNGUA E LITERATURA VERNÁCULAS

TIAGO KROICH

A EVOLUÇÃO DA LINGUAGEM: UMA RECONTEXTUALIZAÇÃO PELA ÓTICA DA LINGUÍSTICA

Florianópolis, 2016

TIAGO KROICH

A EVOLUÇÃO DA LINGUAGEM: UMA RECONTEXTUALIZAÇÃO PELA ÓTICA DA LINGUÍSTICA

Trabalho

de

Conclusão

de

Curso

apresentado como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Letras – Português, sob a orientação do Prof. Dr. Heronides Moura.

Florianópolis, 2016

Por duas promessas feitas demasiadamente tarde, dedico este trabalho in memoriam a Evaristo Kreusch e a José Antônio da Silva Neto. Ao primeiro (cuja sabedoria sempre respeitou os livros sem nunca ter deles dependido), porque nunca lhe pude proporcionar a alegria de me ver formado. E ao segundo (que em sua curtíssima vida me ensinou o real valor de uma promessa), porque ainda hoje me ensina a importância cotidiana de não deixar implícita a ideia de amor que é intrínseca a toda vida. Eis-me aqui, meus caros, carinhosamente pensando em vocês.

AGRADECIMENTOS

Agradeço de coração a todos os mestres e amigos, que são, lisonjeiramente, muitos:

A George, Jéssica, Lemke, Piteco e Lully, aos quais devo o mais sincero carinho e respeito por poder divergir sem rivalizar, no estímulo ético e intelectual incessante. Espero sempre estar à altura.

A Samanta e a Giuseppe: minha admiração (um tanto secreta) foi por vezes o empurrão necessário e o melhor remédio contra a autopiedade. A Berenice e Duda – sou muito, muito grato por todo o carinho. É um prazer e um privilégio lhes fazer companhia. Desculpem meu sumiço! A Moira, que deveria seriamente parar de fumar – a ansiedade e o perfeccionismo eu sei que compartilhamos (mas bem que eu queria poder dizer o mesmo da sua produtividade). Μοίρα μοσ έγινες.

A Flávia, com quem descobri que mudanças não são perdas, e que a inevitabilidade do tempo não se dá só pela tristeza – «Faites des bêtises, mais faites-les avec enthousiasme!»

A Iris, minha companheira de jornadas aleatórias, desde a cerveja até o trabalho. A ti desejo o sossego que mereces. Vais sempre ter em mim um porto seguro.

A Luiza, por todas as nossas noites de chás, piadas, conselhos e carinho nos momentos mais complicados. Mal sabe você a diferença que isso fez.

E, como é de se esperar, à trupe burlesca que se mantém forte a despeito dos descasos do Renan: Hiroshi, Sandro, Zenon e Vitor, cujo apoio não custa, e cuja amizade só acresce (e cresce). A vida vai continuar puxando de todos os lados, e é bem possível que a distância nos espalhe pelos quatro cantos do mundo. Mas esses catorze anos com vocês foram inigualáveis. Muito obrigado por tudo, meus amigos. Eu amo muito todos vocês.

A Amanda, que, estando ao meu lado, me ouviu e me escutou e me viu espernear – enquanto enfrentava mais coisa ainda do que eu. Perdi a conta de quantas das minhas tempestades em copo d‘água você desfez. Por ti tenho todo o carinho e o respeito que cabe em mim, querida. Sou muito, muito grato por todo o seu apoio. Conte comigo, agora e sempre! Nossos haicais de borboleta serão sempre teus.

À professora Leonor Scliar-Cabral, com muito carinho, pelos insubstituíveis anos de tutela na academia e na vida, e por cujo apoio eu serei eternamente grato. Sua dedicação à minha formação é a maior das honras que recebi na universidade.

Ao professor Heronides, que acreditou em mim desde muito cedo, por todo o incentivo e estímulo que me abriram as portas na academia. Muito obrigado pela paciência, confiança e respeito (apesar dos meus deslizes de prazo e dos meus problemas de foco). Sem sua orientação este trabalho não teria tido um norte.

E, por fim, e com amor, agradeço a Iran e Sonia, pelo mais absoluto êxito na sisifiana (e às vezes ingrata) tarefa de serem pais.

―Human reason begins in the same way with its native powers and thus creates its first intellectual tools. Through these it acquires further powers for other intellectual operations and through them further tools and the power of extending its inquiries until by degrees it reaches the summit of wisdom.‖ (Benedict Spinoza)

―Linguistics is arguably the most hotly contested property in the academic realm. It is soaked with the blood of poets, theologians, philosophers, philologists,

psychologists,

biologists,

and

neurologists, along with whatever blood can be got out of grammarians.‖ (Russ Rymer)

RESUMO

O objetivo principal deste trabalho é recontextualizar o tema da evolução da linguagem para as ciências linguísticas, uma vez que praticamente todo o trabalho sobre esse tópico até a década de 1980 foi conduzido por primatólogos, antropólogos, etólogos e especialistas de outras áreas. Para esse fim, também é necessário discutir introdutoriamente alguns tópicos em teoria evolutiva, assim como rever parte da pesquisa feita por esses pesquisadores de outras áreas. A linha de pensamento que estrutura esse trabalho foi inspirada na produção acadêmica do linguista Derek Bickerton, por conta de suas quase quatro décadas de pesquisa nas áreas de crioulização e da hipótese da protolinguagem (termo de acepção evolutiva e não filológica), assim como seu interesse ativo em promover o tópico e sua relevância dentro da linguística.

Palavras-chave: Evolução da linguagem. Linguística evolutiva. Protolinguagem.

ABSTRACT

The main goal of this monograph is to re-establish the discussion on the evolution of language within the field of linguistics proper. Since virtually all the work on this topic until the 1980s was led by experts from other areas, such as primatologists, anthropologists, ethologists etc. we deemed it necessary to review some pertinent aspects of evolutionary theory, as well as part of the research made in the aforementioned areas. The structure of this monograph is based on the work by Derek Bickerton, a linguist who has worked over the course of nearly four decades on the topics of creolization and the protolanguage hypothesis (i.e. not in a philological sense but in an evolutionary one), and whose active interest in promoting the topic and its relevance within the linguistic sciences partly inspired the writing of this monograph.

Keywords: Language evolution. Evolutionary linguistics. Protolanguage.

LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Cinco diferenças fundamentais entre processos de evento e de equilíbrio......... 25

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13 1. TEORIA EVOLUTIVA ..................................................................................................... 20 1.1 SELEÇÃO NATURAL COMO UM ALGORITMO ......................................................... 22 1.2 EVOLUÇÃO COMO PROCESSO DE EQUILÍBRIO ...................................................... 24 1.3 ADAPTAÇÃO, SPANDREL E EXAPTAÇÃO ................................................................ 26 1.4 GRADUALISMO E EQUILÍBRIO PONTUADO ............................................................ 31 1.5 CONSTRUÇÃO DE NICHOS E EFEITO BALDWIN ..................................................... 35 2. ANIMAIS NÃO-HUMANOS ............................................................................................ 42 2.1 LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO ................................................................................. 43 2.2. MOTIVAÇÃO DOS ESTUDOS DE PROTOLINGUAGEM ANIMAL ......................... 45 2.3. BREVE HISTÓRICO DAS PESQUISAS ........................................................................ 46 2.4. PROBLEMAS METODOLÓGICOS ................................................................................ 49 2.5 ALGUMAS CONCLUSÕES SOBRE PROTOLINGUAGEM ANIMAL ........................ 52 3. A FILOGÊNESE DA LINGUAGEM ............................................................................... 54 3.1 TRÊS PROBLEMAS ......................................................................................................... 58 3.2 O PRIMEIRO PROBLEMA .............................................................................................. 61 3.2.1 CONCEITOS E PALAVRAS ......................................................................................... 62 3.2.2 A NARRATIVA DOS NICHOS ..................................................................................... 66 3.3 O SEGUNDO PROBLEMA .............................................................................................. 68 3.3.1 A GRAMÁTICA UNIVERSAL ..................................................................................... 69 3.3.2 A EMERGÊNCIA DA SINTAXE .................................................................................. 72 3.4 O TERCEIRO PROBLEMA .............................................................................................. 77 3.4.1 VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGUÍSTICA ................................................................. 79 3.5 HOMO SAPIENS LOQUENS ........................................................................................... 84 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 88 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 90

13

INTRODUÇÃO

Basta um breve momento de reflexão para que um indivíduo se dê conta de um aspecto curioso: a linguagem provê à espécie humana uma capacidade sem paralelo no reino animal de superar boa parte de suas adversidades ecológicas – um hominídeo oriundo da savana africana que pisou na lua. Entretanto, essa reflexão tem de ser feita conscientemente, uma vez que a naturalidade com que ostentamos cotidianamente tal ferramenta faz com que sua importância passe despercebida à enorme maioria daqueles que dela fazem uso. Charles Darwin, há cerca de 150 anos, se deu conta de que a evolução das espécies ocorre gradativamente e em resposta às condições ecológicas que as afetam. À totalidade dos processos responsáveis por essa transformação gradual entre gerações, o inglês deu o nome de seleção natural. Embora haja controvérsias em relação ao quão gradual verdadeiramente sejam essas mudanças (ELDREDGE; GOULD 1972) e críticas à centralidade do mecanismo de seleção por adaptação em prol de modelos heterodoxos (GOULD; LEWONTIN 1979; GOULD; VRBA, 1982), a questão perdura: à primeira vista, a natureza parece ter catapultado a espécie humana (mas nenhum de seus parentes próximos) para o mais alto topo, concedendo a ela o domínio dos mais diversos ecossistemas possíveis. A essência da questão é, portanto: como? Como uma única espécie chegou a ter posse de uma ferramenta tão poderosa ao ponto de acelerar e transformar tanto suas próprias condições evolutivas? (DAWKINS, 2006, p. 121). Mas essa é uma pergunta ampla, aberta, que convida filósofos, biólogos, arqueólogos e toda uma pletora de áreas, interesses, perspectivas e bagagens intelectuais distintos. E que relevância tem isso para as ciências linguísticas? A despeito de um possível egocentrismo acadêmico por trás da pergunta1 (que não parece levar em conta o que a linguística poderia fazer pelas demais disciplinas interessadas), a relevância à linguística é tanto de caráter filosófico (DENNETT, 1995, p. 402-403; QUINE, 1996, p. 160) quanto, finalmente, até mesmo de caráter empírico (BICKERTON, 2014, p. 14; DUNN et al., 2011).

1

Hurford (HURFORD et al., 2000, p. 221) comenta a necessidade (muito mal reparada até pouco tempo atrás) de que linguistas auxiliem biólogos acerca das complexidades da linguagem (e, em especial, da sintaxe). Essa interação poria limites saudáveis às extravagâncias acadêmicas como as de Katz (2008), à euforia exacerbada de Slobodchikoff (1998) e ao descaso com o uso descabido de termos da linguística para denotar externalizações comunicativas e/ou protolinguísticas de animais em Gardner e Gardner (1971)

14

Perspectivas como a da biolinguística (cf. CHOMSKY, 2007; BOECKX; GROHMANN, 2007) têm como pressuposto explícito a relação imanente entre cérebro e linguagem (nem que de maneira epistemologicamente indireta, i.e. cérebro-mentelinguagem), por meio da concepção genética do LAD (language acquisition device). Ora, seja o LAD tratado metodologicamente como um órgão propriamente dito ou como um conjunto de configurações neuronais desenvolvidas na interação complexa entre genes, restrições biofísicas e capacidades neuroplásticas na ontogênese do indivíduo humano (HAUSER et al., 20022) – seja como for, a relação com a biologia humana é explícita e, portanto, passível de análise sob a lente evolutiva (BICKERTON, 2014, p. 39). É claro que não há problema algum com a condução de pesquisas que não reduzam as ciências linguísticas às ciências biológicas. O ponto aqui não é advogar o reducionismo (que, conforme Dennett [1995], não é o mesmo que reducionismo ganancioso – atitude que, por sua vez, subtrai uma parte sem acrescentar outra), mas apenas ressaltar seu potencial de enriquecimento teórico por meio de contribuições interdisciplinares (BECHTEL, 1994, p.11; BERETTA, 2008, p. 155). No entanto, a dificuldade em unificar campos científicos distintos (com níveis de descrição distintos [cf. GRILLNER et al., 2005]) é gigantesca: especificamente no que concerne ao aspecto biológico da biolinguística, alguns autores (cf. REICH; RICHARDS, 2004) criticam o abismo que separa as pretensões epistêmicas de gerativistas em geral e sua desarmonia com os avanços na área de neurobiologia. De fato, alguns autores como Jenkins (2000) e Smith (in CHOMSKY, 2000, p. viii) defendem explicitamente a autonomia e primazia epistêmicas da linguística sobre seu objeto de estudo, receosos de uma redução exacerbada das ciências linguísticas à psicologia ou à biologia. No entanto (e é esta a ótica que motiva o presente trabalho), o objetivo desse diálogo teórico não é o de subordinar uma ciência a outra, mas sim o de promover um refinamento mútuo na plausibilidade de suas hipóteses (BERETTA, 2008, p. 155). Por exemplo, algumas características da GU (gramática universal) gerativista-transformacional e dos princípios e parâmetros se mostram bastante problemáticas quando vistas à luz da evolução e até mesmo

2

Diversas abordagens neurocientíficas modernas como a neuroepigenética (SWEATT, 2013), o darwinismo neuronal (EDELMAN, 1987), o neuroconstrutivismo (KARMILOFF-SMITH, 2009), a memética (McNAMARA, 2011) e a reciclagem neuronal (DEHAENE, 2010) têm apresentado uma tendência nas neurociências a construções teóricas não tão centradas no aspecto genético, dada a complexidade ainda incompreendida da interação entre os níveis molecular e comportamental, em prol de uma abordagem focada em elementos epigenéticos e plásticos.

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do funcionamento do cérebro conforme postulações atuais das neurociências (BICKERTON, 2014, p. 33-39). As ciências linguísticas não são as únicas disciplinas acometidas pelo problema de avanços teóricos que parecem exceder o conhecimento acerca de seus mecanismos subjacentes (BICKERTON, 2001, p. 589). Segundo Harris (2006, p. 5), nas ciências cognitivas de maneira geral, existe um consenso crescente acerca da importância de novas perguntas e de novas formas analíticas de se dividirem as grandes áreas do cérebro em relação a suas funções – o que inclui uma abordagem evolucionária do cérebro e suas faculdades mentais. Conforme cresce a interdisciplinaridade dessas abordagens, as velhas platitudes e relações simplistas entre linguagem e cognição vão se tornando cada vez menos admissíveis. A linguística pode prover evidências internas para inúmeros fenômenos, características e processos da linguagem e funcionamento do cérebro; além do mais, embora os avanços conquistados nas últimas décadas nas ciências linguísticas sejam inegáveis, supor que hoje compreendemos os princípios fundamentais da linguagem humana como fenômeno mental e corpóreo é, no mínimo, prematuro. Essa é a importância das evidências externas, que auxiliariam na compreensão dos processos subjacentes à linguagem – evidências essas que devem ser fornecidas pelo diálogo entre a linguística e as demais áreas científicas. O tópico da evolução da linguagem se estabelece, assim, como uma interseção crucial entre disciplinas como neurociência, etologia, biologia evolutiva, linguística, entre outras. Derek Bickerton (CALVIN; BICKERTON, 2000; BICKERTON 2001), por exemplo, propõe uma possível relação evolutiva entre o que chama de cálculo social (uma forma de geração de hipóteses sociais cuja vantagem seletiva básica seria a de aprimorar o modo de trabalho reciprocamente altruísta) e a estrutura de argumentos chomskiana: ―the addition of argument structure to a formless protolanguage can, if the capacities of an enlarged brain are added, yield the basic structural principles of syntax‖. Tais hipóteses devem ser, claro, refutáveis (BICKERTON, 2001, p. 589 – processo ao qual o próprio autor dá início, abandonando essa mesma hipótese em seus subsequentes trabalhos [cf. BICKERTON 2007, 2009a, 2014])3. De qualquer forma, ao menos uma característica do problema aparentemente insolúvel da origem da linguagem é evidente:

3

As posições adotadas posteriormente por Bickerton serão devidamente tratadas mais abaixo, no corpo do trabalho.

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Scientific debates seldom last so long unless the issues have not yet been correctly formulated, so that the wrong questions are being asked. Language itself, too, seemed to be telling us that no single viewpoint would suffice to give a full account of it. (BICKERTON, 2014, p. 10, grifo nosso)

Por que foi tal tema, então, até tão pouco tempo atrás, negligenciado pela comunidade acadêmica das ciências linguísticas? Por duas razões: uma histórica e outra epistêmica – a primeira subordinada à segunda. Embora filósofos da linguagem e/ou linguistas como von Humboldt já encarassem a linguagem como um fenômeno corpóreo intrínseco à natureza da espécie humana, havia um déficit teórico considerável acerca de questões como o funcionamento do cérebro e de mecanismos evolutivos4. Sendo von Humboldt a exceção entre muitos5 – exceção, por sinal, fadada ao oblívio acadêmico por quase um século (cf. HEIDERMANN; WEININGER, 2006, p. xxii-xxvi) –, grande parte dos pensadores que se debruçavam sobre a linguagem não tinha presunções quanto a discutir sua origem e evolução. Os demais discutiam tão amplamente, tão amorfamente, com ideias de todos os tipos e dos mais diversos graus de plausibilidade que, segundo corre a anedota, a Société de linguistique de Paris (e, poucos anos depois, a London Philological Society, [cf. CORBALLIS, 2008]) baniu oficialmente todas as discussões acerca do assunto:

No theme in linguistic science is more often and more voluminously treated than this ... nor any ... with less profitable result in proportion to the labour expended; the greater part of what is said and written upon it is mere windy talk, the assertion of subjective views which commend themselves to no mind save the one that produces them, and which are apt to be offered with a confidence, and defended with a tenacity, that is in inverse ratio to their acceptableness. This has given the whole question a bad repute among sober-minded philologists. (WHITNEY, 1893, apud AITCHISON, 2000, p. 5)

Até não muito tempo atrás, Chomsky (1988), ainda considerava o assunto uma perda de tempo6. Porém, nas últimas duas a três décadas a atmosfera se transformou, ao ponto de o 4

Von Humboldt, afinal, morreu em 1859, mesmo ano em que Darwin publicou On the Origin of Species. A linguística, afinal, era vista como uma ciência predominantemente social, do âmbito da cultura, e não da natureza (cf. SAUSSURE 2006, p. 21, 25, 86, 92, 93). 6 Chomsky, no decorrer de sua carreira acadêmica, ativamente enfatizou a importância da biologia no desenvolvimento da linguagem e nas ciências linguísticas (e.g. CHOMSKY, 1968, p. 1, 76; CHOMSKY, 1975, p. 36; CHOMSKY, 2004). No entanto, percebia os campos que suportam o estudo da evolução da linguagem como teoricamente inadequados ou metodologicamente imaturos (CHOMSKY; LASNIK, 1993). Sem uma base epistemológica adequada, portanto, o tópico estava fadado a elucubrações mentais desordenadas. É possível que seu gradual interesse no assunto represente uma leve mudança de opinião quanto à base teórica, a despeito do pessimismo de Hauser et al. (2014). 5

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assunto ser abordado por uma série de artigos na área da linguística (incluindo Chomsky, que, por sinal, chegou a co-autorar um livro com Robert C. Berwick, no mesmo ano deste trabalho, especificamente sobre o assunto7), além de ser o tema nuclear de diversas coletâneas e ganhar um handbook da Oxford especificamente sobre o assunto (cf. TALLERMAN; GIBSON, 2013). A motivação de toda essa mudança de perspectiva8 talvez seja uma combinação da divulgação de avanços fascinantes na área de neurociência (e, consequentemente, neurociência evolutiva), assim como um sentimento de responsabilidade batendo à porta após um bom tempo de pouco diálogo entre as diversas áreas interessadas no assunto (HAUSER et al., 2002, p. 1569; AITCHISON, 2000, p. 9-11; BICKERTON, 2001, p. 581). Seja como for, esse é um dos momentos mais propícios para a discussão que, por ora, ainda tende a ser mais filosófica que científica (BICKERTON, 2007, p. 524). Esta monografia pretende, portanto, acompanhar parte dessa discussão e, no processo, sondar suas questões fundamentais, com o intuito de dar continuidade a uma pesquisa em pósgraduação. O campo é intrinsecamente interdisciplinar, e suas abordagens compõem uma cornucópia de bagagens acadêmicas e interesses distintos; isso sem falar na tentadora busca por respostas fáceis. Fica claro, portanto, que é necessário ter certa cautela bibliográfica (BICKERTON, 2007, p. 510). Idealmente, versar sobre o assunto de maneira competente requereria uma formação considerável no mínimo em áreas como paleoantropologia, biologia evolutiva, neurologia, psicologia e etologia (BICKERTON, 2001, p. 581). Isso é claramente incompatível com a natureza de um trabalho de conclusão de curso, mas o devido respeito e a devida atenção a essas áreas são um norte a coordenar uma futura formação. Percebe-se o risco de perpetuar elucubrações improdutivas sobre pistas e anedotas soltas sem uma estrutura minimamente bem-delimitada; para evitar confusão, o esqueleto deste trabalho é inspirado em um dos mais acessíveis e experientes linguistas no assunto 9. Derek Bickerton tem uma obra vasta sobre o tópico da evolução da linguagem, contando com livros, artigos, palestras e resenhas; o foco aqui, no entanto, é principalmente em um artigo

7

(cf. BERWICK & CHOMSKY, 2016) Nas palavras de Pinker (2000, p. 441): ―[t]he study of the evolution of language (…) has returned to respectability‖ e Fitch (2002, p. 278): ―scientific study of the evolution of language has apparently come of age.‖ 9 Para fins ilustrativos: Bickerton (2007, p. 520) descarta uma hipótese sua anterior (cf. BICKERTON, 1990), da linguagem como exaptação por macromutação (termos discutidos mais abaixo neste trabalho), sob a justificativa de que era, enfim, ―biologicamente ridícula‖ (BICKERTON 2003); isso sem contar com o supramencionado caso do cálculo social. 8

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(2007), que foi escrito tal qual um manual introdutório, e um livro (2014), em que o assunto é tratado de maneira bastante abrangente. Muitos autores e abordagens10 foram mantidos às margens ou até mesmo fora deste trabalho por conta de seu escopo: não cabe fazer um levantamento dessa magnitude em um trabalho de conclusão de curso. Tarefa parecida foi conduzida algumas vezes (cf. HURFORD et al., 2004, p. 219-230; FITCH, 2005; STEBBINS, 2007; BENSTEAD, 2007), embora, até o momento, de maneira consideravelmente incompleta (afinal, como já se disse, o assunto é bastante profícuo e prolixo). Esta monografia é dividida em duas partes. Na primeira (capítulos I e II), diversos textos de base são usados, para fins de contextualização, elaborando sobre algumas das questões levantadas em Hauser et al. (2002) e Bickerton (2007). A segunda (capítulo III) consiste em um acompanhamento expositivo da hipótese de Bickerton (2014) e de algumas de suas pressuposições e implicações. A organização deste trabalho é conduzida, portanto, na seguinte direção: O primeiro capítulo consiste em uma discussão introdutória da teoria evolutiva, assim como uma breve exposição sobre dois problemas relevantes e superficialmente binários (adaptação vs. exaptação e gradualismo vs. saltacionismo) e uma abordagem (composta de dois fenômenos evolutivos menos conhecidos aos leigos) que, ao menos para nossos fins, provê uma explicação. O segundo capítulo tem como objetivo expor certos problemas metodológicos e desconstruir alguns enganos e exageros em torno de pesquisas feitas com animais (não tanto em comunicação animal in natura quanto em experimentos de ensino de linguagem adaptada a animais), ainda assim advogando pela continuidade e importância desses mesmos estudos. O terceiro capítulo contém a composição teórica especificamente relacionada à filogênese da linguagem, discorrendo sobre o que Bickerton veio a chamar de ―os três problemas da evolução da linguagem‖ – uma estratégia de estudo que divide ―o problema insolúvel da origem da linguagem‖ (2014, p. 10) em três: dois estágios biológicos e um terceiro estágio cultural. O capítulo se configura por dois axiomas entrelaçados: o primeiro compreende evidências fornecidas predominantemente pela paleoantropologia, pela neurociência cognitiva e por modelos evolutivos de cultura; a segunda parte acompanha

10

E.g. Michael Arbib, Andrew Carstairs-McCarthy, Terrence Deacon, Tecumseh Fitch, James Hurford, Simon Kirby, David Lightfoot, Frederick Newmeyer, Michael Tomasello, Robert Worden, Alison Wray.

19

diretamente a hipótese de Bickerton tal qual é formulada em seu livro mais recente, More than Nature Needs, de 2014.

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1. TEORIA EVOLUTIVA “Nothing in biology makes sense except in the light of evolution.” (Theodosius Dobzhansky)

Se por um lado muito se comenta que o trabalho feito por alguns antropólogos, neurocientistas, etólogos etc. carece de certa acuidade no que tange às complexidades da linguagem (WILKINS; WAKEFIELD, 1995, p. 27), o inverso pode ser dito de muitos linguistas (ou filósofos da linguagem, semiólogos etc.) que, tendo como objeto inesgotável a linguagem, acreditam ser capazes de dissertar acerca de sua evolução sem uma formação auxiliar sólida em teoria evolutiva11. Acabamos por encontrar trechos como este:

English is the unpredictable product of immensely many accidents. Once it exists, as a global lingua franca, there is undoubtedly a great advantage to be had by learning it, but there would be no particular advantage to a solitary speaker, nor any reason to expect it to emerge all at once. Human language itself may turn out to be just such an accidental accumulation of words and rules: why should any creature anywhere begin to develop it? (CLARK, 2000, p. 405. Itálico do autor, negrito nosso)

É sintomático de um problema metodológico mais profundo não serem as respostas que estão erradas, mas sim as perguntas. Clark comete uma falácia arcaica em pleno ano 2000: nunca houve um ―primeiro falante‖ absoluto; não é assim que espécies evoluem. Nenhuma criança Homo sapiens nasceu de pais Homo habilis. É bastante plausível (como consistentemente defende Bickerton) que a linguagem tenha evoluído junto ao gênero Homo gradativamente (quão gradativamente – ou se geometricamente ou aritmeticamente etc. – é outra questão), alcançando seu presente estado evolutivo somente no Homo sapiens. Mas esse modo de pensar acerca de espécies (estáticas, bem-definidas, isoladas) é relativamente comum na ausência de uma formação mínima em teoria evolutiva. Reformulando a questão posta por Clark com um arcabouço teórico mais refinado:

11

E.g. ―We cannot leave the discussion of language origins to those researchers who have yet to understand the concerns of modern linguistics. (WILKINS; WAKEFIELD, 1995, p. 27)‖ Declaração à qual responde Johansson espirituosamente: ―We cannot leave the discussion of language evolution to those linguists who have yet to understand the concerns of modern evolutionary theory‖ (2005, p. 3).

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Even if a few lucky individuals are wired up [in such a way as to have selective advantage over others due to a behavioral trait], the chances of their fortune spreading through the population of subsequent generations can be vanishingly small unless there is plasticity of design among individuals. (DENNETT, 1991, p. 185, grifo nosso)

Ou, ainda mais especificamente ao caso da linguagem:

[In evolution without behavioural selection] differences are directly connected to differences of fitness among the individuals. However, in a communication system, such differences would mostly work as obstacles in communications; it is more or less meaningless if someone has a „better‟ envelope of communication; it cannot be used because others would not comprehend. (YAMAUCHI, 2004, p. 19, grifo nosso)

Como se pode ver, uma formação em teoria evolutiva é indispensável para a plausibilidade dos estudos no tópico. Parte da dificuldade particular de compreender o evolucionismo se encontra, segundo Ferrari e Chi (1998) em seu caráter processual. Explicações filogenéticas específicas (e.g. a origem de tal órgão ou de tal espécie) costumam se comportar como narrativas (DENNETT, 1995, p. 315); porém, explicações de processos evolutivos se configuram por uma ontologia bastante contraintuitiva, que Ferrari e Chi (1998) chamam de ontologia de equilíbrio (em oposição a ontologia de evento)12. A linguagem humana (ou, pelo menos, reservando-se o benefício da dúvida, as línguas indo-europeias), com suas implicações teleológicas estruturais (FOLLI; HARLEY, 2008) e tendência essencialista, contribui intuitivamente à má-compreensão da simplicidade complexa da evolução:

If theory of mind and language really did develop in parallel in the course of human evolution, it would not be surprising to discover a bias towards explanatory forms deriving from mentalistic concepts such as intention, purpose and motive embedded so deep that it pervades all language and all languages. The kind of religious thinking that purports to discern divine intention in natural catastrophes can be seen as overenthusiastic application of theory of mind to the physical world. (BLINKHORN, 2001, grifo nosso)

A formulação de questões fundamentais depende de um framework firme, coerente e, ao mesmo tempo, flexível; caso contrário, formulações teológicas têm o mesmo peso que hipóteses científicas. É claro que não se pretende aqui esquematizar uma teoria evolutiva por inteiro ou sequer descrever seus processos de modo a conter todos os mecanismos que 12

Essa distinção será abordada de maneira mais extensa no subcapítulo abaixo.

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interagem no nível abstrato (e muito menos nos níveis genético e biofísico). Pretende-se meramente demonstrar alguns desses processos conforme sua relevância ao tópico da evolução da linguagem, apropriando-se do caminho traçado por Bickerton (2014).

1.1 SELEÇÃO NATURAL COMO UM ALGORITMO “Está demonstrado, dizia ele, que as coisas não podem ser de outro modo: porque, tudo sendo feito visando a um fim, tudo está necessariamente ordenado ao melhor fim. Notem bem que os narizes foram feitos para sustentar os óculos. Por isso temos óculos.” (Voltaire) Na visão do filósofo Daniel Dennett, Charles Darwin descobriu13 um conjunto de algoritmos naturais14 que regem de maneira gradual as transformações filogenéticas em todas as espécies, sejam estas existentes ou extintas. Esses algoritmos (conceito que faltava à Darwin – em seu lugar, o inglês usava apenas o termo ―processo‖) seriam, portanto, o objeto principal de seu livro A Origem das Espécies, referido pelo próprio autor como sendo ―um longo argumento‖ porque consiste de:

[Two] sorts of demonstrations: the logical demonstration that a certain sort of process would necessarily have a certain sort of outcome, and the empirical demonstration that the requisite conditions for that sort of process had in fact been met in nature. (DENNETT, 1995, p. 48-49, grifo nosso)

A relevância dessa abordagem está, segundo Dennett, no seu caráter operacional. É na primeira dessas duas demonstrações de Darwin que se percebe a propriedade algorítmica da evolução: ou seja, um conjunto de operações lógicas produz, a partir de um input X, um

13

Há diversas anedotas, comentários e nuances historiográficos sobre a ―descoberta‖ do processo que se conhece por seleção natural que serão ignorados neste trabalho – os mais importantes, comentados por Dennett, são de Alfred Russel Wallace, Patrick Matthew e até mesmo David Hume (1995, p. 28-33, 49, 66). 14 Um algoritmo natural emerge apenas como produto das interações de seus elementos constituintes (contrariamente a algoritmos projetados): ou seja, é desprovido de sentido teleológico ou objetivo definido (ALLES, 2005, p. 3). Subsequentes ocorrências do conceito neste trabalho serão reduzidas a apenas ―algoritmos‖.

23

output Y. Esse é um processo de autômatos (independe, portanto, de qualquer tipo de seletor centralizado e/ou consciente), com consequências calcadas probabilisticamente nas interações complexas entre inúmeras pressões (do ambiente ou de restrições biofísicas etc.) e potenciais (variabilidade genética, plasticidade comportamental etc.). Darwin descreve o esqueleto do processo sucintamente desta forma:

But if variations useful to any organic being do occur, assuredly individuals thus characterized will have the best chance of being preserved in the struggle for life; and from the strong principle of inheritance they will tend to produce offspring similarly characterized. This principle of preservation, I have called, for the sake of brevity, Natural Selection. (DARWIN, 1859, p. 127, grifo nosso)

Como se pode ver pela escolha meticulosa de palavras no trecho acima, Darwin não pretende afirmar de maneira simplória que a evolução segue caminhos fixos ou facilmente previsíveis. A força de um algoritmo certamente está em sua estrutura lógica (algoritmos devidamente precisos são, nas condições estimadas, infalíveis), mas algoritmos evolutivos são probabilísticos (DENNETT, 1995, p. 57): cada ocorrência do processo é única (não há dois casos cujos estados iniciais sejam idênticos), cumulativa (cada transformação é historicamente contingente) e multidimensional (cada pressão climática, geológica, inter- e intraespecífica etc. é uma variável do processo)15. Não há planejamento no processo evolutivo (DENNETT, 1995, p. 217; JOHANSSON, 2005, p. 16): a seleção natural à maneira clássica sofre de miopia extrema (contrariamente à visão do personagem Pangloss na epígrafe deste subcapítulo). Toda pressão e vantagem seletivas se encontram necessariamente no aqui-e-agora dos indivíduos de uma espécie (ROBERTSON, p. 467). E espécies, indivíduos e populações são apenas indiretamente selecionados: a unidade seletiva real da seleção natural é o gene (DAWKINS, 2006, p. 11). Isso significa dizer que o algoritmo não leva em conta o bem-estar, a felicidade ou qualquer característica positiva ou negativa do indivíduo expresso pelos genes (DAWKINS, 2006, p. viii, 2, 7, 106)16. O algoritmo opera apenas com a propagação de genes: se sobrevivem, há hereditariedade; se não, extingue-se; entre as variedades que sobrevivem conjuntamente há subsequente seleção (mas sempre em genes).

15

Cf. ALLES, 2005, p. 3; ROBERTSON, 1991, p. 479. Essa questão se torna muito mais complexa conforme a capacidade cognitiva do indivíduo lhe habilita fazer escolhas, como veremos mais à frente. 16

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1.2 EVOLUÇÃO COMO PROCESSO DE EQUILÍBRIO

É comum descrever órgãos funcionalmente, fazendo uso de uma linguagem teleologicamente carregada (asas para voar, nadadeiras para nadar), e até mesmo na evolução de alguma característica (girafas desenvolveram pescoços longos para alcançar folhas mais altas); no entanto, esse uso serve como uma espécie de taquigrafia científica (WEISS, 2002, p. 7). Para compreender os mecanismos subjacentes à função (ou os mecanismos dos quais a função é um produto inconsciente), é preciso visualizá-los de maneira à primeira vista contraintuitiva. Segundo Ferrari e Chi (1998), inicialmente a maioria dos estudantes de biologia não compreende a natureza do processo evolutivo, embora tenha os dados e informações estatísticas a seu dispor. Isso se deve em parte a mudanças dentro das ciências biológicas ainda não particularmente visíveis ao público leigo, mas se deve principalmente à forte tendência por parte

dos estudantes de

abordar intuitivamente (ou seja, tendo

predominantemente como base apenas atributos perceptuais) os processos científicos em uma ontologia categoricamente equivocada (FERRARI & CHI, 1998, p. 123417). É claro que nem todo aprendizado ou refinamento científico depende de mudanças categoriais ontológicas. Grande parte da instrução científica de um indivíduo consiste em acréscimos e eliminações cognitivos graduais, cujo resultado cumulativo funciona como retificação de crenças anteriores sem grandes turbulências:

For example, one may discover that atoms are composed of several more basic particles, and that these particles are related to other physical forces such as electricity and magnetism, and so on. All of these refinements of one‘s knowledge do not change the ontological category to which a concept belongs. (FERRARI & CHI, 1998, p. 1235)

A sobrevivência do mais apto, portanto, não deve ser entendida como uma luta de indivíduos contra obstáculos no caminho de seus objetivos finais (algo como um campeonato ou uma corrida – ambos eventos); tal perspectiva não se configura conforme as descobertas neodarwinianas e consiste basicamente de:

17

Os autores, com base nos estudos que formam a base do artigo supracitado, também tomam como exemplos alguns fenômenos da física como difusão molecular, em que veem o mesmo tipo de transformação paradigmática nos estudantes desde o estágio de intuição categórica equivocada até a compreensão do processo.

25

a Lamarkian [sic] account, in which organisms determine (implicitly or explicitly) what features they need to adapt, develop these features, and pass them on to their offspring in the form of altered heredity, thus gradually transforming the species over time. Lamarckian notions are prevalent and are consistent with a causal, intentional, event-like process. This latter Lamarckian notion may seem more intuitive perhaps because humans have a predisposition to perceive all processes as events, and to tell interpretative stories in which agents act to overcome obstacles in the pursuit of goals (Bruner 1990). Such a predisposition would explain why it is so difficult to overcome our initial misconceptions. (FERRARI & CHI, 1998, p. 1248, negrito nosso, itálico dos autores)

Essa sobrevivência é meramente o resultado ou saldo de um processo aberto, sem linha de chegada ou sequer direção fixa (FERRARI & CHI, 1998, p. 1249-1250). A evolução em sua concepção mais atualizada é um processo de natureza ontológica não de evento, mas de equilíbrio. Com o intuito de ilustrar a diferença entre as duas categorias ontológicas (esquematizada na Tabela 1), Ferrari e Chi (1998) descrevem o caso da mariposa Biston betularia – caso que, embora controverso em suas particularidades genéticas e ecológicas (COYNE, 1998; RUDGE, 2000), é bastante usado para demonstrar a forma como a introdução de uma nova pressão seletiva em uma população afeta a variação genética de pigmentação. Tabela 1 – Cinco diferenças fundamentais entre processos de evento e de equilíbrio Event

Equilibration

Distinct actions Bounded (begins and ends) Sequential Contingent and causal Goal-directed Terminates

vs vs vs vs vs vs

Uniform actions Unbounded (ongoing) Simultaneous Independent and random Net effect Continuous

Fonte: FERRARI & CHI, 1998, p. 1236.

Em meados do século XIX, as variedades mais escuras da mariposa (até então bastante raras) começaram a se proliferar nas regiões industriais do centro e norte da Inglaterra. A espécie já apresentava duas variedades de pigmentos (uma mais clara e outra escura), resultantes da diferença hereditária de cada indivíduo da população. No decorrer da revolução industrial, a fumaça de carvão, por conta da chuva, acabou por alterar a coloração dos troncos de árvores em que as mariposas repousavam. Os troncos escurecidos agora favoreciam as

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mariposas da variedade escura, que, em vez de continuar minoritária, se tornou a predominante. O efeito cumulativo desse processo proporcionou uma mudança significativa nas populações da Biston betularia (FERRARI & CHI, 1998, p. 1232-1233). Em vez de se abordar essa narrativa evolutiva como um conjunto finito de ações expressas sequencial e linearmente (a narrativa é, como já se constatou acima, uma abreviação metodológica – as propriedades narrativas devem ser lidas com a devida cautela), os autores a analisam conforme as cinco propriedades da Tabela 1:

First, the evolution of the peppered moth involves uniform action (each moth is either eaten or not eaten by predatory birds). Second, its evolution is ongoing; in each generation, the same sort of moth continues to be eaten. Third, evolution is simultaneous, not sequential; that is, predatory birds are eating the salt-and-pepper coloured moths everywhere and all the time. Fourth, evolution is the result of multiple independent selections of organisms competing for resources (i.e. each moth is eaten independently by a different bird), with a certain degree of randomness; no sequence of contingent or causal subevents occurs. Fifth, evolution of a new dark species of moth happened as a result of multiple light moths being eaten, leaving the darker moths to reproduce, it is a net effect that reflects the probabilistic outcome of phenotypic (and genetic) selection. Finally, although this is not immediately apparent, nothing terminates. Birds continue to eat the lightercoloured moths that they can see, thus darker-coloured moths (and their genes) are continually being selected among those present in the moth population, even if the birds and moths end up in a dynamic equilibrium that produces no apparent change. (FERRARI & CHI, 1998, p. 1237, grifo nosso)

O atributo cumulativo fundamental da evolução emerge justamente da continuidade do processo: o estado inicial de uma iteração é sempre o saldo da iteração anterior, sem que haja delimitações definidas (ALLES, 2005). O processo se alimenta de si mesmo. É a falta de compreensão sobre esse fenômeno que leva autores como o supramencionado Clark (2000) à sua postulação incoerente sobre as origens da linguagem, como o atônito filósofo postulando sobre a ordem entre o ovo e da galinha.

1.3 ADAPTAÇÃO, SPANDREL E EXAPTAÇÃO “We take delight in reading Nabokov and Shakespeare using a primate brain originally designed for life in the African savannah.” (Stanislas Dehaene)

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Em 1979, Stephen Jay Gould coautorou um artigo com Richard Lewontin intitulado ―The Spandrels of San Marco and the Panglossian Paradigm: A Critique of the Adaptationist Programme‖. Os autores do artigo tratam do modelo vigente no pensamento evolutivo (que vieram a chamar de programa adaptacionista):

An adaptationist programme has dominated evolutionary thought in England and the United States during the past forty years. It is based on faith in the power of natural selection as an optimizing agent. (…) We criticize this approach and attempt to reassert a competing notion (long popular in continental Europe) that organisms must be analyzed as integrated wholes, with Baupläne18 so constrained by phyletic heritage, pathways of development, and general architecture that the constraints themselves become more interesting and more important in delimiting pathways of change than the selective force that may mediate change when it occurs. We fault the adaptationist programme for its failure to distinguish current utility from reasons for origin (…) We support Darwin‟s own pluralistic approach to identifying the agents of evolutionary change. (GOULD & LEWONTIN, 1979, p. 581, negrito nosso, itálico dos autores)

Na visão de Gould e Lewontin, o programa adaptacionista (ou paradigma Panglossiano19) é responsável pelos ingênuos excessos, comumente expressos narrativamente, acerca da ubiquidade e onipotência da seleção natural (GOULD & LEWONTIN, 1979, p. 584-585). Panglossianistas, portanto, enxergariam no organismo a seleção natural praticada de maneira perfeita e no melhor dos mundos. E é nisso que reside o problema com o paradigma. Segundo os autores, os aderentes do programa adaptacionista ignoram as restrições arquitetônicas impostas pela evolução (tanto historicamente quanto biofisicamente), e inevitavelmente impõem sobre suas análises evolutivas um viés teórico. Gould e Lewontin prosseguem no artigo com o exemplo de restrições arquitetônicas (chamadas de spandrels – enjuntas, em português) impostas sobre a estrutura de um arco da basílica de San Marco, em Veneza – spandrels cujo design é tão elaborado, harmonioso e intencional,

that we are tempted to view it as the starting point of any analysis, as the cause in some sense of the surrounding architecture. But this would invert the proper path of analysis. The system begins with an architectural constraint: the necessary four spandrels and their tapering triangular form. (GOULD & LEWONTIN, 1979, p. 582, grifo nosso)

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―Planta de obra‖, em alemão. O termo é usado em biologia para denotar o conjunto de características morfológicas compartilhadas entre muitos membros de um filo taxonômico (ALLABY, 1999, p. 59) 19 A epígrafe do subcapítulo 1.1 mais acima, de Voltaire, é proferida pelo mesmo Pangloss de que falam Gould e Lewontin.

28

Há um equívoco no uso de spandrels por Gould e Lewontin (DENNETT, 1995, p. 272): o termo correspondente à imagem que os autores usam no artigo (um sustentáculo de abóbadas) é na verdade um pendente. Spandrels sustentam arcos. De qualquer forma, todo arco requer, por definição, um espaço livre no entremeio dos pilares com uma sustentação estrutural que se dá no suporte semi-triangular construído entre a coluna e o teto. Bem, uma vez que esses espaços precisam existir para que o teto não desabe, eles frequentemente são ornamentados de diversas formas por artistas: In a sense, this design represents an ―adaptation,‖ but the architectural constraint is clearly primary. The spaces arise as a necessary by-product of fan vaulting; their appropriate use is a secondary effect. (GOULD & LEWONTIN, 1979, p. 582583, grifo nosso)

Spandrels biológicos não são nada mais que as mesmas restrições impostas (e, portanto, herdadas em conjunto com quaisquer funções adaptadas) sobre o desenvolvimento de organismos – conceitos que, segundo os autores, não estão presentes no programa adaptacionista.

If development occurs in integrated packages and cannot be pulled apart piece by piece in evolution, then the adaptationist programme cannot explain the alteration of developmental programmes underlying nearly all changes of Bauplan. (GOULD & LEWONTIN, 1979, p. 594, negrito nosso, itálico dos autores)

No entanto, essa afirmação não procede. A despeito de casos em que autores fornecem narrativas adaptacionistas ad hoc de valor científico nulo20 (às quais Lewontin se refere como ―just so stories‖21), biólogos evolucionistas desde Darwin já reconhecem uma série de forças contrárias à otimização do design produzido pelo processo de seleção natural (BUSS et al., 1998, p. 538). Daniel Dennett, por sinal, afirma que, na verdade, o chamado programa adaptacionista nunca negou a existência e importância de restrições no desenvolvimento de organismos sob pressão seletiva. Spandrels fazem parte do processo normal e adaptativo da evolução:

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Para fins ilustrativos: os autores de um dos capítulos de ELLIS & BJORKLUND, 2004, Weisfeld e Janisse, sugerem que mamilos de indivíduos humanos do sexo masculino (um exemplo clássico de spandrel) podem ter como função atrair ou tranquilizar crianças. Nenhuma evidência é apresentada, mas os autores parecem sentir uma necessidade de tecer a narrativa adaptativa. 21 (Cf. LEWONTIN, 2015).

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What the actual design of the San Marco spandrels—that is, pendentives—has going for it are mainly two things. First, it is (approximately) the ―minimal-energy‖ surface (…) Second, this smooth surface is ideal for the mounting of mosaic images—and that is why the Basilica of San Marco was built: to provide a showcase for mosaic images. The conclusion is inescapable: the spandrels of San Marco (…) are adaptations, chosen from a set of equipossible alternatives for largely aesthetic reasons. They were designed to have the shape they have precisely in order to provide suitable surfaces for the display of Christian iconography. (DENNETT, 1995, p. 273-274, grifo nosso)

Afinal, San Marco é uma igreja e não um celeiro – iconografia, aqui, deve constar como função, e não mero ornamento. O filósofo incorpora a ideia de spandrel ao que chama de fenômeno QWERTY: The top row of alphabetic keys of the standard typewriter reads QWERTY. (…) The QWERTY arrangement has no rational explanation, only a historical one. It was introduced in response to a problem in the early days of the typewriter: The keys used to jam. The idea was to minimize the collision problem by separating those keys that followed one another frequently... Once adopted, it resulted in many millions of typewriters and ... the social cost of change ... mounted with the vested interest created by the fact that so many fingers now knew how to follow the QWERTY keyboard. QWERTY has stayed on despite the existence of other, more “rational” systems. (PAPERT 1980, p. 33 apud DENNETT, 1995, p. 122123, grifo nosso)

Fenômenos QWERTY são, de certa forma, adaptações cristalizadas historicamente (são restrições com histórico adaptativo). Não são necessariamente pétreas, mas o custo (social e cultural na metáfora; embriológico, genético etc. em sua aplicação biológica) excede seu benefício. Mas Gould e Lewontin afirmam que, dentro do programa adaptacionista, essas características do todo são, muitas vezes, desprezadas em prol de análises feitas sobre suas partes. Os autores afirmam que o adaptacionismo trata de genes e partes funcionais, mas não de organismos (GOULD & LEWONTIN, 1979, p. 597). O que os autores não parecem levar em conta é que a seleção natural lida apenas com o saldo total de aptidão das espécies – suas partes são apenas um meio para um fim –: toda adaptação tem um custo evolutivo, seja metabólico, fisiológico ou comportamental (BUSS et al., 1998, p. 538). Uma adaptação só é, por definição, uma adaptação quando suas vantagens excedem seus custos. Adaptações não são mecanismos perfeitamente otimizados, e sim soluções arduamente refinadas com base no material disponível sob restrições históricas e conjunturais (BUSS et al., 1998, p. 539). Poucos anos depois, Gould e Vrba (1982) dão continuidade à discussão, retrabalhando um antigo conceito: no caso, o de preadaptação, que, pelos motivos linguísticos discutidos

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mais acima, era um termo bastante problemático22. A fim de manter o conceito e simultaneamente evitar suas conotações teleológicas, os autores o substituíram por exaptação. Segundo Gould (1991) uma exaptação é uma característica que, embora útil a um organismo num dado momento, não foi diretamente adaptada à função que presentemente lhe confere utilidade; ou seja, essa característica foi desenvolvida filogeneticamente por algum outro motivo, e posteriormente cooptada a uma função vantajosa ao organismo. Buss et al. (1998) esquematizam exaptações em dois tipos: o primeiro se dá quando caraterísticas adaptativas selecionadas para uma função são cooptadas em prol de outra (uma adaptação cooptada); o segundo é quando necessidades arquitetônicas internas, a princípio não selecionadas, se tornam úteis subsequentemente (o spandrel, conforme discutido acima). Daniel Dennett, por outro lado, comenta que esse conceito é redundante, criado apenas por conta do hábito bombástico de Gould:

But, according to orthodox Darwinism, every adaptation is one sort of exaptation or the other—this is trivial, since no function is eternal; if you go back far enough, you will find that every adaptation has developed out of predecessor structures each of which either had some other use or no use at all. (…) It is hard to be a revolutionary if the establishment keeps co-opting you. Gould has often complained that his target, neo-Darwinism, recognizes the very exceptions he wants to turn into objections. (DENNETT, 1995, p. 281, grifo nosso)

Também para Buss et al. (1998, p. 542) é, enfim, a seleção natural o suporte necessário que explica não só o processo de adaptação clássico e a cooptação de spandrels, mas também as mudanças estruturais que subjazem à exaptação (assim como o próprio mecanismo, seja ele qual for, que a possibilita). Transformações no fenótipo são uma parte essencial do processo de adaptação: Natural selection cannot bring about adaptation (the process or the end product) without the changes that new genes make to the phenotype. However, for a trait to become exapted to a new beneficial effect, it must have acquired it without being phenotypically modified by selection for the effect. This point is not always appreciated. (…) If a trait undergoes a process of structural modification to facilitate a new beneficial effect, it has undergone a process of adaptation and the resultant structural changes are referred to as adaptations. Gould and Vrba (1982) are clear on this point. They refer to an initially exapted trait as a primary exaptation and any subsequent adaptive structural modifications as secondary adaptations. (ANDREWS et al., 2002, p. 491. Negrito nosso, itálicos dos autors) 22

―Preadaption seems to imply that the proto-wing, while doing something else in its incipient stages, knew where it was going—predestined for a later conversion to flight. Textbooks usually introduce the word and then quickly disclaim any odor of foreordination. (But a name is obviously ill-chosen if it cannot be used without denying its literal meaning.)‖ (GOULD 1991, p. 144a, apud DENNETT, 1991, p. 280)

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A evolução é um processo complexo, com inúmeros subprocessos23. Há diversas nuances e complexidades que, se perseguidas, logo levariam este trabalho a ruminações demasiadamente específicas. Simplificando, portanto, uma conclusão como faz Johansson (2005, p. 163): inúmeros aspectos possivelmente evoluíram para alguma função distinta da sua atual (exaptações), ou são subprodutos acidentais (spandrels) ou são remanescentes filogenéticos sem função atual (estruturas vestigiais):

The main conclusion of Andrews et al. (2002) is that it is far from easy to demonstrate conclusively either that any particular individual feature is an adaptation, or that it isn‘t, but that the burden of proof must be balanced between adaptationists and ‗exaptationists‘. In an attached commentary Haig & Durrant add the important point that we should be less concerned with proof for or against adaptation, and more concerned with inference to the best explanation. (JOHANSSON, 2005, p. 166, grifo nosso)

1.4 GRADUALISMO E EQUILÍBRIO PONTUADO

Em 1972, Gould coautorou com Niles Eldredge um capítulo de Models in Paleobiology (Org. SCHOPF, 1973, p. 82-115) intitulado ―Punctuated equilibria: an alternative to phyletic gradualism‖. Nele, os autores propõem um modelo evolutivo contrabalanceando o gradualismo filético do darwinismo clássico tal qual se mostrava dominante na paleobiologia: Paleontology‘s view of speciation has been dominated by the picture of ―phyletic gradualism.‖ It holds that new species arise from the slow and steady transformation of entire populations. Under its influence, we seek unbroken fossil series linking two forms by insensible gradation as the only complete mirror of Darwinian processes; we ascribe all breaks to imperfections in the record (ELDREDGE; GOULD, 1972, p. 84, grifo nosso)

Em suma, o gradualismo defende que todas as mudanças evolutivas são, na distância temporal de uma geração, transformações graduais – lentas demais, portanto, para serem percebidas como fenômenos especiativos em tempo real (diferentes espécies são retrospectivamente definidas). Para Eldredge e Gould essa abordagem é, admitidamente, útil à

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Ou, conforme a abordagem de Dennett (1995): a evolução é o aspecto visível da seleção natural, que, por sua vez, não é apenas um dos processos evolutivos, mas o processo-mestre que regula os demais (ou, ainda, o saldo contínuo de seus subprocessos).

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paleontologia, embora os autores afirmem que pouquíssimos exemplos se comportam verdadeiramente dessa forma (ELDREDGE; GOULD, 1972, p. 97): (…) if most species evolved according to the tenets of phyletic gradualism, then, no matter how discontinuous a species‘ occurrence in thick sections, there should be a shift in one or more variables from sample to sample up the section. (ELDREDGE; GOULD, 1972, p. 84, grifo nosso)

A conclusão do artigo é que há um modelo alternativo ao gradualismo darwiniano capaz de explicar a ausência desse histórico gradativo nos fósseis analisados por paleontólogos: o modelo de equilíbrio pontuado. Se novas espécies (contrariamente ao que defende o darwinismo ortodoxo) emergirem rapidamente em populações locais e isoladas, não só é possível como inevitável que a relação entre fósseis seja distante e repentina (ELDREDGE; GOULD, 1972, p. 82). Isso dividiria a evolução em grandes períodos de estabilidade (equilíbrio estático), pontuados por saltos especiativos repentinos – por sua vez raros e custosos (ELDREDGE; GOULD, 1972, p. 115). Para Dennett (assim como para Dawkins24), o problema tomou um rumo semelhante ao descrito mais acima no que concerne a spandrels e exaptações. Afinal, como Dennett faz questão de comentar, até mesmo o próprio Darwin já havia reconhecido essa característica do processo de especiação:

Many species once formed never undergo any further change ...; and the periods, during which species have undergone modification, though long as measured by years, have probably been short in comparison with the periods during which they retain the same form. (DARWIN apud DENNETT, 1995 p. 290, grifo nosso)

Assim, o modelo de equilíbrio pontuado se faz como contraponto a uma versão falaciosa do gradualismo darwiniano, uma vez que mudanças graduais não têm necessariamente a mesma velocidade (GINGERICH, 1984 p. 338). A ideia de momentos de transformação intensa, seguidos ou não de especiação, entre períodos menos tumultuados é antiga: a todo momento, há variáveis transformando o próprio processo seletivo, criando loops de feedback que alteram a taxa de mutabilidade de uma espécie ou população

24

―What needs to be said now, loud and clear, is the truth: that the theory of punctuated equilibrium lies firmly within the neo-Darwinian synthesis. It always did. It will take time to undo the damage wrought by the overblown rhetoric, but it will be undone.‖ (DAWKINS 1986, p. 251, grifo nosso)

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(ROBERTSON, 1991, p. 479). Tome-se, rapidamente, o conceito de ―rapidez‖ dos processos especiativos (pontuações):

A process that took, say, 10.000 years would appear very gradual to the participants – but would appear instantaneous in the fossil record to paleontologists working a million years later (…) Many evolutionary transitions (…) are paleontologically sudden but on human timescales gradual, and this is the root of the debate surrounding ―punctuated equilibrium‖. (JOHANSSON, 2005, p. 170)

Mais explicitamente:

As far as the scientist studying evolution on the ground is concerned, then, these animals are not evolving at all. Nevertheless they are evolving, very slowly at a rate given by Stebbins‘ mathematical assumption, and even at this slow rate, they would eventually reach the size of elephants.25 How long would this take?... Stebbins calculates that at his assumed very slow rate of evolution, it would take about 12,000 generations... Assuming a generation time of five years, which is longer than that of a mouse but shorter than that of an elephant, 12,000 generations would occupy about 60,000 years. 60,000 years is too short to be measured by ordinary geological methods of dating the fossil record. As Stebbins says, The origin of a new kind of animal in 100,000 years or less is regarded by paleontologists as “sudden” or “instantaneous”. (DAWKINS, 1986, p. 242)

O argumento paleontológico cai por terra. Os gaps (entremeios de dois fósseis geneticamente relacionados, em que há uma ausência de evidências intermediárias) percebidos pelos paleontólogos não denotam por si só explosões especiativas ou transformações repentinas; ou seja, gaps não são evidências negativas e sim impossibilidades estatísticas26 (GINGERICH, 1984 p. 338). Dessa forma, o ônus da prova recai sobre os defensores do modelo alternativo ao clássico. A única maneira de haver equilíbrio pontuado na maneira como demonstram Eldredge e Gould é se aceitarmos como processo comum e corriqueiro de especiação alguma forma de saltacionismo ou hopeful monsters27 – termo este cunhado pelo geneticista Richard

25

Dawkins comenta aqui a ideia do equilíbrio pontuado no caso do aumento filogenético de massa corporal em diversas espécies. 26 Afinal, é um tanto inconcebível haver uma série de fósseis que registrem de maneira suficientemente específica uma linhagem ao ponto de refutar o modelo de equilíbrio pontuado pelo próprio acúmulo paleontológico. Um modelo paleontológico que necessite de tamanho acúmulo de dados para estabelecer uma taxonomia fidedigna seria como o redundante mapa de escala 1:1 dos cartógrafos de Jorge Luis Borges (1981) ou do mapa de Lewis Carroll (1893). 27 Casos raros em que macromutações têm saldo adaptativo positivo (cf. CHOUARD, 2010). Ainda assim, nem mesmo macromutações são, tecnicamente, saltos evolutivos, e sim acúmulos de mudanças genéticas graduais no DNA inexpresso que, por algum motivo, se tornam expressos (DENNETT, p. 287-288).

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Goldschmidt (1940). É nessa conexão entre exaptações, spandrels e especiação que Gould (1982) parece ter retrospectivamente fundamentado seu modelo:

Speciation is not always an extension of gradual, adaptive allelic substitution to greater effect, but may represent, as Goldschmidt argued, a different style of genetic change—rapid reorganization of the genome, perhaps non-adaptive. (GOULD, 1980, p. 119)

Assim como:

If new Baupläne often arise in an adaptive cascade following the saltational origin of a key feature, then part of the process is sequential and adaptive, and therefore Darwinian; but the initial step is not, since selection does not play a creative role in building the key feature. (GOULD, 1982, p. 383, itálico do autor)

Para Gould, o debate entre gradualismo e equilíbrio pontuado é uma crítica importante a alguns dos déficits da tradição darwiniana clássica, e não meramente um problema semântico (1982, p. 383). Entretanto, como ele mesmo veio a afirmar mais tarde, o equilíbrio pontuado não está fundamentado no saltacionismo, mas apenas reordena as transformações evolutivas em sua devida escala geológica (2002, p. 768). Ora, todo o debate, portanto, teria sido mal formulado desde o começo – e, como comenta Dawkins mais acima, o estrago já havia sido feito. A despeito de Gould, Dennett afirma que o debate está, de fato, calcado em uma retórica estapafúrdia acerca do problema semântico de espécie28: However striking or ―pervasive‖ the pattern of stasis turns out to be, we know in advance that most lineages do not exhibit stasis. Far from it. (…) Most lineages soon die out, never having time to establish stasis; we will only “see” a species where there is something salient and stable in the record. The ―discovery‖ that all species exhibit stasis much of the time is like the discovery that all droughts last longer than a week. We wouldn‘t notice that there was a drought if it wasn‘t a longlasting phenomenon. So, since a modicum of stasis is a precondition for the identification of a species, the fact that all species exhibit some degree of stasis is merely true by definition. (DENNETT, 1995, p. 293, grifo nosso)

Em 2015, por sinal, D. S. Wilson, também um biólogo renomado, entrevistou Lewontin sobre seu artigo coautorado com Stephen Jay Gould em 1979 sobre spandrels e o 28

O problema é bastante antigo. Ernst Mayer (1969) discute as noções medievais de essencialismo e nominalismo aplicadas ao conceito de espécie (tomando-se como perspectiva o que chama de ―conceito biológico‖ de espécie) a fim de ilustrar as inadequações empíricas desde os filósofos medievais até mesmo a Darwin e subsequentes problemas em paleontologia. Basta ressaltar, outra vez, a importância de se ter uma base epistemológica que compreenda as categorias ontológicas dos processos analisados.

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programa adaptacionista, em que explica as motivações que levaram ao artigo na época. Segundo Lewontin, as críticas não tinham como alvo o programa adaptacionista em si, mas suas más aplicações e exageros por meio da fabricação desnecessária de historinhas (anedotas que explicitassem vantagens adaptativas para absolutamente qualquer característica de um organismo ignorando o fato de que muitas funções são criadas, perdidas ou cooptadas na evolução de uma espécie). No entanto, a substância da crítica havia sido exagerada por motivos um tanto pessoais de Gould, tanto no artigo sobre spandrels quanto no artigo sobre equilíbrio pontuado. Nas palavras de Lewontin:

Steve and I taught evolution together for years and in a sense we struggled in class constantly because Steve, in my view, was preoccupied with the desire to be considered a very original and great evolutionary theorist. So he would exaggerate and even caricature certain features, which are true but not the way you want to present them. For example, punctuated equilibrium, one of his favorites. He would go to the blackboard and show a trait rising gradually and then becoming completely flat for a while with no change at all, and then rising quickly and then completely flat, etc. which is a kind of caricature of the fact that there is variability in the evolution of traits, sometimes faster and sometimes slower, but which he made into punctuated equilibrium literally. (LEWONTIN, 2015)

A despeito dos problemas meramente semânticos e das caricaturas gouldianas, os fenômenos descritos nos três artigos citados compõem um forte núcleo de processos transformativos e são imprescindíveis para se compreender a importância da teoria de construção de nichos e o efeito Baldwin, discutidos a seguir.

1.5 CONSTRUÇÃO DE NICHOS E EFEITO BALDWIN “„But there must be a designer!‟ Animals aren‟t just passive vehicles for their genes; they play an active role in designing their own destiny.” (Derek Bickerton)

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Supõe-se que tenha ficado clara a dificuldade implícita nos subcapítulos anteriores de fazer uma interface entre as ciências humanas e as ciências biológicas29. Como se comentou mais acima na introdução deste trabalho, não há uma necessidade de se reduzir, a cada passo dado, uma ciência a outra, uma vez que a primazia de uma ciência sobre seu próprio objeto de estudo é garantida por sua metodologia. Entretanto, como também já se comentou, reduções cautelosas podem inclusive providenciar suportes externos a certas hipóteses e métodos (como no caso das transformações gerativistas, cuja fase mais recente se mostra mais compatível com os avanços da neurobiologia30). Embora os estudos linguísticos não necessitem de redução aos estudos biológicos, o objeto linguagem é, em última instância, uma realidade biológica. Isso significa dizer que a linguagem evoluiu – e, mais, evoluiu dentro de algum contexto. Segundo Bickerton (2007, p. 515; 2009a, p. 98-99), não existe, até o momento, nenhum contexto razoável para a evolução da linguagem senão aquele abordado pela teoria de construção de nichos (daqui em diante TCN). Há duas razões principais para esse descompasso entre as ciências humanas e a teoria evolutiva. Primeiramente, a visão predominantemente genecentrista, em que organismos são simplesmente veículos para seus genes, não oferece muito aos estudos de comportamento e cultura; em segundo lugar está a simplicidade de narrativas adaptacionistas (ODLING-SMEE et al., 2013, p. 27-28). Nessa conjuntura, a TCN propõe uma saída: seres humanos (e, em diversos graus, todos os seres vivos) ativamente modificam suas próprias fontes de pressão seletiva por meio da construção de nichos. Mas afinal o que são nichos? Segundo Bickerton (2009a, p. 99) – que, por sua vez, baseou sua definição na de Eugene Odum (1959) –, nichos não são apenas os locais habitados pelos organismos, mas também sua ocupação e função. Podem, portanto, ser divididos em três tipos: Habitat: o tipo específico de ambiente que o organismo habita, tanto seu macrouniverso (savana, tundra, mangue etc.) quanto seu microuniverso (cascas de árvores, solo arado, ninhos etc.). Nutrição: o tipo específico de alimento do qual se nutre o organismo (capim, insetos, mel, frutas etc.). 29

Tarefa que tem um histórico problemático (como nos casos catastróficos da frenologia eugênica e do darwinismo social), além de dificuldades epistemológicas reais que há muito assolam, por exemplo, a própria linguística: ―Where, finally, does linguistics stand as a science? Does it belong to the natural sciences, with biology, or to the social sciences?‖ (SAPIR, 1929, p. 213). 30 A hipótese de que o programa minimalista oferece um framework de operações passíveis de redução à neurociência constitui grande parte do argumento de Bickerton no decorrer de sua carreira.

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Meio de obtenção: os recursos usados ou a forma como o organismo obtém seu alimento (forragem, predação solitária ou em bandos, necrofagia etc.). Dessa forma, a construção de nichos se refere àquelas atividades (metabólicas ou comportamentais) de um organismo que afetam seu próprio ambiente, de maneira a alterá-lo (quimicamente, fisicamente, biologicamente), deixando, assim, um legado ecológico a ser herdado por subsequentes gerações, como também por outras espécies que habitem esses mesmos meios (LALAND & BROWN, 2006, p. 1). Espécies de maior plasticidade comportamental têm uma maior participação na construção de nichos (o que faz com que a espécie humana seja uma das maiores construtoras do planeta), uma vez que são capazes de alterar mais eficientemente ambientes aos quais estão ecologicamente mal adaptados (YAMAUCHI, 2004, p. 111). O ponto crucial disso tudo é que existe na construção de nichos uma seleção de comportamentos que, embora não exclua, reduz a presença onipotente do fator genético. Esse processo modifica a relação funcional do organismo para com seu meio (LALAND et al., 2000, p. 165), e cria um feedback cumulativo transgeracional entre comportamento e ambiente que burla a relação direta com os genes e estabelece uma outra, mais indireta, em que organismos têm um papel muito mais ativo (LALAND & BROWN, 2006). De fato, de acordo com a TCN, alguns desses comportamentos, em um primeiro momento, precederiam as mudanças genéticas que os selecionam e automatizam, promovendo subsequentes pressões seletivas genéticas com base na própria hereditariedade ecológica31 (LALAND et al., 1999). Exemplos de construção de nichos são abundantes no reino animal, de castores a golfinhos, de abelhas a minhocas – animais esses cuja predisposição genética às respectivas construções é usada frequentemente por criacionistas como evidência de um design inteligente (RADMAN, 2001):

However, there are in fact two logically distinct routes to the evolving match between organisms and their environments: either the organism changes to suit the environment, or the environment is changed to suit the organism. The first alternative is brought about through the process of natural selection, and the second is one possible outcome of the process of niche construction. Of course, in reality these two processes can seldom be separated. (ODLING-SMEE et al., 2003, p. 18, grifo nosso)

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Esse fenômeno está intimamente relacionado ao famoso efeito Baldwin (YAMAUCHI, 2004), que será trabalhado um pouco mais adiante.

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A construção de nichos se distingue do modelo clássico adaptacionista, em que a evolução (excetuando-se casos de coevolução e seleção de habitat) consiste basicamente em um processo de adaptação sob o qual a seleção natural modela organismos em relação às condições preexistentes no ambiente32. No modelo clássico existe uma separação implícita entre as pressões seletivas e as características por elas selecionadas (ODLING-SMEE et al., 2003); em outras palavras, o nexo causal é unidimensional, unidirecional – nas palavras de George Williams ―Adaptation is always asymmetrical: organisms adapt to their environment, never vice-versa.‖33. É claro que o processo de construção de nichos não foi excluído do evolucionismo clássico. O que se convencionou chamar de TCN é mais um ajuste epistemológico do que uma mudança de direção geral (LALAND; STERELNY, 2006). Afinal, biólogos desde Darwin já compreendem que organismos alteram seus meios. O argumento de Odling-Smee, Laland, Lewontin e outros é de que esse processo não recebe a atenção devida – na opinião dos autores na maior parte do trabalho em evolução ainda não há uma heurística suficientemente embasada nas consequências e implicações da construção de nichos (SCOTTPHILLIPS et al., 2013). No modelo clássico, a evolução é definida pela mudança de frequência de sequências de DNA em uma população, de geração em geração. Para tanto, quatro processos são comumente destacados: migração, mutação, deriva genética e seleção natural. Os dois primeiros criam variação, enquanto os dois últimos a filtram. Por conta da seleção natural, o saldo contínuo da variação tende a valorizar desproporcionalmente aqueles genes que promovem algum tipo de aumento de aptidão da espécie. O resultado disso é a adaptação (SCOTT-PHILLIPS et al., 2013). Dessa forma, a construção de nichos seria apenas um fator contribuinte a esses processos, não muito diferente dos efeitos epigenéticos que afetam a expressão de genes sem alterar suas frequências. No modelo da TCN esse balanço é consideravelmente diferente, uma vez que o foco já não é mais dos genes, mas sim da coevolução entre organismos e seus ambientes. A ênfase na transformação constante das pressões seletivas pelos próprios organismos cria um senso de 32

Embora a TCN tenha ganhado corpo e organização interna somente no fim dos anos 70 (em especial com os trabalhos de Lewontin, Odling-Smee e Laland), existe um histórico de abordagens que tentam integrar o aspecto ativo dos organismos com a seleção natural, como por Ernst Mayr (em seu livro Animal Species and Evolution, de 1963) e Richard Dawkins (The Extended Phenotype, de 1982), com diversos graus de êxito. 33 apud LALAND; STERELNY, 2006, p. 1751.

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direcionalidade não-aleatória (porém não-lamarckiana), de onde é possível emergir maior complexidade. A plasticidade dos seres vivos pode enviesar sua evolução porque obtém, em graus distintos, certo controle sobre quão vantajosa é uma característica em seu meio. É importante frisar que a TCN não se usa de nenhum tipo de finalidade no sentido teleológico (PECK, 2013). A direcionalidade supramencionada se refere meramente ao modo como a construção de nichos altera as pressões seletivas que agem sobre os organismos34. Ou seja, a construção de nichos, fundamentada nos demais fatores presentes no ambiente, cria oportunidades (vantagens potenciais) no plano seletivo de maneira não aleatória. Uma abordagem teleológica suporia que os comportamentos iniciais ocorreram a fim de que essas características evoluíssem – uma inversão de causa e efeito. A direcionalidade se refere apenas à capacidade epigenética que os organismos possuem de alterar suas próprias pressões seletivas, que acabam beneficiando alguma característica que, em algum grau, já possuem (LALAND; STERELNY, 2006, p. 1756). Essa dinâmica tendenciosa da interação de forças em sentidos distintos gera, por fim, um vetor resultante no espaço evolutivo que aparenta ter objetivo. Vejamos o caso da tolerância à lactose na espécie humana. Segundo o modelo neodarwiniano clássico, o advento da pecuária leiteira transformou a ecologia local de algumas populações. A fonte de nutrição agora contava com laticínios, que, por conta de seu valor nutritivo, criaram uma pressão seletiva sobre os genes que regulam a absorção de lactose. O resultado foi que, em virtude da seleção natural, a frequência relativa do gene aumentou na população. Ou seja, o surgimento do consumo de leite (um ato de construção de nicho) criou uma correlação entre tolerância à lactose e aptidão. Nesse quesito, a construção de nichos nada mais é que uma variação ambiental padrão – quase como uma mudança climática (SCOTT-PHILLIPS et al., 2013). Defensores da TCN julgam que o modelo clássico não compreende bem a dinâmica e causalidade envolvidas no caso (LALAND; STERELNY, 2006, p. 2). O tal advento é tratado como um caso isolado, embora seja na verdade a manifestação de uma propensão generalizada e frequente. Inúmeras pesquisas35 situadas no modelo da TCN reconhecem o 34

Segundo Dennett (1993, p. 389) só faz sentido falar em teleologia na evolução a partir da evolução cultural humana e com a emergência da mente, já que, para o filósofo, só é verdadeiramente possível atribuir intenção a seres humanos. Até mesmo casos de seleção artificial como a domesticação podem ser explicados por meio da TCN sem recorrer a concepções teleológicas (SMITH, 2007) – isso sem falar no fato de que não-humanos também são capazes de domesticar outras espécies (MUELLER et al., 1998). 35 Referências em Scott-Phillips et al. (2013, p. 4).

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feedback dinâmico entre práticas culturais e o alelo funcionalmente ligado à persistência da produção de lactase (padrões comportamentais promovem uma coevolução entre pressão seletiva e característica genética), ressaltando que a pecuária leiteira precedeu as mudanças genéticas. Há uma direcionalidade no processo partindo do organismo. O comportamento não emerge porque os genes favoráveis ao nicho são mais vantajosos que os desfavoráveis, mas o contrário: os genes favoráveis ao nicho se tornam vantajosos, uma vez que o comportamento cria uma propensão à sua própria vantagem. A diferença, nesse caso específico, não se encontra nos resultados empíricos ou em suas previsões. A distinção essencial é epistemológica (TORDAY, 2016, p. 4). Entretanto, o caso citado é bastante simples fenotipicamente, se comparado às sociedades dos himenópteros (abelhas e formigas), ou, muito mais, à linguagem humana. É nos comportamentos mais complexos que essa mudança de perspectiva se mostra útil. Vale ressaltar que, por conta dessa direcionalidade evolutiva resultante do uso dos recursos disponíveis aos indivíduos, a construção de nichos é responsável por alguns casos de especiação – em especial os casos de especiação simpátrica36, processo que parece ter sido muito importante no gênero Homo (SUMMERS; NEVILLE, 1978; SPOOR et al., 2007). Conforme se pretendeu demonstrar, a TCN possui, em relação ao modelo clássico, maior aptidão em tratar de características protoculturais e culturais na evolução das espécies – formando uma relação com o fenômeno conhecido como efeito Baldwin (BALDWIN, 1896; YAMAUCHI, 2004). O efeito Baldwin é um processo pseudolamarckiano em que comportamentos adquiridos ontogeneticamente (aprendidos) são incorporados ao código genético, de maneira a se tornarem instintivos. Em suma, o processo prevê que: dado que um comportamento X é altamente vantajoso para uma espécie cultural37, X pode surgir primeiramente como uma inovação cultural, aprendida sem nenhum auxílio genético especializado. No decorrer das gerações, aqueles indivíduos capazes de adquirir X com maior facilidade têm uma vantagem cada vez maior, enviesando a seleção natural em favor da automatização de X. A partir de certo ponto, os indivíduos que nascerem sem uma forte predisposição a X estarão tão desproporcionalmente em desvantagem em relação aos demais, que X estará firmemente 36

Divergência genética de populações que habitam a mesma região geográfica. Oposto de especiação alopátrica. Entenda-se aqui ―cultura‖ como ―plasticidade comportamental‖. O efeito Baldwin também é usado para se referir a algumas características histológicas ou metabólicas (cf. CHATER et al., 2009, p. 1015), mas esse aspecto é pouco relevante para este trabalho. 37

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codificado na espécie e, finalmente, não necessitará mais ser aprendido culturalmente38 (TURNEY et al., 1997, p. iv-v). À maneira clássica, tal qual postulada por Baldwin (1896), o efeito requer uma modificação externa, que providencie a pressão seletiva que direcionará o processo. Dentro da teoria de construção de nichos, porém – que Yamauchi (2004) chama de ―construção baldwiniana de nichos‖ –, ele é capaz de incorporar aspectos das discussões anteriores (exaptações, spandrels e equilíbrio pontuado) com maior credibilidade e coesão, por meio de seu caráter direcional39 e de seleção interna40 (id., ibid.). Essa combinação não é meramente uma concatenação de dois processos, mas sim um framework de eficácia explanatória amplificada, uma vez que transforma a relação entre aprendizagem e evolução. A construção de nichos seleciona a própria capacidade de construir nichos (id., ibid., 139). Esses ciclos retroalimentados de pressões e vantagens seletivas, de momentum e de inércia são capazes tanto de alterar radicalmente o ritmo da evolução das espécies (LALAND; BROWN, 2006, p. 2), quanto também de possibilitar a emergência de características inovadoras (LALAND et al., 2008, p. 14). Vale frisar que, em relação à filogênese da linguagem, não foi apresentada nenhuma pressão seletiva plausível que não se encontre no contexto da construção de nichos (BICKERTON, 2007, p. 515). Para entender melhor essa afirmação, é necessário discorrer sobre os estudos sobre linguagem animal.

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A relação entre o efeito Baldwin, a construção de nichos e a filogênese da linguagem é obviamente muito mais complexa do que se pode comentar aqui (cf. WEBER; DEPEW, 2003). Os trabalhos de Terrence Deacon (2009) e de Hajime Yamauchi (YAMAUCHI; HASHIMOTO, 2010), por exemplo, defendem a primazia de uma aquisição epigenética e, portanto, não geneticamente inata, da linguagem – assim como advoga Sampson (1999; 2007). A linguagem certamente não é um fenômeno monolítico que só poderia se adquirido por meio de um bloco genético; no entanto, como esboçado em Bates et al. (1998), há diversos tipos de inatismo, dos quais (e entre os quais) novas ordens de complexidade emergem. O assunto ainda é controverso, mas o binarismo inatismo-empirismo tem se mostrado cada vez mais simplista. 39 Um comportamento inicial pode engatilhar a cooptação adaptativa de outras características, assim como, posteriormente, sua própria consolidação genética. Spandrels são, assim, recursos abertos à cooptação, e a diferença entre exaptação e adaptação se torna mais uma curiosidade histórica do que uma propriedade essencial. 40 Como no caso de nichos cooperativos, cuja atividade pode gerar um feedback adaptativo tão acelerado a ponto de se tornar visível em uma única geração. A dinâmica intrínseca à interação entre nichos, consolidação genética e pressões seletivas altera a velocidade com que se dá o processo de especiação e adaptação, ocasionando períodos de rápida transformação e períodos de consolidação e estabilidade (cf. GINGERICH, 1984 p. 336; ODLING-SMEE et al., 2003, p.20; SZNAJDER et al., 2012).

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2. ANIMAIS NÃO-HUMANOS “All species are unique, but humans are the uniquest” (Theodosius Dobzhansky)

Na história intelectual do ocidente há toda uma cornucópia de casos anedóticos surpreendentes e revolucionários sobre primatas falantes, papagaios autoconscientes e inúmeras outras histórias ainda menos prováveis. A despeito dessa abundante literatura, o interesse científico sobre esse assunto é notavelmente recente (HILLIX; RUMBAUGH, 2010, p. 1-7). A hipótese científica de que primatas seriam capazes de aprender sinais ou palavras foi sugerida pela primeira vez por Samuel Pepys em 1661 (FOUTS, 1997, p. 27), mas a primeira tentativa sistemática de ensino teria de esperar até o começo do século XX, com um orangotango que, infelizmente, morreu prematuramente antes de qualquer progresso significativo (JOHANSSON, 2005, p. 129). A partir daí, inúmeros estudos foram iniciados, em sua maioria prematuramente interrompidos (id., ibid., p. 129-130). Mesmo antes de Darwin, o assunto sempre foi visto de maneira suspeita, por conta de uma preocupação incessante com a essência humana e sua excepcionalidade dentro do reino animal. Bickerton aponta que, curiosamente, ainda hoje existem vestígios dessa preocupação no imaginário coletivo, embora a excepcionalidade das aranhas, dos castores, das formigas etc. raramente seja levada em conta (2014, p. 50). No centro da discussão acerca de nosso status animal está, claro, a linguagem. Em contraste com nossa linguagem, cuja definição já foi formulada inúmeras vezes, de maneiras bastante complexas41, alguns linguistas (cf. HOCKETT, 1959) afirmam que outros seres vivos são capazes de possuir apenas sistemas de comunicação, termo aberto que se refere desde a trocas de DNA até vocalizações de primatas.

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―There are a few things that linguists can agree on, though you might not think so if you heard them arguing.‖ (CALVIN; BICKERTON, 2000, p. 15)

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2.1 LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO “The one great barrier between brute and man is language. Man speaks, and no brute has ever uttered a word. Language is our Rubicon, and no brute will dare to cross it.” (Friedrich Max Muller)

Nos estudos da filogênese da linguagem humana, uma noção perturba o método convencional de buscar estados intermediários, ou elos perdidos, num contínuo evolutivo. Nas palavras de David Premack:

And what exactly counts as intermediate? Perhaps animal call systems are not even the appropriate place to look when seeking systems homologous to human language. Human language is after all not exclusively a communication system. The anticipated continuity may be better realized in conceptual structure, mental representation, not to mention perception. (PREMACK, 1986, p. 4, grifo nosso)

Dependendo da abordagem e dos interesses, as definições de linguagem podem enfatizar tanto seu caráter funcional como suas propriedades estruturais. Do ponto de vista estrutural, a linguagem é um fenômeno em grande parte recombinatório (conforme o adágio humboldtiano dos ―infinitos usos de meios finitos‖), arbitrário e deslocado (ou seja, é capaz de referenciar eventos e objetos sensorialmente descontextualizados por meio de signos convencionados). Do ponto de vista funcional, a linguagem é tanto uma forma de comunicação e/ou manipulação social, como de organização mental (BICKERTON, 2007). Se por um lado o termo pode ser usado de maneira bastante abrangente (linguagem de programação, linguagem corporal etc.), as ciências linguísticas, a fim de estabelecer seu objeto de estudo, tendem a formular suas definições de forma a isolar a linguagem humana: Hockett (1959) formula 13 propriedades essenciais da linguagem, Pinker (1998) define a linguagem como sendo composta de um conjunto finito de símbolos e um de regras combinatórias. Obviamente, nenhum animal possui esse tipo de linguagem. Mas o objetivo deste capítulo não é simplesmente recitar, ao léu, uma platitude filosófica. Na busca por formas que preencham o entremeio de que fala Premack mais acima, diversos pesquisadores têm

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trabalhado com formas simplificadas de linguagem humana ensinadas a animais. Tal fenômeno é certamente mais complexo do que as vocalizações, danças de abelhas e sinais químicos dos animais in natura, mas ainda assim se encontra aquém da linguagem humana:

We do not suggest that animals or computers are on a par with humans when it comes to language. They are not, and will not be in the foreseeable future (…) However, animal language researchers are not as interested in whether animals can learn language as they are in finding out just what animals can learn about human-designed languages. Using that information, we could then ask how much language each species has acquired. Over the past 40 years or so animals have learned to do more and more complex things related to language, and thus have demonstrated more and more language. (HILLIX; RUMBAUGH, 2010, p. 19, grifo nosso)

Segundo Hillix e Rumbaugh (2010, p. 20-21), tem-se como saldo atual dos estudos analisados que: 1) animais são capazes de criar representações simbólicas, portanto podem estabelecer relações semânticas; 2) animais não parecem compreender relações sintáticas além de uma estrutura de argumentos básica (―quem‖ fez ―o que‖ ―a quem‖42); 3) animais têm maestria sobre o aspecto pragmático da linguagem43. Evidentemente, há uma necessidade de se tratar essa forma intermediária como um objeto próprio de estudo, ao invés de simplesmente afirmar seu insucesso comparado à linguagem:

We suggest the following definition of a basic language. We think that the rest of this book shows that what animals have done fulfills the minimal requirements implied by the definition. ―Language is an agreed-upon system of signals that represent things, events, feelings, ideas, intentions, and actions on the environment or on other organisms. The signals must symbolize something beyond themselves and fulfill a useful (pragmatic) function by coordinating the activities of organisms. The meanings of the signals comprising a language are shared, at least in part, by the individuals in the group using the language.‖ (HILLIX; RUMBAUGH, 2010, p. 19, grifo nosso)

Bickerton (2007, p. 516; 2009a, p. 77) se refere a esses usos protolinguísticos como ―pidgins animais‖, por conta de seu sucesso semântico-pragmático (a despeito das limitações

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Bickerton (CALVIN; BICKERTON, 2000, p. 50) especula sobre a possibilidade de a sintaxe ter evoluído da estrutura de argumentos, uma vez que esta envolve agência e outros papéis temáticos calcados no aspecto semântico (que, em sua hipótese, precedeu o sintático), mas que embute uma unidade semântica dentro de outra. 43 Uma das maiores dificuldades encontradas pelos pesquisadores é a de se ensinar a diferença entre nomear objetos e requisitá-los – em outras palavras, desenlaçar a função pragmática do aspecto semântico (HILLIX; RUMBAUGH, p. 34).

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sintáticas). A referência adotada para o resto deste trabalho será a de ―protolinguagem‖, enfatizando o caráter analógico do termo44.

2.2. MOTIVAÇÃO DOS ESTUDOS DE PROTOLINGUAGEM ANIMAL “Suppose the ape could not be taught a system exactly duplicating the human one. Are there ways in which the ape‟s system could fall short and still remain interesting? Are there other ways in which failure would immediately disqualify the system, robbing it of all interest?” (David Premack)

Os estudos de protolinguagem animal são um tesouro científico ainda pouco conhecido. Pesquisadores como David Premack, Savage-Rumbaugh e Irene Pepperberg pretendem explorar os limites da compreensão (e em muitos casos produção) protolinguística animal, e como seus comportamentos são afetados por essa aquisição. Incidentalmente a linguistas, o nível e qualidade da aquisição protolinguística pode indicar quais características da linguagem são especializadas ou de domínio geral, e em que grau (HAUSER et al., 2002). Premack (1986, p. 84-85) comenta, inclusive, que alguns dos animais sofrem transformações comportamentais a longo-prazo, e acabam por desenvolver uma maior capacidade de discernimento e categorização em decorrência de uma melhor percepção de invariâncias. Assim, esses estudos podem refinar algumas hipóteses de linguística evolutiva. Há uma opinião, bastante comum em estudos sobre a origem da linguagem, de que a linguagem é um produto evolutivo social, ou seja, de que a linguagem evoluiu por conta de vantagem seletiva junto à sociabilidade e convivência de grupos. No entanto, como aponta Premack (1986, p. 148-149), essa linha de pensamento involuntariamente prevê o surgimento da linguagem em toda espécie social complexa, o que obviamente não condiz com a realidade45. 44

Não se pretende sugerir que há relação direta entre os precedentes filogenéticos da linguagem humana (desenvolvida naturalmente no gênero Homo) e a protolinguagem tal qual é adquirida por esses animais. Não há. Esse uso terminológico é apenas uma analogia, para um exercício de imaginação especulativa como faz Bickerton sobre a trajetória protolinguística dos hominídios. A relação é, portanto, indireta. 45 O tópico das pressões iniciais que selecionaram a protolinguagem é ressaltado por Bickerton (1986) em uma resenha sua do livro de Premack, e constitui a base da hipótese que veio a desenvolver e manter no resto de sua

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Ademais, a capacidade protolinguística latente em alguns animais é evidência empírica de que muitas das características da linguagem pertencem a um tronco evolutivo comum, embora de maneira subótima, que no gênero Homo foram refinadas e potencializadas:

Why is this important for our understanding of language? It had been supposed (not to say assumed dogmatically) that what linguists saw as the unified human capacity for symbolic representation, grammar and language was unique to the human lineage. (That is, it appeared somewhere along the hominid line, and not earlier) Kanzi is not human, but he has this capacity in some measure; I think that this means that some aspect of language capacity arose earlier in the lineage, perhaps in the common hominid/chimp ancestor, perhaps earlier. (LLOYD, 2004, p. 581, grifo nosso)

Capacidades protolinguísticas latentes indicam que algumas das bases evolutivas da linguagem humana antecedem seu uso e foram cooptadas por meio de alguma pressão seletiva – pressão essa que não está nem esteve presente nas demais espécies. Nas palavras de Dehaene (2010, p. 9): ―[n]onhuman primates can slowly learn to recognize novel symbols (…) but they never think of inventing them.‖

2.3. BREVE HISTÓRICO DAS PESQUISAS

O behaviorismo foi o paradigma epistemológico que serviu de base para boa parte dos trabalhos de etologia no século XX. Seu método frio e laboratorial foi uma reação bastante produtiva ao modo desordenado com que se portavam os estudos do século anterior, de cunho mentalista, introspectivo e anedótico. Os behavioristas, tendo como base os trabalhos de Conwy Lloyd Morgan (1894) e John Watson (1929), evitaram o uso de termos mentalistas como representações mentais, pensamento ou ações intencionais, reduzindo esses aspectos psíquicos a comportamentos associativos e de estímulo-resposta (PEPPERBERG, 1999, p. 23). Embora o método behaviorista tenha possibilitado uma análise científica bastante sistemática do comportamento animal, um acúmulo problemático de ―anomalias‖ inexplicáveis pelo modelo apontou a necessidade de uma mudança paradigmática. A princípio, supôs-se que o déficit seria consertado com posteriores avanços teóricos dentro do próprio modelo, mas diversas atividades animais pareciam operar em cima da pressuposição carreira (1990, 2000, 2001, 2007, 2009a, 2014). Para uma revisão sistemática do papel seletivo nas hipóteses filogenéticas da linguagem, recomenda-se o artigo de Számadó e Szathmáry (2006).

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de que estes eram processadores ativos de informação (i.e. possuidores de atenção seletiva e memória de longo-prazo), e não apenas passivamente condicionados a estímulos naturais (id., ibid., p. 3-4 e referências nelas contidas). Em resposta a essas necessidades, Donald Griffin (1976) fundiu alguns dos preceitos axiomáticos das ciências cognitivas com o trabalho conduzido na área de etologia, dando início à etologia cognitiva. A maior parte do trabalho científico sobre protolinguagem animal foi, não ao acaso, conduzida nos últimos quarenta anos. Era um tanto inconcebível, quarenta anos atrás, que animais pudessem se comunicar protolinguisticamente ou compreender sentenças inéditas e não-condicionadas, embora hoje em dia haja um rico corpo de evidências sobre ambos fenômenos (HILLIX; RUMBAUGH, 2010, p. 269). Os linguistas, naturalmente, reagiram de maneira bastante cética em relação à produção e recepção protolinguística desses animais – ceticismo esse que foi corroborado, infelizmente, por casos como o dos Gardners, pesquisadores que corrigiam na transcrição a ordem dos sinais executados por seu chimpanzé Washoe em suas expressões (McNEILL, 1980, p. 147). Um resultado disso foi que, extrapolando o ceticismo saudável, o linguista e semioticista Thomas Sebeok organizou uma conferência na Academia de Ciências de Nova York com o intuito de banir as investigações sobre protolinguagem animal, afirmando que todas as ocorrências seriam redutíveis ao efeito Hans Esperto46 (SAVAGE-RUMBAUGH et al., p. 27). Enfim, não é possível fazer aqui uma revisão crítica dos estudos conduzidos47; o que se pode fazer é tecer um breve comentário sobre Kanzi, um bonobo nascido em 1980 e criado desde cedo por Sue Savage-Rumbaugh. Ao contrário da maioria dos primatas que o antecederam, Kanzi não foi separado de sua mãe, assim como não foi criado em um ambiente exclusivamente humano. O bonobo tinha seis meses quando sua mãe adotiva foi selecionada para um treinamento protolinguístico com lexigramas48 e estava sempre presente, embora fora dos testes. Aos dois anos de idade, Kanzi começou a usar o painel por conta própria,

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―Hans esperto‖ foi um cavalo que, segundo seu treinador, realizava cálculos básicos de aritmética. O psicólogo Oskar Pfungst demonstrou que, na verdade, o cavalo respondia a mudanças súbitas na linguagem corporal do seu treinador (sempre presente), sem ter nenhuma noção de cálculo. A este fenômeno deu-se o nome de ―efeito Hans esperto‖ (SAMHITA; GROSS, 2013). 47 Para tanto, indicam-se os trabalhos de David Premack (1986), Savage-Rumbaugh et al. (2009), William Hillix e Duane Rumbaugh (2010) e Kathleen Gibson (in TALLERMAN; GIBSON, 2013, cap. 3). 48 Como primatas não possuem um controle vocal suficientemente articulado, pesquisadores encontraram canais distintos para a comunicação produtiva, como lexigramas (um painel com símbolos logográficos que emitem o equivalente oral quando pressionados), língua de sinais etc.

48

surpreendendo os pesquisadores não só pela iniciativa, mas pela aparente compreensão da relação simbólica que sua mãe não havia sido capaz de apreender (LLOYD, 2004, p. 580). A partir dessa experiência de uso espontâneo, Savage-Rumbaugh procurou emular as condições de aquisição por meio das quais uma criança se torna um indivíduo linguístico. O uso da linguagem (tanto pela fala, de seus cuidadores, quanto no lexigrama) era frequente e natural, sem sessões de treinamentos laboratoriais (SAVAGE-RUMBAUGH et al., 2009, p. 30). A introdução de novos símbolos e sentidos se mostrou relativamente fácil, quando comparado a experimentos anteriores. Desde então, o bonobo se tornou capaz de usar noventa símbolos diferentes em um lexigrama, e parece ter formulado regras básicas de protossintaxe que o permitem produzir suas próprias expressões consistentemente (SAVAGE-RUMBAUGH et al., 1986). A compreensão oral de Kanzi também é bastante surpreendente (LLOYD, 2004, p. 580), assim como sua capacidade de inferência gramatical:

When Kanzi did fail to respond correctly, it was not generally the grammar over which he stumbled, but word meaning or his [pragmatic] view of what should be done when odd sentences were presented. For example, the sentence ―Can you put the can of coke in the trashcan?‖ troubled Kanzi. The word ―can‖ was employed in three different ways in this sentence, and this itself seemed to confuse him. Furthermore Kanzi did not consider a can full of coke to be trash and he was ready to infer that he should place a can of coke in the trash. Thus there were many things about this sentence that make it complex for Kanzi, but the grammatical structure of “Put X in Y” was not one of them. The trashcan was large and not easily taken to the coke. If Kanzi were to be solving the sentences by knowing only ―coke‖ and ―trash‖ and then doing the easy thing (taking the transportable to the non-transportable) this sentence would have been easy for him, but it was not. (SAVAGE-RUMBAUGH et al., 2009, p. 32, grifo nosso)

É importante enfatizar que o êxito de Kanzi não se deve a melhorias no método de treinamento, uma vez que, ao menos nos primeiros passos de aquisição protolinguística (certamente a parte mais complexa), não houve treinamento. A capacidade de distinguir o ato de nomear e o de requisitar (que assombrou do começo ao fim os estudos com o famoso chimpanzé Nim Chimpsky) foi adquirida implicitamente.

49

2.4. PROBLEMAS METODOLÓGICOS

As pesquisas com protolinguagem animal enfrentam problemas que vão desde as implicações filosóficas mais profundas até tarefas extremamente mundanas. Para começar, manter um primata (financeiramente e praticamente) é uma tarefa árdua49, e muitos pesquisadores são obrigados a se comprometerem vinte e quatro horas por dia à manutenção do animal, além da própria pesquisa. Quanto à metodologia, ainda não há na literatura mais do que recomendações, e o pesquisador se vê obrigado constantemente a improvisar e correr riscos, além de perdurar a despeito das críticas, frequentemente exacerbadas (RICE, 1991, p. 448). Alguns problemas são bem conhecidos na literatura relevante, como as discussões de intenção e grounding50:

We immediately encounter the problem of meaning; that is, what does an animal really mean by pressing a key with a lexigram that we take to mean give, or making the correct sign for give according to ASL (…) When we say that we take any of these manifestations as give, we are glossing the manifestation as though it were equivalent to give as we understand it. (…) Investigators of animal language cannot claim that animals exhibit linguistic ability unless the claim is necessarily implied by their observed behaviors. This obligation follows from Occam‘s Razor. (HILLIX; RUMBAUGH, 2010, p. 32. Negrito e itálico nossos)

É razoável crer que, à medida que a complexidade de um comportamento (proto-) linguístico aumenta, a complexidade das operações subjacentes, necessárias para sua manifestação, também aumente (HILLIX; RUMBAUGH, 2010, p. 34). Há, portanto, dois aspectos que regem a glosa protolinguística. Primeiramente, a representação utilizada pode mesmo ser considerada um símbolo? Isto é, o animal, a despeito do uso que faz, possui uma representação simbólica? E, em segundo lugar, dado que o animal possui tal representação simbólica – qual é o seu significado para o animal?

Through careful analyses of the circumstances under which a chimpanzee was able to use a particular symbol, Savage-Rumbaugh and her associates showed that none of the previously mentioned functions of a word can be taken for granted. Learning to use a symbol to request some object in one context does not imply competence to request that object in another context or the knowledge that the symbol in question could function as a name for identifying an object. (TERRACE, 1986, p. xvii, grifo nosso) 49

É raro encontrar um pesquisador que trabalhou por anos a fio com chimpanzés sem perder ao menos um dedo por conta de mordidas, por exemplo. 50 ―Embasamento, enraizamento‖ em inglês. Diz-se, grosso modo, do conhecimento mutuamente compartilhado, necessário para que a comunicação seja efetiva.

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Esse problema de grounding protolinguístico tem relação direta com o problema da indeterminação de tradução de Quine (1960):

Willard Quine asks what would be meant if a native of some other country, speaking in an unknown language, exclaimed ―Gavagai!‖ when a white rabbit jumped up from a hiding place and ran. Quine and Premack point out that we could not tell what the word meant. Our first thought would be to gloss gavagai as rabbit. But it might mean white or food or ―it‘s running‖ or ―look at that,‖ or ―shoot him with the bow and arrow you‘re holding in your hand,‖ or even ―Damn, that startled me!‖ We require many repeated exposures to gavagai, or to any other word, in different contexts before we can ascertain its meaning. (HILLIX; RUMBAUGH, 2010, p. 35, grifo nosso)

No caso humano, depois que a fundação de algumas palavras está assegurada, podemos prosseguir com maior segurança (o que torna possível o uso de dicionários, por exemplo). É fisicamente impossível que uma palavra signifique precisamente a mesma coisa para dois cérebros distintos. Entretanto, se para ambos ela possuir um grounding relativamente parecido (i.e. semelhança quanto às redes neuronais acionadas por essa palavra), a comunicação é possível. O problema linguístico é nitidamente contornado nos seres humanos, por conta da rica vivência linguística que lhes permite explicar, reformular e especificar seus discursos. Esse já não é o caso dos animais protolinguísticos, que, na melhor das hipóteses, possuem apenas algumas centenas de palavras. É provável que Kanzi tenha noções muito distintas das nossas até mesmo sobre coisas que, para nós, são bastante corriqueiras51. Já sobre as críticas do efeito Hans Esperto, Hillix e Rumbaugh comentam que o ônus da prova recai simetricamente sobre ambas as partes, e que na ausência de evidências conclusivas, a causa dos resultados observados deve ser considerada como indeterminada (2010, p. 53).

What I do claim is that: first, ape language researchers have demonstrated that ape performances cannot be attributed solely to nonverbal cues. Second, the extent of nonverbal cuing that would be needed to guide the observed performances would have to go far beyond the cues needed to start and stop a response; that is, the cues would have to guide the selection and execution of one out of many responses, not just start and stop a response. (Contrast Clever Hans‟ need to stop after, say, 42 hoof taps with the information Kanzi needed to carry out the command “Put 51

Sue Savage-Rumbaugh conta que Kanzi, curioso com o aspecto de uma tomada elétrica, nela introduziu uma chave de fenda, levando um choque elétrico um tanto agoniante. A que se referiria o lexigrama de ―tomada elétrica‖ depois desse caso? (HILLIX; RUMBAUGH, 2010, p. 36-37)

51

the pine needles in the refrigerator,” a response that he had never performed or seen anyone else perform. Third, nonverbal cues are a part, a legitimate part, of all face-to-face human communications, and should not be routinely excluded from animal-animal or animal-human communication. Thus the Clever Hans phenomenon is probably more useful to remind us of that fact than it is as a criticism of language studies. (id., ibid., p. 255, grifo nosso)

Hillix e Rumbaugh (id., ibid., p. 256) comparam Kanzi com um chimpanzé criado pelos Rumbaughs anos antes, chamado Austin. Quando requisitado a desempenhar alguma tarefa, Austin (cuja compreensão protolinguística era bastante limitada) fitava atentamente os pesquisadores, buscando pistas gestuais ou até olhares. Na presença de treinadores cientes da tarefa a ser cumprida, Austin tinha uma taxa de sucesso relativamente alta. Mas na ausência de tais pistas, como quando recebia as instruções por meio de alto-falantes ou fones de ouvido, sua taxa de sucesso era abismalmente baixa. Era evidente aos pesquisadores que Austin não dominava a compreensão das instruções dadas em inglês. Por outro lado, quando os pesquisadores pediam a Kanzi que pressionasse o lexigrama correspondente à palavra falada, sua atenção se voltava imediatamente ao painel, dando as costas aos pesquisadores que se encontravam atrás dele. Segundo Frans de Waal (1999, p. 256), afirmar que um animal age por instinto é tanto uma questão de interpretação quanto dizer que ele age intencionalmente. Assim como ressaltam os behavioristas, deve-se aplicar a navalha de Occam a descrições exacerbadamente elaboradas para fenômenos explicáveis em termos mais simples. Mas intencionalidade, do ponto de vista etológico, não significa voluntariedade autoconsciente, e sim um domínio sobre o conteúdo da mensagem e sua consequência sobre seu receptor (PEPPERBERG, 1999, p.197). Ora, a compreensão de sentenças inéditas e a utilização adequada de símbolos do lexigrama demonstra que Kanzi possui tal domínio em um grau razoável (SAVAGERUMBAUGH et al., 2009). Primatas são animais bastante avançados cognitivamente, e de Waal defende que é possível aplicar à análise de comportamentos animais alguns critérios antropomórficos (mas não-antropocêntricos) – uma heurística com base empírica em observações naturais, neurocientíficas, experimentais etc., utilizada no intuito de se criar uma perspectiva fenomenológica do mundo animal. Afinal, metáforas antropomórficas não são

52

nada mais do que tentativas de se construir sentido do mundo por meio de referências naturais à experiência humana (WAAL, 1999, p. 263)52.

2.5 ALGUMAS CONCLUSÕES SOBRE PROTOLINGUAGEM ANIMAL

Embora bonobos, chimpanzés e alguns outros animais tenham a capacidade potencial de adquirir protolinguagem, nenhuma das espécies jamais a desenvolveu espontaneamente, sem interferência de seres humanos. Bickerton (2009, cap. 6; 2014, p. 63) especula que isso é de se esperar, uma vez que nos nichos ocupados por essas espécies não teria havido pressão seletiva em direção à cooptação e refinamento dessa capacidade (indivíduos totalmente prélinguísticos não estariam em desvantagem em relação aos protolinguísticos). De fato, há que se ressaltar que dentro da ordem dos himenópteros (insetos com sistemas nervosos infinitamente simples se comparados aos dos primatas) algumas espécies desenvolveram, por conta de seus nichos, sistemas de comunicação bastante sofisticados (BICKERTON, 2009, cap. 7). É certo que nenhum bonobo jamais desenvolveu um cérebro capaz de manejar representações simbólicas ou espontaneamente aprendê-las ontogeneticamente por conta própria. Bonobos, ao contrário de seres humanos, não são capazes de fala articulada nem de sintaxe – e, no entanto, Kanzi é capaz de compreender uma gama de mensagens em língua inglesa considerável, o que sugere que a capacidade latente de compreensão protolinguística precede filogeneticamente em muito tempo as habilidades refinadas que possibilitam a linguagem moderna:

This means that none of the capacities that Kanzi used to perform these linguistic abilities was designed by natural selection for such tasks; rather, that was just a feature of Kanzi‟s brain, which it could, under this extremely special environment, learn to do those things. (…) it is reasonable to suppose that whatever it is about Kanzi‘s brain that allows him to do these linguistic things in this specialized environment, is some version of the basic characters that allow us to do these linguistic things in our cultural environments. It also seems obvious that, in the hominid lineage, those basic abilities to do linguistic things were modified and refined, but the key point here is that the human versions of the characters are modifications, not novelties. (LLOYD, 2004, p.583, grifo nosso)

52

―everyday language must remain available for what has yet escaped satisfactory explanation‖ (H. Kummer apud WAAL, 1999. p. 275). De Waal cita como exemplo o caso da Tanzsprache (ou dança das abelhas), de Karl von Frisch, para ilustrar como termos funcionais podem auxiliar na compreensão de um comportamento.

53

O caso de Kanzi, especificamente, também traz à tona outros dois fatores importantes: 1) o aspecto maturacional do cérebro primata (começar o treinamento com os sujeitos já adultos se mostrou desproporcionalmente malsucedido [cf. LLOYD, 2004, p. 583]); 2) os ambientes altamente artificiais em que muitos dos experimentos são conduzidos deturpa as conclusões dos estudos: Kanzi foi criado em um espaço contendo duas (proto-) culturas (a humana e a dos bonobos) e viveu da maneira mais natural possível dentro dos interesses dos pesquisadores (SAVAGE-RUMBAUGH, 2009, p. 33). Um dos resultados mais fascinantes dos estudos é que, como indica Bickerton (2014, p. 120), os sujeitos protolinguísticos consistentemente produziram proposições curtas, com duas ou três unidades semânticas. Até onde se pode ver, em toda a literatura das pesquisas, tal modo de concatenação nunca foi explicitamente ensinado ou reforçado, e parece ter sido espontâneo. É possível que algumas construções tenham sido, a princípio, imitações, tendo como base a fala dos treinadores. Mas isso não explicaria a ordem de muitas das proposições produzidas pelos próprios animais, que combinam palavras de maneiras inéditas. Isso parece sugerir que, antes da sintaxe moderna, um modo simples de concatenação protolinguística deveria estar latente desde, no mínimo, o último ancestral comum entre bonobos, chimpanzés, gorilas e humanos (id., ibid., 120). Afirmar que a posse ou não da linguagem é uma questão gradativa não quer dizer, obviamente, que seres humanos e outros primatas são linguisticamente equivalentes. Diferenças quantitativas em progressão geométrica por vezes se comportam como diferenças qualitativas. O importante é compreender que a linguagem não é um bloco evolutivo monolítico, e que se nós nos ativermos às diferenças neuroarquitetônicas e de desenvolvimento neuronal entre seres humanos e outras espécies, será possível aprimorar nossa compreensão das bases filogenéticas da linguagem humana (LLOYD, 2004, p. 284). Os estudos sintáticos com animais protolinguísticos são, ao que tudo indica, o campo mais fértil para esse reconhecimento (HILLIX; RUMBAUGH, 2010, p. 277).

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3. A FILOGÊNESE DA LINGUAGEM “Language is a labyrinth of paths. You approach from one side and know your way about; you approach the same place from another side and no longer know your way about.” (Ludwig Wittgenstein)

Como mencionado na introdução deste trabalho, a quantidade de material publicado nos últimos quarenta anos sobre o tópico da evolução da linguagem é intimidadora. E embora haja linguistas como James Hurford e David Lightfoot trabalhando na área, grande parte da discussão ainda é feita por pesquisadores das áreas de psicologia, neurociência, antropologia e outras. Tal agrupamento de perspectivas distintas gera certa confusão de prioridades e de métodos. Linguistas, no epicentro da questão, se veem no geral um tanto perdidos (quando não indiferentes): os interessados, que ainda são poucos, têm muito o que estudar fora da linguística, e a interdisciplinaridade do assunto pode ser realmente um pouco opressiva (BICKERTON, 2007, p. 510). Como se isso não bastasse, ―there is perhaps no other field of human inquiry which has been so vitiated by a failure to get priorities straight‖ (id., ibid., p. 510), incluindo buscas simplórias por algum Santo Graal genético ou neurológico que dispense essa complexidade interdisciplinar:

Given the chaotic state of the field, and the number of ever-proliferating theories, it is hardly surprising that researchers have tried to find some scientific Alexandrian sword that would quickly slice through the Gordian tangle of current confusion and provide a simple, straightforward solution. (id., ibid., p. 522-523)

Chomsky (2002, p. 61) comenta que as ciências cognitivas e as ciências linguísticas ainda não são capazes, em seu estado atual, de unificar seus estudos de modo a integrá-los solidamente em um contínuo epistemológico, conforme ocorreu com a física e a química (e subsequentemente partes das ciências biológicas). No entanto, há de haver algumas pistas sobre como sair desse labirinto, a começar pelo fato de que, embora não saibamos precisamente como funciona a linguagem no cérebro, sabemos de muitas maneiras pelas quais ela não funciona (CALVIN; BICKERTON, 2000, p. 206-207).

55

Bickerton tem focado nesse aspecto há muito tempo. Sua abordagem pressupõe desde o começo de sua carreira que haveria pistas para a compreensão da linguagem como fenômeno biológico em casos marginais aos comumente abordados na linguística gerativa: a crioulização de pidgins, a diferença entre comunicação animal in natura e a adquirida artificialmente por meio de treinadores humanos, assim como aspectos de economia energética cerebral e plausibilidade evolutiva. Este capítulo elaborará alguns desses aspectos, com o intuito de oferecer ao leitor um sumário compreensivo da visão de Bickerton sobre como a linguagem emergiu no gênero Homo e evoluiu até o estado atual. Antes de tudo, é preciso delimitar melhor o que se quer dizer por ―evolução da linguagem‖, e.g. ―Language evolution has not stopped, of course; in fact, it may be progressing more rapidly than ever before.‖ (CULOTTA; HANSON, 2004, p. 1315 apud BICKERTON, 2007.

Of course it has stopped, because the biological evolution of humans (saving the odd minor development like the spread of lactose tolerance or proneness to sicklecell anemia) has, to all intents and purposes, stopped also. What is happening (…) is cultural change (sometimes misleadingly described as ‗‗cultural evolution‘‘); within the envelope of the language faculty, languages are recycling the limited alternatives that this biological envelope makes available. (BICKERTON, 2007, p. 511, grifo nosso)

É imperativo delinear precisamente o que se quer dizer por ―evolução‖. Mudanças linguísticas não fazem parte da evolução da linguagem (embora sejam um resultado dela), pois os dois fenômenos constituem processos ontologicamente distintos, a despeito de qualquer método comparativo que se baseie numa relação entre eles53. O presente trabalho ignora a terminologia metafórica tal qual é usada em filologia e linguística histórica, referindo-se à evolução da linguagem apenas em seu sentido biológico neodarwiniano. Sumariamente, Bickerton (2007) levanta oito questões principais para o estudo da evolução da linguagem:

(1) Como evoluíram as unidades simbólicas? 53

O problema consiste em confundir ou não expor claramente a fronteira entre uma coisa e outra. Johansson (2005, p. 32-33) ofusca, inconsequentemente, a separação entre a concepção neodarwiniana de evolução e as abordagens da memética e da epistemologia evolutiva de Karl Popper, como se estas fossem consequências naturais daquela. William Croft (2008, intitulado ―Evolutionary Linguistics‖) usa uma terminologia biológica (genética, filogênese, genes) no contexto de linguística histórica, indiscriminadamente, o que certamente causa uma confusão entre os campos da linguística histórica e da linguística evolutiva tal qual é concebida neste trabalho.

56

(2) Como evoluiu a sintaxe?

Bickerton postula que unidades simbólicas precedem a sintaxe, uma vez que símbolos podem conferir vantagem seletiva sem sintaxe, enquanto sintaxe sem unidades simbólicas é logicamente inválido – i.e. processos combinatórios sem unidades combináveis – (id., 2009b, p. 542).

(3) Qual foi a pressão seletiva inicial da linguagem?

As pressões seletivas iniciais, tendo em vista a notória ausência de linguagem nas demais espécies sociais (incluindo primatas), necessitam ser especificadas no contexto de construção de nichos de alguma maneira específica aos hominídios (id., 2009a, cap. 5-7). Vale ressaltar que lugares-comuns como ―pressões sociais‖ vagas e inespecíficas não são de utilidade alguma ao pesquisador sério (id., 2014, p. 54).

(4) O desenvolvimento posterior foi gradual ou repentino?

Até (1998), Bickerton via a transição de protolinguagem a linguagem como um fenômeno catastrófico e repentino. De (2000) em diante, no entanto, essa posição foi cedendo a uma abordagem gradualista (embora não uniformemente gradual), e em (2014) Bickerton especula que a protolinguagem tenha evoluído em três etapas distintas, sendo a segunda a mais longa.

(5) Qual a relação da fonologia com (1) e (2)?

A emergência da fonologia é necessariamente precedida de unidades simbólicas em todo tipo de abordagem que não siga o modelo do primata cantante (segundo o qual o refinamento categórico do som de alguma forma precede e seleciona sua utilidade simbólica: música se torna linguagem), o que é evolutivamente bastante implausível (id., 2007, p. 512) – enquanto facilmente se imagina um aumento de unidades simbólicas criando uma vantagem seletiva em prol de fonologia discriminatória (id., 2009a, p. 231). A fonologia também é precedida (ou no máximo acompanhada) pela sintaxe, tendo em vista a forte relação estrutural

57

entre ambas (id., 2009b, p. 534). Em outras palavras, a fonologia é provavelmente um fenômeno secundário à emergência dos aspectos simbólico e sintático54.

(6) A linguagem teve início por gestos ou fala?

Na ausência de evidências definitivas, Bickerton (2007, p. 512) se diz agnóstico em relação à ordem sequencial entre gestos e oralidade, e especula que possivelmente não havia distinção fixa entre os canais, e os indivíduos faziam uso de qualquer meio disponível (imitações, gestos, sons etc.); a oralidade só veio a ser priorizada gradualmente, por conta de sua maior utilidade prática (não necessita do meio visual, podendo ser usada no escuro, além de liberar as mãos para o trabalho etc.).

(7) A linguagem originou de algum outro sistema de comunicação?

Vocalizações primatas tendem a ser o exemplo comparativo mais frequente na busca de antecedentes filogenéticos à linguagem humana (cf. TOMASELLO, 2010). No entanto, há diferenças entre um sistema e outro que parecem indicar uma descontinuidade: vocalizações são fundamentadas geneticamente, enquanto palavras são transmitidas culturalmente; vocalizações são interjetivas, holofrásticas e não predicam – o oposto de palavras em seu uso geral55; vocalizações são indexais (i.e. dependem da presença sensorial de seu referente), enquanto palavras são unidades simbólicas passíveis de deslocamento56. Como é evidente, o tópico é repleto de controvérsias e abordagens mutuamente exclusivas. Consenso é um luxo raro. Segundo Bickerton (2007), eis algumas das poucas questões sobre as quais há consenso:

54

Bermúdez-Otero e Honeybone (2006) fazem um levantamento sobre a relação entre fonologia e sintaxe nos estudos linguísticos do século XX. 55 Poggi (2009) divide interjeições modernas entre primárias (pré-linguísticas, e.g. ―ah‖, ―ai‖ etc.) e secundárias (palavras cooptadas interjetivamente, e.g. ―meu deus!‖ etc.). Wharton (2003) afirma que interjeições primárias fazem parte de uma linguagem puramente afetiva e inarticulada. Bickerton (2009a, 2014), na mesma linha, vê interjeições primárias como resquícios de vocalizações animais. 56 A capacidade de comunicar alguma informação sobre eventos e entidades ausentes, sejam passados, contemporâneos ou futuros, assim como fictícios ou até mesmo inexistentes (cf. HOCKETT, 1959, p. 35-36). Bickerton nota que abelhas e formigas possuem sistemas comunicativos capazes de deslocamento referencial, embora seu alcance temático seja extremamente limitado (2009a, 2014).

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a)

Os australopitecíneos provavelmente não tinham nenhum tipo de linguagem, e o

Homo sapiens tinha, o mais tardar, cinquenta mil anos atrás. b)

Houve algum tipo de protolinguagem, mas não há consenso sobre suas

características. c)

Alguma pressão seletiva específica engatilhou o surgimento da protolinguagem.

d)

Há alguma conexão entre a evolução da linguagem e a evolução da cognição.

Qualquer passo dado além disso é em maior ou menor grau especulação e muito provavelmente controverso. Nenhuma das hipóteses é, pelo menos por enquanto, testável diretamente, e todo tipo de evidência é auxiliar, de campos como paleontologia, arqueologia, neurologia entre outros. O caminho cientificamente sério a ser tomado é a criação de um modelo linguístico-evolutivo oriundo da triangulação entre neurobiologia, evolução e linguística, que seja capaz de conectar os aspectos neurobiológicos e evolutivos aos fenômenos de aquisição da linguagem, crioulização, mudança linguística etc. observados hoje em dia (id., 2014, p. 39).

3.1 TRÊS PROBLEMAS “The problems are solved, not by giving new information, but by arranging what we have known since long.” (Ludwig Wittgenstein)

Um século e meio atrás, Alfred Russel Wallace (1869) elucubrava, perplexo, um aparente paradoxo: como explicar o intelecto superabundante da espécie humana por meio da seleção natural, se esta lhe teria garantido a aptidão necessária em seu meio com um cérebro apenas um pouco superior ao de um primata? A seleção natural é notoriamente míope e fixada no aqui-e-agora; no entanto, aparentava a Wallace que a evolução teria catapultado a espécie humana para o cume adaptativo. Bickerton se refere a isso como ―o problema de Wallace‖ (BICKERTON, 2014, p. 1). A solução que Wallace acabou propondo ao problema era de natureza teológica, e não diz respeito à ciência conforme esta avançou desde então. Seu questionamento, entretanto,

59

ainda é pertinente: aritmética, música e literatura não faziam parte das exigências adaptativas da savana africana. Darwin (1871, p. 100), ciente desse abismo que separava o mais tolo dos homens do animal mais inteligente, hipotetizou que faculdades mentais como a consciência e o poder de abstração pudessem ser produtos da posse humana da linguagem articulada (id., ibid., p. 103). De fato, parece haver um contínuo no que diz respeito a diversas competências cognitivas entre animais não-humanos e seres humanos – e, ainda assim, o abismo é evidente (HURLEY; NUDDS, 2005). Darwin, portanto, estipulou que a inteligência humana era um produto incidental do uso articulado da linguagem. Bem, entre as faculdades mentais (abstração, consciência etc.) a linguagem é, de fato, a melhor opção: é a mais sistematicamente estudada, estruturalmente distintiva e objetivamente identificável – isso sem falar que é a mais evidentemente única à espécie humana. Porém, se a inteligência humana é produto da linguagem, como se explica esse transbordamento de uma faculdade às outras? Isto é, quais propriedades da linguagem possibilitaram um acréscimo às demais inteligências? A ausência de uma resposta definitiva indica, provavelmente, um de dois estados: ou Darwin estava errado, ou ainda não há conhecimento suficiente sobre como funciona a linguagem (BICKERTON, 2014, p. 8). Segundo Bickerton (id., ibid., p. 8), há dois tipos principais de teorias linguísticas, no que diz respeito ao funcionamento corpóreo da linguagem: 1) o primeiro afirma que não há adaptações biológicas dedicadas à linguagem, sendo esta o produto de competências cognitivas mais gerais; 2) o segundo defende que, fora alguns elementos periféricos, a linguagem (e, em especial, a sintaxe) é determinada por mecanismos biológicos funcionalmente específicos. A epígrafe para este capítulo pode parecer um tanto dissimulada, tendo em vista o imenso déficit de evidências empíricas no campo e a insatisfatoriedade dos modelos neurolinguísticos atuais (ao menos no que diz respeito à evolução da linguagem). Entretanto (como já se mencionou mais acima), se o conhecimento atual não basta para construir uma teoria sólida, ao menos é possível, a partir dele, descartar algumas hipóteses. No caso em questão, ambos os tipos de teorias linguísticas são, do ponto de vista evolutivo, igualmente implausíveis (id., ibid., p. 8): (…) we do know enough, right now, to draw broad if sketchy pictures of our past, and use that information to separate plausible from implausible proposals. It isn't facts that are lacking so much as a way of focusing those facts, putting them into a coherent perspective. (id., 2009, p. 104)

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Um modelo de linguagem deve dar conta dos fenômenos descritos no fim do subcapítulo anterior. Deve, portanto, explicar antes de tudo por que razão as línguas divergem superficialmente ao ponto de ininteligibilidade, embora toda criança possua a capacidade de aprender qualquer língua natural. Ou seja, o aparato biológico (seja ele qual for) que possibilita a linguagem, deve, além de ser único à espécie humana, viabilizar todas as línguas do mundo, sem favorecer nenhuma. Para isso, a infraestrutura genética da linguagem deve necessariamente providenciar apenas os mecanismos básicos à linguagem, deixando a fatores ambientais (históricos e sociais) todas as subsequentes manifestações estruturais variáveis. Para Bickerton (2014), essa infraestrutura genética corresponde justamente à gramática universal tal qual é formulada no Programa Minimalista (cf. CHOMSKY, 1995):

Once UG is seen to be much more underspecified than we thought, the very existence of variation receives a straightforward rationale: there is variation precisely because the genome does not fix all the details of Universal Grammar. A Minimalist view of language makes variation inevitable.‖ (BOECKX, 2010, p. 26 apud BICKERTON, 2014, p. 39, grifo nosso)

Não é à toa que Christiansen e Kirby (2003, p. 1) chamaram a questão da evolução da linguagem de ―o problema mais difícil na ciência‖. Porém, Bickerton (2014) compara o caso com a parábola dos cegos hindus e o elefante: ―o problema‖, que aparenta ser intratavelmente multifacetado, consiste, na verdade, de três problemas distintos. O autor decompõe a evolução da linguagem em três fases, sobre as quais constrói o núcleo de sua teoria linguísticoevolutiva57:

(1) A divergência e subsequente autonomia em relação à comunicação animal. (2) A aquisição de estruturas básicas envolvendo o resultado do processo anterior. (3) A transição às línguas tais como são conhecidas hoje.

57

Daqui em diante referenciado simplesmente como ―os três problemas‖ de Bickerton (2014). A título de curiosidade (o autor tem histórico interessante nesse quesito): até (1998) sua posição era saltacional, catastrófica, não muito diferente da de Chomsky, famoso descontinuísta (HAUSER et al., 2002, 2014, BERWICK; CHOMSKY, 2016), enquanto que no livro coautorado com Calvin em 2000, Bickerton elabora um modelo mais gradual de transição entre protolinguagem e linguagem; (2009a) parece apenas refinar essa posição com um maior conhecimento de teoria evolutiva como defendido em (2001) e (2007) – até chegar ao presente modelo, trifásico, em (2014).

61

Os três processos são de naturezas diferentes: (1) foi fruto da seleção natural no contexto de construção de nichos; (2) se deve principalmente a desenvolvimentos internos (economia cerebral, plasticidade etc.); (3) foi o resultado de transformações culturais na busca de formas comunicativas mais eficientes, possibilitada por (1) e (2). Estabelecer um modelo que os conecte é a proposta de Bickerton (2014) e, consequentemente, deste trabalho.

3.2 O PRIMEIRO PROBLEMA “To make progress in understanding all this, we probably

need

to

begin

with

simplified

(oversimplified?) models and ignore the critics' tirade that the real world is more complex. The real world is always more complex, which has the advantage that we shan't run out of work.” (John Ball)

Como defendido pela teoria de construção de nichos (TCN), características únicas a uma espécie (e.g. teias de aranhas, represas de castores e a biossonar dos morcegos entre outras) não surgem de mudanças genéticas aleatórias, e sim por meio de transformações seletivamente direcionadas, produtos de circunstâncias ecológicas específicas a cada espécie. A linhagem humana não é uma exceção (BICKERTON, 2014, p. 11). Em algum momento nossos antecessores pré-linguísticos precisaram reagir a algum problema ecológico, o que se deu por meio da construção de um novo nicho que exigia, entre outras coisas, deslocamento referencial58. Esse conjunto de circunstâncias (para o conforto de Wallace) não teria alterado dramaticamente a capacidade cerebral desses indivíduos (conforme é evidenciado na capacidade latente de primatas como Kanzi), embora, por conta de suas novas exigências, tenha providenciado a base seletiva de seu subsequente refinamento (id., ibid, p. 12). A TCN, como elaborada mais acima, prevê que as mudanças genéticas ocasionadas pela construção de um novo nicho sejam precedidas por transformações comportamentais – ou seja, os princípios protolinguísticos não necessitaram modificações 58

Não há, segundo Bickerton, evidências de que a comunicação dos demais primatas tenha sofrido muitas alterações desde esse período de especiação – nenhuma alteração em direção à linguagem, pelo menos (id., 2014, p. 70).

62

genéticas nos indivíduos. Inclusive, ao contrário de como se deu o caso das formigas e abelhas – em que tal adaptação se estabilizou ao ponto de coibir transformações significativas (ver nota de rodapé 56) –, no caso dos primatas, cognitivamente flexíveis, tal capacidade certamente manteria uma plasticidade considerável. A descontinuidade estrutural e funcional entre comunicação animal e linguagem causa a impressão de um abismo qualitativo impossível de ser atravessado. Mas esse é um resquício intuitivo pré-científico, já que o mesmo pode ser dito de inúmeras propriedades dos organismos vivos que, afinal, existem (DENNETT, 1995, p. 119). Tome-se por exemplo a habilidade de voar dos insetos. Ninguém sabe ao certo como os insetos desenvolveram a capacidade de voar. A hipótese mais aceita é a de que proto-asas eram uma forma eficiente de termorregulação (KINGSLOVER; KOEHL, 1985, p. 501). No decorrer da evolução em prol de termorreguladores maiores, a capacidade de voar (a princípio desengonçada e ineficiente) se mostrou vantajosa o bastante para ser refinada e mantida através das inúmeras especiações desde então. Algo parecido deve ter ocorrido com as protopalavras59 de nossos antecessores, o que significa dizer que a linguagem deve ter proporcionado, em sua forma ainda embrionária, algum tipo de vantagem seletiva ou sua infraestrutura genética não teria sido fixada (BICKERTON, 2014). Mas o que são, exatamente, palavras?

3.2.1 CONCEITOS E PALAVRAS “Point to a piece of paper. And now point to its shape — now to its colour — now to its number (…) How did you do it? — You will say that you „meant‟ a different thing each time you pointed. And if I ask how that is done, you will say you concentrated your attention on the colour, the shape, etc. But I ask again: how is that done?” (Ludwig Wittgenstein) 59

Bickerton não provê uma definição de ―protopalavra‖. É possível supor, no entanto, que: por um lado, protopalavras, além de serem pobres em conotações, não possuem propriedades sintático-lexicais como é o caso com as palavras; por outro, são capazes de deslocamento referencial e uso voluntário na recuperação de conceitos mentais, o que as diferencia de vocalizações primatas.

63

―Palavra‖, embora de uso corrente, é um termo bastante complicado dentro da linguística. Grosso modo, Bickerton (2014) foca na relação funcional entre conceito e palavra, i.e. ―What Words Can Do [to the brain]‖ (p. 99), tratando palavras como representações externalizáveis (gestuais, sonoras etc.) de hubs (literalmente ―focos‖ ou ―centros‖, em inglês) neuronais, que, por sua vez, seriam a manifestação de conceitos no cérebro. Essa leitura de Bickerton é baseada em uma fusão da ideia de ―zonas de convergência‖ entre conceitos (DAMASIO et al., 1996) e os hubs mencionados (PATTERSON et al., 2007). Por conta do escopo deste trabalho, esse assunto não poderá ser discutido mais a fundo. A transição entre protopalavra e palavra se dá de maneira vaga e imprecisa por Bickerton, embora fique claro no capítulo sobre variação linguística (2014, cap. 6) que, nos estados mais atuais da linguagem, palavras são tratadas como unidades fonológica e sintaticamente complexas e ricas em conotações. Há, segundo Bickerton (id., ibid., p. 75), uma gama de pesquisas indicando que animais possuem conceitos variados e complexos, a despeito da vasta diferença cognitiva entre não-humanos e humanos. A maior evidência viria de estudos de economia neuronal, como os de Cherniak (2005), de acordo com os quais não há como uma presa, por exemplo, reagir adequadamente à percepção (por olfato, visão, audição etc.) de um predador de maneira flexível o bastante, sem que se conceba o predador conceitualmente. Se cada um dos aspectos perceptuais (cheiro etc.) correspondesse a uma reação específica (esconder-se, correr etc.), os princípios econômicos neuronais e evolutivos seriam excessivamente embaraçados, e a plasticidade de reação (suponhamos, por exemplo, que o predador simplesmente se retire ou se aquiete à beira de um riacho etc.) não seria viável do ponto de vista prático. Por outro lado, se a presa possuir uma representação interna do predador, inúmeros processos de reação podem ser ligados e recalculados rapidamente com base em novas informações (BICKERTON, 2014, p. 98). Dessa forma, é possível supor que:

Provided an animal has some representation of a class of entities X that can be triggered by any kind of presentation of X or any event or memory that in any way involves X, it seems reasonable to claim that that animal has a concept of X that, in

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and of itself, does not differ significantly from the kind of concept of X that humans have. (id., ibid., p. 77)60

Não obstante a existência de conceitos em animais não-humanos, as diferenças cognitivas ainda são descomunais. Para explicar a discrepância, Bickerton faz uso de uma dicotomia sua formulada em (1990, 2009a): A good place to begin is the difference between online and offline thinking (…) Online thinking occurs when an individual is involved in some specific activity, and that activity is the focus of thought. A bat finding its way around a deep cave, a hawk diving on a fast-moving rabbit, or a human driving a complex route through heavy traffic are all engaged in online thinking. Offline thinking occurs when the topic of thought has nothing to do with the thinker‟s current behavior – a human at rest, mentally designing a deadfall, for example. Are nonhumans capable of offline thinking? Since for any organism without language offline thinking would necessarily be a private operation, we cannot say for certain that they are not. However, there is no good reason to assume that they are. In our case, the ability to think offline is what underlies the immense creativity and behavioral variability of humans. The absence of that ability in all other animals would suffice to account for their minimal creativity and minimally variable behavior. (id., 2014, p. 79, grifo nosso)61

O autor não faz menção a Kanzi, nem se põe a postular sobre as transformações fenomenológicas que a protolinguagem lhe pode ter causado. Seja como for, esse framework leva a uma de duas conclusões:

(1) Sem algum tipo de linguagem (ou, talvez, protolinguagem) não é possível entrar em modo cognitivo offline. (2) Animais não-humanos não possuem conceitos, ou possuem conceitos ainda mais básicos do que comumente suposto.

As evidências atuais parecem apoiar (1) (id., ibid., p. 80 e referências contidas). O que possibilitaria esse modo cognitivo seria o endereçamento linguístico de representações mentais. Conceitos focam a mente em algum aspecto da realidade; ou seja, são capazes de 60

―In science, we try to move away from anthropocentric anthropomorphism. The goal is not to find some quality in an animal that is precisely equivalent to our own inner lives. Instead, the fact that we are animals is exploited to develop testable ideas (see Heuristic Anthropomorphism).‖ (cf. WAAL, 1999, p. 261, grifo nosso) 61 É possível fazer uma relação entre a cognição offline de Bickerton e a proposta de Dehaene (2010, p. 9, grifo nosso): ―I propose some tentative ideas on the singularity of the human brain. The uniqueness of our species may arise from a combination of two factors: a theory of mind (the ability to imagine the mind of others) and a conscious global workspace (an internal buffer where an infinite variety of ideas can be recombined).‖

65

abstrair uma razão comum ou uma propriedade invariante entre instâncias distintas de algum particular concreto (CALVIN; BICKERTON, 2000, p. 15). Impressões generalizadas de inúmeras ocasiões relacionadas a uma laranja, por exemplo: o sabor, o cheiro, a cor, a forma, a fome etc. são ligados de alguma forma a uma representação mental de laranja (essas diversas memórias formam as conotações do conceito e compõem seu grounding). Como é sugerido pela existência de sonhos e alucinações, a percepção representacional na mente não requer input sensorial (TUCKER et al., 2008, p. 51). A palavra, por sua vez, circunscreve essa representação por meio de uma forma concreta (sonora, gestual, gráfica etc.), facilmente recuperada (CALVIN; BICKERTON, 2000, cap. 2)62. Ao contrário das unidades simbólicas, sistemas de comunicação animal não são capazes de endereçar conceitos, uma vez que suas mensagens são moduladas por processos, em grande parte involuntários63, que reagem a estímulos contextuais limitados (RENDALL et al., 2009, p. 235). Isso explicaria por que uma presa, por exemplo, muito embora possua algum tipo de conceito de um determinado predador, não é capaz de recuperá-lo à vontade ou formar, com ele, uma linha de raciocínio que lhe possibilite planejar uma armadilha ou qualquer coisa do tipo. Os conceitos de ―leão‖ e ―leopardo‖, portanto, poderiam facilmente ser ligados a ―correr‖ etc., mas não um ao outro nem a categorias ou relações comportamentais mais complexas (BICKERTON, 2014, p. 99). Sendo assim, Bickerton sugere que os primeiros passos na evolução da protolinguagem na linhagem humana consistiram na emergência de um repertório simples de protopalavras que, de alguma maneira, podiam ser externalizadas – assim escapando da prisão referencial da comunicação animal. A hipótese de Bickerton (ibid., cap. 3) sobre como isso veio a ser é exposta de maneira narrativa.

62

Ambiguidades semânticas como no caso das palavras manga (fruta) e manga (parte de roupa) indicam que, apesar de sua codificação fonológica ser a mesma, cada qual possui sua própria representação mental. Isso significa dizer que, embora a estrada fonológica que leve até ambos os conceitos seja a mesma, seus endereços neurais são distintos (CALVIN; BICKERTON, 2000, p. 16). 63 ―It has been known at least since Seyfarth and Cheney (1990) that warning signals are under voluntary control.‖ (BICKERTON, 2014, p. 101)

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3.2.2 A NARRATIVA DOS NICHOS “I am a firm believer that without speculation there is no good and original observation.” (Charles Darwin)

De quatro a dois milhões de anos atrás o clima da África oriental se tornou bastante árido, transformando a vegetação e relevo da região. Uma série de mudanças nesse período ocasionaram uma diminuição considerável da população de hominídeos e um aumento da população bovina. Por sinal, o gênero Homo, especificamente, foi o primeiro tipo de hominídeo a habitar a savana (REED, 1997, p. 289). Embora primatas raramente pratiquem forrageamento64, na savana não havia outra escolha, uma vez que os demais animais eram demasiadamente robustos para serem caçados, e a vegetação era insuficiente para nutrir populações de hominídeos. As evidências indicam que, a princípio (no período anterior a dois milhões de anos atrás), os hominídeos eram frequentemente os últimos a terem acesso à carcaça de um animal abatido, embora essa ―ordem de chegada‖ tenha se alterado dramaticamente com o tempo (DOMÍNGUEZRODRIGO et al., 2005). Também foi em torno de dois milhões de anos atrás que os hominídeos, possivelmente na transição entre Homo habilis e Homo erectus, desenvolveram a capacidade de correr longas distâncias, assim como uma maior predominância do bipedalismo (KO, 2015). O que possibilitou as transformações do hábito forrageiro desses hominídeos, que não possuíam armas naturais ou artificiais, foi o comportamento minimamente organizado de bandos maiores, capazes de afastar os demais predadores. Em outras palavras, esses hominídeos enfrentaram um problema ecológico semelhante ao das formigas e abelhas, que acabaram por desenvolver a capacidade de deslocamento referencial para recrutar outros indivíduos. O recrutamento em uma espécie não-eussocial é bastante problemático, uma vez que requer cooperação (hábito não muito praticado na maioria das espécies de primatas) e depende da qualidade de informação disponibilizada aos alvos de recrutamento (BICKERTON, 2014, p. 95).

64

Diz-se do hábito de busca e a exploração de recursos alimentares (e.g. raízes, animais abatidos, carcaças etc.), de modo solitário ou em grupo, podendo incluir o uso de ferramentas (PYKE et al. 1977).

67

Algumas formigas podem apresentar amostras do alimento encontrado às demais, ou arrastá-las em sua direção, com o intuito de concentrar esforços em uma fonte de alimento específica – assim assegurando um maior sucesso, já que a dispersão pode significar o insucesso simultâneo em vários lugares (KIRMAN, 1995). Inicialmente, o mesmo pode ter sido feito, de outras maneiras, por hominídeos, apontando ou puxando companheiros em direção à comida, imitando o animal morto ou alguma de suas características etc. (BICKERTON, 2014, p. 88). Porém, com o aumento gradual de contextos dentro dos quais tal recrutamento ocorreu, a produção protolinguística emergente progressivamente se desligou das dependências associativas funcionais e específicas que a iniciaram. Esse tipo de comportamento, cuja significância na época era modesta65, teria aberto as portas a posteriores desenvolvimentos na evolução da linguagem. Afinal, antes disso era inconcebível à mente animal que os objetos do mundo pudessem ser nomeados. O uso recorrente do recrutamento pode ter dado início ao hábito de relacionar representações mentais internas com atos concretos próprios; ou seja, o recrutamento pode ter, por meio de exigências ecológicas, desenvolvido a capacidade de deslocamento referencial que, em vez da relativa estagnação entre as abelhas e formigas, acabou promovendo a capacidade simbólica. A importância desse fenômeno fica clara quando se analisam as consequências evolutivas disso tudo para o cérebro. Até então, os cérebros não tinham de interpretar input interno: sua função sempre foi a de receber e processar a informação dos sentidos, convertendo-a em comandos musculares ou metabólicos (MARCUS, 2004, p. 11). Evidência disso seria o crescimento repentino (filogeneticamente falando) do volume cerebral desses hominídeos – em especial o neocórtex, que cresceu proporcionalmente 3,2 vezes mais que o esperado pela relação entre cérebro e massa corporal (SCHOENEMANN, 2009). Possivelmente nos moldes da regra de Hebb (1949)66, a emergência de protopalavras no cérebro acabou por criar conexões neurais capazes de relacionar conceitos distintos, o que por sua vez possibilitou o modo offline de cognição. Esse processo de retroalimentação interna acabou por gerar uma verdadeira matriz cognitiva de conceitos (D‘AQUILI, 1972, p. 9-10), criando, segundo a teoria de construção de nichos, um feedback seletivo sobre essas 65

Evidências do uso de ferramentas indicam que o progresso tecnológico foi, por muito tempo, bastante vagaroso (AMBROSE, 2001, p. 1752) – o que pode significar, segundo Bickerton (2014, p. 90-91), que essa protolinguagem também evoluiu lentamente. 66 ―When an axon of cell A is near enough to excite cell B or repeatedly or consistently takes part in firing it, some growth or metabolic change takes place in one or both cells such that A‘s efficiency, as one of the cells firing B, is increased.‖ (HEBB, 1949, p. 62)

68

mesmas palavras: na medida em que protopalavras eram usadas em conjunto67, as conexões entre os conceitos a que elas se remetiam eram fortalecidos; e quanto mais protopalavras distintas eram usadas, maior se tornava a rede semântica usada na cognição offline (BICKERTON, 2014, p. 101-102). Essa formulação sugere, de uma maneira teoricamente mais refinada, a mesma hipótese que Darwin formulou sobre a relação entre linguagem e cognição avançada (1871, p. 103). Essa configuração engatilhou o ―segundo problema‖ de Bickerton.

3.3 O SEGUNDO PROBLEMA

Os avanços culturais de boa parte do período paleolítico (mais especificamente de 2ma até 300.000 anos atrás) foram graduais e sem grandes revoluções, conforme evidências paleoarqueológicas (GOREN-INBAR, 2011). Isso indica que a protolinguagem teria permanecido estável por muito tempo, sendo acrescida de vocábulos e ganhando novos contextos, sem que houvesse mudanças estruturais significativas (BICKERTON, 2014, cap. 5).

Although the infrastructure for language must have taken time to build, the transition from protolanguage to language could have been relatively rapid, taking place most probably as part of the transition from whatever species immediately preceded humans to anatomically modern humans. (…) [No intermediate condition exists] between concatenating words like beads on a string and concatenating them by progressive pairwise merger. (id., ibid., p. 106)

Diversas reestruturações cerebrais seriam necessárias antes de qualquer processamento sintático. Nesse entremeio, enunciados protolinguísticos devem ter sido obrigatoriamente curtos, uma vez que nos enunciados sem suporte sintático as ambiguidades se multiplicam exponencialmente conforme se concatenam novas unidades (id., ibid., p. 105). A emergência da sintaxe também tem de ser explicada pela teoria de construção de nichos, por meio da qual um comportamento cria o ambiente propício ao desenvolvimento e 67

Alguns autores como Wray (1998) postulam que a protolinguagem pudesse ter sido a princípio holofrástica. Produções protolinguísticas seriam, a princípio, construídas holofrasticamente, para só então, através de toda a transição entre protolinguagem e linguagem, serem separadas em unidades categorizáveis. É extremamente implausível que um sistema holofrástico tenha filogeneticamente promovido qualquer tipo de decomposição posterior de uma holofrase em fragmentos semântico-sintáticos. Se o sistema holofrástico é capaz de decompor a holofrase em segmentos, ele é simbólico – e se é simbólico, ele é composicional. É, portanto, seguro pressupor uma origem composicional de sentido (BICKERTON, 2009a, p. 65-70).

69

refinamento desse mesmo comportamento e suas ramificações. Caso contrário, a conclusão epistemológica seria a de que transformações radicais no cérebro surgiram espontaneamente de mutações oportunas. Um exemplo disso, meramente ilustrativo, seria dizer que, em primeiro lugar, o cérebro de uma espécie de morcego desenvolveu a capacidade de processar uma variedade de inputs sensoriais que só posteriormente vieram a se ligar ao desenvolvimento acústico do biossonar – quando naturalmente o que ocorreu foi o contrário: mudanças comportamentais fizeram do biossonar uma característica vantajosa e, portanto, obrigaram o cérebro a processar esse novo input (JONES & TEELING, 2006). Bickerton afirma que, em se tratando de seres humanos, a falta de interesse nessa perspectiva é fortemente influenciada por um aspecto residual do dualismo filosófico:

While philosophical dualists are hard to find nowadays, lingering dualist assumptions are harder to get rid of. Many, perhaps unconsciously, seem to assume some kind of difference between ―mental‖ and ―physical‖ phenomena. Vocal organs are ―physical‖ and therefore legitimate targets for biological adaptation, but the neural areas and connections that subserve the structuring of sentences are ―mental‖ and therefore somehow beyond the reach of biology. In reality the two sets of phenomena belong to a single class (call it ―physical‖ or whatever you want to call it, it makes no difference), and they respond to biological factors in identical ways. (BICKERTON, 2014, p. 110)

Não há linguista que negue que as características físicas da linguagem sejam obviamente biológicas e, portanto, adaptativas (é consensual, por exemplo, que o aparelho fonador é um produto evolutivo e comum à espécie humana como um todo). Porém, a evolução de aspectos mentais é tratada ceticamente, frequentemente sendo vistos como produtos ―óbvios‖ da seleção natural (um vício claramente teleológico). Essa discussão perseguiu e, de certa forma, ainda persegue a discussão dos universais linguísticos.

3.3.1 A GRAMÁTICA UNIVERSAL “It is not the idea of universals of language that is dead, but rather, it is the idea that there is a biological adaptation with specific linguistic content that is dead.” (Michael Tomasello)

70

Segundo Evans e Levinson (2009, p. 477), linguistas têm procurado por universais linguísticos nos lugares errados: ―Instead of looking at the input-output system (…) or the pragmatics of communicative exchange, they‘ve been focused on the syntax and combinatorics, the least determined part of the system, as demonstrated by linguistic typology‖ (Evans and Levinson 2009b: 477). No entanto, como se pode ver com os casos de animais protolinguísticos, é justamente na sintaxe que se dá a diferença essencial entre protolinguagem e linguagem. Vale ressaltar, também, que sem algum tipo de universal estrutural linguístico, a espécie humana seria a única no reino animal a desenvolver uma característica fundamental e específica sem uma adaptação biológica a lhe proporcionar suporte. Posições categoricamente anti-universalistas tendem a parecer, à luz da biologia, com posições anti-evolucionistas. O cérebro é notoriamente plástico e flexível em sua ontogênese. Isso só é possível por conta de uma relação entre genes e neurônios que inevitavelmente obriga o cérebro a se formar predominantemente após o nascimento, a partir de estímulos sensoriais e das conexões internas deles decorrentes. Em um organismo simples como as lesmas-do-mar do gênero Aplysia, a razão entre genes e neurônios é de cerca de 2:1 (aproximadamente 20.000 genes para 10.000 neurônios), enquanto para seres humanos essa mesma razão é de 1:4 x 106 (30.000 genes para 100.000.000.000 neurônios68) – uma diferença quantitativa com resultados qualitativamente distintos: o genoma da Aplysia é capaz de determinar grande parte do desenvolvimento neuronal do organismo, enquanto o genoma humano se encontra numa posição contrastivamente impotente. Fica a cargo de fatores epigenéticos determinar a localização e função desses mesmos neurônios, e, consequentemente, a micro- e parte da macroestrutura do cérebro (JOHANSSON, 2005, P. 186-187; BICKERTON, 2014, p. 117118). Uma das consequências disso é que, embora o cérebro não se encontre fora do escopo da seleção natural, a interação entre a evolução e o desenvolvimento interno do cérebro se distingue daquela ocorrida com os demais órgãos. Dada a capacidade de variação intrínseca ao cérebro, a evolução privilegia aquelas características que fazem dele um órgão mais apto, independentemente das demais pressões seletivas sofridas pelo organismo. Ou seja, uma caraterística cerebral X que favoreça o funcionamento geral do cérebro (seja ela heurística, motora, comunicativa etc.) não precisa conceder uma vantagem direta de procriação ao 68

Cf. VENTER et al., 2001.

71

indivíduo (como é o caso da seleção sexual), uma vez que X já acarreta um aumento das chances de sobrevivência do organismo como um todo (BICKERTON, 2014, p. 118). De fato, boa parte dos autores na área de evolução humana pressupõe um cérebro passivo, no qual ocorrem mudanças quase que aleatórias. Usando-se do mesmo tipo de troca de perspectiva de que se serve Richard Dawkins em relação ao Gene Egoísta (cf. DAWKINS, 2006), há boas razões para crer que a economia cerebral (uma característica interna e intrínseca ao cérebro) norteie boa parte de suas transformações (BICKERTON, 2014, p. 116). O cérebro é um órgão extremamente custoso do ponto de vista metabólico (JOHANSSON, 2005, p. 94), e, desde seu surgimento filogenético, sua função tem sido basicamente a de processar novos tipos de input. A arquitetura geral do cérebro é bastante similar entre os diversos mamíferos, o que indica que, do ponto de vista evolutivo, alterações arquitetônicas do cérebro são predominantemente uma desvantagem. O mesmo não ocorre com as funções exercidas dentro dessa arquitetura, que variam de acordo com os sentidos predominantes a cada espécie (KRUBITZER, 1995). Alguns estudos apontam que não só as divergências de configurações neuronais entre espécies como também suas convergências podem ser explicadas a partir da auto-organização dos cérebros em torno desses sentidos (KASCHUBE et al., 2010). No caso dos hominídeos protolinguísticos, grande parte desse input não era mais sensorial, e sim interno69. Ou seja, o cérebro teve de desenvolver conexões córtico-corticais (muitas das quais deveriam ser bidirecionais), além de fortalecer conexões entre áreas distantes do cérebro. Isso parece ter guiado o desenvolvimento do cérebro dos hominídeos de modo a promover a criação de hubs que focalizassem a atividade neuronal, além de refinar a conectividade interna de maneira inédita70 (BOECKX; BENÍTEZ-BURRACO, 2014). É claro que não se pretende defender o persistente adágio de que a ontogênese recapitula a filogênese. Enquanto a filogênese define a arquitetura geral e a redistribuição majoritária das funções neurais, apenas a ontogênese estabelece redes de palavras. No entanto, 69

Por comparação: ―The Neanderthal genome, decoded in 2010, differs from that of modern humans in some regions linked to brain function (…) compared with modern humans, larger volumes of Neanderthals brains were devoted to vision and to controlling their heavier bodies. That might have left them with less capacity for social awareness and interaction.‖ (comentários feitos por João Zilhão em APPENZELLER, 2013, p. 304, grifo nosso) Refiro também ao artigo de Boeckx e Benítez-Burraco (2014, p. 3). 70 É possível ver o resultado dessa reorganização na forma com que o cérebro armazena palavras. Por meio de estudos com pacientes afásicos, alguns autores sustentam que classes distintas de palavras são endereçadas em áreas distintas do cérebro (cf. DAMASIO; TRANEL, 1993). Longe de ser um processo aleatório, palavras são armazenadas em redes espacialmente significativas: para os verbos ―chutar‖ e ―morder‖, por exemplo, haverá neurônios nas áreas motoras dos pés e das mãos, respectivamente (PULVERMULLER, 2008).

72

o verbo ―chutar‖, determinado espacialmente apenas na ontogênese do cérebro de um indivíduo (e, portanto, diferente de pessoa a pessoa), sempre gravita em torno das áreas motoras reguladoras dos pés e das áreas relacionadas à classe de palavras a que pertence – no caso, áreas definidas filogeneticamente (OJEMANN, 1991; TUCKER et al., 2008, p. 53).

3.3.2 A EMERGÊNCIA DA SINTAXE

Muito embora nós

tenhamos, como

indivíduos

linguísticos,

um

domínio

autoconsciente sobre boa parte do conteúdo linguístico, a forma da linguagem no cotidiano nos é espontânea e intuitiva. De fato, é justamente o caráter automático e transparente da linguagem que faz com que a análise científica das estruturas subjacentes uma tarefa trabalhosa (CALVIN; BICKERTON, 2000, p. 29). Essa certamente não era a realidade da produção protolinguística, que não possuía uma infraestrutura tão elaborada para o processamento linguístico. A transformação crucial entre os hominídeos protolinguísticos e os humanos linguísticos não se deu, afinal, na distribuição do léxico no cérebro, mas sim na forma como a construção de proposições significativas foi sendo aperfeiçoada e automatizada, culminando em operações combinatórias como Merge, entre outros (BICKERTON, 2014, p. 120). O próprio Bickerton (2014, p. 134) diz ser insuficiente um capítulo inteiro de seu livro para esboçar sua tese sobre a emergência da sintaxe de forma completa. Ainda mais complicado é o fardo imposto a este trabalho. Por conta da complexidade teórica e da extensão do assunto, tratar-se-á apenas de uma breve exposição de algumas propriedades do ―segundo problema‖ de Bickerton – isto é, demonstrar a necessidade lógica de um repertório estrutural sintático universal que possibilite todas as línguas modernas sem determinar nenhuma delas. A tese defendida por Bickerton pode ser encontrada no quinto capítulo do livro aqui trabalhado (em especial p. 134-147), com precedentes em (2009b) e (2009c). Discutiu-se, na conclusão do capítulo sobre animais não-humanos, que a concatenação de unidades protolinguísticas não foi ensinada, aparentando ser espontânea. Ora, essa capacidade, latente em animais como Kanzi, sugere que hominídeos protolinguísticos não tenham necessitado de nenhum tipo de especialização para concatenar unidades simbólicas (id., ibid., p. 121). De qualquer forma, palavras dificilmente ocorrem sozinhas, e é seguro supor que, assim que uma protopalavra era usada, subsequentes concatenações seriam

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incentivadas, com o intuito de expandir, especificar ou justificar o sentido da primeira. A concatenação de dois ou mais elementos pode ser feita pelo cérebro de duas maneiras distintas:

(1) Grupos de neurônios ligados às palavras são acionados em seguida um ao outro, sendo enviados ao canal de output como uma sequência única. (2) As representações das palavras são enviadas individualmente para o canal de output antes que o processo busque a próxima palavra.

Ambos os métodos produzem uma sequência superficialmente indiscriminada, sem pistas quanto ao método usado na construção da sentença. Entretanto, é seguro supor que (1), envolvendo um único conjunto de instruções, seria capaz de gerar enunciados mais depressa que (2). Inicialmente, o único tipo de concatenação simbólica era (2), protolinguístico, de sequências produzidas não-hierarquicamente e de forma mais custosa que (1). Em relação à velocidade de processamento de (2), Bickerton (2014, p. 122-123) cita como exemplos: primatas protolinguísticos; falantes de pidgins em fase inicial; indivíduos nas fases iniciais de aquisição de uma segunda língua (cf. STEINHAUER; CONNOLLY, 2008, p. 102). É natural que a ausência de conexões neuronais eficientes ou as longas e trabalhosas distâncias entre representações de palavras no modo protolinguístico sejam responsáveis pela lentidão observada. Conexões diretas e rápidas dessas representações são formadas pelo acionamento simultâneo de diferentes grupos de neurônios (GARAGNANI et al., 2009), característica ausente ou reduzida nos casos citados.

Until the full mechanism was up and running, message interpretation was likely safer by the ―old‖ method (whereby words were dispatched individually to the organs of speech) than by the ―new‖ method (whereby phrases and clauses were preassembled in the brain). The ―new‖ method, if it worked well, was automatic and much faster than the ―old‖ one. But if it didn‘t, garbled messages could easily result. (BICKERTON, 2014, p. 110)

Bem, atividades cognitivamente laboriosas tendem a ser automatizadas à medida que são reiteradas pelo cérebro humano, uma vez que tarefas inéditas ou infrequentemente realizadas requerem um esforço muito maior (POLDRACK et al., 2005). A automatização nada mais é que a fixação de uma rotina estereotipada, que acaba por reduzir a concentração

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necessária ao desempenho de uma tarefa e, consequentemente, o tempo de processamento (BICKERTON, 2014, p. 121). Tome-se por exemplo o caso do arremesso de objetos. Dentro do arco cinético feito pelo braço, a margem de tempo em que se deve soltar o objeto a ser arremessado é muito curta; se não for respeitada, o arremesso não será bem-sucedido. Calcular esse momento, conscientemente (uma tarefa árdua) é raramente desempenhada, portanto o cérebro deve dispor de alguma espécie de esquema (ARBIB, 2003) que automatize a tarefa e possibilite ao indivíduo concentrar-se em outros aspectos do arremesso (alvo, força etc.). É claro que inúmeros esquemas automatizadores são construídos ontogeneticamente, mas a comparação entre arremessos por humanos e arremessos por chimpanzés aponta para uma diferença filogenética na elaboração de alguns desses mesmos esquemas (chimpanzés são, se comparados com seres humanos, notoriamente ineptos em arremessar objetos): (…) some kind of schema for throwing (one that still, naturally, requires to be finetuned by experience) must form part of the human genome. The brains of human ancestors must have begun from a chimpanzee level of throwing. They could have developed from that level only if aimed throwing, whether used in confrontational scavenging, opportunistic hunting, or intergroup warfare, enhanced human fitness. All I am proposing here is that, once our ancestors started to talk at even a protolinguistic level, the brain would have begun to elaborate schemas for routinizing sentences (call them algorithms for sentence production, if you prefer), just as it elaborated schemas for throwing and similar actions. Stereotyping and automatization of action schemas save energy and free up neurons for other functions. (BICKERTON, 2014, p. 130, grifo nosso)

Bickerton (2014, cap. 2) dedica um capítulo inteiro à exposição das três fases da teoria gerativa e ao esboço de um modelo linguístico baseado no Programa Minimalista (cf. CHOMSKY, 1995). Segundo o autor, o PM é atualmente um dos melhores frameworks para se pensar como o cérebro constrói (biologicamente) as sentenças linguísticas (não protolinguísticas) que produz (contra REICH; RICHARDS, 2004). Primeiro, o cérebro teria de coletar os itens lexicais a serem usados em uma sentença, acionando-os simultaneamente, e selecionar ordenadamente os primeiros itens a serem combinados:

How are elements for the numeration selected? The universal and well-attested phenomenon of ―lexical priming‖ (Bock 1986) suggests that in the real world the brain may be unable to call on any lexical item without triggering others, some of which may be irrelevant to the sentence in question. It may be that the brain obeys some kind of “neural Darwinism” (Edelman 1987) such that, as Calvin (1996) suggests, there may be several ―candidate sentences‖ forming at the same

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time and competing for access to the speech organs. (BICKERTON, 2014, p. 131132, grifo nosso)

O cérebro supostamente construiria as sentenças por meio de uma seleção múltipla de elementos seguida de cortes ou podas a partir de critérios presentes nos próprios itens lexicais. Como evidência, Bickerton (2014, p. 132) usa como exemplos os casos de erros de substituição em que há semelhança semântica à palavra desejada, mas diferenças fonológicas (e.g. ―trabalho‖ por ―emprego‖, ―jantar‖ por ―almoçar‖ etc.) e casos em que há semelhanças fonológicas mas não semânticas (e.g. ―subir‖ por ―sumir‖ etc.). A construção de proposições cria conexões entre conceitos e estabelece prioridades entre palavras que uma mera concatenação não-hierárquica é incapaz de fazer. A ordem das palavras é uma inevitabilidade física, por conta da realidade linear da emissão (e recepção) da mensagem (gestual, escrita ou oral). Porém, para o processamento sintático a ordem das palavras é epifenomenal (id., 2009c, p. 3), uma vez que a hierarquização combinatória de Merge/Attach71 não determina a ordem linear de produção linguística (id., 2014, p. 133). Quanto aos processos que precederam e/ou serviram como precursores à operação sintática de Merge/Attach, há apenas especulação. Hurford (2007) postula que áreas do cérebro responsáveis por determinar a localização e identidade de objetos (uma capacidade que temos em comum com outras espécies) podem ter dado origem à predicação, que, por sua vez, originou a sintaxe. Bickerton (2014, p. 128) comenta que, como substantivos solitários referenciam apenas classes de entidades e não são capazes de especificar objetos individuais, houve uma necessidade prática de expansão a frases nominais; enquanto a estrutura de argumentos verbais pode ter emergido de uma cooptação comunicativa das bases neurológicas utilizadas para o altruísmo recíproco e para a memória episódica. De qualquer forma, vale lembrar que o processamento visual pelo cérebro já se utilizava de uma ferramenta semelhante a Merge para construir uma imagem holística (id., ibid., p. 124)72. Dada a presença de algum tipo de mecanismo biológico (a Gramática Universal) capaz de criar orações e frases, boa parte da sintaxe seguiria logicamente ou poderia ser inferida a 71

Bickerton diferencia bifurca a operação Merge de Chomsky (2000) em duas: Merge, quando a operação é simétrica, e.g. entre orações, e Attach, quando a operação é assimétrica, e.g. ―núcleo + modificador‖ (BICKERTON, 2009c, p. 6; 2014, p. 132). 72 Isso pode ser observado, por exemplo, em certos casos de agnosia visual. O neurologista Oliver Sacks (1998, cap. 1) conta a história de um paciente, que, embora não fosse acometido de nenhum dano no aparato visual ou qualquer tipo de deficiência cognitiva, era incapaz de construir imagens holisticamente. O paciente se localizava visualmente, não tinha dificuldade quanto às cores percebidas, e até parecia estudar detalhes faciais – tudo isso, no entanto, sem conseguir reconhecer um rosto.

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partir de mecanismos de aprendizagem multifuncional. Afinal, embora possuam outputs superficialmente distintos, em todas as línguas já registradas, sentenças são compostas de orações e frases nominais, e todas as orações e frases nominais são construídas de modo semelhante, sendo hierarquicamente similares entre línguas distintas. Nos estágios que acompanharam o desenvolvimento de um mecanismo sintático automatizado, a linguagem devia ser pouco mais que um amálgama vocabular coordenado por processos esquemáticos básicos, repleto de ambiguidades. Por sinal, as diferenças entre as línguas surgem justamente da subespecificidade biológica da estrutura linguística, sobre a qual indivíduos constroem culturalmente um arcabouço estrutural superficial que excede o previsto e providenciado especificamente pela infraestrutura biológica (BICKERTON, 2014, p. 112). A gramática universal foi mais bem sucedida na produção linguística que na compreensão – coisas como ―quem‖ fez ―o que‖ a ―quem‖ (tão claras na mente do falante), não eram especificadas ao ouvinte, e necessitaram de convenções que as desambiguassem. É importante salientar que esses déficits da GU no quesito comunicativo não são prejudiciais à cognição – muito pelo contrário: quem pensa em geral sabe sobre o que pensa, e a imposição de categorias estruturais especificamente fixantes (como concordância, ordem de palavras etc.) limitaria a velocidade e flexibilidade da cognição. Neuronalmente, os algoritmos que regem a cognição e a primeira fase da produção comunicativa seriam, a princípio, os mesmos (id., ibid., p. 150). Hoje se sabe que o cérebro é uma máquina de processamento predominantemente paralelo (NASSI; CALLAWAY, 2009), com um aspecto serializado que ocorre apenas nas tarefas mais exigentes de atenção seletiva (SIGMAN; DEHAENE, 2008) O processo de decodificação linguística, no entanto, inevitavelmente transcorre uma fase linear, restrito pela sequencialidade obrigatória da fala, dos gestos ou dos grafemas. Bickerton postula que a rapidez com que se constroem sentenças linguísticas, em oposição às sentenças protolinguísticas (como no caso de Kanzi ou de falantes de pidgins em fase inicial), só é explicada pela conectividade automatizada que possibilita um processamento paralelo, embora hierarquizado, de seus elementos constituintes (BICKERTON, 2014, p. 122-123): Chomsky (1999) envisaged sentences as falling into distinct ‗phases‘ which are sent separately and sequentially to the speech organs and cannot subsequently take part in any syntactic process. Sentence components are assembled simultaneously and in parallel, and full assembly of a verb and all its modifiers (auxiliary verbs,

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arguments, and any adverbial material) (…) renders the resultant syntactic object computationally inaccessible. (id., ibid., p. 137, grifo nosso)

Para Bickerton, a diferença fundamental entre linguagem e pensamento é que a comunicação linguística precisa ser processada outra vez, enquanto o pensamento permanece como output puro das operações sintáticas (id., ibid., p. 14). Dessa forma, o debate acerca da natureza linguística do pensamento (ou mentalês, conforme Pinker [1994]) perde sua natureza binária. O que é crucial nos estágios iniciais de um processo pode se tornar redundante ou supérfluo mais tarde, servindo, assim, como uma espécie de andaime. Bickerton (2014, cap. 5) presume que esse tenha sido o caso das protopalavras em relação ao pensamento: a princípio, a cognição offline necessitava das ligações conceituais que as protopalavras forneceram ao cérebro; hoje em dia, palavras são periféricas e opcionais ao pensamento, uma vez que um pequeno conjunto de operações sintáticas universais é, por si só, capaz de estruturar linhas de raciocínio73 (id., ibid., p. 150).

3.4 O TERCEIRO PROBLEMA

O estágio final da evolução da linguagem se encontra à parte de processos biológicos, tendo sido conduzido culturalmente pelos indivíduos no uso articulado da linguagem. Essas especificações desambiguadoras não tinham como alterar nenhum dos aspectos ―profundos‖ da estrutura da GU, portanto surgiram e permaneceram como convenções culturais74. Isso explicaria, entre outras coisas, a discrepância entre a relativa homogeneidade cognitiva (subtraindo-se diferenças culturais) dos seres humanos, a despeito de sua intensa variabilidade linguística (BICKERTON, 2014, p. 151) – variabilidade essa, por sinal, herdada e passada adiante (DUNN et al., 2011). A espécie humana atingiu uma sofisticação cognitiva incomparável no reino animal, resultante do uso contínuo da linguagem articulada, assim como a criação de uma forma de 73

Nessa abordagem, o cinema seria um exemplo interessante. Christian Metz (2010, p. 85) afirma que, por conta de sua relativa pobreza paradigmática e conceitual, a construção de sentido no cinema é inerentemente sintagmática (ou seja, se dá na montagem, nas sequências). Isso é ainda mais evidente em filmes mudos, capazes de construir uma narrativa alinguisticamente, ou no efeito da montagem sobre as cenas individuais, como ilustrado pelo Efeito Kuleshov (MOBBS et al., 2006). 74 Yamauchi (2004, p. 130-132) compreende que esse tipo de desenvolvimento ainda pode ser encaixado dentro da teoria de construção de nichos: mais precisamente, avanços culturais seriam nada menos que uma construção de nichos internos, contrastando-se com nichos externos. Enquanto estes causariam alterações físicas no ambiente, criando uma herança ecológica, aqueles seriam estritamente internos à espécie (ou até a grupos seletos dentro de uma espécie), tendo hereditariedade apenas comportamental e cultural.

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comunicação obviamente superior a qualquer outro sistema animal. É natural que se questione a razão de a linguagem ter de passar por ainda mais um tipo de desenvolvimento, agora cultural. Embora não haja uma resposta única e definitiva, é possível formular um conjunto de hipóteses sobre os fatores responsáveis. O framework resultante dessas hipóteses deve dar conta, segundo Bickerton (2014), do que o linguista vê como os três fenômenos mais teoricamente complexos da linguística atual: variação e mudança, aquisição da linguagem, e crioulização (id., ibid., cap. 6, 7 e 8, respectivamente). Especificamente, um modelo linguístico-evolutivo deve ser capaz de explicar não só como ocorre variação e mudança, mas também por quê; assim como deve explicar por que uma criança é capaz de aprender qualquer língua do mundo sem estar predisposta a nenhuma em especial; e, por fim, como e por que crianças são capazes de crioulizar pidgins a partir de input tão empobrecido estruturalmente. O nativismo e o empirismo, em suas versões puras, são, segundo Bickerton, categoricamente insuficientes para a explicação desses fenômenos, uma vez que não integram adequadamente o histórico evolutivo da linguagem com seu histórico cultural (id., ibid., p. 151). Infelizmente, não cabe ao escopo deste TCC fazer uma exposição completa de como o modelo de Bickerton (2014) lida com todos os três fenômenos. Por isso, no intuito de seguir uma linha de raciocínio concentrada na filogênese da linguagem, julga-se mais importante desenvolver brevemente o fenômeno da variação e mudança linguística (correspondente ao capítulo 6). De qualquer forma, firmadas as características básicas da GU, não havia direções evolutivas a serem tomadas exceto uma maior velocidade de fala e de processamento mais eficiente. Nenhuma estrutura gramatical culturalmente concebida confere vantagem adaptativa sobre as demais, e o próprio hábito de se convencionarem características superficiais linguísticas excedeu, em termos de velocidade, o alcance da seleção natural. Tome-se por exemplo comparativo o caso do controle manual humano. Seres humanos têm tanto um controle manual de força quanto um controle manual de precisão, por conta de comportamentos de golpe e de arremesso, respectivamente (YOUNG, 2003). Essas modificações comportamentais foram bastante lentas, podendo ser acrescidas gradualmente ao genoma humano por meio de esquemas neuronais predispostos (ARBIB, 2003). As estruturas descobertas e convencionadas na sintaxe superficial foram muito rápidas, a ponto de exceder qualquer tipo de alcance evolutivo. Consequentemente, nenhuma das mudanças foi

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passível de internalização genômica por intermédio do Efeito Baldwin, o que manteve o espaço seletivo interno em aberto (YAMAUCHI, 2007).

3.4.1 VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGUÍSTICA

A linguagem é uma característica humana intrinsecamente hierárquica, norteada por relações estruturais de ordem vertical. Isso não é problema algum para o cérebro, que evoluiu junto à necessidade de priorizar e hierarquizar o conhecimento antes de transformá-lo em qualquer estrutura linear horizontal. O movimento contrário (tornar o horizontal em vertical) também é possível, claro, mas seu custo operacional é alto e sua margem de erro muito maior (BICKERTON, 2014, p. 163). Fica claro, portanto, que GU é biologicamente enviesada em favor do indivíduo como falante, já que suas instruções facilitam e automatizam a construção de sentenças. O processamento receptivo de sentenças, por outro lado, não foi automatizado da mesma maneira (sendo relegado ao background neural da construção de sentenças). Essa discrepância gerou uma série de problemas comunicativos – as convenções gramaticais, hoje abundantes, ainda estavam por ser desenvolvidas (id., ibid., p. 151-152). Por conta do custo operacional envolvido na produção linguística, é natural que falantes tendam a reduzir o aparato estrutural o máximo possível. Concomitantemente, ouvintes esperam que as mensagens sejam produzidas com esmero e precisão, a fim de que se assegure sua compreensão correta. Ora, a condição de falante é intercambiável e logicamente dependente da condição de ouvinte, o que significa dizer que nessa configuração comportamental evolutiva não houve nenhum conflito de interesses. Tornou-se um imperativo social disponibilizar recursos estruturais que auxiliassem a inteligibilidade dos enunciados sintáticos – muitas vezes óbvios aos falantes e trabalhosos aos ouvintes (id., ibid., p. 152). Como mencionado anteriormente no parágrafo lapidar de Boeckx (2010, p. 26), mudanças e variações linguísticas são possíveis e inevitáveis porque a GU providencia apenas uma parte incipiente dos componentes essenciais à inteligibilidade linguística. A linguística histórica e a sociolinguística, entre outras, sempre se concentraram em ―como‖ as mudanças e

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variações transcorrem75, enquanto o ―por quê‖ nunca recebeu um tratamento sistemático (BICKERTON, 2014, p. 154). Em relação à variação linguística, o primeiro fator a ser discutido é a instabilidade inerente ao elemento fonético da linguagem. Todos os sons articulados produzidos por um ser humano são obrigatoriamente gradientes, embora sua percepção seja categorial (SCLIARCABRAL, 2004, p. 80). Isso significa dizer que, no âmbito da recepção fonológica, toda ocorrência sonora articulada é uma variável possível dentro de um espectro de possibilidades, das quais o cérebro precisa extrair, de alguma maneira, uma qualidade invariante que a ligue às demais ocorrências (DEHAENE, 2010, p. 18-21). Assim sendo, mesmo se excluirmos o contato linguístico entre idiomas distintos, a instabilidade fonética cria um depósito de variáveis que podem ser, posteriormente, privilegiadas por algum motivo (socioeconômico, cultural ou puramente estatístico), ao ponto de atingir um ponto crítico e ocasionar uma mudança fonológica histórica e/ou sociolinguística (BICKERTON, 2014, p. 155). Os efeitos da instabilidade fonética são sentidos de maneira bastante dramática diacronicamente. Em alguns milhares de anos, palavras de línguas geneticamente próximas podem facilmente se tornar ininteligíveis. A própria morfologia das línguas pode ser afetada, uma vez que alterações fônicas podem criar assimilações de morfemas ou até seu apagamento. Em efeito cascata, nem a própria sintaxe de uma língua se salva da instabilidade fonética (id., ibid., p. 155-156). Há também outros fatores que contribuem para a mudança e para a variação linguística. Esses podem ser divididos em dois tipos:

(1) Características não especificadas pela GU que são consequências diretas e inevitáveis da fala. (2) Características não especificadas pela GU que, embora não sejam absolutamente necessárias, refinam e aprimoram a qualidade da comunicação e se tornam culturalmente imprescindíveis.

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O como mencionado inclui também o porquê epistemológico usado no tratamento de línguas particulares, i.e. se uma mudança X do latim ao português foi internamente ou externamente motivada etc., uma vez que essas abordagens não se atentam à razão neurolinguística subjacente à motivação (seja ela externa ou interna).

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Em (1) Bickerton cita (ibid., p. 156) a disposição linear das palavras (e, portanto, sua ordem) e sistemas capazes de descrever ações, eventos e estados através de modo, tempo e aspecto verbais. Quanto à ordem das palavras, claramente existe certa flexibilidade de língua para língua, mas a informação linguística será sempre inevitavelmente sequencial. Isso ocorre porque nós só somos capazes de processar competentemente (e, no caso da fala, produzir) aquelas informações que nos forem apresentadas sequencialmente (id., ibid., p. 156-158). E para que a linguagem sirva de instrumento comunicativo de ações, eventos e estados é preciso distinguir e aclarar algumas características ontológicas em termos de modo, tempo e aspecto: o modo de existência de um evento (sua realidade ou irrealidade, a relação psíquica do falante com o evento ou ação etc.), assim como sua localização temporal em relação a algum referente (passado, presente, futuro) e a continuidade ou pontualidade da ação (estará sendo feita, já foi concluída etc.). As línguas desenvolveram formas distintas de se fazerem essas distinções, usando partículas, advérbios, afixos, auxiliares etc., além de atribuir funções cumulativas a determinados marcadores76 (id., ibid., p. 158-161). Já o caso de (2) compreende partes estruturais que não exigem especificação, conforme é demonstrado pela existência de línguas como a indonésia da província de Riau77. Mas casos como esse são solitários e remotos. A maioria das línguas adquiriu um conjunto de mecanismos morfossintáticos que lhes permitisse executar mais eficientemente as instruções subespecificadas da GU. Esses mecanismos dizem respeito a três fenômenos: Em primeiro lugar, compreender quais palavras estão mais diretamente relacionadas. A visualização dos nós sintáticos em uma estrutura arbórea e hierárquica é fácil. O mesmo não ocorre com as estruturas lineares. Um exemplo ilustrativo disso é (a): (a) ―Aqui, boa parte dos costumes que podem parecer pré-história ao indivíduo formalmente instruído ainda persiste até o século presente.‖

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Uma única forma verbal pode facilmente indicar aspecto, modo e tempo. E.g. a forma ―fiz‖ é configurada simultaneamente pelo aspecto perfeito, modo indicativo e tempo pretérito (além, claro, de 1ª pessoa do singular). 77 Exemplo usado por Bickerton (2014, p. 161) de uma língua expressiva e prolífica que supostamente fez pouco mais do que estabelecer uma ordem básica de palavras e construir um sistema capaz de expressar modo, tempo e aspecto. Gil (1994) faz uma análise da estrutura sintática e semântica do idioma, assim como uma discussão metateórica sobre como se pode abordar uma língua exótica a partir de um arcabouço teórico e terminológico predominantemente eurocêntrico.

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Há uma distância considerável entre o verbo ―persistir‖ e seu argumento, o núcleo sintático ―parte‖. Apenas a estrutura hierárquica atrela uma parte à outra, uma vez que, linearmente, não há nada que indique essa relação. Isso também pode ser visto na frequência com que se cometem erros cotidianos de concordância (i.e. ―persistem‖). De fato, a mera existência desse tipo de erro indica que, a despeito da estrutura hierárquica subjacente, a codificação morfológica do processamento linguístico (ou seja, sua forma superficial e linear) sofre interferência, ou ruído, das formas adjacentes (id., ibid., 163). Com base apenas na manifestação aparente da sentença (usando-se de pistas semânticas e pragmáticas), seria muito mais laborioso decodificar a que unidade se liga o verbo. Assim, as concordâncias verbais (de pessoa e número) e as concordâncias nominais (de gênero e número) são ferramentas auxiliares78 ao processo de parsing das sentenças, que permitem, por exemplo, que períodos longos como este sejam escritos e decodificados com relativa facilidade. Em segundo lugar, a GU não determina nenhuma forma inerente de se comunicar a relação funcional entre as frases nominais e os verbos. No hábito desambiguador dos indivíduos linguísticos, as línguas encontraram diversas formas, como a fixação79 da ordem linear dos argumentos (sujeito-verbo-objeto [SVO], como no inglês, ou verbo-sujeito-objeto [VSO], no gaélico irlandês), ou, também, com casos gramaticais morfologicamente especificados (e.g. línguas ergativas-absolutivas e línguas nominativas-acusativas). A complexidade é ainda maior quando se é preciso distinguir objeto direto de objeto indireto, ou quando verbos pedirem argumentos subcategorizados, i.e. ―com X‖, ―por X‖, ―em X‖ etc. (id., ibid., p. 163-164). E, por último, existe o problema da delimitação entre unidades da sentença (sejam elas frases nominais ou orações). Tome-se por exemplo a língua inglesa, que é rica em derivações impróprias, em que uma única forma fonológica pode se comportar de maneiras sintaticamente distintas, como em (b): (b) ―Spy Charges Dog Inspectors.‖ 78

Embora essas concordâncias sejam uma forte característica gramatical da língua portuguesa de modo geral, não são totalmente imprescindíveis à linguagem como um todo. Por sinal, evidências disso podem ser encontradas no atual processo de relaxamento da concordância nominal de número em determinadas variedades sociolinguísticas do português do Brasil (BRANDÃO; VIEIRA, 2012). 79 Embora essa fixação não seja tão fixa assim: no caso do alemão, por exemplo, o padrão predominante é SVO nas orações principais e SOV nas orações subordinadas (HAWKINS, 2009, p. 105).

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Em (b), uma manchete de jornal coletada por Bickerton (CALVIN; BICKERTON, 2000, p. 44-45), tem-se um perfeito exemplo do problema de delimitação, já que pode ser decodificada de duas maneiras, com significados radicalmente diferentes: (c) Spy [charges [dog inspectors]] – ―Espião acusa inspetores de cães‖ (d) Spy charges [dog [inspectors]] – ―Acusações de espionagem constrangem inspetores‖

Nada na manchete indicaria qual das duas interpretações é a correta, ainda que o leitor possa facilmente compreendê-la no contexto da reportagem completa. Por sinal, esse caso desconcerta o leitor na escrita, porque na produção oral da frase há de haver algum tipo de suporte

suprassegmental,

inevitavelmente

perdido

na

manchete,

que

desambigue

sintaticamente. A questão é que, embora o parsing linguístico seja possível apesar desses déficits (como é evidenciado pela língua indonésia de Riau, mencionada na nota 77), a esmagadora maioria das línguas desenvolveu como resposta no mínimo algumas das convenções citadas. Todos esses fatores compõem a planta básica das mudanças linguísticas, sendo um produto da própria condição biológica da linguagem, e constituem apenas a força motriz interna da mudança linguística. Onde não houver especificações biológicas da GU, haverá variação linguística. Juntando-se isso aos demais fatores externos (prestígio sociolinguístico, domínio cultural, miscigenação, busca identitária, entre muitos outros80), a variação e, consequentemente, a mudança linguística (que nada mais é que a variação disposta no eixo temporal) é inevitável, produto direto do segundo estágio da evolução da linguagem, e constituinte duradouro do terceiro (BICKERTON, 2014, p. 177-179).

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(Cf. AITCHISON, 2005; LURAGHI, 2010; OSTLER, 2010, p. 18-25).

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3.5 HOMO SAPIENS LOQUENS “If it be maintained that certain powers, such as abstraction, self-consciousness etc., are peculiar to man, it may well be that these are the incidental results of other highly-advanced intellectual faculties; and these again are mainly the result of the continued use of a highlydeveloped language.” (Charles Darwin) O ―problema de Wallace‖, citado no início deste capítulo, estabelecia que a cognição e a linguagem eram características superiores às selecionáveis pela natureza – o que levou Wallace à conclusão de que eram, de alguma maneira, divinas. Tendo dividido esse problema em três, recontextualizando a discussão dentro das teorias evolutivas e neurocientíficas, Bickerton defende que um estágio intermediário estável entre a cognição humana e a cognição dos demais primatas é impossível, uma vez que linguagem, cognição, cooperação e autoconsciência são todas faculdades intimamente interligadas (BICKERTON, 2014, p. 259). Dessa forma, a discrepância entre as pressões seletivas enfrentadas por seres humanos e a capacidade humana inigualável de construir nichos se deve ao fato de que apenas o primeiro estágio na evolução da linguagem foi um produto direto da seleção natural. Segundo Bickerton, o cérebro criou esquemas neurais para arremessar e apanhar objetos – ou seja, criou predisposições filogenéticas a características que necessitariam ser apenas ajustadas ontogeneticamente. Algo semelhante ocorreu com a linguagem, que emergiu do contato entre a capacidade simbólica e a reorganização esquemática da própria conectividade interna do cérebro. Essas modificações foram bastante demoradas, uma vez que todo um emaranhado de interconexões relativamente locais (de palavra a palavra, de palavra até os órgãos da fala, de palavra a conceito, de conceito a conceito) teve de ser construída, além das conexões mais distantes, ainda mais complexas (id., ibid., p. 261). Foi a partir do resultado desse processo que a mente e a linguagem de certa forma divergiram: embora inicialmente os mecanismos fossem neutros (um único meio para conectar palavras e/ou conceitos), logo se tornou possível pensar com plena eficiência,

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enquanto a comunicação (dependente da interpretação por outros cérebros) ficou, em parte, presa a algumas características concretas. A estrutura do pensamento permaneceu inalterada em toda a espécie, embora seu conteúdo tenha aumentado exponencialmente devido à acumulação conceitual transmitida comunicativamente. A linguagem encontrou, assim, uma maneira inédita de conectar os avanços ontogenéticos a uma filogenia abstrata, conceitual e epigenética81 (id., ibid., p. 262). Seres humanos exploraram o output desses processos e criaram o atual estágio da linguagem: o estágio das línguas propriamente ditas. Biologia e cultura logo se tornaram tão entrelaçadas na espécie humana que desnodar uma da outra se tornou difícil (id., ibid., p. 262). Bickerton, salientando a escolha meticulosa de palavras por Darwin (que compõe a epígrafe deste subcapítulo), faz questão de pedir cautela à forma de se sumarizar sua hipótese. Tanto algo como ―a cognição avançada é resultado da linguagem‖ quanto ―sem a linguagem, a cognição avançada não teria existido‖ são colocações a seu ver demasiadamente simples e, de certa forma, equivocadas. A mensagem a ser tirada do livro é, em suas próprias palavras, que ―[h]uman ancestors began to communicate with displaced reference, and that was what triggered the processes that eventually led to advanced cognition‖ (id., ibid., p. 263, grifo nosso). Em outras palavras, o que Bickerton propõe é que a linguagem e a cognição humana cresceram a partir de uma fonte comum e se baseiam sobre os mesmos alicerces: a criação de símbolos passíveis de manipulação voluntária e consciente; e os meios para manipular esses símbolos e, consequentemente, os conceitos que eles representam. Esses processos eram, a princípio, neutros, não se limitando nem à linguagem nem à cognição (id., ibid., p. 264). O uso continuado da linguagem (i.e. do conteúdo simbólico e das estruturas de manipulação conceitual), e não sua mera existência, é que acabou possibilitando a cognição

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Alguns autores defendem que a emergência da linguagem no planeta Terra constitui uma nova transição evolutiva, semelhante à emergência revolucionária do DNA, da reprodução sexuada etc., o que explicaria a aceleração exponencial em complexidade nas sociedades humanas, equivalente à da explosão Cambriana (cf. SZATHMÁRY; SMITH, 1995; BRIGHTON et al., 2005). Dennett (1991, 1995, 2001) postula que memes – termo cunhado por Dawkins (2006, p. 189) para se referir a uma unidade cultural (pareando-se com o gene) – são a força motriz da evolução cultural e se comportam como um verdadeiro vírus, uma vez que seus ―ciclos reprodutivos‖ (sua transmissão) são incomparavelmente mais rápidos que dos organismos vivos, assim como é o caso da sua taxa de mutação (mudanças ocorridas na transmissão – quase que como uma brincadeira de telefone sem fio). O modelo de Bickerton (2014) faria, assim, uma ponte possível entre a evolução da linguagem e o surgimento da evolução memética (dependente da arquitetura cerebral desenvolvida na reorganização cerebral mencionada no decorrer deste capítulo).

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humana como a conhecemos82. A esse uso continuado, o linguista dá o nome de fator Joyceano, em alusão à técnica literária do fluxo-de-consciência, da qual James Joyce foi pioneiro:

He heard then a warm heavy sigh, softer, as she turned over and the loose brass quoits of the bedstead jingled. Must get those settled really. Pity. All the way from Gibraltar. Forgotten any little Spanish she knew. Wonder what her father gave for it. Old style. Oh yes, of course. Bought it at the governor‘s auction. Got a short knock. Hard as nails at a bargain, old Tweedy. Yes sir. At Plevna that was. I rose from the ranks, sir, and I‘m proud of it. Still he had brains enough to make that corner in stamps. Now that was farseeing. (JOYCE, 2000, p. 67)

O fluxo, energicamente pulando de tópico para tópico, é desfocado e altamente associativo. A linha que estrutura esse fluxo é, no geral, inconsciente, como já se discutiu mais acima: embora haja consciência sobre o conteúdo, a base que estrutura esse mesmo conteúdo é instintiva, quase que como a respiração ou a digestão: But there is a difference between ―unconscious thinking‖ and these more plainly physical processes. Thinking, conscious or unconscious, is concept linkage. But concepts, once evoked, unavoidably link to the words that represent them. And words have to be within reach of consciousness and volition, because speaking is (usually) a volitional act, and has to be so, since there‘s no knowing when you will need to say something. Consequently it may well have been inevitable that processes beginning as random, uncontrollable events should have become, over time, capable of being converted into conscious and volitional acts, aimed most likely at enhancing the thinker‘s prestige but having the incidental effect of contributing to the ever-growing edifice of human culture. To put it very simply, if crudely, it may have been through our involuntary thoughts that we became able to think voluntarily. (BICKERTON, 2014, p. 268, grifo nosso)

Pouco a pouco, por meio de mudanças imperceptíveis na frequência com que um conceito acionaria outro, foram surgindo redes conectivas ricamente associativas e, com elas, uma lenta transformação do fluxo de consciência. Em suma, na hipótese de Bickerton, o desenvolvimento de algoritmos automáticos de concatenação hierárquica de palavras e conceitos necessariamente precedeu o florescimento da linguagem e da cognição humana, 82

Bickerton chega a cogitar, cautelosamente, que o hábito constante de construção narrativa tendo a si mesmo como protagonista possa ter gerado ou pelo menos aprimorado a autoconsciência dos indivíduos linguísticos (BICKERTON, 2014, p. 266). De qualquer forma, é sabido que a região cortical do cérebro é responsável por boa parte das ações voluntárias dos seres humanos (DUNBAR, 2003, p. 167), quem sabe por ser uma das áreas de maturação mais tardia (DEHAENE, 2010, p. 314). O crescimento em volume do cérebro nos hominídeos, especificamente na linha do Homo sapiens, excedeu em muito o esperado para um hominoide, quando comparado ao volume corporal – e a área que mais cresceu no caso dos humanos foi, de longe, o neocórtex (DUNBAR, 2003). Bickerton (2014, p. 100) supõe haver uma relação entre o crescimento do neocórtex e o hábito associativo das protopalavras e, posteriormente, palavras.

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enquanto o uso continuado da linguagem pavimentou o caminho através do qual surgiram as faculdades mentais avançadas, que, para o desconcerto de Wallace, tanto excederam nossas necessidades ecológicas (id., ibid., p. 269).

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS “Perhaps the most reassuring thing I found out in the course of writing this book was that in trying to

explain

how

humans

evolved,

almost

everybody was right about something.” (Derek Bickerton)

Muito se perde de poder analítico nas formulações sintéticas de cunho reducionista. O próprio hábito reducionista se mostra bastante volátil, habitando graus distintos de sucesso: se, por um lado, inúmeros modelos reducionistas perdem muito na tradução entre as ciências (apoiando-se em truísmos ou exposições simplistas), por outro, a interdisciplinaridade sensibiliza o mundo acadêmico no que diz respeito às implicações e às consequências holísticas de seus objetos científicos, por vezes rompendo com a barreira hermética das terminologias e epistemologias especializadas. Foi por isso que se pretendeu construir este trabalho a partir de uma linha teórica e bibliográfica que fornecesse um panorama crítico da evolução da linguagem. Os capítulos levaram o tópico até alguns aspectos evolutivos relevantes, assim como à discussão de algumas das facetas dos experimentos linguísticos com animais; tudo isso norteado por um modelo hipotético criado por um linguista já inserido no assunto há décadas. Conjurou-se toda uma cornucópia de conceitos, perspectivas e metodologias, selecionadas a fim de refinar epistemologicamente a ótica sobre os mecanismos evolutivos e enfatizar a importância de evidências negativas. A evolução, afinal, não é uma espécie de magia natural – é um processo que possui regras, tendências, modi operandi. Pretendeu-se diligentemente desmistificar certos aspectos da discussão – em especial no que diz respeito às causas da evolução da linguagem. A vagueza intratável com que se formula a maioria das hipóteses de evolução da linguagem prejudica a ciência. É preciso, como diz o ditado, ―dar a cara a tapa‖, com cenários específicos falseáveis, para que haja avanço teórico. Entretanto, é evidente que a complexidade das áreas de neurociência, de evolução e até mesmo de linguística sofreram, aqui, algum tipo de superficialização. O atropelamento teórico decorre tanto do escopo de um trabalho de conclusão de curso quanto da dificuldade

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de unificar níveis descritivos distintos (neurobiológico, comportamental, cognitivo e linguístico). Nesse âmbito, algumas ausências são mais lamentáveis que outras, como é o caso das abordagens conexionistas e dos estudos genéticos, quase que totalmente ausentes do trabalho. Ainda há muito a ser estudado sobre a genética da linguagem antes que possamos tomar conclusões minimamente precisas, mas tratar de evolução sem um apoio genético é sempre insuficiente. Já os estudos relacionando a construção de redes conexionistas com o desenvolvimento epigenético do cérebro foram mantidos fora do trabalho em grande parte por sua total ausência no trabalho de Bickerton (um tanto suspeita, considerando sua devoção às noções de economia cerebral etc.). E, por fim, do ponto de vista pessoal, há que se dizer que a jornada foi longa e árdua. O estudo (em grande parte biograficamente inédito) de diversas disciplinas e metodologias distintas, com tópicos vastos e às vezes impenetráveis ao leigo, demandou uma quantidade imensa de leituras dos mais diversos autores. É certo que, apesar dos cuidados, inúmeros erros e imprecisões teóricas foram cometidas no decorrer do trabalho; no entanto, como o erro, quando reconhecido, nada mais é que um apontamento ao avanço, as subsequentes correções e revisões farão deste trabalho uma tarefa continuamente proveitosa a seu autor. Valeu a pena.

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