A evolução da obra de Saramago na ótica do próprio autor (Resenha do livro \"Da estátua à pedra e Discursos de Estocolmo\" de José Saramago)

June 2, 2017 | Autor: Rodrigo Conçole | Categoria: Literatura Portuguesa, José Saramago
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A evolução da obra de Saramago na ótica do próprio autor Rodrigo Conçole Lage1 SARAMAGO, José. Da estátua à pedra e Discursos de Estocolmo. Belém: UFPA, 2013. Apesar da Companhia das Letras ter publicado no Brasil a maior parte dos livros do escritor português José Saramago, prêmio Nobel de Literatura de 1998, não temos em nosso país obras como Terra do Pecado ou As opiniões que o D.L.. A não publicação desses livros é um fato a ser destacado porque foi noticiado anteriormente que “a Companhia das Letras tem enorme orgulho em publicar toda a obra do autor no Brasil” (Bussios, 2014). Assim, mediante tal afirmação, acreditamos que ela não pretende publicar o restante de sua obra, por mais contraditória que seja tal situação. Contudo, temos um importante projeto editorial que contribui para preencher, em parte, essa lacuna. A editora UFPA publicou Democracia e Universidade (reunião de dois textos: as conferências Democracia e Universidade e Verdade e Ilusão Democrática) e o Da estátua à pedra e Discursos de Estocolmo, objeto de nossa resenha. O Da estátua à pedra é uma obra atípica dentro da produção saramaguiana. O texto não foi escrito por ele, mas é a transcrição de sua fala no último dia do colóquio Dialogo sulla Cultura Portoguese: Letteratura-Musica-Storia. Evento que ocorreu na Universidade de Turim, “no início de maio de 1998” (DEPRETIS, 2013, p. 17). Segundo Pilar del Rio (2013, p. 12):

No final estava prevista a intervenção do autor, que optou por não ler nenhuma comunicação, tampouco quis ditar uma aula magistral; simplesmente, como em uma conversa, foi refletindo sobre sua obra, motivado por algumas ideias apresentadas pelos palestrantes (...). Quando o congresso foi encerrado e cada participante regressou ao seu país e a sua casa, em Turim ficaram os professores Pablo Luis Ávila e Giancarlo Depretis, que decidiram transcrever a sessão (...).

Assim, a obra nasce por iniciativa de terceiros, graças ao resgate de uma das muitas falas do escritor, tendo sido publicada inicialmente em outro país, para só depois ser editada em Portugal. No que diz respeito à edição brasileira, o título difere do da italiana porque foi adotado o definitivo, nascido de uma correção feita por Saramago 1

Graduado em História (UNIFSJ). Especialista em História Militar (UNISUL). Professor de História da SEEDUC-RJ. CEP: 28300-000. Itaperuna-RJ. E-mail: [email protected].

para a edição espanhola, mas que havia se perdido e não foi inserido nela. Para isso, “foi necessário fazer uma busca nos arquivos para a edição brasileira” (Ibid., p. 13). Essa mudança é importante porque descreve com precisão a transformação de sua produção. Ela descreve como o autor caminhou da estátua para a pedra (do exterior dos homens, dos acontecimentos que o envolvem, para seu interior), numa trajetória contínua, que foi interrompida com sua morte, enquanto o primeiro induz ao leitor a pensar que existem duas fases estanques. Assim, podemos dizer que temos, nesse texto, uma importante contribuição para análise de sua obra e do processo de transformação que foi sofrendo ao longo dos anos. O livro, que se divide em duas partes, é uma coletânea de textos de Saramago e de terceiros. A primeira é formada pela obra propriamente dita e, numa espécie de adendo, temos três textos relacionados ao Nobel de Literatura. Temos inicialmente uma apresentação, de Pilar Del Rio, na qual a esposa de Saramago narra a origem da obra, comenta a questão do título e como a produção de seu esposo foi posteriormente um desdobramento de algumas ideias apresentadas no colóquio de Turim. Segundo Pilar (Idem), “depois da intuição de Turim soube que o que lhe interessava verdadeiramente era descrever o interior da pedra, na certeza de que desta maneira as grandes questões poderiam ser acometidas e, talvez, desveladas”. Na sequência, temos os dois prefácios da edição italiana. O primeiro, de Giancarlo Depretis (2013, p. 17-20), fornece maiores detalhes sobre o colóquio, as relações do escritor com a Universidade de Turim e sobre a publicação do texto e sua natureza. Sem contar os agradecimentos feitos aos que ajudaram na publicação e ao próprio autor. Ele associa o Barroco aos escritores ibéricos, incluído o próprio Saramago, dizendo haver uma “tensão existente entre o humanismo do Renascimento e o contrarreformismo moralizante” (Ibid., p. 19). Tensão cujos polos estariam ligados ao que Saramago chama de desengano barroco e que seria a “luta de valores entre os interesses do sujeito concreto e da sua função social, também como desmascaramento, como fetichismo da mercadoria, transcrevendo na instância literária a percepção externa da (in)justiça social” (Idem). O segundo, de Luciana Stegagno Pichio (2013, p. 21-24), retoma a associação da obra de Saramago com o Barroco a partir da metáfora presente no título. Examina sua ideologia e função social, pois, o vê como o “porta-voz de uma comunidade, de uma classe, de um modo de estar no mundo” (Ibid., p. 22). Comenta como o pessimismo do

escritor foi se acentuando e que tal fato está relacionado à divisão de sua produção em duas etapas. Discutindo também o processo de evolução de seus livros a partir de sua fala. Para Luciana, esses são os principais elementos presentes no texto de Turim, o que lhe confere um papel de destaque no conjunto de sua produção. Temos, a seguir, o texto saramaguiano (SARAMAGO, 2013, p. 25-52). O escritor inicia dizendo duvidar que se possa falar de literatura, pois ele, algumas vezes, se vê no desejo de se limitar a simples contemplação muda das obras literárias. O escritor rejeita o rótulo de romancista histórico que lhe foi atribuído por alguns críticos e para comprovar essa alegação, analisa alguns de seus trabalhos. Explica, entre outras coisas, o que motivou a escrita desses livros para, depois, dividi-los em dois momentos. Tendo a humanidade como ponto central, a pedra, nós teríamos um primeiro momento no qual examinaria os acontecimentos, a superfície da pedra, e que termina com O evangelho segundo Jesus Cristo. Posteriormente, passou a examinar seu interior, ou seja, a natureza humana. Seu propósito era “entrar no interior da pedra, no mais profundo de nós mesmos, foi uma tentativa de nos perguntarmos o quê e quem somos” (Ibid., p. 43). Com essa explicação Saramago encerra seu texto. Por fim, a primeira parte termina com um texto de Fernando Gómez Aguilera. Ele analisa a fala de Saramago explicando como cada etapa de sua produção é composta de seis romances. Contudo, ele não se prende a fala do escritor e defende a tese de que, posteriormente, surgiu uma terceira etapa. Ela seria uma espécie de epílogo e nela estariam seus três últimos livros. Fernando reexamina o trabalho do escritor, os temas com os quais lida, para examinar o processo de transformação pelo qual sua obra foi passando. Em relação aos três últimos textos da coletânea temos, em primeiro lugar, o discurso pronunciado na academia sueca em 7 de dezembro 1998 (Ibid., p. 71-87). Saramago fala sobre seus avós, com destaque para o avô (Jerónimo Melrinho), e de como marcaram sua vida. Essa rememoração da infância serve de ponto de partida para analisar o fato de que, ao escrever mais tarde sobre os dois, teve consciência de que estava a transformar pessoas comuns em personagens, possivelmente como uma forma de não esquecê-los (Ibid., p. 74). Destaca também a importância desse fato para o desenvolvimento posterior de sua produção e examina como, ao mesmo tempo em que seres reais fizeram dos personagens o que eles eram, o próprio Saramago foi sendo modificado pelos que criou.

Para comprovar essa afirmação comenta a respeito de alguns, examinando as relações que os livros citados tem com sua própria vida, e conclui dizendo: “A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiveram. Perdoai-me se parece pouco isto que para mim é tudo” (Ibid., p. 87). O segundo é o breve discurso (Ibid., p. 89-91) pronunciado no banquete Nobel, no dia 10 de dezembro de 1998. Saramago fala dos cinquenta anos da assinatura da Declaração Universal de Direitos Humanos, comentando o fato de que ela não gera obrigações legais aos países que a assinaram, salvo quando suas constituições estabelecem que “os direitos fundamentais e as liberdades nelas reconhecidos serão interpretados de acordo com a Declaração” (Ibid., p. 89). Com isso, o valor da Declaração não seria muito grande, já que não existiria nenhuma punição para o seu descumprimento. Comenta também como não tem sido posta em prática, dando como exemplo a multiplicação das injustiças e das desigualdades sociais e econômicas, e aponta algumas das causas que impediriam a sua aplicação. Afirma que essa omissão não seria apenas dos Estados, mas também dos cidadãos, porque é dever da população tomar a iniciativa diante da omissão dos governos. Para o escritor, só assim o mundo começará a ser um lugar um pouco melhor. Na conclusão do discurso temos alguns agradecimentos. Por fim, temos uma pequena Autobiografia (Ibid., p. 93-99), texto que todos os premiados pelo Nobel têm de apresentar à academia sueca. Saramago escreve sobre sua família e sua infância, centralizando na vida de estudante. Relata brevemente sobre os diferentes ofícios que exerceu, seu casamento e o nascimento de sua filha, sua carreira literária, abordando a questão das obras que escreveu depois, mas que não publicou, e comentando algumas obras. Aborda também sua atividade tradutória, apresentando uma extensa lista dos autores que traduziu, e a jornalística. Fala da atribuição do prêmio Nobel e de como esse fato mudou sua vida, dos últimos livros publicados e do que ainda seria lançado, A viagem do Elefante. Termina comentando a criação da Fundação José Saramago em 2007 e a doação, em 2008, da Casa dos Bicos para sede da Fundação. Numa nota de rodapé, temos informações sobre os livros que publicou posteriormente, sobre sua morte e o local onde estão as suas cinzas. As informações fornecidas pelo texto já são conhecidas por meio de outras fontes e nada acrescentam aos que conhecem sua trajetória de vida.

É preciso também se destacar o fato de que foi incluído no livro, como anexo, um apêndice fotográfico (Ibid., p. 101-117) com fotos que vão de sua infância à velhice. Parte delas retrata sua vida em Portugal, outras retratam o recebimento do Nobel e, por fim, temos algumas retratando sua presença no Brasil. Por tudo o que foi dito, podemos dizer que é uma obra fundamental para todos os que querem conhecer o projeto literário do escritor e conhecer maiores detalhes sobre a escrita de alguns de seus trabalhos, assim como detalhes de sua vida.

Referências bibliográficas BUSSIOS, Julia. Dia de Saramago – 16 de Novembro. Site Gaia Brasil, 16 nov. 2014. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015.

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