A Evolução do Conceito de Fronteira

June 9, 2017 | Autor: M. Mongiardim | Categoria: Diplomacy and international relations
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Diplomata, Doutora em Relações Internacionais, Investigadora no Instituto do Oriente (ISCSP).


A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FRONTEIRA
Conferência no Palácio da Independência
Lisboa, 2 de fevereiro de 2016
Maria Regina de Mongiardim

A fronteira tem evoluído ao longo da história da humanidade, mas o seu conceito evoluiu acentuadamente por força da globalização, adquirindo diversos significados e funções, e novos traçados, que se cruzam e entrelaçam. Antigamente quase estanque, a fronteira de um mundo global adquiriu uma natureza movediça e uma diversidade de traçados, em consonância com a própria evolução das sociedades e da política mundial, com os seus desafios e ameaças.
Ab initio, de carácter eminentemente territorial, este conceito abarca, todavia, uma enorme diversidade de elementos míticos, religiosos, étnicos, sociológicos, históricos, culturais, políticos, económicos, geográficos, estratégicos e, até, tecnológicos, que têm moldado a identidade das diferentes comunidades, e têm delineado e multifacetado o mapa mundi.
Dispositivo criado pelo Estado, enquanto paradigma da definição de um determinado espaço de soberania, a fronteira, que vulgarmente reconhecemos, tem uma dupla dimensão: a que define um limite territorial de vizinhança entre entidades diferenciadas, e a que salvaguarda um domínio próprio de intervenção autónoma na realização dos seus interesses.
Dentro da fronteira do Estado-nação – que encerra um corpo social politicamente organizado, nutrindo-se dos mesmos fatores de coesão da comunidade – vigoram as competências deste, à luz de um modelo onde o território, o povo e o exercício espacial do poder, são coincidentes.
Repositório histórico de comunidades territorializadas, referente geográfico, político, cultural, religioso, simbólico, administrativo e defensivo, e cerne de ambivalências, originárias da interação de comunidades vizinhas, a fronteira – ou melhor, o seu conceito - tem acompanhado a evolução do Estado, traduzida na alteração dos seus paradigmas e das suas competências, e da sociedade internacional, hoje, globalizada.
A globalização afetou o Estado soberano – obrigado a suprir muitas das suas insuficiências através da adesão a grandes espaços de cooperação ou de integração – e alterou a definição da fronteira tradicional, quanto às suas funções, significado e traçado geográfico.
Sobretudo em regiões do mundo em que o Estado não foi imune aos efeitos corrosivos das tecnologias de informação e comunicação (TIC), da desvalorização do modelo nacional, das novas solidariedades transnacionais, da desacreditação das elites políticas nacionais, do neoliberalismo, e da emergência de poderes não estaduais, foi sendo aí desenhada uma nova teia de fronteiras, movediças, com outro perfil e maior porosidade, a exigir novos modelos de controlo e vigilância, de segurança e defesa, de cooperação económica, e de articulação política transnacional.
Foi, assim, criado um sistema de geometrias variáveis, onde a configuração territorial, perfilada pela fronteira tradicional, já não tem a nitidez e a consistência identitária de outrora, e onde a soberania nacional já não é, por si só, o paradigma da figuração desse sistema.
Verifica-se uma recomposição de espaços, cujas linhas de demarcação (a fronteira) se entrecruzam, entrelaçam, se estendem ou são descontínuas; espaços esses, que são submetidos a orientações supra ou infraestaduais, ou transnacionais, de natureza económica, política, militar, securitária, identitária, linguística e tecnológica, ou, simplesmente, são reféns de fenómenos sociais que trasvazam o território do Estado-nação.
Pode considerar-se haver três grandes grupos de fronteiras: (i) as físicas, produto da natureza, como sejam os mares, os rios e as montanhas; (ii) as estruturais, definidas por fatores estruturantes das sociedades, como sejam a civilização e a cultura; (iii) e as convencionais, estabelecidas por causas conjunturais, normalmente, políticas.
O primeiro grande grupo – o das fronteiras físicas - está bem identificado, sendo o mais estável, por nos ser dado pela geografia.
O segundo grande grupo – o das fronteiras estruturais – também nos surge com forte estabilidade, sobretudo, quanto aos vectores civilizacionais, pelo seu carácter milenar e confinamento geográfico. Já o vector cultural, se bem que estrutural, pode configurar uma fronteira menos estável e movediça, em especial, pela ação de contágio de comunidades com identidades culturais distintas, proporcionada pelas novas tecnologias de comunicação e pelas migrações.
No terceiro grande grupo – o das fronteiras convencionais - encontramos a maior diversidade de traçados, de significados e de funções.
Nele, temos a fronteira política (ou geopolítica), que identifica o território do Estado, entidade territorial, por excelência. A fronteira política encerra o corpo da nação, com a sua identidade própria, confere legitimidade às suas instituições e permite que o Estado defina o interesse nacional e execute as suas estratégias, interna e externamente. A fronteira política tem ainda por missão contribuir para a estabilidade internacional, conforme ditam as doutrinas da ONU, da UA e da Conferência de Helsínquia.
Não obstante estas características clássicas, a fronteira política de alguns Estados tem-se visto ameaçada, devido a forças nacionalistas e separatistas que não se reveem no Estado em que se integram. O caso de alguns Estados europeus, como a Espanha, a Bélgica, a Grã-Bretanha, a França e a Itália, são paradigmáticos nesta matéria.
Também convencional e, por isso, conjuntural, a fronteira económica corresponde aos blocos económicos e às parcerias entre Estados movidos por objetivos de mercado (UE, ASEAN, NAFTA, BRICS, etc.). O mapa mundial destas fronteiras, ou o seu traçado, evolui segundo a agregação de Estados, a intensidade das trocas, a eliminação de barreiras, a trajectória dos fluxos financeiros e a superação de conflitos.
Igualmente convencional, a fronteira da defesa é definida pelos acordos de defesa entre Estados ou grupos de Estados, em que identificamos, por exemplo, a delimitação dos espaços sob responsabilidade da NATO e da UE (PESDC), a definição das áreas de aplicação das decisões do CS das NU, e a evolução de acordos estratégicos, designadamente, na Ásia-Pacífico.
O carácter, em regra, conjuntural da fronteira da defesa pode conferir-lhe uma natureza mais volátil e sinuosa, sobretudo, em regiões de alta conflitualidade, onde a intervenção de coligações internacionais pode sofrer, amiúde, alterações na sua composição, durabilidade e funções.
Dispositivo com características sociais, administrativas e de polícia, a fronteira de segurança conhecida situa-se na Europa. Ela perfila o chamado Espaço Schengen, tendo sido criada para responder às ameaças da imigração clandestina, da criminalidade organizada e do terrorismo. A evolução da doutrina de segurança da NATO tende a alargar o seu perfil.
Todavía, esta fronteira atravessa, na atualidade, grandes perturbações, quer no seu traçado, quer, mesmo, nos seus significado e funções, devido, sobretudo, à crise dos refugiados na Europa. O seu futuro é uma incógnita, já que a "Europa fortaleza" vê os seus alicerces a ruir e a fronteira de segurança pode, efetivamente, desmembrar-se.
Antes, apenas com carácter de identificação geográfica, a fronteira marítima tornar-se-ia um fator de poder, que a revolução tecnológica, os recursos do mar e a importância estratégica das costas e dos espaços marítimos adjacentes potenciam. Hoje em dia, não é apenas a geografia que a define. É, também, o DI, as instâncias políticas internacionais e, como é óbvio, os interesses dos Estados ribeirinhos.
A fragmentação institucional do território, a transnacionalização de inte- resses e a proliferação de atores na cena internacional, para além dos agentes governamentais, vêm desenhando as fronteiras da cooperação. Em variadas circunstâncias, estas fronteiras apoiam-se no regionalismo, como reacção ao tradicional centralismo do Estado, tendo como leit motiv a corresponsabilidade e a coparticipação.
A fronteira do espaço, definida durante o sistema bipolar do mundo, tem vindo a ser redesenhada em função dos jogos de poder das grandes potências e de potências emergentes, sem que haja uma coincidência espacial com as fronteiras territoriais dos Estados que sobre elas prevalecem. A sua representação figurativa evidencia o mundo multipolar em que vivemos, mas, também, os factores de desequilíbrio existentes neste domínio.
As fronteiras digitais existem no ciberespaço. Raramente coincidentes com as fronteiras terrestres, elas distinguem os Estados segundo o seu potencial científico e tecnológico. Estas fronteiras geram fronteiras-rede, que se sobrepõem às fronteiras geopolíticas, de que as redes sociais são disso exemplo: a Internet gera fronteiras, em constante renovação. Sendo virtuais, elas são reais nos seus efeitos políticos, sociais, culturais e económicos, na atividade humana e no dilema que se coloca aos Estados em virtude das opções entre a liberdade ou a necessidade de proteção do espaço virtual.
A fronteira do conhecimento é, desde logo, uma fronteira de exclusão social, a níveis geracional, económico e geográfico. Tendo o seu traçado desenhado entre países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, ela penetra, também, no território dos próprios Estados, retalhando-os entre comunidades ricas e pobres, entre as mais beneficiadas pelo sistema ou dele excluídas.
A fronteira do tempo indica a capacidade do domínio do tempo, numa época em que se assiste à 4ª revolução industrial e em que as inovações tecnológicas se sucedem com uma celeridade que ultrapassa o tempo dos homens, tradicionalmente, previsível e linear. Esta fronteira, altamente polarizada, divide os indivíduos e as sociedades, em função do respetivo domínio das novas tecnologias e de acesso às mesmas.
O fracasso do socialismo e o avanço do neoliberalismo atenuaram a velha fronteira ideológica entre esquerda e direita, e provocaram uma espécie de "morte" das ideologias tradicionais, substituídas pelo tendencial regresso ao "sagrado" ou pela exaltação do nacionalismo. O desemprego crescente, o fosso entre ricos e pobres, a insegurança e exclusão social, e a falta de um projeto político mobilizador, originaram fenómenos de populismo demagógico e de novos messianismos, que tendem a fazer deslocar a fronteira ideológica para derivas mais radicais e extremistas. Por seu turno, as redes sociais contribuem para o exacerbamento da contestação social e política, em movimentos inorgânicos sem programa político, cujo resultado é uma fronteira ideológica mais volátil, descontínua e, essencialmente, dogmática.
Fraturante, a fronteira da pobreza não segue apenas a lógica divisão entre países pobres e ricos, mas penetra no território destes últimos, criando factores de exclusão e de desunião da comunidade nacional.
A fronteira demográfica, que separa as sociedades ocidentais, racionalistas e avançadas, do resto do mundo, mudou de sentido. Em perda de vitalidade e da sua população, o norte do mundo enfrenta graves desafios e ameaças, sobretudo, devido ao êxodo massivo de populações do sul do mundo, sobrepovoado, para o seu território. Esta deslocação acarreta toda uma miríade de novas fronteiras que perpassam os territórios do norte do mundo, afluente e de consumo.
Depois de elencadas as fronteiras conjunturais, refiro-me, seguidamente, às fronteiras estruturais.
A fronteira civilizacional é reconhecida e bem identificada por todos. Ela divide civilizações há milénios, e configura o ponto de intersecção e de intercâmbio entre essas mesmas civilizações, que a história nos tem relatado.
A fronteira civilizacional é também o traçado de uma barreira de incompreensões, desajustamentos e conflitos, em que se enquadram as guerras religiosas e em que, com plena atualidade, se perfila a jihad e o terrorismo internacional islâmico. Neste particular, lembremos a obra de Samuel Huntington sobre "O Choque de Civilizações".
Igualmente estrutural, a fronteira cultural e linguística identifica comunidades humanas singulares. O seu perfil pode ou não coincidir com a fronteira dos Estados, como nos casos de certas comunidades afins, separadas pela política. Estas fronteiras invadem o território de Estados, assinalando a presença de minorias, a falta de coesão nacional e o risco de um desvertebramento do Estado.
Fruto da colonização e, posteriormente, com a descolonização e a política de reconciliação pós-colonial, a fronteira linguística passou a identificar, também, distintos agrupamentos de Estados unidos pela mesma língua e interesses convergentes (Comunidade Francófona, Commonwealth, Comunidade Ibero-Americana, CPLP). Trata-se de uma fronteira descontínua, mas porosa, que pretende potenciar uma maior influência na cena internacional, a transmissão ou intercâmbio de valores, a obtenção de sinergias e a captação de benefícios, designadamente, económicos.
Como conclusão, a evolução do conceito de fronteira, em função dos seus conteúdos, significado, funções e traçados, é um produto da globalização e das profundas alterações da cena internacional, nomeadamente, no que respeita ao poder do Estado e às condições do exercício da sua soberania, fortemente afetados pela mobilidade, saber e pelos novos instrumentos tecnológicos que as sociedades têm ao seu dispor.
O regresso, que ultimamente se tem verificado, ao paradigma do território, não desfaz esta nova teia de fronteiras - mais visíveis no norte do mundo, de onde emergem todos os factores geradores deste novo desenho do mapa universal. Estático e perene, o paradigma do território acaba, no entanto, por ver-se condicionado e subjugado ao conceito de fronteira, dinâmico e movediço, por força da globalização e dos desafios e ameaças que ela acarreta.


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