A evolução do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos e a Prática da Mutilação Genital Feminina

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO

ANNA KARINA KELLER

A evolução do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos e a Prática da Mutilação Genital Feminina

SÃO PAULO

ANNA KARINA KELLER

 

A evolução do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos e a Prática da Mutilação Genital Feminina

TRABALHO

DE MONOGRAFIA JURÍDICA

APRESENTADO NA DE

DIREITO

UNIVERSIDADE PAULO,

FACULDADE PAULISTA PONTIFÍCIA

DA

CATÓLICA

DE

SÃO

COMO EXIGÊNCIA PARCIAL PARA

A OBTENÇÃO DO GRAU DE BACHAREL EM

DIREITO, HUMANOS,

NA SOB

ÁREA A

DE

DIREITOS

ORIENTAÇÃO

DA

PROFESSORA DOUTORA SILVIA CARLOS DA SILVA PIMENTEL.

SÃO PAULO NOVEMBRO / 2014

 

 

Dedico esta, bem como todas as demais conquistas de minha vida, aos meus pais que, com o amor e dedicação que a todo momento me proporcionaram, não mediram esforços para que eu aqui chegasse. Com o mesmo carinho, pelo incentivo e paciência constantes, dedico este trabalho a todos os amigos e familiares estiveram

que,

de

presentes

alguma ao

forma,

longo

desta

jornada. No

mais,

meus

sinceros

agradecimentos a ele, que segue ao meu lado fazendo a vida valer cada dia mais a pena.

 

 

AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, agradeço à minha família, sobretudo a meus queridos pais, Ivan e Tânia que, desde o início, foram os responsáveis por toda minha educação e pela consolidação do meu caráter e senso de justiça; cujo amor incondicional e incentivo constante fizeram com que eu me tornasse a pessoa que sou hoje. Sem eles, nada seria possível. Agradeço-lhes,

especialmente,

por

todos

os

momentos

e

experiências

maravilhosas que me proporcionaram ao longo de todos esses anos, pelo exemplo de vida e pelo esforço empreendido em minha criação, aos quais serei eternamente grata. Espero poder retribuí-los cada vez mais, com as conquistas que ainda estão por vir. À professora Silvia Pimentel, pela qual possuo imensa admiração, verdadeiro exemplo a ser seguido na luta constante pela promoção dos direitos das mulheres. Agradeço-lhe pela paciência e incentivo em minha orientação, que tornaram possível а conclusão desta monografia. Agradeço também a todos os professores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo que me acompanharam durante a graduação e que, através de suas valiosas lições, contribuíram para o desenvolvimento do senso crítico indispensável a todo bacharel em Direito tendo, cada qual da sua maneira, possibilitado o enriquecimento de meus conhecimentos. Em especial ao professor Flávio Crocce Caetano que, através das suas aulas de Direitos Humanos, ministradas com tanta maestria e entusiasmo, despertou em mim o crescente interesse pelo estudo deste tema de tamanha relevância social. Agradeço, ainda, àqueles que se tornaram meus mais próximos e sinceros amigos, com os quais tive o imenso prazer de conviver ao longo destes seis árduos anos de graduação e que, com absoluta certeza, me acompanharão pelo resto da vida. Obrigada pelo apoio e incentivo nos momentos difíceis e pelas inúmeras alegrias que compartilhamos, estando sempre presentes nos melhores momentos da minha vida. Por fim, agradeço aos mentores que tive o prazer de conhecer durante meu estágio no Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade  

  Católica de São Paulo – “Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo Arns”, pelos ensinamentos e pela preciosa oportunidade de adquirir experiência profissional no âmbito da advocacia popular, e aos colegas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em especial à Des.ª Dr.ª Berenice Marcondes Cesar e aos integrantes do seu gabinete, pela confiança em mim depositada, pelo carinho, bem como pelos inúmeros momentos de alegria.

 

 

RESUMO O presente estudo científico visa analisar a atual estrutura normativa do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, especialmente no que diz respeito aos direitos humanos das mulheres, e demonstrar de que modo a prática da mutilação genital feminina viola tais direitos universalmente consagrados, abordando questões polêmicas e relevantes que ainda hoje permeiam a discussão referente à legitimidade, ou não, das práticas tradicionais discriminatórias ou prejudiciais à saúde das mulheres. Para que seja possível a compreensão da concepção contemporânea dos direitos humanos, mostra-se necessário traçar um referencial histórico acerca da origem e da evolução do processo de internacionalização dos direitos inerentes à pessoa humana, desde os primeiros documentos jurídicos de repercussão internacional a fazerem menção a esta então nova espécie de direitos, passando obrigatoriamente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, até os mais recentes tratados internacionais de direitos humanos. Em seguida, trataremos mais especificamente do sistema especial de proteção dos direitos humanos, analisando o chamado “processo de especificação do sujeito de direito”, destacando a necessidade da busca pela igualdade de fato e de direito entre todos os seres humanos. Através do estudo da evolução do princípio da igualdade, demonstraremos os motivos pelos quais o processo de especificação do sujeito de direito exige que alguns indivíduos – neste caso, as mulheres – passem a ser vistos dentro de suas particularidades e concreticidades, em virtude da condição socioeconômica desigual e da posição de inferioridade que ocupam, uma vez que a obrigatoriedade do respeito à diferença e à diversidade lhes assegure um tratamento especial, e de que maneira tal processo ensejou a elaboração dos instrumentos específicos de proteção dos direitos humanos. Analisaremos, ainda, o atual sistema normativo internacional de proteção dos direitos humanos das mulheres, destacando os principais instrumentos internacionais e os órgãos das Nações Unidas direcionados especificamente à mulher, destacando a maneira

 

  como se encontra positivada a proibição da discriminação contra a mulher e das violações de direitos humanos que têm por fundamento a diversidade de gênero. Por conseguinte, nota-se a inegável importância da adoção de medidas especiais temporárias pelos governos para que seja possível alcançar um patamar de igualdade material entre homens e mulheres, sublinhando ainda o relevante papel da educação como medida emancipatória das mulheres. Finalmente, adentraremos especificamente no tema da prática da mutilação genital feminina, analisando as suas origens, a sua distribuição geográfica e prevalência ao redor do mundo, os motivos pelos quais ainda hoje é praticada, os diversos tipos de procedimentos que podem ser adotados, a definição técnica e terminologia empregada para se referir a esta prática tradicional imposta às meninas e mulheres e de que maneira esta prática deve ser concebida como uma verdadeira violação aos direitos humanos. A partir de discussões doutrinárias e da posição adotada pela jurisprudência internacional, abordaremos a questão da contraposição entre a universalidade dos direitos humanos e os particularismos regionais, especialmente no que tange às relações de direito privado, demonstrando que estes últimos, embora devam ser respeitados e incentivados como forma de política contra-hegemônica, não podem nunca acobertar ou pretender legitimar violações de direitos humanos perpetradas por práticas tradicionais prejudiciais aos indivíduos. Nessa conjuntura, apontamos para a chamada hermenêutica diatópica que, no caso concreto, deve nortear o diálogo intercultural com fulcro a transformar os direitos humanos numa política universal que reconheça e conecte diferentes culturas em prol da proteção da dignidade da pessoa humana. Deste modo, a presente investigação científica cinge-se à análise do importante e inarredável tema da mutilação genital feminina e de todas as suas consequências e efeitos, tanto no plano jurídico como na âmbito fático, devendo ser vista como prática cultural primitiva que fere a dignidade humana pela agressão à integridade física e psíquica das meninas e mulheres que são a ela submetidas. Palavras-chave: Direitos Humanos, Direito Internacional, Mulheres, Mutilação Genital Feminina.

 

 

SUMÁRIO   Introdução  .................................................................................................................................  1     Capítulo  I  –  A  evolução  do  processo  de  generalização  da  proteção   internacional  dos  Direitos  Humanos  ................................................................................  3   1.1  – Precedentes históricos do Direito Internacional dos Direitos Humanos .................... 3   1.2  – A II Guerra Mundial e o surgimento dos direitos humanos ..................................... 14   1.2.1  – A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948  ...................................................  19   1.2.2  – Os Pactos internacionais de direitos humanos das Nações Unidas  .................................  28  

  Capítulo  II  –  A  concepção  atual  dos  direitos  humanos  e  a  proteção   internacional  dos  direitos  humanos  das  mulheres  ..................................................  34   2.1 – A evolução da concepção do princípio da igualdade à luz do direito à diferença e o processo de especificação do sujeito de direito ................................................................ 35   2.2 – A trajetória da elaboração do aparato normativo internacional de proteção dos direitos humanos das mulheres ......................................................................................... 43   2.3 – A adoção de medidas afirmativas como meio de promoção da igualdade da mulher e a importância da educação como medida emancipatória ............................................... 57     Capítulo  III  –  Da  prática  da  Mutilação  Genital  Feminina  .........................................  65   3.1 – Origens da prática da Mutilação Genital Feminina ................................................. 65   3.2 – Motivos pelos quais ainda se praticam as mutilações genitais femininas ............... 67   3.3 – Definição de Mutilação Genital Feminina (MGF): terminologias empregadas e os diferentes tipos de mutilação de acordo com a classificação da Organização Mundial da Saúde ................................................................................................................................. 72   3.4 – Os diversos procedimentos que podem ser empregados e os efeitos físicos e psicológicos da Mutilação Genital Feminina .................................................................... 76   3.5 – Distribuição geográfica da Mutilação Genital Feminina ......................................... 84    

  Capítulo  IV  –  A  mutilação  genital  feminina  como  uma  questão  de  direitos   humanos  ..................................................................................................................................  87   4.1 – A contraposição entre o universalismo e o relativismo cultural .............................. 88   4.2 – A universalidade dos direitos humanos e os particularismos das relações de direito privado ............................................................................................................................ 100   4.3 – A mutilação genital feminina e as normas internacionais de direitos humanos .... 104     Conclusões  ............................................................................................................................  110     Anexo  I:  Prevalência  da  mutilação  genital  feminina  na  África  ...........................  113   Anexo  II:  Países  onde  a  mutilação  genital  feminina  foi  documentada  .............  114   Anexo  III:  Prevalência  da  mutilação  genital  na  África  e  os  grupos  étnicos  que  a   praticam  em  cada  Estado  .................................................................................................  116   Anexo  IV:  Legislação  aplicável  aos  casos  de  mutilação  genital  feminina  e   medidas  adotadas  pelos  Governos  africanos  que  visam  à  erradicação  da   prática  ....................................................................................................................................  118     Referências  Bibliográficas  ...............................................................................................  123  

 

 

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Introdução Em circunstâncias normais, as mulheres vivem mais do que os homens e, portanto, deveria haver muito mais mulheres do que homens no mundo. Contudo, pesquisas apontam que, nos locais onde as meninas possuem status profundamente desigual em relação aos homens, elas simplesmente desaparecem. E isso não tem nenhuma relação com fatores biológicos. Os piores abusos tendem a ocorrer em países pobres, onde as discriminações baseadas no gênero são frequentemente letais. As estatísticas globais sobre o abuso de meninas são assustadoras. Ao que parece, mais meninas foram mortas nos últimos cinquenta anos – única e precisamente pelo fato de pertencerem ao sexo feminino – do que homens foram mortos em todas as guerras do século XX. Em uma única década, mais meninas foram mortas devido a este “generocídio” do que pessoas foram massacradas em todos os genocídios cometidos no século XX1. Nos propusemos a realizar o presente trabalho pois identificamos que, neste momento, as questões referentes aos direitos humanos das mulheres, mais do que nunca, devem ser trazidas à discussão e analisadas de maneira crítica e sensível, especialmente no que diz respeito às práticas tradicionais nocivas à saúde das mulheres e que constituem claras violações dos direitos fundamentais. Diante da escassez de trabalhos acadêmicos, em nosso país, abordando especificamente o tema, resolvemos tratar de forma detalhada e aprofundada a questão da mutilação genital feminina. Por se tratar de prática arraigada na tradição cultural de diversas etnias e comunidades africanas e do Oriente Médio, e diante do crescente número de imigrantes e refugiados que têm se instalado no Brasil na última década, tal prática pode, ainda, se tornar um problema de jurisdição interna caso continue a ser praticada pelas comunidades imigrantes em solo nacional.

                                                                                                                1 KRISTOF, Nicholas D.; WUDUNN, Sheryl. Half the sky – turning oppression into opportunity for women worldwide. Nova Iorque: Vintage Books, 2010, p. xv/xvii. 2

BUERGENTHAL, Thomas. International human rights. Minnesota: West Publishing, 1998, p. 2-3, apud PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11a ed. São Paulo: Saraiva,

 

 

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Assassinatos em nome da honra, mutilação dos genitais femininos, escravidão sexual e outros tipos de tratamentos desumanos e degradantes impostos à mulher podem parecer, para a maioria dos leitores pertencentes às culturas ocidentais, práticas trágicas, mas inevitáveis, cometidas em um mundo muito distante do nosso. Quase que da mesma forma, a escravidão foi amplamente vista por milhares de europeus e americanos como uma lamentável, porém irremediável, característica da vida humana. Contudo, no final do século XVIII, alguns ativistas decidiram que a escravidão era tão ofensiva à dignidade humana que deveria ser abolida. E assim o fizeram. Nos dias de hoje, estamos diante de algo muito similar: o início de um movimento global para emancipar meninas e mulheres. Para tanto, devemos lutar contra a discriminação baseada no gênero e contra a perpetração de qualquer tipo de violência contra meninas e mulheres. Devemos, ainda, promover a sua instrução e educação, uma vez que o empoderamento feminino é o único caminho para incluir essas meninas e mulheres econômica e socialmente. O fenômeno denominado “the girl effect” evidencia que ajudar e empoderar as mulheres pode ser a estratégia mais bem sucedida no combate à pobreza em qualquer lugar do mundo. O economista chefe do Banco Mundial, Lawrence Summers, afirmou que investir na educação das garotas pode ser o investimento de maior retorno disponível no mundo em desenvolvimento. Deste modo, o presente trabalho não se presta à vitimização das mulheres mas, ao contrário, pretende chamar a atenção dos leitores para a urgência e necessidade de aceleração do processo de empoderamento destas mulheres. As mudanças já estão acontecendo, mas dependem em grande parte da mobilização e apoio de toda a sociedade civil para que seja efetiva. Se no século XIX a escravidão era o desafio moral central a ser enfrentado, e no século XX era a luta contra o totalitarismo, acreditamos que no século XXI o desafio moral primordial será a luta pela igualdade entre os gêneros. E a mutilação genital feminina encontra-se dentre as práticas tradicionais mais prejudiciais à saúde das meninas e mulheres. Continua a ser praticada ao redor de todo o mundo, defendida com veemência por grande parte das populações onde são praticadas e cujo índice de mortalidade mostra-se exorbitante, motivos pelos quais deve ser combatida a todo custo.

 

 

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Capítulo I – A evolução do processo de generalização da proteção internacional dos Direitos Humanos Para podermos compreender a concepção contemporânea dos direitos humanos e antes de adentrarmos ao estudo do atual sistema normativo da proteção internacional dos direitos humanos das mulheres e, mais especificamente, à análise de como a prática da mutilação genital feminina viola tais direitos, faz-se necessário traçar um referencial histórico acerca da origem e da evolução do processo de internacionalização dos direitos inerentes à pessoa humana, desde os primeiros documentos jurídicos de repercussão internacional a fazerem menção a esta então nova espécie de direitos, passando obrigatoriamente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, até os mais recentes tratados internacionais de direitos humanos, para que se possa bem compreender a noção jurídica que atualmente se dá aos chamados direitos humanos.

1.1 – Precedentes históricos do Direito Internacional dos Direitos Humanos     Habitualmente tem-se a ideia de que os direitos humanos são produto da afirmação progressiva da individualidade e de que a noção de que todos os indivíduos são titulares de direitos inerentes à pessoa humana apareceu pela primeira vez durante o movimento da luta burguesa contra o sistema do Antigo Regime. Contudo, grande parte dos autores, nacionais e estrangeiros, que se dedicam ao estudo aprofundado do tema, afirmam que a noção de direitos inerentes à pessoa humana encontra-se presente em várias passagens ao longo da história, em regiões e épocas distintas, cujos registros podem ser encontrados desde o início da organização dos homens em sociedade. Parece-nos mais adequada esta última corrente, que considera que os direitos humanos são uma constante na história tendo suas raízes atreladas ao mundo clássico e cuja origem também se encontra na afirmação da dignidade moral do homem enquanto pessoa difundida pelo cristianismo. Assim, é correto dizer que desde os primórdios na história das civilizações manifestou-se a afirmação da dignidade da pessoa humana, por meio da qual defendia-se

 

 

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que o homem possui direitos inalienáveis e imprescritíveis intrínsecos à própria natureza humana, sendo certo, contudo, que a proteção e a positivação destes direitos, quando existia, limitava-se ao direito interno dos Estados que lhes reconheciam, cada qual da sua maneira, conferindo aos “direitos humanos” a extensão que bem desejavam. O alcance do reconhecimento de tais direitos era, portanto, limitado à jurisdição interna de cada Estado, não havendo que se falar em proteção universal dos direitos humanos. Não existia aquilo que entendemos hoje por Direito Internacional dos Direitos Humanos. Isso porque, de acordo com a noção tradicional do Direito Internacional, este era definido, nas palavras de Thomas Buergenthal2, como: (...) o Direito que regula exclusivamente relações entre Estados-nações. Logo, sob este enfoque, apenas Estados eram sujeitos de Direito Internacional e apenas Estados podiam possuir direitos legais à luz deste Direito. Era inconcebível que os indivíduos detivessem direitos internacionais. Eles eram vistos como objetos, e não como sujeitos do Direito Internacional. Consequentemente, os direitos humanos eram concebidos como matéria concernente apenas à jurisdição doméstica de cada Estado. Este princípio negava aos outros Estados o direito de interceder ou intervir em hipóteses em que nacionais de um Estado tinham seus direitos por ele violados.

Verifica-se que, tradicionalmente, a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como uma questão de jurisdição interna, restrita ao domínio reservado do Estado, em decorrência do princípio da soberania nacional absoluta e da irrestrita autonomia e liberdade dos Estados-nações. Apesar de se encontrarem atualmente cristalizados nos mais diversos sistemas normativos e em grande número de declarações e tratados, além de serem reconhecidos por toda a comunidade internacional, as raízes do que hoje entendemos por proteção internacional dos direitos humanos remontam, contudo, a movimentos sociais e políticos, correntes filosóficas e doutrinárias distintas, que floresceram ao longo de vários séculos e em diferentes regiões do globo, que contribuíram para que a noção tradicional do Direito Internacional fosse, aos poucos, modificada, trazendo novos princípios e paradigmas,                                                                                                                 2

BUERGENTHAL, Thomas. International human rights. Minnesota: West Publishing, 1998, p. 2-3, apud PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11a ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 119.

 

 

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tanto às relações interestatais, como no que concerne à nova percepção dos indivíduos como sujeitos de direitos intrínsecos à sua própria natureza, reconhecidos pelo Direito Internacional e oponíveis a todo e qualquer Estado. Para a compreensão do processo de internacionalização dos direitos humanos e da elaboração da concepção atual do Direito Internacional dos direitos humanos, importante recordar alguns dos documentos jurídicos de direito interno de maior relevância dentro do processo de reconhecimento e efetivação destes direitos, que contribuíram para a criação da noção jurídica dos direitos humanos que se tem hoje. Vale esclarecer que a escolha dos documentos que serão analisados a seguir baseou-se na sua relevância histórica à época em que foram produzidos e no critério da novidade histórica trazida por estes documentos no momento em que passaram a vigorar. Não se desconhece a existência de outros textos que fizeram, de alguma forma, menção a esta categoria de direitos inerentes a todos os indivíduos mas que, entretanto, limitaramse a reproduzir declarações de direitos anteriores. O primeiro deles que merece destaque é a Magna Carta, outorgada pelo rei inglês João Sem-Terra em 1215. Apesar de ter se restringido à definição dos direitos dos barões e prelados ingleses e não constituir uma afirmação universal de direitos da pessoa humana oponíveis a qualquer governo, representou um marco histórico por ter fixado, pela primeira vez na história, alguns princípios que mais tarde obteriam amplo desenvolvimento até a sua consagração universal. A Magna Carta previa certas liberdades civis e políticas à nobreza e ao Clero, além de reconhecer que os direitos próprios dos dois estamentos livres existiam independentemente do consentimento do monarca e, consequentemente, não poderiam ser por ele modificados. Garantiu também a igualdade entre chamados “homens livres” perante a lei e acabou por limitar o poder da monarquia inglesa -até então absolutaatravés da renúncia de alguns poderes pelo rei, que, pela primeira vez na história política medieval, encontrava-se vinculado e submetido às próprias leis que editava além de ter que respeitar obrigatoriamente determinados procedimentos legais. Apesar de ter vigência predeterminada para apenas três meses e de muitas de suas disposições não terem chegado a ser executadas neste período, a Magna Carta foi reafirmada solenemente em 1216, 1217 e 1225, tornando-se, a partir desta última data,

 

 

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direito permanente. Posteriormente ao marco inaugural da Magna Carta, foi criada, em 1679, também na Inglaterra, a chamada Lei do Habeas Corpus, visando melhor garantir a liberdade dos súditos face à monarquia absolutista e, mais tarde, em 1689, foi adotada a Declaração de Direitos, conhecida por Bill of Rights, que pôs fim ao regime de monarquia absolutista e assegurou o poder do Parlamento como forma de impedir as mais variadas formas de arbitrariedades cometidas pelo governo contra a população. Não há como negar que o pioneirismo inglês teve grande influência nas constituições das colônias inglesas da América do Norte. Neste passo, vale destacar que a Declaração de Direitos da Virgínia (de 12 de junho de 1776) foi o primeiro documento político a reconhecer a existência de direitos inerentes à própria condição humana, tais como: o direito à vida, à liberdade e à propriedade; além de ter proclamado a adoção de princípios como: o princípio da igualdade e da legalidade; da liberdade de imprensa e religiosa; da separação dos poderes; do devido processo legal, da irretroatividade da lei penal a da proibição da aplicação de penas cruéis. Já em seu artigo 1o a Declaração prevê:“Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança”. No mesmo ano, as treze colônias britânicas da América do Norte declaram a sua independência da Grã-Bretanha por meio da edição da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, que foi ratificada no Congresso Continental em 4 de julho de 1776. Este foi o primeiro documento a afirmar os princípios democráticos na história política moderna. As ex-colônias reuniram-se primeiramente sob a forma de uma confederação, constituindo em 1787 um Estado federal com a adoção da Constituição dos Estados Unidos da América do Norte. Estes dois documentos representaram o marco inaugural da democracia moderna ao instituírem o regime constitucional e a representação popular como forma de limitação aos poderes governamentais. Apesar de a Constituição dos Estados Unidos ter sido promulgada em 1787, os

 

 

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artigos que previam expressamente os direitos individuais e fundamentais apenas foram inseridos em 1791, quando foram adicionadas a ela as dez primeiras emendas constitucionais (conhecidas como The United States Bill of Rights ou Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos Estados Unidos), que reconheceram o direito de livre exercício; a liberdade de expressão, de imprensa e de reunião; o direito de petição; a vedação à buscas e apreensões desmesurados; o princípio do devido processo legal e da vedação à autoincriminação, além da proibição de imposição de penas cruéis e excessivas; determinando, ainda, que os direitos enumerados pela Constituição não excluiriam ou desvalorizariam outros por ela não previstos. Tais documentos possuem inestimável valor histórico, tendo muito influenciado a redação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada na França no ano de 1789, que, a princípio, visava suprimir a desigualdade entre os indivíduos e entre os grupos sociais, cuja ideologia baseava-se no princípio tríplice liberte, égalité et fraternité. Pode-se sustentar que a mencionada Declaração parece conter dois tipos distintos de direitos: os “direitos do homem” - que seriam aqueles que antecedem a sociedade e dela independem, vez que são inerentes ao próprio ser humano, tais como: a liberdade, o direito à propriedade e à segurança (denominados libertés publiques ou direitos civis) – e os “direitos do cidadão” – que seriam aqueles pertencentes aos indivíduos enquanto integrantes de uma determinada sociedade, isto é, os direitos políticos, tais como: o direito de resistência à opressão, o direito de concorrer pessoalmente ou por representantes para a formação da lei e o direito de acesso aos cargos públicos. O texto sintético da Declaração proclama os fundamentos da liberdade, da igualdade e da propriedade; o princípio da legalidade e as garantias individuais liberais que, até hoje, se fazem presentes nas declarações contemporâneas. A grande inovação trazida pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que a diferencia de todas as outras que a precederam, é seu caráter abstrato e universal, na medida em que os princípios anunciados em seu texto são revestidos de um valor geral que pretende ultrapassar os limites dos Estados e alcançar um caráter universal, atingindo todos os indivíduos em virtude da natureza específica de tais direitos, que seriam imprescritíveis e inerentes a todo ser humano.

 

 

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Apesar destas características inovadoras representarem um grande passo em direção à conceituação que hoje se dá aos direitos humanos, verifica-se que, por outro lado, a Declaração de 1789 também é revestida por uma rígida concepção individualista, vez que consagra tão somente as chamadas liberdades individuais, sem fazer qualquer menção, por exemplo, à liberdade de associação e de reunião, sem tampouco fazer referência a outros direitos coletivos. Isso se deve ao fato de que, precisamente neste momento histórico, a preocupação maior das tendências racionalistas e generalizadas do pensamento político do país era defender o indivíduo contra o Estado absolutista opressor, conferindo à população direitos e garantias individuais por meio da afirmação – de forma positiva e de caráter geral – de um elenco de prerrogativas individuais em relação e contra o próprio Estado, com o intuito de alcançar a restauração de um poder legítimo baseado no consentimento popular. Todos estes precedentes históricos, apesar de terem contribuído de maneira bastante significativa para a criação da concepção atual dos direitos humanos, não deixam de ser instrumentos jurídicos de direito interno cuja eficácia não transpõe as fronteiras dos Estados pelos quais foram adotados. Contudo, para que os direitos humanos de fato se internacionalizassem, seria necessário redefinir o âmbito e o alcance do conceito tradicional de soberania estatal, com o intuito de permitir o advento dos chamados direitos humanos como questão de legítimo interesse internacional, além de redefinir o status do indivíduo, para que este se tornasse verdadeiro sujeito de Direito Internacional. Neste aspecto, o Direito Humanitário, a criação da Liga das Nações e da Organização Internacional do Trabalho (OIT) situam-se como os primeiros marcos do efetivo processo de internacionalização dos direitos humanos. O primeiro deles – o Direito Humanitário ou Direito Internacional da Guerra – é atualmente definido como sendo o ramo do Direito Internacional Público que se aplica às situações de conflitos armados internacionais e, em determinadas circunstancias, também aos conflitos armados nacionais, e faz parte da regulação jurídica do emprego da violência no plano internacional. Nas suas origens, a guerra caracterizava-se pela ausência de regras para além da

 

 

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lei do mais forte. Os povos vencidos eram massacrados ou então escravizados. Com o tempo, diante de circunstâncias como medo de represálias e a necessidade de preservação dos exércitos, os homens perceberam que deveriam tratar de modo diferente os vencidos. Dessa forma, começaram a se levantar vozes de moderação, de tolerância e, de certa forma, de humanidade. Contudo, até o século XIX, não existia nenhuma estrutura internacional de ajuda humanitária dirigida a proteger e ajudar os civis e combatentes feridos em guerra. A história do Direito Internacional Humanitário, como se conhece atualmente, está relacionada a Henry Dunant, filantropo suíço que, em uma viagem, testemunhou os horrores da guerra de unificação italiana (mais especificamente da batalha de Solferino – 1859) e a falta de assistência humanitária em conflitos armados. Seu testemunho tornouse a peça fundamental que deu base aos questionamentos acerca da necessidade de proteção dos direitos humanos durante a guerra e representou a inspiração para a criação de um organismo internacional neutro que ajudasse os feridos de guerra. Isso levou à criação da Cruz Vermelha e deu origem ao Direito Humanitário Internacional, marcando o início da busca por uma proteção efetiva da pessoa humana nos períodos de guerra. Entretanto, esse ramo do direito internacional público é marcado por um elemento temporal, ou seja, não se fala em proteção do indivíduo a qualquer tempo, mas especificamente em tempo de conflito. Quando se fala de Direito Internacional Humanitário é necessário mencionar o Direito de Haia e o Direito de Genebra. À medida que a sociedade internacional progredia na codificação do Direito de guerra, viu-se que era necessário estabelecer limites aos métodos e aos meios de combate por meio da criação de um direito que regulamentasse o uso da força nos conflitos armados e regesse a conduta das operações bélicas através da imposição de direitos e deveres aos militares em combate, limitando, assim, os meios de ferir o inimigo. Este é o chamado Direito de Haia, ou seja, o direito da guerra propriamente dito, que visa a regulamentação jurídica do emprego da violência no plano internacional, encontrando a maior parte das suas regras estabelecidas pelas Convenções de Haia de 1899 (revistas em 1907). Já o Direito Internacional Humanitário propriamente dito remonta às Convenções

 

 

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de Genebra (que ocorreram no período de 1864 a 1949). Tais convenções representam uma série de tratados internacionais que definem os direitos e deveres dos indivíduos, combatentes ou não, em tempo de guerra, no intuito de assegurar a observância de direitos fundamentais durante situações excepcionais de conflitos armados. Assim, pode-se concluir que o Direito Humanitário é responsável pela codificação das normas de proteção da pessoa humana em caso de conflito armado, cujo objetivo principal é proteger as vítimas de guerra, e se destina tanto à militares fora de combate (feridos, doentes, náufragos e prisioneiros de guerra) como à população civil. O Direito de Genebra é formado por quatro Convenções, sendo que cada uma delas identifica uma categoria de vítima à qual deve ser estendida proteção quando os Estados usassem da força como forma de resolução de controvérsias. A Primeira Convenção de Genebra, realizada em 1864 por iniciativa do Comitê Internacional da Cruz Vermelha – que acabara de ser fundado –, se dirige à proteção dos combatentes e estabeleceu o dever de respeito e cuidado aos militares feridos ou doentes, sem discriminação. Desde então, as ambulâncias e os hospitais situados em meio aos conflitos armados são protegidos de todo ato hostil e o trabalho da Cruz Vermelha passou a ser reconhecido no mundo inteiro. A Segunda Convenção, datada de 1906, elaborou as primeiras disposições visando adaptar à guerra marítima, os princípios da primeira Convenção. A Terceira Convenção de Genebra (1929), ao tratar das sanções penais e disciplinares aplicáveis aos prisioneiros de guerra, traz normas específicas de procedimento, que devem ser obedecidas pelos Estados, ainda que tais institutos procedimentais não estejam previstos em seus ordenamentos internos. Estabelece que o prisioneiro de guerra não deve ser tratado como criminoso, mas apenas como um inimigo incapaz de retomar sua participação no combate, que deve ser libertado ao fim das hostilidades e que deve ser respeitado e tratado humanamente enquanto estiver cativo. No mais, esta Convenção acabou por permitir ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) visitar todos os campos de prisioneiros de guerra sem nenhuma restrição. Por fim, a Quarta Convenção (1949), relativa à proteção dos civis em tempo de guerra, representa um importante progresso para o direito internacional escrito em matéria humanitária, pois garante o respeito à dignidade da pessoa humana inclusive nos

 

 

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momentos mais terríveis da guerra. Neste mesmo ano as demais Convenções de Genebra foram revistas e atualizadas com o objetivo de conferir certa uniformidade aos textos. Consoante o ensinamento de Flávia Piovesan, o Direito Humanitário foi a primeira expressão de que, no plano internacional, há limites à liberdade e à autonomia dos Estados, ainda que na hipótese de conflito armado3. Em seguida, a criação da Liga das Nações (que mais tarde viria a ser substituída pela atual Organização das Nações Unidas) veio reforçar essa concepção, apontando para a necessidade da relativização da soberania estatal, tendo como finalidade promover a cooperação entre os Estados, a paz e a segurança internacional. A instituição de um organismo internacional destinado à manutenção da paz – cujo propósito incluía a função de organizar e intermediar as relações amistosas entre os diversos Estados do globo, além de condenar agressões externas contra a integridade territorial e a independência política destes – já era há muito tempo defendida por juristas, filósofos e governantes. Entretanto, somente após o advento da I Guerra Mundial (1914-1918), que destruiu quase que por completo o continente europeu, é que tal proposta foi formalmente introduzida na Conferência de Paz de Paris (1919), que pôs fim à aludida Guerra. A ideia inicial dos países que venceram a I Guerra era de criar uma instância internacional na qual os países pudessem resolver as suas disputas por meio de negociações ao invés de iniciarem conflitos bélicos. Após a previsão da criação da Liga das Nações pelo Tratado de Versalhes (1919), cuja Carta foi nessa data assinada por 44 Estados, o seu Conselho reuniu-se pela primeira vez em 16 de janeiro de 1920, contando com a presença de representantes de 42 países, onde foi elaborada a Convenção da Liga das Nações (ou Sociedade das Nações). Esta continha previsões genéricas relativas aos direitos humanos, em especial aquelas que visavam proteger o direito das minorias e garantir parâmetros internacionais mínimos relacionados à exploração do trabalho. As normas contidas na referida Convenção representavam um limite à soberania absoluta dos Estados-nações que dela participaram na medida em que aquelas                                                                                                                 3

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11a ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 116.

 

 

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estabeleciam, pela primeira vez na história, sanções econômicas e militares contra os Estados que violassem suas obrigações. Assim, a noção de soberania estatal começou a se transformar e passou a incorporar em seu conceito a obrigatoriedade dos compromissos e obrigações de alcance internacional assumidos pelos Estados no que diz respeito à observância dos direitos humanos. É bem verdade, que a noção de proteção internacional dos direitos humanos não tinha ainda ganhado efetiva aceitação pela comunidade internacional como um todo, nem tinha sido tratada a fundo pela Convenção elaborada pela Liga das Nações, mas certas previsões genéricas a respeito do tema merecem especial atenção, como, por exemplo, a adoção de um sistema de mandatos e o desenvolvimento de uma sistemática internacional para a proteção das minorias, que destacava a necessidade de elaboração de tratados internacionais destinados especificamente à proteção das minorias que surgiram após o remapeamento geopolítico europeu, ocasionado pela formação de novos Estados constituídos por uma grande variedade de grupos étnicos, linguísticos e religiosos como consequência da Primeira Guerra Mundial. Por meio destes tratados, os Estados se comprometiam a não discriminar membros de grupos minoritários e a garantir-lhes direitos especiais necessários à preservação de sua integridade étnica, religiosa ou linguística. Além do dever de zelar pela manutenção da paz e de ser responsável pela intermediação e pela resolução pacífica de eventuais conflitos entre os Estados, a Liga das Nações passou a ser também a guardiã dos compromissos assumidos por estes nos tratados internacionais através da criação de um sistema de petições, que poderia ser acionado por membros de grupos minoritários caso estes tivessem seus direitos violados. Por derradeiro, ao lado do Direito Humanitário e da Liga das Nações, destaca-se a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que também contribuiu para o processo de internacionalização dos direitos humanos. Assim como a Liga das Nações, a OIT foi criada imediatamente após a I Guerra Mundial, em 1919, como parte do Tratado de Versalhes, com o intuito de promover padrões internacionais mínimos de bem-estar social, justiça e dignidade nas condições de trabalho para homens, mulheres e crianças, “fundando-se sobre a convicção primordial de que a paz universal e permanente

 

 

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somente pode estar baseada na justiça social”4. Como forma de regular a condição dos trabalhadores no âmbito mundial, a OIT é responsável pela formulação e aplicação de normas internacionais do trabalho, tendo adotado, ao longo do tempo, uma série de convenções sobre o tema. As primeiras delas respondiam às principais reivindicações do movimento sindical e operário no final do século XIX e no começo do século XX, entre elas: a limitação da jornada de trabalho, a proteção à maternidade, a luta contra o desemprego, a definição da idade mínima de 14 anos para o trabalho na indústria e a proibição do trabalho noturno de mulheres e menores de 18 anos. Com o surgimento da Organização das Nações Unidas (ONU), a OIT, em 1946, se transformou na sua primeira agência especializada. Pode-se concluir que estes três últimos institutos contribuíram de maneira decisiva, cada qual da sua maneira, para o processo de internacionalização dos direitos humanos, seja ao proteger os direitos fundamentais em situações de guerra, ao reconhecer como objetivos internacionais a manutenção da paz e a segurança internacional ou, ainda, ao fixar padrões mínimos para as condições de trabalho no plano internacional. De acordo com Flávia Piovesan5, o advento das mencionadas instituições: (...) registra o fim de uma época em que o Direito Internacional era, salvo raras exceções, confinado a regular relações entre Estados, no âmbito estritamente governamental. Por meio desses institutos, não mais se visava proteger arranjos e concessões recíprocas entre os Estados; visava-se, sim, o alcance de obrigações internacionais a serem garantidas ou implementadas coletivamente, que, por sua natureza, transcendiam os interesses exclusivos dos Estados contratantes. Essas obrigações internacionais voltavam-se à salvaguarda dos direitos do ser humano e não das prerrogativas dos Estados. Tais institutos rompem, assim, com o conceito tradicional que situava o Direito Internacional apenas como a lei da comunidade internacional dos Estados e que sustentava ser o Estado o único sujeito de Direito Internacional. Rompem ainda com a noção de soberania nacional absoluta, na medida em que admitem intervenções no plano nacional, em prol da proteção dos direitos humanos.

A ruptura do paradigma tradicional do Direito Internacional prenuncia o fim de uma era em que a forma pelo qual um Estado tratava seus nacionais era concebida como                                                                                                                 4

In OIT Brasil. Disponível em . Acesso em 28.08.2014. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11a ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 119/120. 5

 

 

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problema exclusivo de jurisdição doméstica e restrito ao seu domínio reservado. A partir desta perspectiva, quando o indivíduo passa a ser reconhecido, não apenas como objeto, mas também como sujeito de Direito Internacional e começa a se consolidar sua capacidade processual internacional, surge a concepção de que os direitos humanos não mais se limitam à exclusiva jurisdição doméstica dos Estados, mas constituem matéria de legítimo interesse de toda a comunidade internacional. Apesar disso, a verdadeira consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, em sua concepção mais contemporânea, é extremamente recente, tendo emergido somente em meados do séc. XX, como resposta às atrocidades cometidas durante a II Guerra Mundial (1939-1945).

1.2 – A II Guerra Mundial e o surgimento dos direitos humanos     Diversamente da I Guerra (que desenrolou-se na linha clássica pelas quais os Estados procuravam alcançar conquistas territoriais sem, contudo, escravizar ou aniquilar povos inimigos) a II Guerra Mundial foi deflagrada tendo como base projetos nacionais de subjugação de povos e raças considerados inferiores. A era de Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana, condicionando a titularidade de direitos à pertinência, ou não, do indivíduo a determinada raça, tendo como resultado o maior genocídio concebido como projeto político da história. A barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos por meio da completa negação do valor da pessoa humana. Diante das monstruosas violações de direitos humanos cometidas pelos regimes nazifascistas ao longo da II Guerra Mundial e, principalmente, diante da constatação de que tais violações poderiam ter sido prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse, com o fim da guerra mostrou-se de rigor a reconstrução da concepção dos direitos humanos como paradigma e referencial ético capaz de restaurar a ordem internacional, aproximando o direito da moral. Neste cenário surge a necessidade de uma ação internacional mais eficaz para a proteção dos direitos humanos, partindo-se do pressuposto de que esta não deve se reduzir ao âmbito reservado de um Estado e de que a soberania estatal não é um princípio  

 

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absoluto, devendo estar sujeita a certas limitações em prol dos direitos humanos. Surge também a consciência coletiva de que a sobrevivência da humanidade exige a colaboração de todos os povos e a reorganização das relações internacionais com base no respeito incondicional à dignidade humana. Nos dizeres de Flávia Piovesan6, (a concepção contemporânea dos direitos humanos) é fruto da internacionalização dos direitos humanos, que constitui um movimento extremamente recente na história, surgindo, a partir do Pós-Guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Apresentando o Estado como grande violador de direitos humanos, a era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana (...). Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução.

Com o advento da II Guerra Mundial ficou nítido que a Liga das Nações falhou em seu objetivo primeiro (promover a paz e a segurança internacional), na medida em que seus esforços não foram suficientes para impedir um segundo conflito bélico a nível mundial. Em 14 de agosto de 1941 o Presidente Roosevelt e o Primeiro Ministro Winston Churchill assinaram a chamada Carta do Atlântico, que estabelecia como objetivo comum aos dois países (Estados Unidos e Grã-Bretanha), durante a Guerra em curso, o respeito pelo direito de todos os povos de escolher a sua própria forma de governo e a promoção da colaboração mundial para a melhoria das condições de trabalho, para o progresso econômico e para previdência social, comprometendo-se ainda a estabelecer uma situação de paz após a queda da “tirania nazista”, onde todas as nações pudessem viver com segurança. Em 1o de janeiro de 1942, as vinte e seis potências mundiais que combatiam o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) proclamaram seus objetivos de guerra por meio da adoção da Declaração das Nações Unidas. Estes dois últimos documentos (a Carta do Atlântico e a Declaração das Nações Unidas) podem ser vistos como as ideias germinais do que, mais tarde, viria a ser a Organização da Nações Unidas7.                                                                                                                 6

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 43.

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Os países signatários da aludida Declaração foram nomeados “membros originários” da ONU após a

 

 

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Logo após o fim da II Grande Guerra, os Estados aliados celebraram um acordo internacional 8 por meio do qual foi instituído um Tribunal Militar Internacional, conhecido como Tribunal de Nuremberg (1945-1946), cuja competência era processar e julgar as pessoas (tanto os líderes do partido quanto os oficiais militares) responsáveis pela prática de crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. O Tribunal de Nuremberg, diante da ausência de qualquer tratado internacional que previsse tal possibilidade, aplicou fundamentalmente o costume internacional para condenar criminalmente os indivíduos responsáveis pela prática de crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade9. Isso porque, os costumes internacionais – enquanto evidência de uma prática geral, uniforme e consistente, que vem sempre acompanhada por um senso de obrigatoriedade legal – também são fontes do Direito Internacional, cuja eficácia erga omnes faz com que estes possam ser aplicados a todos os Estados, independentemente de qualquer anuência ou manifestação de vontade de sua parte, diversamente do que ocorre nos tratados internacionais, que só se aplicam aos Estados que os tenham ratificado. Verifica-se que, pela primeira vez na história, um Estado foi julgado no âmbito internacional pela prática de atos ocorridos dentro de seu território nacional, contra seus próprios nacionais. No mais, vale ressaltar que, por ter reconhecido a responsabilidade individual daqueles que contribuíram para a prática de crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, o Tribunal de Nuremberg reforçou a concepção de que os indivíduos têm direitos e deveres no plano internacional, e também podem ser responsabilizados internacionalmente nas hipóteses de prática de crimes de guerra e genocídio, o que representou considerável mudança em relação à lei costumeira e às convenções até então existentes, que se centravam apenas nos deveres dos Estados e nas sanções que poderiam ser impostas a estes.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           assinatura da Carta de fundação da organização. 8 Acordo de Londres de 1945. Por meio deste acordo os Governos do Reino Unido, dos Estados Unidos, da República Francesa e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas chegaram a um consenso acerca da convocação de um Tribunal Militar Internacional para o julgamento dos crimes de guerra cujas ofensas não tivessem uma particular localização geográfica. 9 Ainda que muita polêmica tenha surgido em razão da aplicação do costume internacional pelo Tribunal de Nuremberg diante do argumento de que este teria violado o princípio da legalidade do direito penal, tendo em vista que, ao tempo em que foram praticados, não havia qualquer previsão legal acerca da possibilidade de punição dos atos cometidos, seja pelo direito internacional como pelo direito interno.

 

 

 

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Este foi o primeiro dos passos mais decisivos para a internacionalização dos direitos humanos. Todos estes fatores somados impulsionaram o processo de internacionalização desses direitos, culminando na criação da sistemática normativa de proteção internacional que permite a responsabilização do Estado no âmbito internacional quando as suas instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de proteger os direitos humanos e de prevenir violações graves. Como mencionado anteriormente, somente com o fim da II Guerra Mundial a antiga Liga das Nações finalmente deu lugar a um novo organismo internacional – as Nações Unidas (ONU) – que marcou o surgimento de uma nova ordem internacional e instaurou um novo modelo de conduta nas relações internacionais. No mesmo ano em que fora convocado o Tribunal de Nuremberg, ao término da Conferência de São Francisco, em 26 de junho de 1945, a Carta das Nações Unidas foi assinada por 51 países. Fábio Konder Comparato 10 diferencia sucintamente as duas instituições da seguinte forma: A ONU difere da Sociedade das Nações, na mesma medida em que a Segunda Guerra Mundial se distingue da Primeira. Enquanto em 1919 a preocupação única era a criação de uma instância de arbitragem e regulação dos conflitos bélicos, em 1945 objetivou-se colocar a guerra definitivamente fora da lei. Por outro lado, o horror engendrado pelo surgimento dos Estados totalitários, verdadeiras máquinas de destruição de povos inteiros, suscitou em toda parte a consciência de que, sem o respeito aos direitos humanos, a convivência pacífica das nações tornava-se impossível. Por isso, enquanto a Sociedade das Nações não passava de um clube de Estados, com liberdade de ingresso e retirada conforme suas conveniências próprias, as Nações Unidas nasceram com a vocação de se tornarem a organização da sociedade política mundial, à qual deveriam pertencer portanto, necessariamente, todas as nações do globo empenhadas na defesa da dignidade humana.

Além da preocupação com a manutenção da paz e da segurança internacional, a ONU também possui outros objetivos, que incluem: adoção de ações relacionadas ao desenvolvimento das relações interestatais amistosas e da cooperação internacional no                                                                                                                 10

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8a ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 226.

 

 

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plano econômico, social, cultural e humanitário; a adoção de um padrão mínimo de saúde; a proteção do meio ambiente e a proteção internacional dos direitos humanos11. Pode-se afirmar, portanto, que a Carta das Nações Unidas consolidou o movimento de internacionalização dos direitos humanos vez que, diante do consenso dos Estados signatários em aderirem à organização, estes também concordaram automaticamente em promover esses direitos em âmbito internacional, como propósito e finalidade das Nações Unidas, motivo pelo qual, indubitavelmente, a violação de direitos humanos por qualquer Estado em relação aos seus nacionais passou a ser vista como uma problemática internacional, objeto do Direito Internacional. Conforme ensina Thomas Buergenthal12: A Carta das Nações Unidas ‘internacionalizou’ os direitos humanos. Ao aderir à Carta, que é um tratado multilateral, os Estados-partes reconhecem que os ‘direitos humanos’, a que ela faz menção, são objeto de legítima preocupação internacional e, nesta medida, não mais de sua exclusiva jurisdição doméstica.

Entretanto, embora a Carta tenha sido enfática ao determinar a importância da promoção e da defesa dos “direitos humanos” e das “liberdades fundamentais”13, ela não definiu, em momento algum, o conteúdo jurídico destas expressões, bem como foi silente quanto seu alcance e significado.

O elenco dos direitos humanos e liberdades

fundamentais a que faz menção a Carta das Nações Unidas só veio a ser definido com precisão mais tarde, pela Declaração Universal de Direitos Humanos, da qual trataremos adiante. É importante mencionar que, para que todos os objetivos desta nova organização fossem alcançados, a ONU precisou ser organizada em diversos órgãos. Os principais deles, previstos desde a criação da organização pelo art. 7o da Carta das Nações Unidas, são: a Assembleia Geral; o Conselho de Segurança; a Corte Internacional de Justiça; o Secretariado; o Conselho de Tutela e o Conselho Econômico e Social. No que se refere especificamente aos direitos humanos, cabe análise mais aprofundada em relação a um órgão específico da ONU – o Conselho Econômico e                                                                                                                 11

Os propósitos e princípios da ONU estão elencados nos arts. 1o e 2o da Carta das Nações Unidas. BUERGENTHAL, Thomas. International human rights. Minnesota: West Publishing, 1998, p. 2-3, apud PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11a ed. São Paulo: Saraiva. 13 Em especial em seus artigos: 1o (3); 13; 55; 56 e 62. 12

 

 

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Social –, cuja competência, além de promover a cooperação internacional em questões econômicas, sociais e culturais, também inclui a proteção dos direitos humanos (art. 62). Composto por cinquenta e quatro membros, cabe ao Conselho fazer recomendações destinadas a promover o respeito e a observância dos direitos humanos, bem como elaborar projetos de convenções internacionais a serem submetidos à aprovação da Assembleia Geral, podendo criar comissões necessárias ao desempenho de suas funções (art. 68). Nestes termos do art. 68 da Carta, em 1946, o Conselho Econômico e Social aprovou, por meio de duas Resoluções14, o estatuto da Comissão de Direitos Humanos, integrada por cinquenta e três membros governamentais, eleitos para mandato de três anos pelo próprio Conselho Econômico e Social. A Comissão de Direitos Humanos se reportava diretamente a este Conselho, devendo submeter a ele todas as propostas, recomendações e relatórios relativos às questões de direitos humanos. Para Antônio Augusto Cançado Trindade15, o processo de internacionalização da proteção dos direitos humanos pode ser dividido em duas etapas. A primeira delas, denominada “fase legislativa”, corresponde à elaboração dos tratados e convenções internacionais de proteção dos direitos humanos, que seria sucedida pela “fase real de implementação” dos direitos humanos, que hoje vivemos. Coube justamente à Comissão de Direitos Humanos o preparo e a redação dos mais importantes tratados e instrumentos internacionais de proteção global dos direitos humanos adotados pelos países ratificantes da Carta das Nações Unidas, incumbindo a ela a conclusão da fase legislativa do processo de internacionalização dos direitos humanos.

1.2.1

– A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948   O plano geral para que fosse completada a fase legislativa se consubstanciava na

elaboração de uma verdadeira “Carta Internacional de Direitos Humanos”, da qual a                                                                                                                 14

Resolução n. 5.1, de 16 de fevereiro e resolução 9.2, de 21 de junho. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado internacional dos direitos humanos. 2a ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, vol. I, p. 52. 15

 

 

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Declaração Universal dos Direitos Humanos seria apenas a primeira parte, a ser complementada posteriormente por uma Convenção (ou Convenções, posteriormente denominadas Pactos) e medidas de implementação efetivas. Deste modo, após uma série de discussões e decisões tomadas a partir da primeira sessão regular da Comissão de Direitos Humanos (1947-1948), em 18 de junho de 1948, foi concluído o projeto da Declaração Universal de Direitos Humanos, elaborada de acordo com o art. 55 da Carta das Nações Unidas, tendo sido aprovado pela Assembleia Geral em 10 de dezembro do mesmo ano. Quanto ao teor deste documento, é preciso ter em mente que, como já mencionamos anteriormente, a Declaração se prestava, primeiramente, a definir o significado e o alcance da expressão “direitos humanos e liberdades fundamentais” a que faz menção a Carta da ONU, por meio da codificação universal das obrigações impostas pela referida Carta (especialmente pelos arts. 55 e 56) aos Estados signatários. O propósito da Declaração era, portanto, como proclama seu preâmbulo, promover o reconhecimento universal dos direitos humanos, representando verdadeira “interpretação autorizada” daquela expressão constante da Carta da ONU. Outro ponto importante a ser destacado é o fato de os dispositivos constantes da Declaração consagrarem tanto as liberdades individuais clássicas, reconhecendo os direitos civis e políticos (arts. 3o a 21), como também os direitos econômicos, sociais e culturais (arts. 22 a 28). Pode-se afirmar que a Declaração introduz duas inovações de extrema importância em matéria de direitos humanos no plano internacional. Em primeiro lugar, ela reconheceu expressamente a universalidade como uma das características principais dos direitos humanos, segundo a qual tais direitos são aplicáveis a todas as pessoas, de todas as nacionalidades, raças, religiões, sexos e classes sociais, seja qual for o regime político dos territórios nos quais incide16. Além da universalidade dos direitos humanos, a Declaração também introduziu o caráter indivisível destes direitos, na medida em que equiparou, em igualdade de importância, os direitos civis e políticos (também conhecidos como direitos de primeira                                                                                                                 16

 

A respeito da universalidade dos direitos humanos cf. o item 4.1 deste trabalho.

 

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geração) e os direitos econômicos, sociais e culturais (direitos de segunda geração)17, afirmando a interrelacão, a indivisibilidade e interdependência de tais direitos, no intuito de colocar fim à dicotomia histórica que separava essas duas categorias18, combinando o discurso liberal e o discurso social da cidadania. Neste aspecto, em seu artigo I, a Declaração proclama os três princípios axiológicos fundamentais em matéria de direitos humanos: a liberdade, a igualdade e a fraternidade (também denominado princípio da solidariedade) – enunciando em seus três primeiros artigos os valores fundamentais destes princípios. Ao conjugar o valor da liberdade com o da igualdade, a Declaração introduz a concepção contemporânea dos direitos humanos na medida que lhes confere, como uma de suas características primordiais, a indivisibilidade, que preceitua que todos os direitos humanos constituem um complexo integral, único e indivisível, no qual as diferentes categorias (ou gerações) de direitos estão necessariamente inter-relacionados e são                                                                                                                 17

Vale sublinhar que alguns doutrinadores contemporâneos não concordam com a utilização de tal nomenclatura, que, supostamente, separa os direitos humanos em categorias ou “gerações”. Na análise de Antônio Augusto Cançado Trindade, as chamadas ‘gerações de direitos’ representam uma noção simplista, histórica e juridicamente infundada: “corresponde a uma visão atomizada ou fragmentada desses últimos (direitos) no tempo. (...) Distintamente do que a infeliz invocação da imagem analógica da ‘sucessão geracional’ parecia supor, os direitos humanos não se ‘sucedem’ ou ‘substituem’ uns aos outros, mas antes se expandem, se acumulam e fortalecem, interagindo os direitos individuais e sociais, tendo estes últimos inclusive precedido os primeiros no plano internacional, a exemplo das primeiras convenções internacionais do trabalho. O que testemunhamos é o fenômeno não de uma sucessão, mas antes da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados, a revelar a natureza complementar de todos os direitos humanos.” (Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, v. I, p. 43). Esclarecemos que a utilização dessa nomenclatura no presente trabalho não pretende refutar ou negar vigência ao caráter da indivisibilidade que permeia os direitos humanos, mas tão somente facilitar a compreensão do leitor ao distinguir quais espécies de direitos humanos estamos tratando em cada momento. 18 Breve perspectiva histórica da dicotomia entre o direito à liberdade e o direito à igualdade: até o final do século XVIII, as Declarações de Direitos (dentre elas as Declaração Americana de 1776 e a Declaração Francesa de 1789) consagravam a ótica contratualista liberal, segundo a qual os direitos humanos limitavam-se aos direitos à liberdade, à segurança e à propriedade, complementados pela resistência à opressão. Nesse momento histórico, em meio ao regime absolutista, os direitos humanos surgem como reação e resposta aos excessos deste regime, na tentativa de impor limites à atuação extremamente abusiva e arbitrária do Estado, pautando-a na legalidade e no respeito aos direitos fundamentais. A não atuação do Estado significava, portanto, liberdade, com a supremacia dos direitos civis e políticos e ausência de qualquer previsão dos direitos econômicos, sociais e culturais (vez que a efetivação desses direitos dependem da intervenção do Estado, o que ia contra a emergência do modelo do Estado Liberal). Somente após a I Guerra Mundial começa a surgir, ao lado do discurso liberal da cidadania, o discurso social, que deu início à transição entre o primado da liberdade e o primado do valor da igualdade. O Estado, que antes deveria apenas se abster, passa a ser visto como agente de processos transformadores da sociedade com a emergência dos direitos à prestação social. A partir do início do século XX, nasce o verdadeiro direito à atuação estatal positiva, que exige a intervenção estatal nos Estados Democráticos de Direito para a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais.

 

 

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interdependentes. Em virtude dessa unidade interdependente e indivisível, não há mais como cogitar uma categoria de direitos divorciada da outra. A garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais, e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Pode-se afirmar, portanto, que sem a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos revelam-se esvaziados e se reduzem a meras categorias formais, enquanto que, se estes últimos não se realizam (ou seja, sem a efetividade da liberdade em seu sentido mais amplo), os primeiros também não poderão ser assegurados. Nas palavras de Fabio Konder Comparato19: (...) a liberdade individual é ilusória sem um mínimo de igualdade social; e a igualdade social imposta com sacrifício dos direitos civis e políticos acaba engendrando, mui rapidamente, novos privilégios econômicos e sociais. É o princípio da solidariedade que constitui o fecho de abóbada de todo o sistema de direitos humanos.

Atualmente, a tese da interrelacão ou indivisibilidade dos direitos humanos encontra-se consagrada. Se eventuais dúvidas existiam quanto ao caráter indivisível dos direitos humanos, a Resolução no 32/130 de 1977 da Assembleia Geral das Nações Unidas (endossada pelas subsequentes resoluções 39/145 de 1984 e 41/117 de 1986), veio estabelecer que: “Todos os direitos humanos, qualquer que seja o tipo a que pertencem, se inter-relacionam necessariamente entre si, e são indivisíveis e interdependentes”. Nos ensinamentos de Flávia Piovesan20: Seja por fixar a ideia de que os direitos humanos são universais, decorrentes da dignidade humana e não derivados das peculiaridades sociais e culturais de determinada sociedade, seja por incluir em seu elenco não só direitos civis e políticos, mas também sociais, econômicos e culturais, a Declaração de 1948 demarca a concepção contemporânea dos direitos humanos.

                                                                                                                19

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8a ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 350. 20 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11a ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 148.

 

 

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No mais, vale lembrar que a Declaração de Viena, adotada em 1993, buscou pôr fim a este debate, tanto em relação à universalidade quanto em relação à indivisibilidade dos direitos humanos, quando estabeleceu em seu art. 5o: Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente, de maneira justa e equânime, com os mesmos parâmetros e com a mesma ênfase. As particularidades nacionais e regionais e bases históricas, culturais e religiosas devem ser consideradas, mas é obrigação dos Estados, independentemente de seu sistema político, econômico e cultural, promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.

Nas palavras de Antônio Augusto Cançado Trindade21, hoje essa tese “desfruta de aceitação virtualmente universal, e constitui, no plano doutrinário, um dos pilares do Direito Internacional dos Direitos Humanos”. Após analisarmos o conteúdo jurídico deste documento, devemos delimitar qual o seu valor jurídico, questão que foi e continua sendo centro de grande debate entre os doutrinadores contemporâneos. Devemos ter em mente desde o princípio que a Declaração Universal de 1948 não é um tratado, tampouco um acordo internacional. Como já explicamos, ela foi adotada pela Assembleia Geral da ONU sob a forma de resolução. Assim, tecnicamente, a Declaração é uma recomendação, nos termos do art. 10 da Carta das Nações Unidas22, motivo pelo qual, em tese, não possuiria força jurídica vinculante. Foi por essa razão, aliás, que a Comissão de Direitos Humanos concebeu-a, originalmente, como uma etapa preliminar à adoção ulterior dos tratados internacionais sobre direitos humanos. A nosso ver, porém, esse entendimento peca por excesso de formalismo. Atualmente, boa parte da doutrina que se dedica ao estudo do tema reconhece a obrigatoriedade e o caráter vinculante da Declaração Universal de Direitos Humanos, ainda que tomem por fundamento argumentos distintos. Por outro lado, parte mais                                                                                                                 21

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado internacional dos direitos humanos. 2a ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, vol. I, p. 84. 22 Art. 10 da Carta das Nações Unidas – “A Assembleia Geral poderá discutir quaisquer questões ou assuntos que estiverem dentro das finalidades da presente Carta ou que se relacionem com as atribuições e funções de qualquer dos Órgãos nela previstos e, com exceção do estipulado no art. 12, poderá fazer recomendações aos membros das Nações Unidas ou ao Conselho de Segurança, ou a este e àqueles, conjuntamente, com referência a qualquer daquelas questões ou assuntos”.

 

 

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conservadora da doutrina contesta tal possibilidade, não atribuindo às cláusulas da Declaração senão o valor de recomendação. É certo que de há muito se reconhece que, a par dos tratados e convenções, o direito internacional é também constituído pelos costumes e princípios gerais de direito23. Para a maioria dos estudiosos do assunto, a força vinculante da Declaração Universal de 1948 advém da sua conversão gradativa em norma consuetudinária de Direito Internacional. Antônio Augusto Cançado Trindade, por exemplo, se filia à corrente doutrinária que adota o entendimento de que alguns dos princípios elencados pela Declaração, desde a sua adoção, já se afiguravam como parte do direito internacional consuetudinário, ou como expressão dos princípios gerais do direito, na medida em que este documento veio simbolizar o que a comunidade internacional entendia por “direitos humanos”, fortalecendo a convicção de que todos os Estados têm a obrigação de assegurar o exercício destes direitos proclamados pela Declaração Universal. Ao definir os ideais comuns de todos os povos (standard of achievement), a Declaração reconheceu, como conjunto de valores e preceitos básicos para a instituição de um padrão mínimo de proteção dos direitos humanos consubstanciado em um conjunto de normas jurídicas, um núcleo básico de direitos inderrogáveis, a serem gradualmente ampliados. Esta espécie de acordo global de princípios quanto a certos direitos básicos é denominado pela doutrina de jus cogens do Direito Internacional contemporâneo, isto é, normas peremptórias e imperativas do direito internacional geral, cuja observância é obrigatória e em relação às quais não se permite derrogação alguma, que somente podem ser modificadas ou anuladas por outra norma superveniente de direito internacional geral24.

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Como, inclusive, declara o Estatuto da Corte Internacional de Justiça, em seu art. 38. Os arts. 53 e 64 da Convenção de Viena de 1993 estabelecem que todo tratado incompatível com uma regra de jus cogens é nulo e que a superveniência de uma norma de jus cogens tem o condão de anular os tratados existentes e com ela incompatíveis. O caráter proibitivo do jus cogens é no sentido de interdizer toda derrogação às suas disposições. Ele se reveste com um caráter de excepcionalidade, pois introduz uma limitação à liberdade contratual dos Estados. Uma das características fundamentais das normas de jus cogens é o fato delas cominarem de nulidade toda norma derrogatória, pois a sanção de nulidade que pode incidir sobre os atos jurídicos é de extrema raridade no direito internacional, o que demonstra a importância fundamental para a sociedade internacional das normas de jus cogens. 24

 

 

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De acordo com João Grandino Rodas25: O fato de o jus cogens ser constituído exclusivamente por normas de direito internacional geral realça seu caráter universal. O jus cogens exprime valores éticos, que só podem impor com força imperativa se forem absolutos e universais. Uma norma de jus cogens pode ser modificada por outra de mesma natureza, pois ele evolui em função das transformações da situação sócio-histórica da sociedade internacional e das modificações das concepções políticas, éticas, filosóficas e ideológicas.

Nessa ótica, os dispositivos da Declaração – originalmente concebida de modo a não conter obrigações internacionais – consensualmente aceitos assumem o valor de direito internacional costumeiro, aplicando-se a todos os Estados e não apenas aos signatários, motivo pelo qual estes apresentam forca jurídica vinculante26. Nas palavras do próprio Antônio Augusto Cançado Trindade, quanto às disposições trazidas pela Declaração Universal, “tratava-se de claras indicações de um novo ethos, da fixação de parâmetros de conduta em torno de valores básicos universais, a serem observados e seguidos por todos os Estados e povos, tendo presente a nova dimensão dos direitos humanos, a permear todas as áreas da atividade humana”.27 Flávia Piovesan, por sua vez, apesar de reconhecer a importância do argumento anteriormente apresentado (- de que a Declaração teria forca jurídica vinculante por integrar o direito costumeiro internacional e/ou os princípios gerais de direito -), sustenta que a Declaração possui força jurídica vinculante justamente por ter sido concebida como a interpretação autorizada da expressão ‘direitos humanos’ constante da Carta das Nações Unidas, o que os torna documentos inter-relacionados. Explica ela que o art. 55 da Carta da ONU determina o dever das Nações Unidas em promover o respeito e a observância universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e o art. 56                                                                                                                 25

In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1974, v. 69, no 2. Disponível em < http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66736>. Acesso em 02.09.2014. 26 Importante diferenciar o costume internacional das normas de jus cogens. O costume é expressão de uma regra jurídica válida com relação à sociedade onde se formou; pode tratar-se de obrigação cujo afastamento seja admitido nas relações mútuas entre os Estados. Nesse caso, estamos diante de um jus dispositivum. Quando, entretanto, existe convicção de que a norma consuetudinária não pode ser afastada por acordo particular, sendo toda convenção em contrário nula, trata-se de jus cogens. Esta somente pode ser criada por via consuetudinária ou por convenção multilateral. 27 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado internacional dos direitos humanos. 2a ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, vol. I, p. 82.

 

 

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adiciona que todos os membros se comprometem a intentar ações conjuntas ou separadas para o alcance dos propósitos enunciados no artigo anterior. Contudo, como a Carta da ONU nunca definiu ou catalogou os ‘direitos humanos e liberdades fundamentais’ que os Estados membros se comprometeram a respeitar e a que se refere em seus arts. 1o (3) e 55, a Declaração Universal, ao defini-los, passa a ser concebida como verdadeira extensão da própria Carta das Nações Unidas. Deste modo, por ser um texto interpretativo da Carta, a Declaração participaria da sua natureza e força jurídica, isto é, seria vinculante para os Estados membros que aderiram à Carta livremente. Por este motivo, os próprios órgãos das Nações Unidas têm não raro utilizado a Declaração como fonte de interpretação dos dispositivos sobre direitos humanos da Carta da ONU. Tais dispositivos obrigatórios da Carta, interpretados e definidos pela Declaração Universal têm retido sua importância particularmente em relação aos Estados membros que ainda não ratificaram ou aderiram às convenções das Nações Unidas sobre direitos humanos (das quais falaremos adiante). Assim, independentemente das posições individuais dos Estados membros da ONU em relação a tais convenções, os instrumentos tecnicamente não-mandatórios (como as diversas resoluções da organização e a própria Declaração Universal) têm igualmente exercido efeitos jurídicos sobre todos os Estados membros da Organização. Com a gradual entrada em vigor, nos últimos anos, de múltiplas e sucessivas convenções sobre direitos humanos, as resoluções sobre a matéria, embora não tenham status de norma vinculante por serem tecnicamente declaratórias, não perderam seu valor jurídico nem diminuíram em importância, considerando que ainda há Estados que não ratificaram, até o presente, aquelas convenções. Para estes Estados, em especial, as resoluções declaratórias têm retido seu valor pleno em termos práticos, em interação com os dispositivos pertinentes sobre direitos humanos constantes dos instrumentos constitutivos das organizações internacionais de que são membros, dentro das quais foram adotados tais dispositivos, fortalecendo assim as obrigações previstas nas referidas cartas constitutivas, como ocorre, por exemplo, com a Declaração Universal de Direitos Humanos em relação à Carta das Nações Unidas. Por outro lado, mesmo para os Estados que efetivamente ratificaram ou aderiram às convenções sobre direitos humanos, as resoluções declaratórias sobre a matéria têm

 

 

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igualmente mantido seu valor jurídico na medida em que podem consagrar um ou outro direito que não consta daquelas convenções. Fábio Konder Comparato28, por sua vez, afirma que, hoje em dia, a vigência dos direitos humanos independe de sua declaração nas constituições, leis ou tratados internacionais, exatamente porque se está diante da exigência de respeito à dignidade humana. Ele defende a ideia de que a existência dos direitos humanos e a obrigatoriedade dos Estados em respeitá-los se dá única e exclusivamente em virtude do princípio da dignidade ser condição inerente a todo ser humano, não sendo necessário o reconhecimento formal ou a positivação destes direitos para que estes tenham força jurídica vinculante no plano internacional. Aduz, ainda, que os direitos elencados pela Declaração Universal correspondem integralmente ao que o costume e os princípios jurídicos internacionais reconhecem como normas imperativas de direito internacional geral, cuja observância é imperativa para toda a comunidade internacional. Fato é que, qualquer que seja a posição defendida e independente das divergências entre as correntes doutrinárias ora esposadas, o que se verifica na prática é a invocação generalizada da Declaração Universal de 1948 como regra dotada de jus cogens, invocação esta que não tem sido contestada sequer pelos Estados mais acusados de violarem seus dispositivos. Assim, apesar das extensas discussões doutrinárias acerca do tema, não se pode negar que a Declaração Universal foi de suma importância para a conceituação jurídica contemporânea dos direitos humanos na medida em que contribui significativamente, especialmente nos seguintes aspectos: (i) as previsões da Declaração atinentes aos direitos humanos foram sendo incorporadas por quase todas as Constituições e legislações nacionais, sendo invocadas não só no âmbito do Direito Internacional, mas também no âmbito do direito interno; (ii) ela abriu caminho para a adoção de outros tratados e convenções sobre a matéria, multiplicando tanto a elaboração de tratados internacionais “gerais” de direitos humanos (como os dois Pactos das Nações Unidas e as três Convenções regionais – Europeia, Americana e Africana), quanto “especializados”                                                                                                                 28

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8a ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

 

 

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(voltados a setores ou aspectos especiais da proteção de direitos humanos, como a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979), afigurando-se como verdadeira fonte de inspiração e ponto de irradiação e convergência dos instrumentos sobre direitos humanos em níveis tanto global quanto regional; (iii) os governos de diversos Estados soberanos assim como a Assembleia Geral da ONU têm invocado a Declaração para justificar algumas posições adotadas no âmbito internacional, fazendo com que referências expressas à Declaração passassem a figurar em numerosas resoluções da ONU, em tratados multilaterais e bilaterais e na jurisprudência dos tribunais nacionais e internacionais29.

1.2.2  

– Os Pactos internacionais de direitos humanos das Nações Unidas

Apesar de hoje ser mundialmente reconhecida a obrigatoriedade ao respeito aos direitos elencados pela Declaração Universal, logo após a sua adoção ainda havia grande resistência dos Estados-nações em aceitar tal conjuntura, motivo pelo qual instaurou-se larga discussão sobre qual seria a maneira mais eficaz de assegurar o reconhecimento e a observância universal dos direitos nela previstos. Objetivando evitar qualquer espécie de recusa em observar e respeitar os direitos elencados pela Declaração por parte dos Estados que, por ventura, se utilizassem do argumento defendido pela corrente estritamente positivista de que tal documento não apresentaria força jurídica obrigatória e vinculante, e visando atestar o reconhecimento universal destes direitos humanos e liberdades fundamentais, prevaleceu o entendimento de que a Declaração deveria ser “juridicizada” sob a forma de tratado internacional. Este deveria desenvolver pormenorizadamente o conteúdo da Declaração Universal, sendo juridicamente obrigatório e vinculante no âmbito do Direito Internacional para os Estados que lhe ratificassem ou aderissem. Esse processo de “juridicização” começou a se desenvolver em 1947, com os trabalhos preparatórios (travaux préparatoires) do referido tratado internacional, e se                                                                                                                 29

A própria Corte Internacional de Justiça tomou conhecimento judicial da Declaração Universal e, no julgamento do caso “pessoal diplomático e consular dos Estados Unidos em Teerã” em 1980, referiu-se expressamente à Declaração em combinação com os princípios da Carta das Nações Unidas.

 

 

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prolongou pelos dezenove anos seguintes. A ideia inicial era elaborar uma única Convenção, porém, em 1951, a Assembleia Geral proclamou a importante decisão de proceder à elaboração de duas convenções ao invés de uma (que viriam a ser denominadas como Pactos), sendo uma delas voltada exclusivamente aos direitos civis e políticos e a outra aos direitos econômicos, sociais e culturais30. Apesar da diversidade de pontos de vista dos Estados envolvidos, a Comissão de Direitos Humanos conseguiu cumprir a difícil tarefa de concluir o projeto dos dois Pactos em uma época caracterizada pelos conflitos ideológicos gerados pela guerra fria e também marcada pelo forte processo de descolonização, cujos impactos se podiam fazer sentir em seus trabalhos. Em 1954 a Comissão de Direitos Humanos concluiu o projeto de ambos os Pactos e, desde este momento até a data de sua adoção, em 1966, os trabalhos foram desenvolvidos pela própria Assembleia Geral. Pela resolução 2200 A (XXI) de 1966, a Assembleia Geral finalmente adotou e abriu à assinatura e ratificação ou adesão o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Pacto de Direitos Civis e Políticos31, e o Primeiro Protocolo Facultativo deste último32. O núcleo original dos direitos declarados no Pacto sobre Direitos Civis e Políticos                                                                                                                 30

Vale destacar que tal decisão da Assembleia Geral foi resultado de um compromisso diplomático. As potências ocidentais insistiam no reconhecimento tão só das liberdades individuais clássicas, que apenas protegiam os indivíduos contra os abusos e interferências dos órgãos estatais na vida privada. Já os países do bloco comunista e os jovens países africanos preferiam dar destaque aos direitos sociais e econômicos, que têm como objetivo principal o favorecimento de políticas públicas de apoio aos grupos e classes sociais desfavorecidas, deixando de lado as liberdades individuais. Um dos maiores argumentos levantados pelos países ocidentais em defesa da elaboração de dois pactos distintos centrou-se na afirmação de que as duas categorias de direitos contavam com processos de implementação distintos. Isto é, alegou-se que enquanto os direitos civis e políticos eram autoaplicáveis e passíveis de cobrança imediata, os direitos sociais, econômicos e culturais eram “programáticos” e demandavam realização progressiva, motivo pelo qual a exigência de diferentes procedimentos de implementação justificaria a formulação de dois tratados diversos. Por estes motivos, decidiu-se separar essas duas “categorias” de direitos em tratados distintos. Os redatores dos Pactos, entretanto, estavam bem conscientes de que o conjunto dos direitos humanos forma um sistema indivisível e interdependente, e decidiram por redigir um preâmbulo idêntico para ambos os Pactos. 31 O primeiro deles entrou em vigor em 03 de janeiro de 1976, e o segundo em 23 de março do mesmo ano. 32 O Protocolo Facultativo atribuiu ao Comitê de Direitos Humanos (instituído por aquele Pacto) competência para receber e processar denúncias de violações de direitos humanos formuladas por indivíduos contra qualquer dos Estados-partes. A atuação do Comitê restringe-se aos direitos civis e políticos e este não possui poderes para formular qualquer juízo de condenação do Estado responsável pela violação de direitos. Além disso, sua competência para receber e processar as denúncias depende de reconhecimento expresso do Estado apontado como violador dos direitos humanos.

 

 

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constitui historicamente um meio de defesa dos indivíduos ou de grupos sociais contra os privilégios privados e o abuso de poder estatal. Tratava-se de verdadeira defesa contra a oligarquia política. Originalmente, para a fruição das liberdades civis, o que se exigia era a abstenção estatal, tendo em vista que as violações de direitos, neste campo, ocorriam por interferências abusivas do Poder Público na vida privada e no exercício dos direitos políticos. O Pacto de Direitos Civis e Políticos proclama, em seus primeiros artigos, o dever dos Estados-partes de assegurar os direitos nele elencados a todos os indivíduos que estejam sob sua jurisdição, adotando todas as medidas necessárias para esse fim. Isto é, a obrigação do Estado inclui, além do dever de se abster de cometer violações aos direitos previstos pelo Pacto, também o dever de proteger os indivíduos contra as violações de seus direitos perpetradas por entes privados, cabendo ao Estado estabelecer um sistema legal capaz de responder com eficácia às violações de direitos civis e políticos. São, portanto, obrigações tanto de natureza negativa (p.ex. abstenção do Estado em torturar), como positiva (p.ex. prover o referido sistema legal capaz de prevenir e punir violações perpetradas por particulares). O Pacto não só incorpora os dispositivos da Declaração com maior detalhamento como também abriga novos direitos e garantias não contemplados por aquela. Já em relação ao conjunto de direitos estampados pelo Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o elemento comum entre eles representa a proteção das classes ou grupos sociais desfavorecidos contra a dominação socioeconômica exercida por uma minoria poderosa e abastada. Trata-se, pois, da luta contra a dominação de classe. Relativamente a estes direitos, ao contrário do que se verifica com os direitos civis e políticos, a antijuridicidade consiste justamente na inércia estatal, na negligência ou na recusa dos órgãos públicos em limitar ou controlar o poder econômico privado. Deste modo, as disposições adotadas pelo Pacto que se referem aos direitos coletivos têm por objetivo fomentar políticas públicas coordenadas a fim de elevar o nível e a qualidade de vida da população carente, através da criação de medidas governamentais no campo do trabalho, da saúde, da educação, da previdência social e da habitação popular. Tais objetivos são interdependentes, de sorte que a não realização de um deles compromete a

 

 

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realização de todos os outros. O Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ao invés de estabelecer direitos endereçados aos indivíduos, estabelece deveres endereçados aos Estados, que devem ser cumpridos sem escusa ou demora. E é justamente por serem direitos que estão condicionados unicamente à atuação do Estado, que se defende que os direitos sociais, econômicos e culturais, da maneira como foram concebidos pelo Pacto, apresentam realização progressiva, na medida em que os Estados se obrigam a adotar medidas “até o máximo dos recursos disponíveis” a fim de alcançarem progressivamente a plena realização desses direitos. Apesar das diferenças apontadas entre eles, não há como negar que ambos os pactos criam obrigações legais aos Estados-partes, ensejando responsabilização internacional em caso de violação dos direitos que enunciam. Com os referidos tratados internacionais finalmente em vigor, concretizou-se o que se denomina por Carta Internacional dos Direitos Humanos (International Bill of Rights) – integrada pela Declaração Universal de 1948 e pelos dois pactos internacionais de 1966 – marcando o final da chamada “fase legislativa” do processo de internacionalização da proteção dos direitos humanos. Com isso, cada vez mais, acelerou-se o processo de generalização da proteção internacional dos direitos humanos, passando gradualmente da fase legislativa à fase de efetiva implementação destes instrumentos internacionais de proteção da pessoa humana. Diante da necessidade de implementação dos direitos previstos por estes instrumentos

jurídicos,

surgiu

uma

verdadeira

sistemática

internacional

de

monitoramento e controle, correspondente ao chamado “sistema global de proteção internacional dos direitos humanos”, o que representou o primeiro passo para a consolidação da estrutura normativa contemporânea do Direito Internacional dos Direitos Humanos. A Carta inaugura, assim, o sistema global de proteção dos direitos humanos no âmbito “geral”, que viria a ser ampliado com o advento de diversos tratados multilaterais “especiais” sobre a matéria, pertinentes a determinadas e específicas violações de direitos

 

 

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humanos33. Diz-se sistema global de proteção pois todos estes tratados, tantos os gerais quanto os especiais, foram produzidos no âmbito das Nações Unidas, que, por sua vez, é a organização que representa praticamente a totalidade dos Estados existentes na comunidade internacional. Em complementação ao sistema global surgiram os “sistemas regionais de proteção dos direitos humanos”, que buscaram internacionalizar estes direitos no plano regional, particularmente na Europa, na América e na África. Devido à aproximação geográfica e, até certo ponto, à proximidade cultural dos Estados situados na mesma região, os tratados adotados no âmbito dos sistemas regionais resultam em uma aceitação mais espontânea e generalizada pelos Estados. A respeito das vantagens dos sistemas regionais, Rhona K. M. Smith destaca que, na medida em que um número menor de Estados está envolvido, o consenso político se torna mais facilitado, seja com relação aos textos convencionais, seja quanto aos mecanismos de monitoramento34. Vale ressaltar que os sistemas global e regional não são, de maneira alguma, antagônicos, mas, ao contrário, são complementares, cabendo ao indivíduo que sofreu a violação de direito escolher o aparato que lhe é mais favorável, tendo em vista que, por vezes, direitos idênticos podem ser tutelados por dois ou mais instrumentos de alcance diverso. Neste aspecto, ao observar que as três Convenções regionais gerais sobre direitos humanos também contêm referências expressas em seus preâmbulos à Declaração Universal de 1948, Antônio Augusto Cançado Trindade35 assevera:                                                                                                                 33 Atualmente, os instrumentos de proteção geral abarcam, além da Declaração Universal de Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Segundo Protocolo Facultativo contra a Pena de Morte e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Os instrumentos de proteção especial abrangem: a Convenção Internacional para a Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio; a Convenção Internacional contra a Tortura; a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial; a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção sobre os Direitos da Criança, dentre outras. 34 SMITH, Rhona K. M. Textbook on international human rights. Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 84, apud, PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11a ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 250. 35 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado internacional dos direitos humanos. 2a ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, vol. I, p. 65/66.  

 

 

33 Esse fenômeno vem sugerir que os instrumentos globais e regionais sobre direitos humanos, inspirados e derivados de fonte comum, se complementam, desviando o foco de atenção ou ênfase da questão clássica da estrita delimitação de competências para a da garantia de uma proteção cada vez mais eficaz dos direitos humanos. Sob esta ótica, ficam descartadas quaisquer pretensões ou insinuações de supostos antagonismos entre soluções globais ou regionais, porquanto a multiplicação de instrumentos – globais e regionais, gerais ou especializados – sobre direitos humanos teve o propósito e a consequência de ampliar o âmbito da proteção devida às supostas vítimas.

Pois bem. Após analisarmos o percurso histórico em torno das suas raízes, podemos concluir que a formulação jurídica da noção de direitos humanos, no plano internacional, tal e como se pensam na atualidade, é historicamente recente, tendo sido objeto de debate ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII. De fato, não há como negar que todos os documentos políticos e jurídicos mencionados anteriormente representam marcos importantes no “processo de generalização da proteção internacional dos direitos humanos”. Porém, a concepção contemporânea dos direitos humanos e o seu reconhecimento amplo, no plano internacional, é fato recente, que se formula somente nas últimas décadas do séc. XX, especialmente a partir da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que fora influenciada pela experiência das duas guerras mundiais e principalmente pelas atrocidades cometidas pelo nazismo, que contribuíram de modo decisivo para a formulação de um direito de proteção das gentes tal como o concebemos atualmente. Passaremos, no próximo capítulo, à analise mais detalhada a respeito da atual concepção dos direitos humanos e, mais especificamente, acerca da estrutura normativa do sistema internacional de proteção dos direitos humanos das mulheres. Posteriormente, desvendaremos de que maneira a prática da mutilação genital feminina viola esses direitos.

 

 

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Capítulo II – A concepção atual dos direitos humanos e a proteção internacional dos direitos humanos das mulheres No capítulo anterior demonstramos como que, a partir da Declaração Universal de 1948, começou a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção dos direitos fundamentais, formando o sistema global de proteção dos direitos humanos no âmbito das Nações Unidas. Discorremos acerca dos instrumentos de alcance geral que compõem este sistema (sendo eles, a Declaração Universal de 1948 e os dois Pactos e Direitos Humanos de 1966), e mencionamos que este também é composto por instrumentos de alcance específico, como as convenções internacionais que buscam responder a determinadas violações específicas de direitos humanos, como é o caso da discriminação contra as mulheres. Enquanto o sistema geral de proteção tem por endereçado toda e qualquer pessoa, concebida em sua abstração e generalidade, o sistema especial de proteção realça o chamado “processo de especificação do sujeito de direito”, por meio do qual alguns indivíduos passam a ser vistos em sua especialidade e concreticidade. Firma-se, assim, no âmbito do sistema global, a coexistência dos sistemas geral e especial de proteção dos direitos humanos. Sob esta perspectiva, as mulheres devem ser vistas dentro das particularidades de sua condição social, fazendo com que o respeito à diferença e à diversidade lhes assegurem um tratamento especial. Pode se afirmar, portanto, que no âmbito do sistema das Nações Unidas existem dois mecanismos fundamentais que se ocupam, cada um a seu modo, do controle, da promoção e da proteção dos direitos das mulheres: os mecanismos de caráter generalista, que se ocupam da problemática dos direitos humanos em geral e, logo, também dos direitos das mulheres, bem como os mecanismos especializados neste domínio. Dentre os primeiros, podemos destacar os seguintes: a Assembleia Geral, a Comissão dos Direitos do Homem (CDH) e sua Sub-Comissão para a Prevenção da

 

 

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Discriminação e Proteção das Minorias e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). Dentre os segundos se incluem: a Comissão sobre o Estatuto da Mulher (CSW), o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), a Divisão para o Progresso das Mulheres (DAW), o Fundo das Nações Unidas para o Desenvolvimento das Mulheres (UNIFEM) e o Instituto Internacional das Nações Unidas para a Investigação e Formação em prol do Progresso das Mulheres (INSTRAW). Neste capítulo trataremos, primeiramente, da evolução do princípio da igualdade e do processo de especificação do sujeito de direito que ensejou a elaboração dos instrumentos específicos de proteção dos direitos humanos. Analisaremos, ainda, o atual sistema normativo internacional de proteção dos direitos humanos das mulheres, destacando os principais instrumentos internacionais e os órgãos das Nações Unidas direcionados especificamente à mulher, analisando a forma como se encontra positivada a proibição da discriminação contra a mulher e as violações de direitos humanos que têm por fundamento a diversidade de gênero, procurando demonstrar de que maneira é possível alcançar um patamar de igualdade material entre homens e mulheres.

2.1 – A evolução da concepção do princípio da igualdade à luz do direito à diferença e o processo de especificação do sujeito de direito Demonstramos no capítulo anterior que os direitos humanos surgiram como reação e resposta aos excessos do regime absolutista, na tentativa de impor controle e limites à atuação abusiva do Estado. Com a emergência do Estado Liberal surgiu a ideia de que a ausência de atuação estatal significava liberdade, sendo estritamente necessária a limitação do poder estatal, que deveria pautar-se pela legalidade e pelo respeito aos direitos fundamentais. Neste cenário surgiu a concepção formal de igualdade, como um dos elementos a demarcar o Estado de Direito Liberal. Buscou-se concretizar, num primeiro momento, a vertente da igualdade formal (ou de jure), que se reduz à fórmula de que “todos são iguais perante a lei”, consolidando a igualdade jurídica de todos os homens, não sendo mais admitidas distinções legais para

 

 

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garantir privilégios a determinadas categorias de indivíduos ou para suprimir direitos de certos grupos e minorias. Em outras palavras, buscou-se garantir tratamento igualitário a todos os indivíduos, no sentido de que a lei se faça igual para todos, isto é, sem aferições sobre qualidades ou atributos específicos dos destinatários da norma, como forma de garantir os direitos fundamentais inerentes ao Estado de Direito. A igualdade formal tem, portanto, como característica principal, a abstenção estatal, baseada numa concepção estática do conceito de igualdade. Firma-se a igualdade jurídico-formal no plano político, de caráter puramente negativo, visando abolir os privilégios, isenções pessoais e regalias de classe. Não há como negar que o reconhecimento da igualdade formal foi um decisivo avanço histórico decorrente das modernas declarações de direitos do final do século XVIII. Contudo, até então, o seu reconhecimento e positivação ficavam restritos ao âmbito interno de cada Estado. Somente após a II Guerra Mundial é que surge a consciência generalizada de que o reconhecimento do princípio da igualdade deve transpor os limites da jurisdição interna de cada Estado para ser afirmado e respeitado universalmente. Visando coibir tais violações de direitos baseadas na diferença nasceu a ética do Direito Internacional dos Direitos Humanos, orientada pela afirmação da dignidade e pela prevenção ao sofrimento humano, que vê no outro um ser merecedor de igual consideração e respeito, dotado do direito de desenvolver as potencialidades humanas de forma livre, autônoma e plena. Neste passo, sob o prisma do sistema global de proteção, constata-se que tanto o direito à igualdade formal e quanto a proibição da discriminação foram enfaticamente consagrados pela Declaração Universal de 194836, pelo Pacto Internacional dos Direitos                                                                                                                 36

A Declaração Universal de 1948, em seu artigo I, desde logo enuncia que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espirito e fraternidade”. Prossegue, no artigo II, a endossar que “toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas na Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. Estabelece o artigo VII a concepção de igualdade formal, prescrevendo que “todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei”.

 

 

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Civis e Políticos 37 e pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais38 de 1966. O primeiro artigo da Declaração afirma o direito à igualdade e o segundo artigo adiciona a cláusula da proibição da discriminação de qualquer espécie, como corolário e consequência do princípio da igualdade. O binômio da igualdade e da não discriminação, assegurado pela Declaração, sob a inspiração da concepção formal da igualdade, impactará a feição de todo sistema normativo global de proteção dos direitos humanos. De fato, verifica-se que, ao longo da história, as mais graves violações de direitos humanos tiveram como fundamento a diversidade. A diferença sempre foi captada como elemento para conceber o outro como um ser menor em dignidade e direitos (como acontece, por exemplo, nas violações de direitos provenientes do racismo, do sexismo, da homofobia e da xenofobia) ou, em situações extremas, como um ser esvaziado de qualquer dignidade; um ser descartável, supérfluo (como no caso da escravidão e dos campos de extermínio nazistas). O temor à diferença é fator que nos permite compreender a primeira fase de proteção dos direitos humanos, que fora marcada pela tônica da proteção geral e abstrata, com base na igualdade formal, tendo em vista que o processo de internacionalização da proteção dos direitos humanos começou a se desenvolver como resposta às atrocidades cometidas pelo nazismo, que se pautou na diferença como base para as políticas de extermínio sob o lema da prevalência e da superioridade da raça pura ariana, resultando na eliminação das demais.

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O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos traz em seu artigo 2o a cláusula de proibição da discriminação para o exercício dos direitos humanos, nos seguintes termos: “Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição. Já o artigo 4o permite a suspensão, pelos Estados, das obrigações estabelecidas pelo Pacto, em caráter excepcional, desde que “não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhes sejam impostas pelo Direito Internacional e não acarretem discriminação alguma apenas por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social”. No mais, a concepção da igualdade formal é prevista pelo art. 26, nos exatos termos do art. VII da Declaração. 38 Por sua vez, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, traz em seu artigo 2o a cláusula da proibição da discriminação, nos seguintes termos: “Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados se exercerão sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.”

 

 

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Por muito tempo a igualdade perante a lei foi identificada como a garantia da concretização da liberdade, de modo que bastaria a simples inclusão daquela no rol dos direitos fundamentais para tê-la como efetivamente assegurada. Nesses moldes, a igualdade, em termos concretos, não passava de mera ficção, uma vez que se resumia à ideia de igualdade meramente formal. Contudo, para alcançar a efetividade do princípio da igualdade, haveria que se considerar sua operacionalização, vez que, apenas proibir a discriminação não garantiria a igualdade efetiva. Percebeu-se que para a efetiva concretização do princípio da isonomia seriam necessários instrumentos de promoção da igualdade social e jurídica, haja vista que a simples igualdade formal de direitos, por si só, mostrou-se insuficiente para tanto. Torna-se necessário repensar o valor da igualdade, a fim de que as especificidades e diferenças dos indivíduos sejam efetivamente respeitadas. Deste modo, mostra-se insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata, sendo de rigor a especificação do sujeito de direito, que deve ser visto em suas peculiaridades e particularidades, como forma de se alcançar a igualdade de fato. Isso porque, determinados sujeitos de direito, ou determinadas violações de direitos (principalmente aquelas perpetradas contra grupos vulneráveis e cujo fundamento é justamente a diversidade entre os indivíduos de classes distintas), exigem uma resposta específica e diferenciada. Ao lado do sujeito genérico e abstrato (destituído de cor, sexo, idade, classe social, dentre outros critérios) delineia-se o sujeito de direito concreto, visto em sua especificidade e na concreticidade de suas diversas relações, historicamente situado, considerando-se categorizações relativas ao gênero, idade, etnia, raça, etc. Surge então a vertente do conceito de igualdade material (ou de facto), que se distancia da concepção meramente formal, passando a considerar as desigualdades concretas existentes na sociedade, de maneira a tratar de modo distinto situações fáticas desiguais. No lugar da concepção “estática” da igualdade, cuida-se, nos dias atuais, de se consolidar a noção de igualdade material, que tem como fundamento a noção “dinâmica” de igualdade, na qual são devidamente avaliadas as desigualdades concretas existentes na sociedade, de sorte que as situações desiguais sejam tratadas de maneira dessemelhante,

 

 

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evitando-se assim o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas pela própria sociedade. Sob esta nova perspectiva, o indivíduo ou, principalmente, os grupos de indivíduos, devem ser isoladamente tratados, para que, a partir das suas características específicas, sejam traçadas políticas públicas de caráter afirmativo visando a promoção da igualdade de oportunidades. Vale lembrar que a própria concepção de direitos humanos simboliza a lei dos mais fracos contra a lei do mais forte, na expressão de um contrapoder em face dos absolutismos, advenham estes do Estado, do setor privado ou mesmo da esfera doméstica, sendo o victim centric approach a fonte de inspiração que move a arquitetura protetiva internacional dos direitos humanos. No mesmo sentido, ensina Antônio Augusto Cançado Trindade39: Não há que perder de vista que o Direito Internacional dos Direitos Humanos não rege as relações entre iguais; opera precisamente em defesa dos ostensivamente mais fracos. Nas relações entre desiguais, posiciona-se em favor dos mais necessitados de proteção. Não busca obter um equilíbrio abstrato entre as partes, mas remediar os efeitos do desequilíbrio e das disparidades na medida em que afetam os direitos humanos. Não se nutre das barganhas da reciprocidade, mas se inspira nas considerações de ordre public em defesa de interesses comuns superiores, da realização da justiça.

Assim, se para a concepção formal de igualdade esta é tomada como pressuposto, como um ponto de partida abstrato, acenando para uma atuação estatal marcada pela neutralidade, para a concepção material de igualdade, esta é tomada como um resultado ao qual se pretende chegar, tendo como ponto de partida a visibilidade das diferenças, acenando para uma atuação estatal marcada pelo protagonismo. A concepção material de igualdade tem como objetivo construir e afirmar a igualdade com respeito à diversidade, tendo como base o impacto concreto e real das leis e das políticas públicas no exercício de direitos, considerando os diversos grupos e suas desvantagens e vulnerabilidades. O reconhecimento de identidades e o direito à diferença é que conduzirão a uma plataforma emancipatória e igualitária.                                                                                                                 39

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado internacional dos direitos humanos. 2a ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, vol. I, p. 44.

 

 

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Neste passo, mostra-se essencial distinguir-se “diferença” e “desigualdade”. Conforme os ensinamento de Fábio Konder Comparato40: Para o sistema de direitos humanos, a distinção entre desigualdades e diferenças é de capital importância. As primeiras referem-se a situações em que indivíduos ou grupos humanos acham-se juridicamente, uns em relação aos os outros, em posição de superioridade-inferioridade; o que implica a negação da igualdade fundamental de valor ético entre todos os membros da comunhão humana. Por isso mesmo, a desigualdade constitui sempre a negação da dignidade de uns em relação a outros. As diferenças ao contrário, são manifestações da rica complexidade do ser humano. Em todo o curso da História, e em todos os lugares, porém, os indivíduos ou grupos diferentes sempre foram vistos com suspeita, ou tratados com desprezo; ou seja, na raiz de toda desigualdade encontramos uma diferença, quer biológica, quer cultural, quer meramente patrimonial. (...) Por isso, enquanto as desigualdades devem ser perpetuamente combatidas, as diferenças, quando não contrárias à dignidade humana, hão de ser estimuladas e apoiadas.

Boaventura de Sousa Santos, por sua vez, afirma: “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”. Nesta ótica, todas as categorias de sujeitos vulneráveis devem ser protegidas na medida das suas especificidades. Quanto ao conceito de igualdade material, cabe ainda mencionar que alguns doutrinadores o dividem em duas vertentes. A primeira delas corresponde ao ideal de justiça social e distributiva, isto é, a igualdade orientada pelo critério socioeconômico. Neste ponto, temos o direito à redistribuição (que requer medidas de enfrentamento da injustiça econômica e da marginalização, por meio da transformação nas estruturas socioeconômicas e da adoção de uma política de redistribuição) Por outro lado, a segunda vertente corresponde ao ideal de justiça enquanto reconhecimento de identidades, isto é, a igualdade orientada por critérios como o gênero, a orientação sexual, a idade, a raça, etnia, etc. Esta segunda vertente está diretamente relacionada ao direito ao reconhecimento (que requer medidas de enfrentamento da                                                                                                                 40

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8a ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 303.

 

 

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injustiça cultural, dos preconceitos e dos padrões discriminatórios, por meio da transformação cultural e da adoção de uma política de reconhecimento). E é à luz desta política de reconhecimento que se pretende avançar na reavaliação positiva de identidades discriminadas, negadas e desrespeitadas; na desconstrução de estereótipos e preconceitos; e na valorização da diversidade cultural. Assim, pode-se afirmar que, numa segunda fase de proteção aos direitos humanos, como consequência do reconhecimento da pluralidade de identidades humanas e do processo de especificação do sujeito de direito surge, ao lado do direito à igualdade, também como direito fundamental, o direito à diferença, que se resume na obrigatoriedade do respeito à diferença e à diversidade, que assegura aos chamados “grupos vulneráveis” um tratamento especial. Por este motivo, transcendendo a concepção meramente formal e abstrata de igualdade, esta segunda fase de proteção, marcada pela proteção específica e especial, consolidou, gradativamente, um aparato normativo especial de proteção endereçado à proteção de pessoas ou grupo de pessoas particularmente vulneráveis, por meio da adoção de tratados internacionais que objetivam eliminar todas as formas de discriminação que afetam de forma desproporcional estes grupos. Pois bem. Conclui-se que, no âmbito global, os primeiros instrumentos de proteção incorporaram uma concepção formal de igualdade, sob o binômio da igualdade e da não discriminação, assegurando uma proteção geral, genérica e abstrata. Já os instrumentos internacionais que integram o sistema especial invocam uma proteção especifica e concreta que, transcendendo a concepção meramente formal e abstrata de igualdade, objetivam o alcance da igualdade material e substantiva. Em outras palavras, conforme ensina Flávia Piovesan41: Na esfera internacional, se uma primeira vertente de instrumentos internacionais nasce com a vocação de proporcionar uma proteção geral, genérica e abstrata, refletindo o próprio temor da diferença (que na era Hitler foi justificativa para o extermínio e a destruição), percebese, posteriormente, a necessidade de conferir, a determinados grupos, uma proteção especial e particularizada, em face de sua própria vulnerabilidade. Isto significa que a diferença não mais seria utilizada

                                                                                                                41

 

PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 314.

 

42 para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para a promoção de direitos.

Por fim, é importante mencionar que, atualmente, a jurisprudência global é unânime ao defender que a igualdade de direito (formal) e de fato (material), apesar de serem conceitos distintos, estão intrinsecamente relacionados, afirmando que ambas as concepções do princípio da igualdade são essenciais para a promoção e para a efetivação dos direitos humanos. Neste sentido, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em sua Recomendação Geral no 16, adotada em 2005, realça que: Garantias de não discriminação e igualdade em tratados internacionais de direitos humanos ordenam tanto a igualdade de facto como de jure. Igualdade de jure (ou formal) e de facto (ou substantiva) são conceitos diferentes, mas interligados. A igualdade formal assume que a igualdade é alcançada se uma lei ou política trata homens e mulheres de forma neutra. Igualdade substantiva se preocupa ainda com os efeitos das leis, políticas e práticas e com a garantia de que eles não mantêm, mas sim aliviam, as desvantagens inerentes que grupos particulares experimentam. Igualdade substantiva entre homens e mulheres não será alcançada simplesmente através da promulgação de leis ou a adoção de políticas que sejam, prima facie, neutras em relação ao gênero. Ao implementar o artigo 3, os Estados Partes devem levar em conta que tais leis, políticas e práticas podem deixar de abordar ou mesmo perpetuar a desigualdade entre homens e mulheres, uma vez que elas não levam em conta as desigualdades econômicas, sociais e culturais existentes, particularmente aquelas experimentadas pelas mulheres. (tradução nossa)

Ao diferenciar os dois conceitos de igualdade, o Comitê prossegue distinguindo a discriminação

direta

da

denominada

discriminação

indireta,

considerando

especificamente a perspectiva da discriminação de gênero, nos seguintes termos: A discriminação direta ocorre quando uma diferença de tratamento invoca direta e explicitamente distinções baseadas exclusivamente no sexo e nas características de homens ou de mulheres, que não possam ser justificadas objetivamente. A discriminação indireta ocorre quando uma lei, política ou programa não parece ser discriminatório, mas tem um efeito discriminatório quando implementada. Isso pode ocorrer, por exemplo, quando as mulheres estão desvantagem em relação aos homens no que diz respeito ao gozo de uma determinada oportunidade ou benefício devido a desigualdades pré-existentes. A aplicação de uma lei neutra quanto ao gênero pode deixar a desigualdade já existente inalterada, ou ainda exacerbá-la. (tradução nossa)

 

 

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Percebemos que, apesar de os primeiros instrumentos internacionais de direitos humanos terem se referido tão somente à igualdade formal, como apontamos anteriormente, a atuação construtiva dos Comitês de Direitos Humanos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais transcende os limites das cláusulas de igualdade formal e da proibição da discriminação enunciada nos Pactos. Por meio da adoção de recomendações gerais, a jurisprudência tem delineado a concepção material da igualdade, com a distinção da igualdade de direito e de fato (de jure and de facto equlity) e, a partir daí, é lançado o questionamento a respeito do papel do Estado na promoção destes direitos, demandando-se, por vezes, que ocorra a transição de uma posição de neutralidade para um protagonismo, capaz de aliviar e remediar o impacto não igualitário da legislação e de políticas públicas. Além disso, merece destaque o fato de que, na atual etapa evolutiva do Direito Internacional, o princípio da igualdade e da proibição de discriminação ingressou no domínio do jus cogens, fazendo com que eventual falta de consenso na jurisdição interna de alguns países acerca do pleno respeito aos direitos de minorias sexuais não possa ser considerada como argumento válido para negar-lhes ou restringir-lhes direitos humanos ou perpetuar e reproduzir discriminações históricas que estas minorias tenham sofrido.

2.2 – A trajetória da elaboração do aparato normativo internacional de proteção dos direitos humanos das mulheres A eliminação do estatuto jurídico de inferioridade da mulher (isto é, o reconhecimento da igualdade formal), na vida civil, somente teve início no século XX e, mesmo assim, não em todos os países. Ainda hoje existem, com frequência, costumes sociais ou tradições religiosas que ofendem a pessoa humana, e em especial a mulher. Com efeito, reconhecem hoje as Nações Unidas, que a discriminação de fato ou de direito contra a mulher, principalmente em países subdesenvolvidos, tem sido um dos principais obstáculos à efetividade do direito à educação e à saúde de crianças e adolescentes. A discriminação antifeminina, de resto, não se cinge somente ao tratamento desigual, isto é, à consideração da mulher, para todos os efeitos, como ser inferior ao  

 

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homem, o que ocorre com desoladora frequência. Manifesta, também, pela reiterada e muito difundida denegação do direito à diferença, vale dizer, a recusa de reconhecimento a respeito dos dados biológicos e valores culturais, componentes do universo feminino. Em ambas as hipóteses, aliás, essa discriminação ultrajante costuma fundar-se em tradições culturais eticamente indefensáveis e tanto mais perigosas quando são assimiladas, pelas próprias mulheres, como normas de proteção de suas peculiaridades, por parte dos homens que desde sempre as subjugam e exploram. Por todos os motivos mencionados neste Capítulo, fez-se necessária a criação de um aparato normativo internacional de proteção dos direitos das mulheres. Primeiramente porque, na maioria das vezes, as normas internas dos Estados não são suficientes para concretizar uma situação de igualdade formal e material entre os gêneros capaz de proteger a dignidade da mulher sob as vestes do princípio da igualdade. Por meio de legislações discriminatórias expressas, ou na ausência de previsões proibitivas da discriminação, os Estados colaboram na perpetuação de justificativas históricas e culturais de discriminação contra as mulheres e, muitas vezes, acabam por reiterar a situação de desigualdade entre homens e mulheres. Por outro lado, a mera previsão legal da proibição da discriminação, não se mostrou suficiente, e a omissão estatal estava a contribuir com a cultura da violência e da discriminação contra a mulher. A despeito da existência de dispositivos constitucionais e legais (muitos deles promulgados com o objetivo expresso de fazer cessar o status de inferioridade em que se encontram os grupos sociais historicamente discriminados), a situação desses grupos marginalizados pouco mudou nas últimas décadas. Isso porque, como explicamos anteriormente, a neutralidade do Estado tem se demonstrado um retumbante fracasso, especialmente em sociedades que durante séculos mantiveram certos grupos ou categoria de pessoas em posição de subjugação legal. Diante deste quadro, podemos apontar dois fatos: a) a certeza de que proclamações jurídicas, por si só, não são suficientes para reverter um quadro social que finca âncoras na tradição cultural de cada país, na consciência coletiva e na percepção generalizada de que a uns devem ser reservados

 

 

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papéis de franca dominação e, a outros, papéis indicativos dos status de inferioridade e de subordinação; b) o reconhecimento de que a reversão de tal quadro só será viável com a renúncia do Estado à sua histórica neutralidade, devendo este assumir uma posição ativa para proporcionar a ascensão social destes grupos e a concretização da igualdade formal e material de todos os indivíduos, independentemente da sua raça, credo, sexo, etnia, condição econômica, etc. Eis o denominado fenômeno da inefetividade constitucional. Contudo, o mister da igualdade entre os gêneros sobrepõe-se à ordem jurídica nacional ou constitucional, vez que o indivíduo (no caso em tela, a mulher) tem, para além da ordem jurídica interna, balizas normativas no cenário internacional. Visando reverter a aludida situação de omissão estatal, o Direito Internacional dos Direitos Humanos apresenta-se como esteio normativo positivado que visa impulsionar mudanças nos ordenamentos jurídicos internos, a fim de garantir a observância e proteção dos direitos humanos, bem como estrutura uma ordem jurídica global por meio da instituição de Tribunais Internacionais e de mecanismos de controle de cumprimento, pelos Estados-partes, dos instrumentos de direitos humanos, tanto no âmbito global quanto no âmbito regional. No primeiro ano após a criação das Nações Unidas, em 1946, o Conselho Econômico e Social (ECOSOC) estabeleceu sua Comissão sobre o Status da Mulher (CSW42) como o principal órgão de decisão política dedicado exclusivamente à promoção da igualdade de gênero e ao avanço das mulheres em todo o mundo43. Coube, ainda, à CSW assegurar a neutralidade de gênero no projeto de Declaração Universal dos Direitos Humanos. Atualmente, suas principais funções são, dentre outras: preparar relatórios ao Conselho Econômico e Social sobre a promoção dos direitos das mulheres nas áreas política, econômica, civil, social e educacional; formular recomendações ao referido Conselho sobre problemas de caráter urgente referentes aos direitos das mulheres que requerem atenção imediata, além de analisar e elaborar recomendações de formulações de                                                                                                                 42

Sigla em inglês para Commission on the Status of Women, também denominada, em português, de Comissão sobre a Condição da Mulher. 43 A CSW é composta por 45 membros, eleitos pelo ECOSOC para mandato de 4 anos.

 

 

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políticas aos vários países signatários da Convenção, visando a aprimorar o status da mulher. Pode ainda receber comunicações de indivíduos e grupos relativamente a questões de discriminação contra as mulheres, mas não se pronuncia sobre queixas individuais. O procedimento destina-se a constatar tendências emergentes e padrões de discriminação contra as mulheres que servem de base à formulação de recomendações destinadas a solucionar problemas generalizados. No mesmo ano, em 1946, foi criada a Divisão para o Progresso das Mulheres (DAW44). Trata-se de uma divisão do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais. Funciona como verdadeiro polo de ligação para a coordenação e integração das questões de gênero no sistema das Nações Unidas. Secretariou as quatro conferências mundiais das Nações Unidas sobre mulheres e é responsável pelo secretariado e pela prestação de apoio à Comissão sobre o Status da Mulher (CSW) e ao Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW). O seu mandato compreende ainda a prestação de apoio ao Conselheiro Especial do Secretário Geral sobre as Questões de Gênero e o Progresso das Mulheres. Compete-lhe promover os direitos humanos das mulheres e a sua plena participação em todas as áreas da atividade humana, em condições de plena igualdade com os homens, trabalhando em estreita ligação com os Governos, com outros organismos do sistema das Nações Unidas e com a sociedade civil (especialmente com ONGs e associações de mulheres que tenham como foco questões de gênero). A DAW promove e apoia a integração de uma perspectiva de gênero no trabalho dos organismos intergovernamentais, na política e programas dos departamentos e delegações do Secretariado das Nações Unidas e dos organismos do sistema das Nações Unidas, bem como aos níveis nacional e regional, além de prestar serviços consultivos e desenvolver programas de cooperação técnica com os países em desenvolvimento. Entre os anos de 1949 a 1962, a Comissão sobre o Status da Mulher realizou diversos estudos sobre a situação das mulheres no mundo, o que deu origem a vários documentos, dentre os quais pode-se mencionar: a Convenção dos Direitos Políticos das Mulheres (1952), a Convenção sobre a Nacionalidade das Mulheres Casadas (1957) e a                                                                                                                 44

 

Sigla em inglês para Division for the Advancement of Women.  

 

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Convenção sobre o Casamento por Consenso, Idade Mínima para Casamento e Registro de Casamentos (1962). Posteriormente se empenhou para elaborar a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, adotada pela Resolução no 2.263/XXII, de novembro de 1967, que representou o primeiro instrumento legal de padrões internacionais a articular direitos iguais para homens e mulheres. Além disso, afirmou os direitos reprodutivos da mulher e enfatizou o papel da cultura e das práticas costumeiras como elementos essenciais na formação das relações de gênero e de família. Entretanto, diante do seu caráter meramente declaratório, o documento não possuía força jurídica vinculante, deixando de estabelecer obrigações aos Estados signatários, motivo pelo qual a Comissão continuou seus trabalhos no intuito de elaborar um tratado internacional especificamente sobre o tema, capaz de vincular os Estadosnações. À medida que o movimento feminista internacional começou a ganhar força na década de 70, a Assembleia Geral da ONU declarou o ano de 1975 como o Ano Internacional das Mulheres, tendo realizado a Primeira Conferência Mundial sobre as Mulheres no mesmo ano, na Cidade do México, com a qual teve início o processo de determinação da agenda internacional sobre a mulher que seria implementada nos anos seguintes. Fazia-se necessário delimitar objetivos futuros com o objetivo de guiar a ação das Nações Unidas e dos Estados para eliminar a discriminação contra a mulher e favorecer seu avanço social. Assim, nesta Primeira Conferência Mundial, identificaram-se três objetivos prioritários: a promoção da igualdade plena de gênero e a eliminação da discriminação por motivos de gênero; a plena participação das mulheres no desenvolvimento e uma maior contribuição das mulheres à paz mundial. A Conferência aprovou um plano de ação que marcava as diretrizes de atuação dos governos e de toda a comunidade internacional para os dez anos seguintes, durante os quais se proclamou o Decênio das Nações Unidas para a Mulher (1975/1985), tendo sido incluída na agenda internacional das Nações Unidas debates de questões específicas relacionadas aos direitos humanos das mulheres.

 

 

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No plano de ação traçado pela Conferência do México foi estabelecida uma série de metas cujos objetivos principais eram garantir às mulheres o acesso em igualdade com os homens à educação, ao trabalho, à participação política, à saúde, ao planejamento familiar e à alimentação. No mais, foi criado a partir da Conferência o Fundo de Contribuições Voluntárias das Nações Unidas para a Década da Mulher. Deste modo, podemos afirmar que o ano de 1975 representa um ponto de inflexão no que diz respeito ao papel das mulheres no âmbito internacional; pela primeira vez elas são vistas não como meras receptoras das distintas ações políticas, mas como verdadeiras atoras no processo pela busca da igualdade entre os gêneros, sendo de rigor a inclusão, neste processo, da sua mais ampla participação45. Alguns anos mais tarde, objetivando o início da construção de um aparato internacional específico para a proteção dos direitos humanos das mulheres, as Nações Unidas aprovaram, em 1979, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW46), primeiro tratado internacional que dispõe amplamente sobre os direitos humanos das mulheres, frequentemente descrito como “Carta Internacional dos Direitos das Mulheres”. Apesar de ter sido aprovada em 1979 pela ONU, a Convenção somente entrou em vigor em 03 de setembro de 1981, trinta dias após o vigésimo Estado nação-membro tê-la ratificado. Cerca de vinte anos mais tarde, em setembro de 2014, a CEDAW contava com 188 Estados-partes. Este instrumento, que se fundamenta basicamente na dupla obrigação dos Estados-membros em eliminar a discriminação contra a mulher e de assegurar a igualdade de gênero, representou a culminação de mais de trinta anos de trabalho levado a cabo pela Comissão sobre o Status da Mulher e é visto até hoje como o ápice de décadas de esforços internacionais visando proteger e promover os direitos das mulheres de todo o mundo.

                                                                                                                45

Esta mudança no papel das mulheres se faz notar já durante a celebração da própria Conferência, através da ampla participação das próprias mulheres nos debates. Cabe destacar que das 133 delegações dos Estados, 113 estavam encabeçadas por mulheres. 46 Sigla em inglês para Convention on Elimination of all Form of Discrimination Against Women.

 

 

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Para Silvia Pimentel47: A Convenção da Mulher deve ser tomada como parâmetro mínimo das ações estatais na promoção dos direitos humanos das mulheres e na erradicação às suas violações, tanto no âmbito público como no âmbito privado. A CEDAW simboliza o resultado de inúmeros avanços principiológicos, normativos e políticos construídos nas últimas décadas, em um grande esforço global de edificação de uma ordem internacional de respeito à dignidade de todo e qualquer ser humano.

A CEDAW é composta de um preâmbulo e trinta artigos, ordenados em seis partes. A primeira delas define o conceito de “discriminação contra a mulher” e trata das medidas a serem adotadas no ordenamento jurídico interno dos países ratificantes, em todos os campos, com vistas à eliminação da discriminação contra a mulher. A segunda parte recomenda a adoção de medidas com o objetivo de garantir o gozo, pelas mulheres, dos direitos políticos. A terceira determina a obrigatoriedade da eliminação da discriminação nas áreas da educação, do trabalho e emprego, da saúde, da vida econômica e social, da recreação, esporte e cultura. A quarta parte é dedicada à capacidade jurídica da mulher em igualdade de condições com os homens, além de tratar da igualdade de gênero perante a lei, principalmente no tocante ao exercício pela mulher de seus direitos legais com relação ao casamento e à família. A quinta parte cria o Comitê sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e define suas funções. Por fim, a sexta e última parte estabelece as disposições finais da convenção (possibilidade de reservas, assinatura, ratificação, adesão, entrada em vigor, etc.). Em seu art. 1o a Convenção define o conceito de discriminação contra a mulher, nos seguintes termos: Toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo, exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

                                                                                                                47

PIMENTEL, Silvia. Educação, Igualdade, Cidadania – A Contribuição da Convenção CEDAW/ONU. SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (coords.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

 

 

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Dentre as suas previsões, a Convenção consagra a urgência em se erradicar todas as formas de discriminação contra as mulheres, a fim de que se garanta o pleno exercício de seus direitos, tanto os civis e políticos, quanto os sociais, econômicos e culturais (fundamentando-se na tônica da Declaração Universal no que diz respeito à indivisibilidade dos direitos humanos), estabelecendo deveres aos Estados-partes no sentido de que atuem no seu âmbito interno de modo a eliminar progressivamente a discriminação contra as mulheres, abstendo-se de práticas discriminatórias no âmbito público e promovendo a igualdade substancial entre os gêneros também na esfera privada, por meio da adoção de ações afirmativas para a aceleração do processo de igualização material entre os gêneros. Prevê ainda a modificação da legislação e a modificação de padrões socioculturais discriminatórios, nos termos do art. 5 o, alínea a, in verbis: Os Estados-Partes tomarão todas as medidas apropriadas para: a) Modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas consuetudinárias e de qualquer outra índole que estejam baseados na ideia da inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e mulheres.

O art. 24, por sua vez, determina que: “Os Estados-Partes comprometem-se a adotar todas as medidas necessárias em âmbito nacional para alcançar a plena realização dos direitos reconhecidos nesta Convenção”. A leitura conjunta dos mencionados artigos da Convenção, que forma o quadro interpretativo para todos os seus artigos substantivos, indica três obrigações centrais dos Estados-partes no sentido de eliminar as discriminações contra a mulher. Estas obrigações devem ser implementadas de forma integrada a fim de se estender para além de uma obrigação legal puramente formal da igualdade de tratamento entre homens e mulheres. A primeira das obrigações dos Estados-partes é assegurar que não haja discriminação direta ou indireta contra as mulheres na sua legislação interna e que as mulheres estejam protegidas contra qualquer discriminação na esfera pública ou privada – quer sejam cometidas por autoridades públicas, pelo judiciário, por organizações ou

 

 

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empresas privadas e pelos particulares – através da imposição de sanções ou qualquer outro remédio que se faça necessário. Em segundo lugar, os Estados têm a obrigação de aprimorar a posição de igualdade (material) das mulheres através da adoção de políticas e programas concretos e efetivos48. Por fim, os Estados têm a obrigação de combater as relações predominantes de gênero e a persistência de estereótipos particulares como também na lei e nas estruturas sociais. Conclui-se que, além da adequação, pelo Poder Legislativo, da legislação nacional aos parâmetros igualitários internacionais previstos pela Convenção, é necessário que o Executivo elabore políticas públicas voltadas para o direito das mulheres e que o Judiciário se valha dos tratados, pactos e convenções internacionais de proteção aos direitos humanos para fundamentar suas decisões na proteção dos direitos das mulheres. Sobre a CEDAW, aduz Andrew Byrnes49: A Convenção em si mesma contém diferentes perspectivas sobre as causas de opressão contra as mulheres e as medidas necessárias para enfrentá-las. Ela impõe a obrigação de assegurar que as mulheres tenham uma igualdade formal perante a lei e ela reconhece que medidas temporárias de ação afirmativa são necessárias em muitos casos, se as garantias de igualdade formal devem se transformar em realidade. (...) A Convenção também reconhece que há experiências, às quais mulheres são submetidas, que necessitam ser eliminadas (como estupro, assédio sexual, exploração sexual e outras formas de violência contra as mulheres). Em suma, a Convenção reflete a visão de que as mulheres são titulares de todos os direitos e oportunidades que os homens podem exercer; adicionalmente, as habilidades e necessidades que decorrem de diferenças biológicas entre os gêneros devem também ser reconhecidas e ajustadas, mas sem eliminar da titularidade das mulheres a igualdade de direitos e oportunidades.

O art. 17 da Convenção prevê a criação do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra Mulheres (Comitê CEDAW, sigla em inglês), constituído por 23 especialistas (experts) de “elevado conceito moral e competência na área”, para

                                                                                                                48

Cf. item 2.3 deste trabalho a respeito das medidas especiais temporárias. BYRNES, Andrew. The “other” humam rights treaty body: the work of the Committee on the Elimination of Discrimination against Womem. Yale Journal of International Law, v. 14, 1989, p.1, apud PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 353/354. 49

 

 

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exercerem um mandato de quatro anos. As especialistas devem ser eleitas pelos EstadosPartes dentre as nacionais, devendo ser nomeadas de acordo com as capacidades pessoais. O Comitê CEDAW é o órgão de monitoramento da atuação dos vários países quanto ao cumprimento dos preceitos da Convenção, tendo sido criado basicamente com a função de examinar os progressos alcançados pelos países signatários na aplicação do referido instrumento internacional. Representa um mecanismo de acesso ao sistema global (ONU). No mais, o Protocolo Facultativo adicional à Convenção50, ampliou seu mandato e, assim sendo, o Comitê CEDAW passou a monitorar o exercício efetivo dos direitos das mulheres nos Estados signatários. Atualmente, o Comitê tem como suas principais funções: a) Examinar os relatórios periódicos apresentados pelos Estados-partes (art. 18 da Convenção): os Estados-partes devem apresentar relatórios periódicos dando ênfase às medidas legislativas, judiciárias, administrativas ou de qualquer outra natureza que adotarem para efetivar as disposições previstas na Convenção e os progressos alcançados. O primeiro relatório deve ser apresentado após um ano da ratificação do tratado e os demais a cada quatro anos e sempre que o Comitê solicitar51; b) Formular sugestões e recomendações gerais (art. 21 da Convenção) 52 : é facultado ao Comitê a elaboração de sugestões e recomendações gerais que buscam interpretar os direitos e princípios previstos na Convenção, baseadas no exame dos relatórios e de informações provenientes dos Estados-partes. Via de regra, as sugestões são encaminhadas a entidades das Nações Unidas, enquanto as recomendações gerais são direcionadas aos Estados-partes,                                                                                                                 50 O Protocolo Adicional à Convenção   sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher foi adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1999 e passou a vigorar a partir de 22 de dezembro de 2000 e instituiu um mecanismo de fiscalização mais efetivo às violações dos direitos previstos na Convenção. O Protocolo Adicional não permite reservas. 51 Em síntese, após o recebimento do relatório do Estado-partes, um grupo de trabalho do Comitê (constituído por cinco partes) se reúne antes da sessão com o intuito de preparar uma lista de questões que serão enviadas aos Estados antes da apresentação do relatório. Durante a sessão, oito dos Estados-partes devem apresentar oralmente seus relatórios. Após a apresentação o Comitê faz comentários, que devem ser posteriormente, respondidas pelo Estado. Por fim, o Comitê elabora suas observações finais sobre os relatórios apresentados, contendo comentários e recomendações específicas, que devem ser incluídos em seu relatório final à Assembleia Geral. 52

Até o momento foram formuladas 25 Recomendações Gerais pelo Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher.  

 

 

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oferecendo-lhes orientações acerca das obrigações previstas na Convenção e dos caminhos necessários ao seu cumprimento. É importante o fato da elaboração do conteúdo das recomendações contar com a participação não somente de integrantes do Comitê, mas de organizações da sociedade civil, de agências e órgãos das Nações Unidas, dentre outros; c) Instaurar inquéritos confidenciais (arts. 8o e 9o do Protocolo Adicional): caso o Comitê receba informações fidedignas noticiando violações graves ou sistemáticas de direitos estabelecidos no tratado por qualquer Estado-parte, aquele poderá, por iniciativa própria, iniciar um processo de apuração, devendo convidar o Estado envolvido a apreciar, junto ao Comitê, a referida comunicação, apresentando suas observações sobre a questão. O Comitê poderá encarregar alguns membros de dar andamento a um inquérito (cujo procedimento tem caráter confidencial). Caso seja justificável e houver aquiescência do Estado-parte, o inquérito poderá incluir visitas ao território deste Estado. Após a análise das conclusões do inquérito, o Comitê deve comunicar suas observações ao Estado, que terá o prazo de seis meses para apresentar suas conclusões sobre a questão; d) Examinar comunicações apresentadas por indivíduos ou grupo de indivíduos que aleguem ser vítimas de violação de quaisquer dos direitos constantes na Convenção (arts. 2o a 7o do Protocolo Adicional): ao receber a comunicação, o Comitê verifica, primeiramente, se houve o esgotamento dos recursos internos do Estado (isto é, se todos os meios processuais na ordem interna foram utilizados objetivando solucionar a questão, a não ser que o meio processual previsto pelo ordenamento jurídico nacional tenha ultrapassado os prazos razoáveis ou que seja improvável que o Estado conduza a uma reparação efetiva do requerente). No caso da comunicação ser admitida, o Comitê deverá comunicá-la ao Estado, que terá o prazo de seis meses para apresentar suas observações. O Comitê deverá escutar os requerentes em sessões fechadas e transmitirá suas recomendações às partes interessadas. O Estado terá mais seis meses para apresentar documento escrito relatando as providências adotadas.

 

 

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Verifica-se que a Convenção estabelece, como mecanismo de implementação dos direitos que enuncia, a sistemática dos relatórios que devem ser encaminhados pelos Estados ao Comitê CEDAW. Os Estados têm, portanto, que prestar contas a organismos internacionais a respeito da forma pela qual protegem os direitos das mulheres, o que permite um monitoramento e fiscalização internacional mais eficaz. Ademais, muitos estados se preocupam com o fato de o Comitê realizar comentários positivos ou negativos acerca de sua política de direitos humanos. Isso porque, uma avaliação positiva em um fórum internacional a respeito dos desempenhos e esforços de um Estado pode dar ensejo a progressos futuros, já uma avaliação crítica negativa pode causar inúmeros embaraços ao governo local, tanto no plano doméstico quanto no âmbito internacional, o que representa um incentivo que faz com que este Estado se esforce e se empenhe mais no futuro. Após a elaboração da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, cinco anos após a Primeira Conferência da Cidade do México, a Segunda Conferência Mundial sobre a Mulher foi realizada em Copenhague, em 1980, com dois objetivos principais: rever o progresso na implementação das metas estabelecidas na Conferência do México e atualizar o Plano de Ação elaborado em 1975. Nesta segunda conferência discutiu-se o grau de implementação das metas delimitadas na Primeira Conferência, enfatizando-se a necessidade da promoção da igualdade de oportunidades reais entre mulheres e homens – e não apenas do reconhecimento legal da igualdade entre os gêneros. Além disso, foram delineadas três esferas principais de atuação para os anos seguintes: a promoção da igualdade no acesso à educação; a igualdade de oportunidades no trabalho e a atenção à saúde das mulheres. Por fim, a Segunda Conferência anunciou um novo programa de ação e chamou a atenção para alguns pontos específicos que se mostraram deficientes em relação ao programa de ação adotado pela Primeira Conferência, como: falta de participação dos homens no processo de igualdade entre os gêneros; vontade política insuficiente por parte dos Estados; falta de reconhecimento da contribuição das mulheres na sociedade; ausência de mulheres em cargos políticos de tomada de decisões; escassez de serviços

 

 

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sociais de apoio; falta de financiamento e baixa sensibilização entre as próprias mulheres na sociedade civil. O novo Programa de Ação pediu mais medidas nacionais para assegurar o domínio e o controle de propriedade das mulheres, bem como melhorias nos direitos das mulheres em relação à herança, à guarda dos filhos e à perda da nacionalidade. A Terceira Conferência Mundial da Mulher celebrou-se em Nairóbi no ano de 1985. Sendo este o último ano da Década das Nações Unidas para a Mulher, a Conferência de Nairóbi também é denominada “Conferência Mundial para o Exame e Avaliação dos Resultados da Década das Nações Unidas para a Mulher”. Ela foi convocada num momento em que o movimento pela igualdade de gênero finalmente ganhou verdadeiro reconhecimento global, tendo sido o evento descrito como o “nascimento do feminismo global”. Percebendo que os objetivos da Conferência da Cidade do México não foram devidamente cumpridos, os 157 governos participantes adotaram as Estratégias Prospectivas de Nairóbi para o Ano 2000. Nesta Conferência, percebe-se uma mudança de perspectiva importante: já não se considera que a incorporação das mulheres em todos os âmbitos da vida seja apenas um direito legítimo a ser reconhecido e promovido, mas emerge também a percepção de que a própria sociedade necessita da participação ativa das mulheres. Um dos resultados iniciais da Conferência de Nairóbi foi a conversão do Fundo Voluntário para a Década da Mulher no Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM53), cuja missão era garantir a participação das mulheres em todos os níveis do planejamento e execução das políticas de desenvolvimento, apoiando as suas necessidades e anseios nas diferentes agendas nacionais, regionais e globais, além de prover assistência técnica e financeira a programas inovadores e estratégias que contribuam para assegurar os direitos da mulher, sua participação na política e sua segurança econômica, através da promoção de capacitação feminina e da igualdade entre os sexos, trabalhando sobretudo a nível nacional. Por fim, a Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres foi realizada em Pequim, em 1995, fechando o ciclo das grandes conferências sobre a mulher e tendo sido esta a conferência com maior impacto mundial. Ao fim da Quarta Conferência, foram                                                                                                                 53

 

Sigla em ingles para United Nations Development Fund for Women.  

 

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aprovados dois importantes documentos: A Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim. A Declaração consiste em um documento de natureza política em que os países afirmaram seu compromisso com a implementação da Plataforma de Ação, documento no qual foram identificados os obstáculos que persistiam contra o pleno desenvolvimento da mulher, além de traçar estratégias e ações com vistas à superação destes obstáculos54. A Plataforma de Ação de Pequim identificou 12 áreas fundamentais, que se considerou representarem os principais obstáculos ao progresso das mulheres, sendo elas: 1. Mulheres e pobreza; 2. Educação e capacitação da mulher; 3. Mulheres e saúde; 4. A violência contra a mulher; 5. A mulher e os conflitos armados; 6. Mulheres e economia; 7. A mulher no exercício do poder e nos processos decisórios; 8. Mecanismos institucionais para o progresso das mulheres; 9. Os diretos humanos da mulher; 10. A mulher e os meios de comunicação e difusão; 11. A mulher e o meio ambiente; 12. A situação da menina. Isto implica repensar a vida social, econômica, do trabalho, familiar, a saúde e, com certeza, o poder e a política, a partir da perspectiva de gênero, analisando e valorando as distintas implicações de homens e mulheres em qualquer esfera do desenvolvimento humano. Em julho de 2010 a Assembleia Geral criou a ONU Mulheres (UNWomen), a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres, visando acelerar a implementação das metas da Organização sobre o tema. A criação da ONU Mulheres surgiu como parte da agenda de reforma das Nações Unidas, reunindo recursos e mandatos para gerar mais impacto em relação às questões envolvendo os direitos humanos das mulheres, condensando em uma única agência especializada quatro importantes entidades distintas do Sistema das Nações Unidas que se centravam exclusivamente na igualdade de gênero e no empoderamento das mulheres, sendo eles: a Divisão para o Avanço das Mulheres (DAW); o Instituto Internacional de                                                                                                                 54

Embora o texto final da Declaração tenha tido seu conteúdo diluído para contornar os impasses surgidos entre as diferentes posições defendidas (de um lado a maioria dos países ocidentais e, do outro, os países islâmicos e católicos fundamentalistas), as principais preocupações do movimento feminista encontraramse refletidas na Plataforma de Ação que, em última análise, é o documento que contém os objetivos e ações a serem implementados pelos governos e por vários outros atores institucionais e sociais, com vistas ao avanço da situação da mulher.

 

 

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Pesquisas e Capacitação para o Progresso da Mulher (INSTRAW); o Escritório de Assessoria Especial para Questões de Gênero e Promoção da Mulher (OSAGI) e o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM). As principais funções da Agência especializada (ONU Mulher) são: apoiar os organismos intergovernamentais, como a Comissão sobre o Status da Mulher, na formulação de políticas, padrões e normas globais, e ajudar os Estados-membros a implementar estas normas, fornecendo apoio técnico e financeiro adequado para os países que o solicitem, bem como estabelecendo parcerias eficazes com a sociedade civil, além de ajudar o Sistema das Nações Unidas a ser responsável pelos seus próprios compromissos sobre igualdade de gênero.

2.3 – A adoção de medidas afirmativas como meio de promoção da igualdade da mulher e a importância da educação como medida emancipatória Com efeito, a igualdade e a discriminação pairam sob o binômio inclusãoexclusão. Enquanto a igualdade pressupõe formas de inclusão social, a discriminação implica violenta exclusão e intolerância à diferença e à diversidade. Assim, a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta automaticamente na inclusão. Logo, não é suficiente proibir a exclusão, quando o que se pretende é garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusão social de grupos que sofreram e sofrem um consistente padrão de violência e discriminação55. Assim, se o combate à discriminação é medida emergencial à implementação do direito à igualdade, todavia, por si só, mostra-se insuficiente, sendo de rigor a combinação da proibição da discriminação com a adoção de políticas compensatórias, que constituem medidas concretas que viabilizam de fato o direito a igualdade, acelerando o processo de alcance da igualdade material. Tais medidas compensatórias devem ser compreendidas não somente pelo prisma retrospectivo – no sentido de aliviar a carga de um passado discriminatório –, mas                                                                                                                 55

PIOVESAN, Flávia. Proteção dos direitos humanos sob as perspectivas de raça, etnia, gênero e orientação sexual. REVISTA FACULDADE DE DIREITO PUC-SP. São Paulo: PUC, 2014. Vol. 2 – 2o semestre/2014.

 

 

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também pelo prisma prospectivo— no sentido de fomentar a transformação social, criando uma nova realidade e cumprindo com uma finalidade pública decisiva ao projeto democrático. Especificamente em relação à mulher, o alvo das medidas afirmativas é combater quaisquer dimensões discriminatórias, decorrentes de contextos sociais e culturais, passados e presentes, que impeçam as mulheres de gozar dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. É inegável que as mulheres apresentam necessidades permanentes, determinadas por fatores biológicos. Estas devem ser diferenciadas de outras necessidades que podem ser resultado de um passado (e de um presente) discriminatório, perpetrado por agentes individuais, pela ideologia de gênero dominante ou pela manifestação destas discriminações nas estruturas e instituições sociais e culturais. Por este motivo, clama-se pela eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, incluindo a eliminação das causas e consequências da sua desigualdade material. Para tanto, a aplicação de medidas especiais temporárias deve ser considerada como um dos principais meios para concretizar a igualdade material para as mulheres, em vez de ser vista como mera exceção ao princípio da não discriminação e da isonomia. Pois bem. Afirmamos que a CEDAW, além de elencar diversos direitos das mulheres que devem ser reconhecidos pelos Estados-partes, também impõe a estes uma série de obrigações relacionadas à promoção da igualdade de gênero. Entretanto, como demonstramos, a simples enunciação formal dos direitos das mulheres não lhes confere a efetivação de seu exercício. Verifica-se, portanto, que para o alcance efetivo da igualdade entre os gêneros, não basta a proibição e a eliminação da discriminação mediante legislação repressiva, sendo de rigor que os Estados também estimulem estratégias de promoção da igualdade capazes de incentivar a inserção e a inclusão social de grupos historicamente vulneráveis (no caso, as mulheres), por meio da adoção de medidas afirmativas. Deste modo, a Convenção prevê a possibilidade da adoção de ações afirmativas por parte dos Estados como importante medida para acelerar o processo de obtenção da igualdade entre homens e mulheres. Estas medidas devem ser especiais e temporárias, de caráter compensatório, visando remediar as desvantagens condições resultantes de um

 

 

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passado histórico altamente discriminatório, objetivam alcançar a igualdade substantiva por parte de grupos socialmente vulneráveis, devendo cessar quando alcançado o seu objetivo. São, em outras palavras, políticas compensatórias que visam transformar a igualdade formal em igualdade material e substantiva, assegurando a diversidade e a pluralidade social. Trata-se de verdadeira “discriminação positiva” a ser adotada pelos Estados, devendo ser sempre formuladas com observância aos princípios da razoabilidade, objetividade e proporcionalidade. Neste sentido, o art. 4o da Convenção dispõe que: 1. A adoção pelos Estados-partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como consequência, a manutenção de normas desiguais ou separadas: essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados. 2. A adoção pelos Estados-partes de medidas especiais, inclusive as contidas na presente Convenção, destinadas a proteger a maternidade, não se considerará discriminatória.

Assim, ao ratificarem a Convenção, os Estados-partes, ao mesmo tempo, assumem o compromisso de, progressivamente, eliminar todas as formas de discriminação de gênero, assegurando efetiva igualdade formal entre eles, além de se comprometerem a adotar políticas igualitárias e implantar medidas afirmativas no sentido de assegurar a igualdade material entre homens e mulheres. Alia-se à vertente repressivapunitiva a vertente positiva-promocional. Com relação ao artigo supracitado, vale transcrever trecho da Recomendação Geral n. 25 do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra Mulheres: O alcance e o significado do artigo 4o, parágrafo 1o, deve ser determinado no contexto global do objeto e da finalidade da Convenção, que é o de eliminar todas as formas de discriminação contra as mulheres, com vista ao estabelecimento da igualdade de jure e de facto das mulheres com os homens no gozo de seus direitos humanos e liberdades fundamentais. Os Estados Partes têm a obrigação legal de respeitar, proteger, promover e garantir este direito à não discriminação para as mulheres bem como assegurar o desenvolvimento e progresso

 

 

60 da mulher, a fim de melhorar a sua posição tanto na igualdade de jure como de facto em relação aos homens. Há uma clara diferença entre o objetivo das "medidas especiais" nos termos do artigo 4o, parágrafo 1o, e os do parágrafo 2o. O objetivo do artigo 4º, parágrafo 1o, é acelerar a melhoria da situação das mulheres para alcançar a sua igualdade de facto ou substantiva com os homens, e para efetivar as mudanças estruturais, sociais e culturais necessárias para corrigir formas e efeitos da discriminação passada e atual contra as mulheres, bem como proporcionar-lhes uma compensação. Estas medidas são de natureza temporária. O artigo 4o, parágrafo 2o, proporciona um tratamento não idêntico de homens e mulheres, devido às suas diferenças biológicas. Estas medidas são de natureza permanente, pelo menos até o momento em que o conhecimento científico e tecnológico citados no artigo 11, parágrafo 3o, justifiquem uma reavaliação. (tradução nossa)

Além disso, é inquestionável que tanto a jurisprudência internacional quanto a ONU apoiam a promoção e a adoção de medidas afirmativas pelos Estados visando o combate da discriminação e o alcance da igualdade material entre os indivíduos. Neste sentido, o Comitê de Direitos Humanos, em suas recomendações gerais n. 18 e n. 28 56 dispõe sobre o dever do Estado em adotar medidas (legislativas, administrativas e judiciais) que visem garantir a não discriminação, sugerindo inclusive a adoção de ações afirmativas para diminuir as causas que perpetuem a discriminação. Deste modo, na permanência de causas discriminatórias, as ações afirmativas são consideradas medida legítima e necessária para o Comitê de Diretos Humanos. Já a Recomendação Geral n. 16 do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, por sua vez, avança para a tendência das ações afirmativas, entendendo que: (...) os princípios da igualdade e da não discriminação, por si só, nem sempre são suficientes para garantir a igualdade de fato. Medidas especiais temporárias podem, às vezes, ser necessárias a fim de trazer pessoas ou grupos de pessoas desavantajados ou marginalizados para o mesmo patamar substantivo dos demais.

                                                                                                                56

Nos termos da Recomendação Geral n. 28, adotada em 2000, sobre a igualdade de direitos entre homens e mulheres (art. 3o do Pacto de Direitos Civis e Políticos), que atualiza a Recomendação Geral n. 04, de 1981: “A obrigação de assegurar a todos os indivíduos os direitos reconhecidos no Pacto, previstos nos artigos 2 e 3 do Pacto, requer que os Estados-partes tomem todas as medidas necessárias para possibilitar a cada pessoa o gozo desses direitos. Tais medidas incluem e remoção dos obstáculos ao igualitário exercício desses direitos, a educação em direitos humanos da população e de funcionários públicos e a adequação da legislação doméstica para dar o efeito aos esforços determinados no Pacto. O Estado-parte não deve somente adotar medidas de proteção, mas também medidas promocionais em todas as áreas para conseguir o empoderamento eficaz e igual das mulheres”.

 

 

61 Medidas especiais temporárias visam perceber não apenas a igualdade de jure ou formal, mas também igualdade de facto ou igualdade substantiva para homens e mulheres. No entanto, a aplicação do princípio da igualdade, por vezes, exige que os Estados Partes tomem medidas a favor das mulheres, com o intuito de atenuar ou suprimir as condições que perpetuam a discriminação. Enquanto estas medidas forem necessárias para reparar a discriminação de facto e se forem suprimidas quando a igualdade de fato for alcançada, essa diferenciação é legítima. (tradução nossa)

Como mencionamos no item 2.1 deste Capítulo, a atuação construtiva da jurisprudência internacional e das Recomendações dos órgãos das Nações Unidas transcende os limites das cláusulas de igualdade formal e da proibição da discriminação, delineando a concepção material da igualdade, e, a partir daí, é lançado o questionamento a respeito do papel do Estado na promoção destes direitos, demandando-se, por vezes, que ocorra a transição de uma posição de neutralidade para um protagonismo, capaz de aliviar e remediar o impacto não igualitário da legislação e de políticas públicas. Pode-se afirmar que o mencionado “protagonismo” estatal a que se referem se dá, justamente, mediante a adoção de medidas de ações afirmativas com vistas a promover a ascensão social das minorias, dos grupos vulneráveis e daqueles que historicamente foram inferiorizados e subjugados, até que estes atinjam um nível de equiparação com os demais. E, conforme estas vão sendo adotadas para eliminar a discriminação contra a mulher, suas necessidades podem mudar, ou, até mesmo, desaparecer. Assim, o monitoramento contínuo da legislação, dos programas e práticas direcionadas ao alcance da igualdade material da mulher é essencial para evitar a perpetuação de tratamentos não idênticos que já não se justifica. Importante frisar que a obrigação dos Estados-partes de eliminar a discriminação contra a mulher através da adoção de medidas legais, políticas e programáticas se aplica a todas as esferas da vida – tanto a pública quanto a privada – e incluem o dever de promover todas as medidas apropriadas no sentido de eliminar a discriminação contra a mulher praticada por qualquer pessoa, organização, empresa e pelos próprios entes estatais. Por fim, além da inegável importância das medidas especiais temporárias, de rigor o reconhecimento do papel da educação como medida emancipatória das mulheres.  

 

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O art. 10o da CEDAW trata de forma detalhada o direito à educação57. Apesar de não haver nenhuma Recomendação Geral do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra Mulheres que verse especificamente sobre educação, há uma série delas que esclarecem e precisam os termos e as obrigações dos Estados contidas no art. 10o da Convenção, enfatizando o papel central que a educação desempenha para a implementação de todos os direitos incluídos na Convenção. Por exemplo, nas Recomendações Gerais n. 5 58 e 25 do Comitê sobre a Eliminação de Discriminação contra a Mulher, este recomenda a aplicação de medidas especiais temporárias para acelerar a total integração de meninas e mulheres na área da educação, em base de igualdade com os homens. Nas Recomendações Gerais n. 3 (1987), referente ao Artigo 5o (a), e n. 19 (1992), esta última, sobre a violência contra as mulheres, o Comitê orienta os Estados Partes a buscar a eliminação de todos os conceitos estereotipados sobre os papéis de masculino e feminino através da educação e programas de informação pública. Afirma que atitudes                                                                                                                 57

Artigo 10 - Os Estados-partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher, a fim de assegurar-lhe a igualdade de direitos com o homem na esfera da educação e em particular para assegurarem condições de igualdade entre homens e mulheres: a) As mesmas condições de orientação em matéria de carreiras e capacitação profissional, acesso aos estudos e obtenção de diplomas nas instituições de ensino de todas as categorias, tanto em zonas rurais como urbanas; essa igualdade deverá ser assegurada na educação pré-escolar, geral, técnica e profissional, incluída a educação técnica superior, assim como todos os tipos de capacitação profissional; b) Acesso aos mesmos currículos e mesmos exames, pessoal docente do mesmo nível profissional, instalações e material escolar da mesma qualidade; c) A eliminação de todo conceito estereotipado dos papéis masculino e feminino em todos os níveis e em todas as formas de ensino mediante o estímulo à educação mista e a outros tipos de educação que contribuam para alcançar este objetivo e, em particular, mediante a modificação dos livros e programas escolares e adaptação dos métodos de ensino; d) As mesmas oportunidades para obtenção de bolsas-deestudo e outras subvenções para estudos; e) As mesmas oportunidades de acesso aos programas de educação supletiva, incluídos os programas de alfabetização funcional e de adultos, com vistas a reduzir, com a maior brevidade possível, a diferença de conhecimentos existentes entre o homem e a mulher; f) A redução da taxa de abandono feminino dos estudos e a organização de programas para aquelas jovens e mulheres que tenham deixado os estudos prematuramente; g) As mesmas oportunidades para participar ativamente nos esportes e na educação física; h) Acesso a material informativo específico que contribua para assegurar a saúde e o bem-estar da família, incluída a informação e o assessoramento sobre planejamento da família. 58 Recomendação Geral No. 5 (sétima sessão, 1988) sobre Medidas Temporárias Especiais: “O Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, observando que os relatórios, as observações introdutórias e as respostas dos Estados Partes revelam que, enquanto um progresso significativo foi alcançado no que diz respeito à revogação ou à modificação de leis discriminatórias, ainda há uma necessidade de ação a ser tomada para implementar plenamente a Convenção através da introdução de medidas destinadas a promover a igualdade de facto entre homens e mulheres, recordando o artigo 4.1 da Convenção. Recomenda que os Estados Partes façam mais uso de medidas especiais temporárias, tais como ações positivas, tratamento preferencial ou sistemas de quotas para avançar na integração das mulheres na educação, na economia, na política e no emprego.” (tradução nossa)

 

 

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tradicionais pelas quais as mulheres são vistas como subordinadas aos homens “perpetuam a difusão de praticas que envolvem violência ou coação”, contribuindo assim para diminuir o nível educacional das mulheres. O Comitê afirma, expressamente, que programas e informações “deverão contribuir para eliminar os preconceitos e as práticas atuais que impedem o pleno funcionamento do princípio da igualdade social da mulher.”. As Recomendações Gerais n. 14 e 15 (1990), por sua vez, enfatizam que temas específicos de saúde que afetam as mulheres, tais como a mutilação genital feminina (FMG) e HIV/AIDS devem ser relacionados tanto ao direito à educação quanto ao direito à igualdade de acesso aos cuidados de saúde, recomendando que os Estados Partes introduzam “programas de formação e seminários baseados em resultados de investigações sobre os problemas decorrentes de circuncisão feminina (FMG)” e também “tomem medidas para reforçar o papel (das mulheres) [...] como educadoras na prevenção de infecção com o HIV”59. Assim, as Recomendações Gerais do Comitê CEDAW endossam a relevância das ações afirmativas para que a mulher se integre na educação, na economia, na política e no emprego. O Comitê ainda recomenda que os Estados-partes velem para que as mulheres em geral, e os grupos de mulheres afetados em particular, participem da elaboração, aplicação e avaliação dos referidos programas. Recomenda-se, em especial, que se tenha um processo de colaboração e consulta com a sociedade civil e com organizações não governamentais que representem distintos grupos de mulheres. Conclui-se, portanto, que a posição da mulher não será aprimorada enquanto as causas substanciais da discriminação (e da sua desigualdade em comparação aos homens) não forem efetivamente enfrentadas. Neste passo, é importante que homens e mulheres sejam considerados de maneira contextual e que medidas sejam adotadas no sentido de promover uma transformação real das oportunidades, das instituições e dos sistemas socioculturais de modo que estes passem a não mais se basear em paradigmas masculinos de poder e de padrões de vida historicamente determinados, visando aliviar e transformar o impacto distorcido de leis e                                                                                                                 59

PIMENTEL, Silvia. Educação, Igualdade, Cidadania – A Contribuição da Convenção CEDAW/ONU. SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (coords.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 309/3010.

 

 

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políticas públicas que, ao serem aparentemente não discriminatórias, acabam por afetar de forma desproporcional diversos grupos vulneráveis e obstam o pleno e livre exercício de direitos e liberdades fundamentais.

 

 

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Capítulo III – Da prática da Mutilação Genital Feminina 3.1 – Origens da prática da Mutilação Genital Feminina De início, é de suma importância esclarecer alguns aspectos relevantes acerca da prática da mutilação genital feminina (MGF). A excisão feminina, ao contrário do que muitos supõem, não teve origem a partir de uma determinada religião, apesar de atualmente muitas vezes ser associada diretamente ao islamismo. Relatos históricos sugerem que a prática da excisão ou amputação do clitóris teve início há cerca de três mil anos, no Oriente, principalmente na região da África e da Ásia centrais, tendo ganhado força nas dinastias mais autoritárias do Egito Antigo (existindo, inclusive, relatos de múmias femininas com claros sinais de circuncisão genital). A primeira menção a esta prática é datada da época ptolomaica (século II a.C), na qual um documento relata o processo entre um homem e uma mulher cuja filha estaria “em idade de sofrer a circuncisão em conformidade com a tradição egípcia”60. O costume milenar da prática da excisão em meninas e adolescentes foi disseminado por diversas outras culturas e civilizações, tendo como fundamento diferentes motivos, seja de cunho religioso ou decorrente de conjuntos de dados socioculturais específicos. Os dogons61, por exemplo, concebem a excisão genital da seguinte maneira: A criança chega ao mundo provida de dois princípios de sexos diferentes e teoricamente pertence tanto a um como ao outro; o sexo de sua pessoa é indiferenciado. Na prática, a sociedade, por antecipação, reconhece-lhe desde o início o sexo que ela traz na aparência (...). Munida de suas duas almas, a criança prossegue seu destino. Mas seus primeiros anos são marcados pela instabilidade de sua pessoa. Enquanto conserva seu prepúcio ou seu clitóris, suportes do princípio de sexo contrário ao seu sexo aparente, masculinidade e feminilidade têm a mesma força (...) Se esta indecisão em que está quanto ao seu sexo devesse durar, o ser nunca teria nenhuma inclinação para a procriação. Com efeito, o clitóris que a menina recebeu é um gêmeo simbólico, um substituto macho com o qual ela não poderia reproduzir-se e que, ao contrário, a impediria de unir-se a um homem. Assim como Deus viu erguer-se contra ele o órgão da terra, assim também o homem que se unisse a uma mulher não excisada seria ‘picado’ e a oportunidade de

                                                                                                                60

ROULAND, Norbert. Nos confins do direito. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 198. Povo que habita uma remota região no interior da África Ocidental, mais especificamente em Mali e em Burkina Faso. 61

 

 

66 sua presença discutida pelo órgão que se pretenderia seu igual. O indivíduo, de outro lado, não pode conduzir-se normalmente sob uma dupla direção. É necessário que um dos princípios prevaleça definitivamente sobre o outro.62

Por outro lado, Sorano de Éfeso, físico e médico grego, ao escrever um dos livros pioneiros sobre ginecologia no século II, afirmou que: Um clitóris grande é um sintoma de torpeza; na realidade [tais mulheres] se esforçam para ter seu próprio corpo estimulado assim como os homens e para obter relações sexuais, como se homens fossem. Agora, executaremos nela a operação cirúrgica da seguinte maneira: colocando-a deitada de costas com os pés fechados, deve-se manter no local um pequeno fórceps que projete a parte [do clitóris] que se mostre em excesso para que seja cortada com um bisturi. (tradução nossa)63.

Documentos mais recentes também se referem à excisão genital feminina como uma prática corriqueira e, de certa forma, se não incentivada, ao menos permitida pela medicina ocidental. Livros de cirurgia alemães, datados de 1666, incluem ilustrações de como amputar o clitóris e, durante o Iluminismo, a literatura médica questionava a verdadeira natureza do clitóris, existindo uma forte corrente que defendia tratar-se de verdadeira anomalia que justificava a sua ablação. A hipertrofia clitoriana também era comumente condenada, pois acreditava-se que esta condição causava lascívia contínua e compulsiva nas mulheres que apresentavam tal característica (motivo pelo qual, supostamente, tornavam-se prostitutas, homossexuais e altamente infiéis), sendo recomendada, nestes casos, a amputação do clitóris. Por mais improvável que possa parecer, esta prática ocorria regularmente na Inglaterra até a década de 1860 e, depois disso, ocasionalmente, em alguns países da Europa e da América. Deste modo, percebe-se que, em suas diversas origens, a mutilação genital era vista como uma prática imperiosa devido à associação do clitóris a uma indecisão sexual que favorecia a homossexualidade e a promiscuidade da mulher; como rito de passagem para que a menina pudesse ingressar na vida adulta; ou, ainda, como forma de combater a androginia primordial afirmada por numerosíssimos mitos fundamentais.                                                                                                                 62

ROULAND, Norbert. Nos confins do direito. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 199/200. Nicholas D.; WUDUNN, Sheryl. Half the sky – turning oppression into opportunity for women worldwide. Nova Iorque: Vintage Books, 2010. 63  KRISTOF,

 

 

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A excisão feminina não é vista em todas as culturas e povos que a praticam, necessariamente, como forma de dominação de gênero. De acordo com Norbert Rouland64: Por outro lado, se a excisão pode ser assimilada a uma técnica de dominação dos homens sobre as mulheres, não deve reter unicamente esse seu aspecto. Com muita frequência, é inscrição no corpo de um estatuto social, na medida em que se supõe que fixa definitivamente a mulher em seu sexo: representação que explica que muitas mulheres a legitimem. (...) Mas parece mesmo que, por trás de todas essas montagens intelectuais, deva-se ver muitas vezes o medo que os homens sentem das mulheres, aparentemente vivo nas sociedades patriarcais. De maneira geral, o sexo feminino é percebido como inestético, sufocante. E, sobretudo, ameaçador. (...) Decerto, sempre temos medo das mulheres, sobretudo quando elas dão prova de que também podem, tão bem quanto os homens, cumprir certas tarefas.

Contudo, afirma a autor que, especialmente com o surgimento das religiões monoteístas – o judaísmo e o islamismo – é que as mutilações sexuais deixaram de ser rituais de diferenciação para se tornarem verdadeiras marcas de se pertencer a determinada religião, muitas vezes praticadas logo após o nascimento. Neste ponto, a circuncisão masculina representa a identidade judaica ou mulçumana, enquanto a excisão feminina, em terras islâmicas, tende a se transformar largamente em um instrumento de dominação masculina, pretensamente imposta pelo Alcorão. É importante ressaltar que, ainda que a mutilação genital seja praticada entre Cristãos, Judeus e Muçulmanos, nenhum dos seus textos sagrados a prescreve explicitamente, sendo certo que suas origens precedem tanto o Cristianismo como o Islamismo.

3.2 – Motivos pelos quais ainda se praticam as mutilações genitais femininas   Após apresentarmos sucintamente as origens e fundamentos desta prática ancestral, discorreremos acerca dos principais motivos que ainda fundamentam sua realização nos dias atuais. É inegável que a prática da mutilação genital feminina                                                                                                                 64

 

ROULAND, Norbert. Nos confins do direito. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 199/201.

 

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apresenta profundas raízes sociais e culturais, mas estes não são os únicos fatores que a motivam exclusivamente. Dentre os vários motivos que ainda hoje tentam justificar a prática da mutilação genital feminina podemos mencionar os seguintes: •

Ajuda a preservar a virgindade da mulher até ao casamento;



Protege a honra da família garantindo a legitimidade dos descendentes;



Reduz o desejo sexual da mulher tornando-a “menos promíscua”;



Aumenta o prazer do homem durante a relação sexual;



É necessária por motivos de higiene e estética;



É benéfica para a saúde, garantido o aumento da fertilidade das mulheres e facilitando o parto;



Promove a coesão social;



Aumenta as oportunidades matrimoniais. A) Identidade cultural e coesão social: O costume e a tradição são, com efeito, as razões mais invocadas para explicar a

prática da mutilação genital feminina. Junto com outras características físicas ou de comportamento, a mutilação genital feminina define quem pertence ao grupo, e isso fica mais evidente quando esta é praticada como parte do ritual de iniciação da vida adulta da menina. Como tradições que são, a obediência das mesmas dão, aos seus seguidores, um sentimento de pertinência, de aceitação social e de identidade de grupo. O ex-presidente do Quênia, Jomo Kenyatta, sustentava que a mutilação genital feminina era inerente à iniciação, a qual consiste em uma parcela essencial da identidade dos kikuyus, ao ponto de sua abolição destruir o sistema tribal. Estudos realizados em Serra Leoa apontam para um sentimento similar de coesão social e política promovida por parte da sociedade que pratica as mutilações como ensinamentos iniciais. Esta prática também está relacionada e intimamente ligada a questões de “honra familiar”, sendo percebida como um atributo vital para a posição que a família da menina ocupa na sociedade e para a coesão social. A honra é cuidadosamente guardada pelos

 

 

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diferentes membros da família e pode ser perdida devido às atitudes dos mesmos, em especial pelas mulheres e meninas. A prática é perpetuada dentro do sistema social e qualquer desvio da norma implica comportamentos imorais e causa a perda da honra. O corte dos genitais femininos é também uma situação de grande coesão inter-pares, uma vez que existe uma aproximação com aquelas que passaram pela mesma experiência. Muitas pessoas (inclusive as mulheres) que pertencem a sociedades que praticam a mutilação genital, especialmente as comunidades rurais tradicionais, consideram que este é um hábito tão normal que não podem imaginar uma mulher que não tenha sido submetida à mutilação, alegando que uma menina não pode se considerar adulta a menos que tenha passado por esta prática. Sob este ponto de vista, apenas as mulheres marginalizadas e as estrangeiras não seriam mutiladas, fazendo com que seja de extrema importância para as habitantes locais se submeter à prática, para que possam se sentir aceitas na sua própria sociedade, respeitando as tradições de sua cultura. Consequentemente, nas culturas em que é praticada de forma generalizada, a mutilação genital feminina tornou-se uma parte importante da identidade cultural de meninas e mulheres e pode mesmo transmitir um sentido de orgulho, de maturidade e de integração na comunidade. Pelo mesmo motivo, quando a prática da mutilação genital feminina é realizada fora das comunidades de origem, é assumida como uma forma de afirmação e proximidade com as suas raízes. As próprias meninas podem desejar ser submetidas às intervenções, como resultado da pressão social a que estão sujeitas pelos seus parentes e compelidas pelo medo de estigmatização e rejeição pelas suas comunidades, caso não sigam a tradição. Para além disso, em alguns locais são concedidas recompensas como celebrações, reconhecimento público e ofertas. Segundo relatórios da Anistia Internacional, é possível que mulheres que não se submetam à mutilação genital sofram problemas psicológicos devido ao rechaço social. A discriminação no meio social faz com que as meninas e mulheres não mutiladas possuam forte sentimento de culpa e de exclusão.

 

 

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Aquelas que fogem de suas famílias ao perceberem que estão prestes a passar pela mutilação genital são, muitas vezes, rechaçadas pela própria família e pelas demais integrantes da sociedade, que não lhes oferecem qualquer tipo de amparo substancial. As meninas que optam pela fuga, como único caminho plausível para escapar da prática, passam os dias vivendo às margens da sociedade, motivo pelo qual ONGs atuam nestes locais acolhendo tais meninas que, às vezes, ainda vivem sob a pressão de serem capturadas por suas famílias. B) Identidade sexual e controle da sexualidade e das funções reprodutivas: A prática da mutilação genital feminina também se afirma necessária para que uma menina possa ser plenamente considerada como mulher, sendo que a excisão marca a diferenciação dos dois sexos no que concerne aos seus futuros papéis na vida social e no matrimônio, podendo ser vista como uma forma de “identidade de gênero”. Como já mencionamos anteriormente, algumas culturas acreditam que o clitóris assemelha-se ao órgão genital masculino, devendo ser removido para que possa ser criada a verdadeira mulher, sendo que a sua não remoção aumentaria o desejo sexual, a masculinidade e comportamentos agressivos da mulher, assim com o número de parceiros sexuais (características concebidas como sendo predominantemente masculinas). Devido ao fato de as sociedades que praticam a mutilação genital feminina serem marcadamente patriarcais, torna-se de extrema importância impedir que a mulher tenha contatos sexuais “ilegítimos” protegendo-as de relações sexuais não desejadas pois, do contrário, a honra de toda a família estaria maculada. Assim, costuma-se justificar a prática através do argumento de que esta promove a feminilidade, gerando a autodisciplina sexual da mulher e aumentando sua docilidade, pureza, castidade e obediência, demarcando intenções explícitas sobre o papel de submissão da mulher em sua sociedade. Acreditam que a mutilação genital mitiga o desejo sexual da mulher e, portanto, reduz a possibilidade destas terem relações sexuais extraconjugais, diminuindo o índice de infidelidade. Também é vista como uma forma de assegurar a linhagem, pois diminui as hipóteses de eventuais envolvimentos antes do casamento.

 

 

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O corte dos genitais femininos é considerado uma prática normal como precaução para a preservação da moralidade e da virgindade da menina (que é considerado um prérequisito para o casamento) e, tratando-se de ritual de iniciação, considera-se que somente após a excisão é que a menina adquire a capacidade de exercer em plenitude o seu papel de mulher, mãe e esposa. Portanto, em muitas das sociedades que praticam a mutilação genital feminina, é extremamente difícil, ou quase impossível, que uma mulher contraia matrimônio caso não tenha sido submetida à mutilação genital, pois é esperado que os homens se casem apenas com mulheres que tenham sido submetidas à prática. O fato de não conseguir se casar, nestes casos, implica enormes prejuízos às mulheres, tendo em vista que as comunidades em que habitam não lhes reconhecem qualquer status socioeconômico e que, normalmente, as mulheres possuem poucos recursos sociais, sendo o matrimônio a única garantia do seu futuro. O desejo de um casamento segundo os trâmites instituídos é frequentemente um fator essencial na segurança econômica e social da comunidade e poderá ser responsável pela persistência da prática. A prática da mutilação genital feminina continua, assim, a ser uma mensagem subliminar sobre o que é “esperado de uma mulher”, sob o ponto de vista de sociedades e culturas patriarcais tradicionais, com a proibição da vivência do prazer sexual. C) Crenças relativas à higiene, estética e saúde: A limpeza e a higiene também são invocadas sistematicamente pelas sociedades que praticam a mutilação genital feminina como uma das razões que a justificam. Não raro, os termos populares para se referir à prática da mutilação genital feminina significam “purificação” ou “limpeza” nos dialetos locais. Deste modo, algumas sociedades consideram que os órgãos genitais femininos são extremamente sujos e que, portanto, as mulheres não mutiladas não seriam “limpas”, existindo relatos de que em alguns lugares estas mulheres não são autorizadas sequer a manipular alimentos e água, para que não contaminem o resto da comunidade.

 

 

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Além disso, na maioria das culturas que praticam a mutilação genital, os órgãos genitais femininos são concebidos como uma parte do corpo feia e volumosa, que apenas prejudica a estética do corpo da mulher. Por fim, diversas sociedades entendem ser a mutilação genital uma verdadeira questão de saúde. Isso porque acredita-se que o clitóris, quando não é removido, pode aumentar de tamanho, provocando lesões no recém-nascido durante o parto ou até mesmo sua morte. Há aqueles que defendem que, por ser um órgão extremamente perigoso, caso o clitóris da mulher entre em contato com o pênis do homem no momento da relação sexual, este morrerá. Outras sociedades acreditam que esta prática aumenta a fertilidade (sustentando, às vezes, que as mulheres não mutiladas são incapazes de conceber) ou que faz com que o parto seja mais seguro, prevenindo o nascimento de natimortos e que os recém-nascidos venham a sofrer de doenças mentais. Os supostos benefícios para a saúde não são os motivos mais invocados para justificar a mutilação nas sociedades em que estas ainda ocorrem. Mas naquelas em que o são, provavelmente se deve ao fato de a mutilação genital fazer parte de um rito de iniciação, onde se ensina às garotas a serem fortes e resignadas diante da enfermidade.

3.3 – Definição de Mutilação Genital Feminina (MGF): terminologias empregadas e os diferentes tipos de mutilação de acordo com a classificação da Organização Mundial da Saúde Encontramos diversas nomenclaturas conferidas à Mutilação Genital Feminina (MGF), tais como, circuncisão feminina, clitoridectomia, cirurgia genital feminina, sunna, excisão, etc. No entanto, deve-se atentar para a carga valorativa destas diversas denominações; se por um lado o termo “mutilação genital” aponta para uma repulsa pela prática, o termo “cirurgia genital” é usado por profissionais da saúde no Egito, por exemplo, evidenciando a aceitabilidade da prática, que constitui inclusive uma especialidade médica. Durante os primeiros anos em que a prática foi discutida fora dos grupos praticantes, era geralmente identificada como “circuncisão feminina”. Contudo, esta  

 

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expressão faz um paralelismo com a circuncisão masculina e, como resultado, aproxima e confunde estas duas práticas distintas, pretendendo uma errônea equiparação entre as excisões praticadas entre os dois sexos e trazendo, de certa forma, uma conotação positiva aos rituais que removem parcial ou totalmente os órgãos genitais femininos (que, na verdade, deveriam ser tratados como violações aos direitos humanos das mulheres). Diante da ausência implícita de uma conotação de violência e agressão o termo “circuncisão feminina” foi sendo, aos poucos, substituída, tendo a expressão “mutilação genital feminina” ganhado força durante o final da década de 1970. O termo “mutilação” estabelece uma distinção linguística clara da circuncisão masculina e enfatiza a gravidade e o dano causado pelo ato às crianças e mulheres que a ela se submetem. A utilização da palavra “mutilação” reforça, portanto, o fato de que a prática constitui verdadeira violação dos direitos humanos, enfatizando as consequências negativas deste tipo de prática à integridade física e psíquica das meninas e mulheres e, ao mesmo tempo, afirma a necessidade da promoção nacional e internacional de iniciativas que visem o seu abandono. Em 1990, esta expressão foi adotada oficialmente durante a terceira Conferência do Comité Inter-Africano sobre Práticas Prejudiciais que afetam a Saúde das Mulheres e Crianças (realizada em Addis-Abeba, na Etiópia) e, em 1991, a OMS recomendou a utilização desta expressão pelas Nações Unidas. Desde então, a referida nomenclatura tem sido largamente utilizada tanto nos documentos oficiais da ONU (quer em trabalhos de investigação, quer por algumas de suas agências especializadas) quanto pela sociedade civil e organizações não governamentais que promovem a promoção dos direitos humanos. Contudo, justamente diante do sentido negativo do termo “mutilação”, verificouse que o uso dessa palavra afastava as comunidades praticantes, impedindo, às vezes, o próprio processo de mudança social para a eliminação da mutilação genital feminina. Assim, para captar o significado do termo “mutilação” ao nível político e, ao mesmo tempo, usar terminologia não-valorativa no trabalho com as comunidades praticantes, a UNICEF e a UNFPA utilizam também a expressão “corte dos genitais femininos”. Algumas organizações internacionais que lutam para a eliminação da prática também adotam esta terminologia “mais branda”, sob o fundamento de que é necessário

 

 

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ter uma posição mais defensiva em certos países, fazendo com que os grupos tribais que praticam a mutilação genital como tradição não se sintam atacados por estrangeiros. Às vezes a saída mais inteligente é regredir um pouco, usando ternos mais neutros como ‘corte genital’, que não passam tanto a impressão de que as mulheres que persistem em defender a prática, as quais se está querendo atingir para alcançar uma mudança estrutural, são mutiladas, o que torna o diálogo ainda mais desconfortável65. Quando o alvo são as comunidades praticantes, é recomendada a utilização de terminologias locais66, que possuem conotação muito mais simbólica e cultural, pois estas não possuem o viés valorativo considerado ofensivo e discriminatório pelas próprias mulheres e meninas da comunidade que a praticam ou que já foram sujeitas a esta prática. Neste passo, nos programas e projetos de prevenção e informação das comunidades locais, a utilização do termo “mutilação genital feminina” pode vir a ser contraproducente no estabelecimento de uma relação de confiança entre o técnico e os indivíduos alvo, sendo de rigor que os especialistas tenham sempre em mente que a aproximação e a confiança são essenciais para que possam ser abordados os aspectos mais difíceis e sensíveis para as mulheres afetadas e que necessitam de apoio e assistência. Entretanto, continua a ser de extrema importância a necessidade de adaptarmos a terminologia consoante o contexto no qual esta é mencionada. Por isso, para os efeitos das declarações, convenções e documentos normativos internacionais, todos os organismos e agências das Nações Unidas concordaram em utilizar a designação única de “mutilação genital feminina”, na medida em que este termo é claramente percebido como um atentado claro contra a integridade física e psíquica das mulheres e meninas, salientando a existência da amputação de uma parte funcional e sã do organismo feminino. Deve ser esclarecido, porém, que está se tratando aqui de mais de uma forma de mutilação genital, pois, cada país, região ou grupo étnico adota procedimentos diferentes.

                                                                                                                65

KRISTOF, Nicholas. WUDUNN, Sheryl. Half the Sky – turning oppression into opportunity for women worldwide. Vintage Books: Nova Iorque, 2010. p. 223/224. 66 Por exemplo, a população mulçumana refere-se à MGF como sunna. Em somali utiliza-se a expressão gadba haada, e em Mandinda o termo ñyakaa.

 

 

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De acordo com a definição dada pela Anistia Internacional, mutilação genital feminina “é o termo adotado para referir-se a extirpação parcial ou total dos órgãos genitais femininos”. De maneira similar, a Organização Mundial da Saúde (OMS) define a MGF como “todos os procedimentos que envolvem a remoção parcial ou total dos órgãos genitais femininos ou que provoquem lesões nos mesmos, tendo por base razões culturais ou fins não terapêuticos”. Assim, existe uma variedade de tipos de “cortes genitais femininos” que foram classificados pela OMS da seguinte forma (levando-se em conta os diferentes graus de agressividade e potencialidade de risco das excisões ou ablações)67. Classificação das Mutilações Genitais Femininas (Organização Mundial da Saúde, 1997):

Tipo I

Clitoridectomia - remoção parcial ou total do clitóris e/ou do prepúcio (pele que cobre o clitóris). Excisão – remoção parcial ou total do clitóris e dos pequenos lábios podendo

Tipo II

haver ou não remoção dos grandes lábios (com ou sem excisão dos grandes lábios). Infibulação – Estreitamento do orifício vaginal através da remoção dos lábios menores e/ou parte dos grandes lábios (podendo, ou não, haver a excisão do

Tipo III

clitóris) seguida pela junção dos dois lados da vagina (aposição/sutura dos pequenos lábios e/ou dos grandes lábios), criando uma membrana selante, restando apenas uma pequena abertura para a saída da urina e do fluxo menstrual. Também denominada circuncisão faraônica e circuncisão somali.

Qualquer outro tipo de intervenção sobre esta parte do corpo que não esteja incluída nos procedimentos anteriormente descritos, por razões não médicas, Tipo IV

cujos procedimentos incluem: alongamento do clitóris ou lábios, cauterização por queimadura do clitóris e tecidos circundantes, utilização desubstâncias

                                                                                                                67

A classificação da mutilação genital feminina foi elaborada pela primeira vez numa publicação técnica em 1995 (OMS, 1996). Uma classificação formalmente reconhecida é útil para fins como: a investigação sobre as consequências das diferentes formas de mutilação, estimativas de prevalência e as tendências de mudança, na identificação de tratamentos e consequências na saúde e em questões legais. Não obstante, é inerente a um sistema de classificação a simplificação da informação e, portanto, pode não refletir a amplitude de variações dos procedimentos reais.

 

 

76 químicas ou introdução de objetos e plantas com o intuito de queimar ou perfurar os órgãos genitais, escarificação, punção, etc.

Verifica-se que o procedimento menos extremo consiste na ablação apenas do clitóris ou do prepúcio, e a sua forma mais severa é a infibulação, também conhecida como circuncisão faraônica, por meio da qual ocorre a ablação dos lábios para criar uma superfície em carne viva que depois é costurada (muitas vezes utilizando-se espinhos de plantas) ou que se mantem unida por outros métodos, a fim de que, ao cicatrizar, tampem quase por completo a vagina. Estima-se que a grande maioria das mutilações genitais praticadas no continente africano são clitoridectomias ou excisões (cerca de 85% dos casos), sendo que os 15% restantes dos casos correspondem à infibulação. O tipo de mutilação, a idade e a maneira em que se pratica a mutilação genital variam de acordo com diversos fatores, entre eles: o grupo étnico a que pertence a mulher ou a menina, o país onde vive, se habita em uma área rural ou urbana e até mesmo a sua origem socioeconômica.

3.4 – Os diversos procedimentos que podem ser empregados e os efeitos físicos e psicológicos da Mutilação Genital Feminina A prática da mutilação genital feminina é, na maioria das vezes, rodeada de rituais que variam de acordo com vários fatores distintos, o que faz com que existam diversas formas de execução destes procedimentos. Estudos diversos nesta área descrevem o ritual como “primitivo”, quase sempre realizado sob condições de higiene precárias. O procedimento é levado a cabo entre mulheres de idades distintas, que oscila entre pouco depois do nascimento até a primeira menstruação, podendo ser praticada inclusive em mulheres completamente adultas, antes do casamento ou após a primeira gravidez. Porém, dados apontam que, geralmente, a mutilação genital feminina faz parte de um ritual de passagem para a idade adulta, sendo praticada, na maioria das vezes, em meninas que tenham entre 04 e 08 anos de idade.

 

 

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Trata-se, na verdade, de uma puberdade social e não fisiológica, e os rituais de iniciação são considerados pelas comunidades que os praticam como imprescindíveis para o futuro das meninas. Entretanto, segundo a OMS, a média de idade está diminuindo progressivamente. Isso indica que a prática está cada vez menos associada à iniciação da idade adulta, distanciando-se dos rituais de passagem tradicionais, em especial nas zonas urbanas. Algumas meninas são mutiladas individualmente, mas a prática ocorre com maior frequência em grupos (por exemplo, grupos de irmãs, de mulheres unidas por algum grau de parentesco próximo, grupos de vizinhas, etc.). Nos locais e culturas onde a mutilação genital faz parte de uma cerimônia ou ritual de iniciação, é mais provável que se pratique em todas as meninas da comunidade que pertençam a uma determinada faixa etária. O procedimento pode ser feito na casa da menina ou de algum parente, em um centro de saúde ou, caso esteja atrelado à iniciação da vida adulta, em um lugar especialmente designado para a prática do ato (no centro da aldeia, próximo a um determinado rio ou qualquer outra localidade específica, podendo se tratar de grande acontecimento festivo para a comunidade), contudo, geralmente, só é admitida a presença de mulheres durante a mutilação das meninas. A pessoa responsável pela prática da mutilação pode ser uma mulher anciã da comunidade, uma parteira ou curandeira tradicionais, uma obstetra ou até mesmo um médico qualificado. Em diversas sociedades a prática deste ritual assegura poder econômico às excisadoras e suas famílias, um elevado status ou prestígio social (equivalente àquele desfrutado por médicos e doutores em comparação às culturas ocidentais), além de lhes garantir o respaldo e apoio dos líderes das tribos, que têm receio de não casarem suas filhas se elas não forem mutiladas. Em algumas situações as mulheres realizam não só o ritual da excisão mas também todos os procedimentos de preparação para o casamento, parto e pós-parto (o abrir e fechar da vagina), sendo que a realização de cada um destes procedimentos proporciona-lhe uma determinada remuneração. Em outras comunidades a mutilação genital feminina funciona como uma verdadeira negociação do “preço da noiva”,

 

 

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contribuindo para a economia local do mesmo modo como ocorre com qualquer outra mercadoria ou produto à venda. Em muitas sociedades, as anciãs que foram sujeitas à mutilação atuam como guardiãs da prática, considerando-a essencial à identidade de meninas e mulheres. Esta é provavelmente uma das razões pela qual mulheres, frequentemente as mais velhas, apoiam a prática e encaram os esforços para a combater como um ataque à sua identidade e cultura. Ainda que o procedimento seja executado em clínicas (estabelecimentos de saúde públicos ou privados), estão presentes os mesmos fatores que quando realizado por parteiras tradicionais, ou seja, a clínica também exige uma contraprestação em dinheiro para realizar a mutilação genital assistida. Ao serem questionados acerca dos motivos que os levam a praticar a mutilação genital feminina, ao invés de desencorajar a sua realização, os profissionais de saúde argumentam que é melhor para a mulher que esta ocorra em clínicas e hospitais, onde as condições de assepsia e higiene são adequadas, uma vez que, se assim não fosse, iria ser realizado de qualquer forma no ambiente doméstico. No entanto, o fato de ser realizada por profissionais de saúde perpetua e incentiva a existência deste ritual, alterando apenas os agentes da execução e alargando as suas fontes de rendimento. Assim, nas últimas décadas, a mutilação genital feminina passou a ser vista como verdadeira atividade econômica lucrativa, na medida em que a família da menina deve oferecer uma remuneração pecuniária às pessoas responsáveis pela prática do procedimento para que este seja realizado (seja às excisadoras tradicionais seja aos profissionais de saúde). A fonte extra de rendimentos é outro motivo que faz com que as mulheres anciãs incentivem e defendam tão fervorosamente a continuidade da prática da mutilação genital feminina. Raras são as vezes em que se administra algum tipo de anestésico local antes da prática. Em algumas culturas as meninas devem permanecer com os órgãos genitais submersos em água fria por algum tempo para entumecer a região e reduzir a probabilidade de sofrerem hemorragias. Sem embargos, o mais comum é que não seja tomada nenhuma medida para reduzir a dor (em alguns rituais de passagem as meninas são inclusive incentivadas a sentirem a dor e permanecerem fortes).

 

 

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As meninas devem ser imobilizadas, geralmente pelas anciãs, com as pernas abertas. A mutilação é realizada em seguida, utilizando-se para tanto pedaços de vidros quebrados, tampas de latas de alumínio, tesouras, facas, lâminas de navalhas ou quaisquer outros instrumentos cortantes, sem qualquer tipo de assepsia (conferindo altíssimos riscos a quem é submetido à mutilação). Quando se pratica a infibulação, são utilizados espinhos de árvores ou, com menos frequência, pontos cirúrgicos para unir ambas as partes dos lábios maiores, e as meninas podem permanecer até 40 dias com as pernas amarradas para que ocorra a cicatrização. Podem ser utilizadas diversas substâncias consideradas cicatrizantes, como unguentos de ervas, leite, ovos, cinzas ou esterco. No caso de meninas pertencentes a classes sociais elevadas, é mais provável que a mutilação seja realizada em centros urbanos, por um médico qualificado, muitas vezes em um hospital, utilizando-se anestesia local ou geral. Quanto aos efeitos físicos e psíquicos atrelados a prática da MGF, estes são inúmeros 68 , apresentando-se tanto imediatamente após o ato como a longo prazo. Discorreremos, primeiramente, acerca dos efeitos físicos que podem decorrer da mutilação genital feminina, tratando, em seguida, dos diversos efeitos psíquicos que podem acometer as crianças e mulheres mutiladas. A mutilação genital feminina está associada a uma série de riscos e consequências para a saúde, sendo certo que quase a totalidade de meninas e mulheres submetidas à prática sofre de dores fortes e hemorragias como consequência do ato69. A própria intervenção é traumática, uma vez que as meninas são, normalmente, coagidas fisicamente durante o procedimento.

                                                                                                                68

Ao contrário do que ocorre com a mutilação genital feminina, a circuncisão (masculina) apresenta vantagens significativas para a saúde que ultrapassam o baixo risco de complicações quando executada, em condições de higiene, por profissionais devidamente equipados e formados. Vem sendo demonstrado que a circuncisão (masculina) reduz o risco de infecção por HIV em aproximadamente 60% e é atualmente reconhecida como intervenção adicional para a redução da infecção nos homens em cenários com elevada incidência do vírus. 69 As consequências imediatas, como infecções, são documentadas apenas quando as mulheres procuram cuidados médicos hospitalares. Consequentemente, a verdadeira extensão das complicações imediatas e o número real de mulheres afetadas, é desconhecido. Do mesmo modo, não se tem uma estimativa precisa de quantas mulheres já morreram durante ou após os procedimentos, devido ao fato destes ocorrerem, na maioria das vezes, no interior de suas tribos, afastados dos meios urbanos, através de um ritual discreto.

 

 

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Devido ao fato de as mulheres e meninas serem agarradas e imobilizadas para que seja realizada a mutilação (havendo, muitas vezes, uma enorme resistência por parte da criança que será submetida ao ato), os danos corporais imediatos podem ser mortais70. Além da dor, pode ocorrer hemorragia intermitente e danos irreversíveis nos órgãos que rodeiam o clitóris e os lábios. Em seguida, pode ocorrer retenção de urina e infecções crônicas graves. Além disso, a utilização do mesmo instrumento cortante em várias meninas, sem qualquer esterilização, pode provocar a propagação de vírus como o HIV. A clitoridectomia e a excisão podem causar abscessos e pequenos tumores nos nervos vaginais, acarretando mal-estar constante e dores intensas. A curto prazo, a mutilação genital pode ainda causar: choque, infecções da ferida provocada pelo corte dos genitais, transmissão do tétano, danos de outros órgãos (uretra, esfíncter anal, paredes vaginais), retenção da urina por inflamação e bloqueio da uretra, infecções urinárias, febre e septicemia, dores durante o coito. A médio prazo pode acarretar: anemia severa, infecções pélvicas, dismenorreia, formações de cicatrizes e deformidades genitais, complicações durante gravidez e parto. Por fim, a longo prazo pode causar: infertilidade, fístulas vaginais, complicações obstétricas devido a infecções perianais, formação de cálculos e pedras na vagina, lacerações fatais devido ao trabalho de parto prolongado, disfunções sexuais no casal, aumento de infecções sexualmente transmissíveis, tal como o HIV e a Hepatite B. Os maiores riscos atrelados à prática da MGF ocorrem, contudo, durante ou logo após as mulheres darem a luz. Conclusões de uma pesquisa desenvolvida pela OMS em diversos países do continente africano acerca das consequências que a mutilação pode ter para mulheres e bebês no momento do parto confirmam que aquelas que foram mutiladas genitalmente viram significativamente aumentados os riscos e complicações durante o parto. Regista-se uma maior incidência de parto por cesariana e de hemorragia pós-parto em mulheres sujeitas à mutilação genital (de qualquer tipo) quando comparadas com mulheres não sujeitas à prática, e o risco aumenta conforme a gravidade das intervenções. (Grupo de Estudo sobre a Mutilação Genital Feminina e Prognóstico Obstétrico da OMS, 2006).                                                                                                                    

 

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Uma conclusão nova e surpreendente do estudo é a de que a mutilação genital das mães tem efeitos negativos também nos bebês recém-nascidos. De forma marcante, a taxa de mortalidade de bebês, durante e imediatamente após o parto em mães que foram submetidas à mutilação genital, é mais elevada do que a das que não o foram (15% mais elevada para mães com mutilação de Tipo I; 32% para o Tipo II e 55% para Tipo III)71. Estima-se que em cada 1.000 partos ocorridos em hospitais, de 10 a 20 bebês morreram de causas diretamente relacionadas com à mutilação das mães. As consequências são ainda mais alarmantes para aquelas mulheres cujo parto acontece fora de ambiente hospitalar, sendo inquestionável que a elevada incidência de hemorragia pós-parto é uma preocupação particularmente séria nos locais em que os serviços de saúde são precários ou quando as mulheres têm maior dificuldade de acesso. Em se tratando da infibulação, esta pode causar efeitos muito mais graves, além dos mencionados anteriormente. Devido à obstrução do fluxo menstrual, pode causar transtornos renais e infecções graves do trato vaginal e da pélvis, tecido cicatricial excessivo

e

queloides

(cicatrizes

proeminentes

e

irregulares

que

aumentam

progressivamente). No mais, o primeiro ato sexual só pode ser realizado após a dilatação gradual e dolorosa da pequena abertura deixada pela mutilação, sendo necessário, em alguns casos, proceder-se a uma excisão prévia (realizadas, muitas vezes, pelos próprios companheiros sem qualquer interferência médica). Durante o parto, é necessário efetuar um corte ainda maior para permitir a saída do bebê e, caso não haja nenhuma assistência, é possível que haja a obstrução do parto, fazendo com que a pressão afete o crânio e a coluna do bebê, podendo resultar na morte da criança. Apesar disso, após o parto, algumas mulheres se submetem novamente à infibulação para que permaneçam com o canal vaginal “estreito” para seus maridos. As constantes incisões e suturas dos genitais a cada nascimento podem provocar a formação de um forte tecido cicatricial nesta região, causando inúmeros malefícios à saúde destas mulheres.                                                                                                                 71

Foram observadas 28. 393 mulheres em 28 centros obstétricos em seis países africanos, tendo-se concluído, que a mortalidade perinatal (ou seja, desde o período de gestação do feto até alguns dias após o nascimento) é muito mais elevada entre bebês cujas mães sofreram algum tipo de mutilação genital.

 

 

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Além dos efeitos físicos, a mutilação genital feminina também pode gerar consequências psíquicas sérias, contudo, tais efeitos são muito mais difíceis de relatar e investigar cientificamente do que os primeiros. Apesar da falta de dados exatos e da ausência de provas científicas, relatos pessoais de meninas e mulheres vítimas da mutilação genital feminina revelam sentimentos profundos de ansiedade, terror, humilhação e traição que podem causar danos psicológicos sérios a longo prazo. Trata-se de um ato cujo significado e sofrimento marca suas vítimas permanentemente, podendo ser considerado como verdadeiro evento traumático em suas vidas. As meninas que sofreram a mutilação genital (especialmente as mais novas, que não possuem efetivamente consciência do significado e das consequências da prática do ato ao qual foram submetidas) mantêm viva em suas memórias todo o procedimento pelo qual passaram e são incapazes de superar o trauma causado pelo ato brutal de violência. Um estudo realizado na Somália indica que todas as meninas entrevistadas (com idades entre 08 e 16 anos) possuíam nítida memória da idade, do dia, hora e local em que sofreram a mutilação, assim como das pessoas que se encontravam no local e aquelas que realizaram o ato. Os relatos são descritos como uma experiência de grande medo, submissão, impotência e dor, que deixa uma marca permanente em suas vidas e, consequentemente, no seu desenvolvimento mental, podendo causar distúrbios de autoestima e de identidade. Hannah Koroma (encarregada de temas sobre as mulheres da Seção de Serra Leoa) relatou72 sua traumática experiência vivida aos dez anos de idade da seguinte forma: Me conduziram a uma habitação muito escura e despiram-me. Me vendaram os olhos e me deixaram completamente nua. Quatro mulheres fortes me obrigaram a deitar de barriga para cima; duas delas seguraram com força cada uma de minhas pernas. A outra se sentou sobre meu peito para impedir que eu movimentasse a parte superior do meu corpo. Me colocaram à força um pano na boca para que eu parasse de gritar. Então me rasparam. Quando começou [a mutilação], opus muita resistência. A dor era terrível e insuportável. Durante esta luta, recebi cortes graves e perdi muito sangue. Todos os participantes estavam meio embriagados.

                                                                                                                72

 

Relato trazido no Seminário da Seção de Gana da Anistia Internacional, em meados de 1996.

 

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Kady Koita, militante respeitada internacionalmente, autora do livro “Mutilada”, e engajadora do movimento dentro das Nações Unidas na luta pelos direitos das mulheres contra a mutilação genital, descreve em seu referido livro a experiência do ritual, ao qual fora submetida quando criança, aduzindo: Na língua soniké, a avó nos anunciou que vamos ser salindé, para poder rezar, o que quer dizer, em nossa língua, ser purificada para alcançar a prece. Em português: “excisadas”. Diz-se também, cortadas. O choque é brutal (...), como se tratasse de uma acessão a uma dignidade misteriosa (...). Duas mulheres me agarraram e me arrastaram para o quarto. Uma, atrás de mim, me segura a cabeça e seus joelhos esmagam meus ombros com todo o peso deles para que eu não me mexesse; a outra me segura os joelhos, com as pernas afastadas. A imobilização depende da idade da menina, e sobretudo de sua precocidade. Se ela se mexe muito, porque é alta e forte, serão necessárias mais mulheres para dominá-la. Se a criança é pequena e magricela, elas são menos numerosas. A mulher encarregada da operação dispõe de uma lâmina de barbear por menina, que as mães compram para a ocasião. Ela puxa com os dedos, o máximo possível, o minúsculo pedaço de carne e corta como se cortasse um pedaço de carne de zebu. Infelizmente, é impossível para ela fazê-lo com um único gesto. Ela é obrigada a serrar. (KOITA, 2005)

Ao contrário de Hannah Koroma e Kady Koita, outras mulheres tornam-se incapazes de verbalizar a experiência por elas vivida, apresentando grande dificuldade de descrever a situação que envolveu a prática da mutilação genital. Apesar do suporte da família após o ritual, as meninas apresentam na grande maioria das vezes sentimentos de raiva, angústia e traição por terem sido submetidas a tamanha agressão física e mental. Alguns especialistas afirmam que a comoção e o trauma sofrido durante e após a mutilação podem contribuir para o desenvolvimento de um comportamento mais “tranquilo” e “dócil” das mulheres, o que, de certo modo, é considerado positivo pela comunidade local, como verdadeiro método tradicional de dominação feminina. Além dos efeitos psicológicos supracitados, a mutilação genital pode gerar efeitos na sexualidade feminina. Primeiramente, vale lembrar que a mutilação genital pode fazer com que o primeiro ato sexual seja uma terrível experiência para as mulheres, devido ao fato de ser extremamente doloroso. Para algumas delas, o ato sexual segue sendo doloroso por toda a vida (especialmente para aquelas que sofreram infibulação).

 

 

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Ainda para aquelas que não sintam dor durante as relações sexuais, a remoção total ou parcial do clitóris faz como que seja extremamente difícil (e, não raro, impossível) que as mulheres mutiladas experimentem prazer sexual ou orgasmos, afetando negativamente a satisfação sexual destas. Apesar de não se tratar de uma regra, a grande maioria das mulheres entrevistadas em pesquisas sobre as consequências da mutilação genital feminina, relatam ou não sentirem prazer ou sentirem indiferença durante as relações sexuais73. Deste modo, pode-se afirmar que as considerações clínicas e a maioria dos estudos sobre o desfrute sexual das mulheres mutiladas sugerem que este se vê prejudicado pela mutilação genital devido às várias formas de disfunções ou à baixa sensibilidade na zona genital, resultando em uma alta inibição sexual da mulher.

3.5 – Distribuição geográfica da Mutilação Genital Feminina Atualmente, há registro da prática de mutilação genital feminina por todo o globo, embora predomine nas regiões do Oeste, Este e Nordeste de África, em alguns países na Ásia e Oriente Médio e entre certas comunidades de imigrantes na América do Norte e Europa. Na África, estima-se que a mutilação genital feminina seja praticada em mais de 28 países de forma generalizada. Apesar de ser praticada principalmente por grupos mulçumanos, a mutilação genital feminina ainda ocorre entre povos que seguem religiões animistas e por cristãos ortodoxos da Etiópia e da Eritréia, sendo comum também entre os falashas (judeus da Etiópia). Por outro lado, não é tão comum entre a maioria das culturas islâmicas e árabes fora do continente africano, sendo, contudo, praticada em alguns países do Oriente Médio (especialmente no Egito, Yemem, Omán e Emirados Árabes). Também é conhecida entre os curdos do Iraque bem como em alguns outros países árabes em menor escala (onde os regimes ditatoriais e autoritários e a inexistência de organizações da sociedade civil                                                                                                                 73

Uma pesquisa realizada no Norte do Sudão constatou que 80% das mulheres sujeitas à mutilação genital do tipo III (infibulação) nunca haviam sentido um orgasmo, comparando com 10% de mulheres que haviam sofrido mutilação do tipo I ou que não haviam sofrido nenhuma forma de mutilação.

 

 

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tendem a impedir a divulgação acerca da real influência da prática por meio da imprensa internacional). Não existem dados concretos acerca da frequência em que é praticada na Ásia, porém existem relatos da prática da mutilação genital dentre alguns grupos étnicos na Índia (pequena seita mulçumana chamada Daudi Bohra), no Sri Lanka, na Malásia e na Indonésia. Por fim, existem relatos que indicam que a mutilação genital feminina também é praticada em determinados grupos indígenas da América Central e do Sul. A preservação da identidade étnica com o intuito de acentuar as diferenças relativamente a grupos não praticantes pode também ser importante, especialmente em períodos de intensa mudança social. Nos países industrializados, a mutilação se realiza sobretudo entre os grupos de imigrantes procedentes de países onde esta é praticada de forma mais ou menos generalizada. De acordo com a Anistia Internacional, já foram registradas ocorrências de mutilação genital feminina na Austrália, Canadá, Dinamarca, Estados Unidos, França, Itália, Holanda, Reino Unido e Suécia. As meninas que vivem nestes países onde a prática da mutilação genital não é difundida (ou é, até mesmo, proibida) podem ser operadas de forma clandestina por médicos de suas próprias comunidades que ali residem, mas, na maioria das vezes, os médicos tradicionais da comunidade estrangeira é que são levados até o país da menina que será mutilada ou esta é enviada para o país de origem de sua família para que seja submetida à prática. Do mesmo modo, também é praticada quando mulheres e suas filhas, ainda que de grupos étnicos não praticantes, casam com homens de grupos onde a mutilação genital feminina é prática comum. A mutilação genital feminina é ocasionalmente adotada por novos grupos e em novas zonas geográficas após processos de deslocamento e migração. Outras comunidades foram levadas a adotar a prática pela proximidade e influência de grupos étnicos vizinhos que a praticam, sendo, por vezes, inserida em movimentos de revivalismo tradicional ou religioso. Em estudos recentes realizados na Gambia, por exemplo, relataram a existência de mulheres mutiladas na população Wolof, que tradicionalmente não pratica a mutilação

 

 

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genital feminina, porém, devido ao contato com outros grupos étnicos, começaram a prática deste ritual, como parte de um processo adaptativo e de inclusão. Pode-se assim dizer que, apesar de as comunidades que praticam a mutilação genital feminina apresentarem uma extensa diversidade de razões de índole social e religiosa para a sua continuação (as quais enunciaremos mais à frente), acredita-se que esta prática esteja atrelada a uma tradição milenar muito mais relacionada à cultura propriamente dita, disseminada na região africana e do Oriente Médio ao longo dos tempos, do que a algum fator inerente à própria condição da religião em si. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que entre 100 e 140 milhões de meninas e mulheres em todo o mundo tenham sido submetidas a estes processos e que, anualmente, 3 milhões de meninas estejam expostas ao risco de serem submetidas à mutilação genital (aproximadamente 6.000 ao dia). Trata-se de mera estimativa, sendo que as próprias organizações internacionais reconhecem que os números apresentados não são precisos, podendo ser, na realidade, consideravelmente mais elevados, tendo em vista que na maioria das vezes a prática da mutilação genital ocorre em grupos e aldeias localizadas em regiões rurais e não são registradas por centros médicos ou por eventuais órgãos de fiscalização ou organizações não governamentais que atuam na proteção aos direitos das mulheres. Deste modo, calcula-se, por baixo, que aproximadamente uma menina, em algum lugar do globo, seja mutilada a cada dez segundos. A prevalência da mutilação genital feminina na África foi calculada pela OMS através de inquéritos nacionais de larga escala, perguntando a mulheres com idades compreendidas entre os 15 e 49 anos, se tinham sido submetidas a qualquer tipo de corte. A taxa de prevalência varia consideravelmente, tanto dentro como entre regiões e países, e tem como fator determinante o enquadramento étnico. Em sete países a prevalência nacional é quase total (mais de 85%); quatro países registram elevados índices (60 – 85%); a prevalência média (30 – 40%) encontra-se em sete países; os restantes nove países registram baixa prevalência, que se situa entre 0.6% e 28.2%. Porém, as médias nacionais escondem, por vezes, variações profundas, na prevalência em diferentes zonas da maioria dos países.

 

 

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Capítulo IV – A mutilação genital feminina como uma questão de direitos humanos Ante todo o exposto no Capítulo anterior, não se pode negar que a prática da mutilação genital feminina causa deliberadamente fortes dores e sofrimentos àquelas mulheres e meninas que a ela são submetidas, podendo, inclusive, custar-lhes a vida. Relatamos como a maioria das sobreviventes tem que carregar consigo sequelas físicas e psíquicas para o resto de suas vidas. O status de subordinação que as mulheres têm historicamente ocupado (tanto na família como na comunidade e na sociedade) fizeram com que abusos como a mutilação genital feminina fossem perpetrados em grande escala e com demasiada frequência. Apesar de a prática estar sendo perpetrada sistematicamente durante séculos, a questão da mutilação genital feminina, até pouco tempo, não havia sido incluída nos programas de trabalho e nas agendas do movimento internacional de direitos humanos. E existem vários fatores que impediram que esta prática fosse considerada, por muito tempo, uma verdadeira questão de direitos humanos. O primeiro grande obstáculo era o fato de que a prática da mutilação genital feminina encontra-se arraigada na própria tradição cultural de diversos povos e comunidades, fazendo com que a intervenção externa no combate à mutilação genital, em nome dos direitos humanos universais, fosse percebida como um ato de neoimperialismo cultural. Neste ponto, surge um dos debates teóricos atuais com maiores implicações éticas e políticas: a questão da contraposição do relativismo cultural ao universalismo dos direitos humanos. O segundo impedimento estava relacionado ao fato de que a mutilação genital feminina é praticada pelos próprios pais e parentes das vítimas (ou a mando destes) que creem que esta trará efeitos benéficos para suas filhas no futuro. Por este motivo, considerava-se que a mutilação genital era uma questão unicamente de âmbito privado, uma vez que tais práticas eram realizadas por particulares e não por agentes do Estado, o que impedia que esta fosse considerada como uma legítima violação de direitos humanos.

 

 

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Analisaremos a seguir os argumentos e as posições doutrinárias acerca de tais questões e de que maneira estes obstáculos foram superados pela jurisprudência internacional para que a mutilação genital feminina passasse a ser considerada inequivocamente uma violação aos direitos humanos da mulheres.

4.1 – A contraposição entre o universalismo e o relativismo cultural Primeiramente, devemos relembrar que a partir da Declaração Universal de 1948, reconheceu-se a indivisibilidade e a extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos. O ser humano, passa a ser considerando como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, sendo esta o valor intrínseco à condição humana. O fundamento dos direitos humanos passa a ser a dignidade humana74. Logo, se                                                                                                                 74

De acordo com Andres Felipe T. S. Guardia, in Comentários à Declaração Universal dos Direitos Humanos, a distinção entre a dimensão individual e pessoal do homem (enfaticamente reconhecida por alguns filósofos da primeira metade do século XX, dentre os quais se encontrava Maritain) teve grande importância dentro do processo de universalização dos direitos humanos. Tal corrente considera que todo ser humano pode ser destrinchado em duas dimensões: indivíduo e pessoa. Enquanto indivíduo o ser humano não passa de uma porção material, um ponto singular que faz parte do universo, um fragmento de sua espécie, desprovido de qualquer valor intrínseco, de singularidade e de dignidade. O homem individualizado é apenas uma forma do mundo físico dentre tantas outras, isto é, um homem verdadeiramente “coisificado”. Em contrapartida, a concepção pessoal é aquela que confere aos homens personalidade, atributo legal por meio do qual estes se tornavam verdadeiros sujeitos de direitos e de obrigações. Deixam de ser “coisas” e passam a ser vistos como um ser único, insubstituível e distinto dos demais, cujo valor intrínseco se manifesta através da dignidade, atributo primeiro de cada ser humano. Desde os primórdios até o advento da Declaração Universal de 1948, a personalidade era atributo concedido apenas a determinados homens (inúmeras legislações não reconheciam, por exemplo, a personalidade de escravos, mulheres, crianças e estrangeiros). O Estado que reconhece o homem apenas enquanto indivíduo desconsidera propositalmente sua dignidade, dando margem à discriminação entre eles e à prática de bárbaras violações aos direitos humanos, justamente porque a gênese do desapreço pelo ser humano se dá com a desconsideração de sua personalidade. A ideia de que o conceito de pessoa pode ser delimitado pelo legislador fez com que o positivismo jurídico, deturpado por diversos regimes ditatoriais no início do século XX, se baseasse na perspectiva individual, cuja lógica fundava-se em ignorar o conjunto de características do ser capaz de distingui-lo dos demais. Nesta acepção, ser pessoa (e, consequentemente, titular de direitos) não dependia do acaso, da essência, da dignidade ou da sua mera existência, mas da concessão da norma positiva, vez que cabia somente à lei determinar o reconhecimento de cada ser humano no corpo social, conferindo-lhe status de res ou de persona. Deste modo, para impedir a propagação de novos regimes bárbaros que atentem contra a dignidade da pessoa humana e pretendendo rechaçar certas interpretações decorrentes desta noção relativa de personalidade, a Declaração Universal dos Direitos Humanos adota o vocábulo pessoa, reconhecendo, em seu art. VI, a personalidade de todos os homens, tanto em face do legislador quanto em face do julgador. Tal reconhecimento é imprescindível para a plena realização do homem e é fundamental para garantir a possibilidade de desenvolvimento livre e isonômico de todos os seres humanos. Sob esta perspectiva, se manifesta aguda crítica e repúdio à concepção positivista de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos, confinado à ótica meramente formal,

 

 

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torna irrefutável a ideia de que devem ser impostos padrões mínimos universais de comportamento e respeito ao próximo, mesmo que em meio à diversidade cultural. Parte-se da premissa de que os direitos humanos, inerentes a todo ser humano, considerados como tal, são inalienáveis, antecedem o poder do Estado e sua existência independe de qualquer positivação ou reconhecimento estatal. Nas palavras de Flávia Piovesan75, (...) a Declaração consolida a afirmação de uma ética universal ao consagrar um consenso sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados. (...) objetiva delinear uma ordem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos universais. Desde seu preâmbulo é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração Universal a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos.

Por outro lado, a Declaração Universal de 1948 também reconheceu o direito à cultura como parte integrante dos direitos humanos, conforme prevê o artigo XXVII, alínea 1 do supracitado documento internacional. Do mesmo modo, os dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas de 1966 determinaram em seus art. 1o que “todos os povos têm direito à autodeterminação” e, em virtude desse direito, “determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”. Já a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos de 1981 consagra em um mesmo elenco os direitos civis e políticos, econômicos, sociais e culturais, assim como os direitos dos povos (arts. 19 a 24).                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           tendo em vista que o nazismo e o fascismo ascenderam ao poder dentro do quadro da legalidade e promoveram as maiores violações de direitos humanos da história moderna em nome da lei. Tem-se com a Declaração Universal de 1948 uma regressão ao pensamento kantiniano, segundo o qual as pessoas devem existir e ser percebidas como um fim em si mesmas; jamais como um meio, a ser arbitrariamente utilizado para este ou aquele propósito, ou para se alcançar qualquer objetivo que seja. Os seres racionais têm valor intrínseco absoluto, são insubstituíveis e únicos. E, na medida em que possuem valor intrínseco, são dotados de dignidade, cuja base encontra-se pautada na autonomia e liberdade. Tal concepção universalista manifesta acentuado distanciamento da concepção positivista, confinado à ótica meramente formal, onde existia a possibilidade um ordenamento jurídico ser indiferente a valores éticos e morais mínimos, tendo em vista que os modelos políticos do nazismo e do fascismo ascenderam ao poder e praticaram graves violações aos direitos humanos dentro do quadro de legalidade, promovendo a barbárie em nome da lei. 75 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11a ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 141.

 

 

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Pode-se afirmar que existem duas dimensões do direito à autodeterminação: a externa, que tem como consequência o repúdio à dominação estrangeira, e a interna, focada no direito de escolha de seu destino para segurar sua livre vontade, que deve prevalecer ainda que contra seu próprio governo. Assim, a autodeterminação dos povos pressupõe muito mais do que o direito de o povo ser governado pelas pessoas que ele mesmo escolheu, mas principalmente a necessidade da evolução do povo que forma a base da nação, que não apenas tenha definida uma identidade cultural, mas que possa se afirmar como sociedade com plena capacidade de escolha. De fato, o medo de um possível imperialismo cultural apresentado por essas sociedades expressa, através da defesa da própria cultura, a autodeterminação externa. Já a autodeterminação interna é exercida quando os cidadãos fazem suas próprias tradições prevalecerem não obstante os ditames do seu governo. Surge então a seguinte problemática: qual o verdadeiro alcance da universalidade dos direitos humanos? As normas de direitos humanos podem ter um sentido universal ou são culturalmente relativas? A efetivação universal dos direitos humanos vai contra as culturas locais de cada Estado-soberano? A imposição, pela comunidade internacional, de uma gama de direitos ditos universais em detrimento dos costumes e tradições culturais de determinados povos e sociedades seria uma forma de imperialismo cultural ocidental? Em que medida esta imposição fere o princípio da autodeterminação dos povos? A fim de solucionar este impasse, principalmente, no tocante à aplicabilidade dos direitos humanos frente a culturas violadoras destes direitos, nascem as teorias jurídicas que pretendem elucidar se os referidos direitos podem ser relativizados frente às particularidades culturais ou se seu conceito é universal, tendo aplicabilidade em âmbito global independente das diferenças culturais de cada povo ou sociedade. Assim, à guisa do exposto, emergem as teorias do Universalismo e do Relativismo Cultural. O debate entre os universalistas e os relativistas retoma o antigo dilema sobre o verdadeiro alcance das normas de direitos humanos. De um lado, defendem os primeiros que elas têm um sentido universal, sendo o seu alcance ilimitado, justamente por terem como fundamento a dignidade da pessoa humana, que é o valor intrínseco à própria condição humana, fazendo com que todos os

 

 

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seres humanos sejam obrigatoriamente titulares de todos aqueles direitos, independente da raça, sexo, religião, etnia, etc. Para os adeptos a esta corrente, existe o denominado “mínimo ético irredutível”, isto é, um núcleo inalienável de direitos que não podem ser afastados ou desrespeitados em nenhuma hipótese, e que se sobrepõe a quaisquer particularismos culturais, vez que qualquer tipo de violação a estes comprometeria a dignidade humana. Afirmam ser de rigor a construção de parâmetros internacionais mínimos voltados à proteção universal dos direitos e liberdades fundamentais, vinculando a ação de todos os Estados em prol da proteção dos direitos humanos. Em face disso, defendem que, ainda que a prerrogativa de exercer a própria cultura seja um direito fundamental (inclusive previsto na Declaração Universal), nenhuma concessão pode ser feita às “peculiaridades culturais” quando houver risco de violação a direitos humanos fundamentais. Neste sentido, qualquer afronta ao mínimo ético irredutível, importará em violação aos direitos humanos. Apesar de a cultura caracterizar a identidade física de cada povo, surge no âmbito jurídico a discussão no tocante à extensão da aplicabilidade dos direitos humanos sobre as práticas culturais que impõem verdadeiros sacrifícios físicos e/ou psicológicos e geram consequências danosas aos indivíduos que a elas se submetem, constituindo grave violação aos direitos humanos, como é o caso da prática da mutilação genital feminina. De outro lado, os relativistas defendem que as normas de direitos humanos são culturalmente relativas. Para estes, a noção de direitos humanos está estritamente relacionada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade. Assim, cada cultura possui sua própria visão acerca dos direitos fundamentais, que está obrigatoriamente relacionada às específicas circunstâncias culturais e históricas de cada sociedade, o que faz com que o pluralismo cultural impeça a formação de uma moral universal, tornando-se essencial que se respeitem as diferenças culturais apresentadas por cada sociedade, bem como seu peculiar sistema moral76. Sob esta ótica, defende-se a ideia de que a coexistência de códigos culturais distintos no seio de uma sociedade e a coexistência de diferentes práticas culturais em                                                                                                                 76

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11a ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p 153.

 

 

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nosso planeta geram, como efeito imediato, o enriquecimento moral da sociedade na qual este fenômeno se reproduz e da humanidade em geral. Contudo, o multiculturalismo e a diversidade cultural não são concebidos apenas como conceitos descritivos que explicam a heterogeneidade cultural e social do mundo em que vivemos, mas também são vistos como propostas éticas e normativas. Ao sustentar que todas as culturas e diferenças, pelo simples fato de existirem, são moralmente desejáveis, o relativismo cultural determina que todas as culturas, práticas e valores são equivalentes entre si. E, deste relativismo indiscriminado surge a premissa da incomensurabilidade das culturas e da irredutibilidade dos valores, fazendo com que as práticas e valores de determinada cultura não possam ser questionados moralmente por indivíduos pertencentes a outra cultura, podendo apenas ser avaliados dentro da sua peculiar complexidade social e moral, pelos próprios indivíduos que a compõe. Este enfoque da diversidade cultural, vista como proposta ético-normativa, exige a neutralidade e respeito frente a todas as práticas sociais e culturais, independente do seu conteúdo. Deste modo, se para os relativistas todas as práticas culturais são moralmente valiosas dentro do contexto de sua cultura, não existe a possibilidade de se distinguir uma ação legítima de uma ação ilegítima, afirmando que todas elas são dignas de proteção e defesa, merecedoras de reconhecimento social, ainda que estejam indo contra o bemestar, a liberdade e a igualdade dos seres-humanos. Nesta seara, cabe ressaltar que a principal crítica feita pelos partidários do relativismo cultural refere-se à visão dos universalistas em supostamente querer impor valores ocidentais ao restante dos países do mundo ao promover o movimento de internacionalização

dos

direitos

humanos

através

de

instrumentos

jurídicos

internacionais, alegando que a elaboração dos mesmos fora realizada, em sua grande parte, por Estados ocidentais. Na visão dos relativistas, os direitos humanos seriam percebidos pela sociedade internacional como verdade única. O conceito universalizante desrespeitaria os valores culturais agregados à história de cada povo, haja vista cada cultura possuir um discurso singular em torno dos direitos fundamentais. Assim, para os relativistas, promover a difusão dos direitos humanos como um conceito ético universal seria o mesmo que massacrar as crenças e a cultura que uma

 

 

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comunidade cultiva, forçando-os a recepcionar normas provenientes de outra cultura econômica e politicamente predominante. Ademais, os defensores da mencionada teoria recordam que o direito de exercer a própria cultura (direito à autodeterminação) está previsto como garantia fundamental na Declaração Universal dos Direitos Humanos, como já dito anteriormente, e que, por si só, deve ser assegurado. Flávia Piovesan77 explica a contraposição entre as duas correntes da seguinte forma: Na análise dos relativistas, a pretensão de universalidade desses instrumentos [tratados e declarações internacionais de direitos humanos] simboliza a arrogância do imperialismo cultural do mundo ocidental, que tenta universalizar suas próprias crenças. A noção universal de direitos humanos é identificada como uma noção construída pelo modelo ocidental. O universalismo induz, nessa visão, à destruição da diversidade cultural. A essa crítica reagem os universalistas, alegando que a posição relativista revela o esforço de justificar graves casos de violações dos direitos humanos que, com base no sofisticado argumento do relativismo cultural, ficariam imunes ao controle da comunidade internacional. Argumentam que a existência de normas internacionais pertinentes ao valor da dignidade humana constitui exigência do mundo contemporâneo. Acrescentam ainda que, se diversos Estados optaram por ratificar instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, é porque consentiram em respeitar tais direitos, não podendo isentar-se do controle da comunidade internacional na hipótese de violação desses direitos e, portanto, de descumprimento de obrigações internacionais.

Apesar de ter sido expressamente declarada a universalidade dos direitos humanos quando da adoção da Declaração Universal de 1948 e apesar dos tratados internacionais de direitos humanos serem evidentemente universalistas, as questões que envolvem o alcance das normas de direitos humanos ainda são amplamente discutidas na doutrina jurídica contemporânea, tanto na esfera acadêmica quanto nos foros políticos e conferências internacionais. Isso porque, a concepção universal dos direitos humanos,                                                                                                                 77

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11a ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 156.

 

 

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demarcada pela Declaração Universal, sofreu e ainda sofre fortes resistências dos adeptos do movimento do “relativismo cultural”. Tal disputa alcança novo vigor em face do movimento internacional dos direitos humanos, na medida em que este flexibiliza as noções de soberania nacional e de jurisdição doméstica, ao consagrar um parâmetro internacional mínimo relativo à proteção dos direitos humanos. A tensão latente existente entre a teoria do universalismo dos direitos humanos e a teoria do relativismo cultural, tornou-se marcante no período de discussão da elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, e a contraposição dos chamados “particularismos” culturais à universalidade dos direitos humanos foi uma das questões centrais dos debates das duas Conferências Mundiais de Direitos Humanos, em Teerã (1968) e Viena (1993) e da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), tendo sido retomada na IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim, 1995). Durante os debates das Delegações Governamentais à Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena (a qual tinha por missão analisar os avanços havidos na aplicação dos instrumentos normativos dos direitos humanos, incluindo o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), com a reunião de mais de cento e oitenta países, este foi um dos temas mais abordados, e muitos dos Estados presentes manifestaram a sua insatisfação no tocante ao tema. O choque de concepções se deu especialmente diante do argumento trazido por algumas Delegações no sentido de que, diante do cenário econômico mundial (com mais de um bilhão de pessoas vivendo abaixo do nível da pobreza), para um grande número de países em desenvolvimento, respeitar e proteger os direitos humanos significava assegurar a plena realização dos direitos à subsistência e ao desenvolvimento, sob o fundamento de que, ante a pobreza extrema, caberia dar prioridade ao desenvolvimento econômico. Tais delegações78 defendiam que os principais critérios para julgar a situação dos direitos humanos em um país em desenvolvimento deveriam ser se suas políticas e medidas ajudam a promover o progresso econômico e social e se ajudam a população a                                                                                                                 78

 

Dentre elas a Delegação da China, de diversos países africanos e alguns países asiáticos.

 

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satisfazer suas necessidades básicas com alimentação, saúde e educação, melhorando sua qualidade de vida. Sob esta ótica, afirmaram que, independente do caráter universal dos direitos humanos, cada Estado possui “diferentes prioridades nacionais”. Enquanto os países que já alcançaram um alto nível de desenvolvimento socioeconômico se dedicam à eliminação de todas as espécies de violações de direitos humanos, aqueles em desenvolvimento devem satisfazer prioritariamente as necessidades básicas de sua população para que esta possa desfrutar de uma vida com dignidade, motivo pelo qual os primeiros tentam aplicar “princípios universais” enquanto os demais entendem que o desenvolvimento dos direitos humanos deve seguir o ritmo do desenvolvimento político e econômico de cada Estado. Em contrapartida, as Delegações favoráveis à universalidade dos direitos humanos reafirmaram que qualquer que seja o contexto geográfico, étnico, histórico ou socioeconômico em cada país esteja inserido, a cada homem assiste um conjunto inderrogável de direitos fundamentais, devendo os Estados respeitar e promover todos os direitos e a dignidade de seus cidadãos, não sendo admissível que estes países, em nome de alegados interesses coletivos, ultrapassem a fronteira que lhe é imposta pela própria anterioridade dos direitos do Homem e sua primazia relativamente a quaisquer fins ou funções do Estado, seja por motivos que guardem relação com o poder ou a prosperidade econômica, nem invocando razões aparentemente mais elevadas e de teor moral, como a religião, as ideologias, as concepções filosóficas ou políticas eventualmente adotadas por cada Estado. Antônio Augusto Cançado Trindade, por sua vez, rebate os argumentos trazidos pelos relativistas afirmando que a contraposição de pretensos particularismos à universalidade dos direitos humanos mostra-se como uma verdadeira falácia, na medida em que: (a)

primeiramente, a questão não deve ser apreciada como uma imposição do Ocidente em detrimento do Oriente, mas antes como uma questão que diz respeito aos Estados em relação à maneira como os governantes tratam seus governados e atendem, ou não, suas necessidades básicas;

 

 

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(b)

as três Convenções Regionais de direitos humanos vigentes (dentre as quais inclui-se a Carta Africana de 1981) reafirmam o caráter universal dos direitos humanos;

(c)

o referido “pensamento ocidental” afigura-se como uma expressão demasiadamente vaga. Muito do que se atribui àquele pensamento encontra manifestações em países de diferentes regiões do mundo, sobretudo no tocante a determinados pontos básicos, como as liberdades fundamentais, o direito de participação na vida pública e a igualdade perante a lei. Além disso, a diversidade de tradições culturais existentes nos diversos países orientais dificilmente propiciaria uma posição coesa de todos os países da região em matéria de direitos humanos, sendo certo que estes não constituem um bloco monolítico de resistência ou oposição à universalidade dos direitos humanos. Por outro lado, não é possível reduzir o pensamento ocidental a um todo homogêneo;

(d)

a grande maioria dos países que se apoia no argumento das “particularidades regionais” efetivamente se tornou parte em tratados universais de proteção de direitos humanos, especialmente nos Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas e na Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação da Mulher;

(e)

a Declaração Universal de 1948 alcançou um determinado grau de universalidade que a tornou aceita por seres humanos de todas as civilizações e culturas (inclusive por aqueles Estados que preferiam que os redatores da Declaração tivessem levado mais em conta o legado das antigas civilizações asiáticas e distintas religiões).

Ao fim dos trabalhos da Conferência de Viena, foi adotada a Declaração de Viena, que buscou pôr fim a este debate, reafirmando o caráter universal dos direitos humanos (reconhecido, em primeira instância, pela Declaração Universal de 1948)79.                                                                                                                 79

Art. 5o - Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente, de maneira justa e equânime, com os mesmos parâmetros e com a mesma ênfase. As particularidades nacionais e regionais e bases históricas, culturais e religiosas devem ser consideradas, mas é obrigação dos Estados, independentemente de seu

 

 

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Ao tratar da Declaração de Viena, José Augusto Lindgren Alves80 afirma que esta: Conseguiu, sim um triunfo conceitual, com repercussões normativas extraordinárias, que independe da Assembleia Geral da ONU: a reafirmação da universalidade dos direitos humanos acima de quaisquer particularismos. Se recordarmos que a Declaração Universal, de 1948, foi adotada por voto, com abstenção, num foro então composto por apenas 56 países, e levarmos em conta que a Declaração de Viena é consensual, envolvendo 171 Estados, a maioria dos quais eram colônias no final dos anos 40, entenderemos que foi em Viena, em 1993, que se logrou conferir caráter efetivamente universal àquele primeiro grande documento internacional definidor dos direitos humanos.

Entretanto, tal reconhecimento não colocou fim à discussão. A questão da universalidade dos direitos humanos em oposição ao relativismo cultural ainda é foco de debates recorrentes e ocupa permanentemente um espaço importante no tratamento da matéria. Mais recentemente manifestam-se diversas reações contra os aspectos socialmente desagregadores da chamada “modernização” social. Uma delas se manifesta pelo atual recrudescimento do fundamentalismo81 – de modalidades distintas, religiosos, nacionais, étnicos, etc. – que pretendem buscar refúgio nas tradições perdidas ou ameaçadas com o intuito de minar a noção da universalidade dos direitos humanos. A manifestação mais notória neste sentido proveio de alguns círculos de países asiáticos e de Estados membros da Organização da Conferência Islâmica, que resistentemente identificam no movimento internacional dos direitos humanos uma suposta imposição do “pensamento ocidental” que não estaria levando em consideração as “particularidades regionais”. A nosso ver, é de rigor reconhecer que o multiculturalismo e a diversidade cultural podem significar avanços na democracia e na liberdade de uma sociedade, e que são uma poderosa crítica ao etnocentrismo cada vez mais generalizado no mundo globalizado.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          sistema político, econômico e cultural, promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais. 80 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11a ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 157. 81 O recrudescimento dos particularismos e localismos intensificou-se no período do pós-guerra fria, tendo se manifestado em alguns países asiáticos de culturas milenares, assim como nos países do Oriente Médio e do norte da África afetados nas últimas décadas por correntes islâmicas fundamentalistas.

 

 

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Neste aspecto, até os defensores mais fervorosos do universalismo compartilham da ideia latente do multiculturalismo: que uma cultura predominante não deve ser obrigatoriamente a única referência ética, política e econômica para o resto do mundo e tampouco deve impor seu modelo de sociedade para as demais sociedades. Como afirma Alain Touraine, um dos méritos das ideias multiculturalistas é sua reação contra a homogeneização do mundo. Contudo, em que pese o posicionamento da corrente relativista ora explanado, entendemos que nem toda diversidade e nem todo ponto de vista cultural são eticamente aceitáveis e nem toda forma de vida é moralmente legítima. Estas somente são dignas de proteção se não vulneram os direitos fundamentais dos indivíduos. Acreditamos que o multiculturalismo deve ser incentivado, mas somente na medida em que a proteção da diversidade não seja indiscriminada e não se traduza em privilégios, não fomente sistemas de poder nem implique em exclusão, dominação ou violações sistemáticas de direitos humanos. A este respeito, vale transcrever trecho do relatório produzido pela Anistia Internacional82: A diversidade cultural e as ideias multiculturalistas são aceitáveis moralmente se ampliam a liberdade e a igualdade dos indivíduos. Por isso, tem-se que distinguir entre as práticas e valores que estão ao serviço de sistemas de dominação e aqueles que não vulneram os direitos individuais. Existem práticas culturais, como a mutilação genital feminina, que obviamente não ampliam o contexto moral. Esta prática, tão escandalosamente generalizada no mundo (...) só pode ser compreendida adequadamente se analisada no marco do sistema de dominação patriarcal. (tradução nossa)

Deste modo, conclui-se que o multiculturalismo e a diversidade cultural devem sempre encontrar seus limites nos direitos humanos e devem seguir em direção à interculturalidade através da mistura, do intercâmbio, da integração e da comunicação entre culturas e raças, para que os indivíduos se aproximem do ponto de vista cultural, sexual ou de gênero do outro.

                                                                                                                82

La mutilación genital feminina y los derechos humanos. Infibulación, excisión y otras práticas cruentas de iniciación. 1998. p. 09.

 

 

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Atualmente, diversos autores defendem que a universalidade dos direitos humanos somente poderá ser verdadeiramente alcançada através do diálogo entre as diferentes culturas. Neste sentido, Antônio Augusto Cançado Trindade83 defende que: Se é certo que as normas jurídicas que fizerem abstração do subtratum cultural correm o risco de se tornarem ineficazes, é igualmente certo que nenhuma cultura há que se arrogar em detentora da verdade final e absoluta. A diversidade cultural, bem entendida, não se configura, pois, como um obstáculo à universalidade dos direitos humanos; do mesmo modo, afigura-se-nos insustentável evocar tradições culturais para acobertar, ou tentar justificar, violações dos direitos humanos universais. (...) As culturas, vistas deste prisma, ao invés de ameaçar ou impedir, antes contribuem à universalidade dos direitos humanos. Na verdade, há que se manter aberto às distintas manifestações culturais, ao mesmo tempo em que cabe envidar esforços para que as distintas culturas se mantenham abertas aos valores básicos subjacentes aos direitos humanos universais. (...) É, com efeito, a partir das particularidades ou da diversidade do gênero humano que se buscam os valores universais, que se manifesta uma consciência universal. Nos últimos anos vêm-se envidando esforços meritórios no sentido de, a partir da diversidade cultural, buscar um denominador comum mínimo entre as distintas culturas do mundo, para então ampliá-lo mediante um cross-cultural dialogue, enriquecido pela legitimidade cultural universal dos direitos humanos (...) cujo propósito é ampliar e aprofundar o consenso universal sobre os direitos humanos – pressupõe que os indivíduos assim como as sociedades que integram, compartilham certos interesses e preocupações e valores básicos, desvendando o quadro geral para a conformação de uma cultura comum dos direitos humanos universais. Assim, a busca pela universalidade dos direitos humanos requer a identificação e o cultivo de suas cross-cultural foundations.

Destaca-se ainda a visão de Boaventura de Souza Santos84, que defende uma concepção multicultural de direitos humanos inspirada no diálogo entre as culturas, resultando no chamado multiculturalismo emancipatório. Para ele, faz-se necessária a superação do debate sobre universalismo e relativismo cultural a partir da transformação cosmopolita e da reconceitualização multicultural dos direitos humanos. Afirma o autor que: “na medida em que todas as culturas possuem concepções distintas de dignidade                                                                                                                 83

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado internacional dos direitos humanos. 2a ed., Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. v. 3, p. 305 e 310. 84 SOUZA SANTOS, Boaventura de. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Lua Nova: São Paulo, 1997, v. 39.

 

 

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humana, mas são incompletas, haver-se-ia que aumentar a consciência dessas incompletudes culturais mútuas, como pressuposto para um diálogo intercultural” do qual decorreria a construção da concepção multicultural dos direitos humanos. Assim, acreditamos, de igual modo, que a diversidade cultural há que ser vista, em perspectiva adequada, como um elemento constitutivo da própria universalidade dos direitos humanos, e não como um obstáculo a esta e que a abertura do diálogo entre as culturas, com respeito à diversidade e com base no reconhecimento do outro como ser pleno de dignidade e direitos, é a condição para a promoção da cultura dos direitos humanos, pautada na observância do mínimo ético irredutível e na a promoção do acesso à educação e à informação. Citando novamente Antônio Augusto Cançado Trindade: O respeito pelo próximo constitui um princípio básico comum a todas as culturas, crenças e religiões. As culturas regionais não são e nunca foram obstáculos à evolução dos direitos humanos; ao contrário, é perfeitamente possível a elas incorporar os valores dos direitos humanos, como passo rumo à cristalização de obrigações de direitos humanos, donde a extraordinária importância, a meio e longo prazos, da educação em matéria de direitos humanos.

A argumentação anterior demonstra a urgente necessidade de se construir coletivamente critérios éticos universais que retirem a legitimidade de todos os valores e práticas baseados na dominação e na discriminação. Esta nova ética deve ser suficientemente universal para que não seja uma manifestação de etnocentrismo e para que as populações tradicionais não a percebam como tal, refutando-a.

4.2 – A universalidade dos direitos humanos e os particularismos das relações de direito privado  

  O outro obstáculo a que nos referimos anteriormente e que, durante muitos anos,

impediu que a prática da mutilação genital feminina fosse considerada como verdadeira violação aos direitos humanos diz respeito aos costumes tradicionais e práticas atinentes às relações de direito privado.

 

 

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Verifica-se que a prática dos costumes e rituais tradicionais que violam os direitos humanos é, na grande maioria das vezes, perpetrada pelos próprios indivíduos que integram aquela sociedade ou comunidade, realizando-se na esfera das relações privadas entre particulares. Geralmente não são atos cometidos por entes públicos em nome do Estado, mas pela própria família da vítima, o que dificulta a concepção de tais práticas tradicionais como violações aos direitos humanos. Em outras palavras, podemos expor a questão da seguinte maneira: quando se trata de casos em que o Estado pratica atos violadores dos direitos humanos, impõe aos seus cidadãos determinada conduta que fere os direitos fundamentais ou priva-os do livre exercício e gozo destes direitos, estas ações são facilmente identificadas como claras violações de direitos humanos e o combate a essas práticas perpetradas pelo Estado violador conta com apoio quase que universal. Contudo, quando estas práticas partem do núcleo familiar e são apoiadas por toda a comunidade local, como expressão da sua identidade sociocultural, podendo ser defendida pelas próprias vítimas que são e elas submetidas, encontra-se grande resistência e dificuldade por parte da comunidade internacional em concebê-las como violações de direitos humanos. Neste último caso, as práticas tradicionais, ainda que firam a integridade física e psicológica de suas vítimas, são consideradas legítimas por aqueles que defendem o “relativismo cultural”, e aí reside a dificuldade em combatê-las. Deste modo, podemos concluir que, atualmente, dentro da problemática da contraposição da universalidade das normas de direitos humanos e dos particularismos regionais, o foco de resistência de certas sociedades contra a aplicabilidade universal dos direitos fundamentais reside especialmente em determinados direitos atinentes às relações privadas dos indivíduos. Nas palavras de Antônio Augusto Cançado Trindade85: É em relação a estes últimos [direitos], referentes à esfera da vida privada dos indivíduos, outrora – e em alguns países ainda hoje – regulados pelas tradições culturais e pelas crenças religiosas, que têm se insurgido as objeções à universalidade: é o que ilustra o tratamento dispensado a questões como as da condição da mulher (...). É nesta área

                                                                                                                85

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado internacional dos direitos humanos. 2a ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. v. 3, p. 346.

 

 

102 específica, essencialmente da vida privada, que não raro se produzem medidas discriminatórias, se não graves violações dos direitos humanos. Com efeito, toda a história do direito privado dá mostras de distintos tipos de discriminação de jure.

E isso ocorre pois a interpretação tradicional dos direitos humanos (da maneira como foram elencados na Declaração Universal e nos Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas) sugeria que os Estados não seriam responsáveis pelos abusos cometidos em âmbito privado ou das comunidades. Diante disso, mostra-se de rigor uma reflexão mais aprofundada sobre um dos aspectos mais relevantes da universalidade dos direitos humanos em relação aos chamados “particularismos” culturais, que é a questão dos direitos da mulher em relação a tradições e práticas seculares, como é o caso da mutilação genital feminina. Isso porque, essas práticas são frequentemente invocadas para acobertar violações de direitos fundamentais, perpetradas especificamente contra as mulheres. Neste ponto, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), em seu artigo 5o, obriga os Estados-partes a tomarem todas as medidas apropriadas para “modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas consuetudinárias e de qualquer outra índole que estejam baseados na ideia da inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e mulheres”. A referida Convenção foi, no entanto, omissa, deixando de se referir expressamente à esfera da vida privada, de particular importância no contexto da proteção dos direitos humanos das mulheres contra as práticas tradicionais nefastas à saúde e à integridade física. No intuito de suprir essa lacuna e eliminar qualquer dúvida acerca da sua aplicabilidade também às relações privadas, o Comitê CEDAW adotou, em janeiro de 1992, a Recomendação Geral n. 19, por meio da qual agregou significativamente que, embora a Convenção se aplique precipuamente à violência perpetrada por autoridades públicas, a discriminação sob a referida Convenção não se restringe a atos do poder público, podendo os Estados ser responsabilizados por “atos privados” se deixarem de “agir com a devida diligência” para impedir ou investigar e punir atos de violência contra  

 

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a mulher. Assim, mediante a adoção da supracitada recomendação, o CEDAW passou a considerar a violência como uma forma de discriminação contra a mulher também mediante atos praticados na esfera privada. Vale sublinhar a significativa conclamação realizada na II Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993) no sentido de que a eliminação da violência contra as mulheres deve ocorrer “na vida pública e privada” e que quaisquer conflitos que possam surgir entre os direitos humanos da mulher e “os efeitos prejudiciais de certas práticas tradicionais ou costumeiras, preconceitos culturais e extremismo religioso” devem ser erradicados, mediante o exame de suas causas e mediante a criação de novos padrões de comportamento guiados pela observância dos direitos humanos. Por fim, também merece destaque a IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim, 1995) que abordou corajosamente o tema central dos direitos humanos da mulher em sua relação em particular com práticas tradicionais ou consuetudinárias e padrões culturais de comportamento. A Plataforma de Ação adotada na referida Conferência endossou a universalidade dos direitos humanos da mulher de modo tal que, na atualidade, já não é dado invocar padrões culturais ou práticas religiosas para limitar o exercício de tais direitos. Segundo o mencionado documento: A violência contra a mulher emana essencialmente de pautas culturais, em particular dos efeitos prejudiciais de algumas práticas tradicionais ou consuetudinárias e de todos os atos de extremismo relacionados com a raça, o sexo, o idioma ou a religião que perpetuam a condição inferior que se atribui à mulher na família, no lugar de trabalho, na comunidade e na sociedade (...).86

Ante todo o exposto, podemos concluir que os chamados “particularismos” regionais (seja de cunho cultural, religioso, social, etc.) devem ser considerados em perspectiva adequada. A universalidade dos direitos humanos não é restringida, mas sim enriquecida pela diversidade cultural, na medida em que estes particularismos não podem atingir o núcleo de direitos de consagração universal (chamado de “mínimo ético                                                                                                                 86

ANISTIA INTERNACIONAL. La mutilación genital feminina y los derechos humanos – infibulatión, excisión y otras prácticas cruentas de iniciación. Madri: Editorial Amnistía Internacional, 1998.

 

 

104

irredutível”), como os direitos fundamentais do ser humano, mormente os inderrogáveis, acrescidos das garantias fundamentais e das normas atinentes ao padrão mínimo de tratamento humanitário.

4.3 – A mutilação genital feminina e as normas internacionais de direitos humanos Superadas as questões problematizadas nos tópicos anteriores, podemos afirmar que, atualmente, as consequências da prática da mutilação genital feminina representam são clara e inequivocamente reconhecidas em escala internacional como violação dos direitos humanos, na medida em que diversos documentos normativos internacionais impõe aos Estados a obrigação de respeitar e garantir o respeito aos direitos fundamentais básicos, como, por exemplo, o direito à integridade física e psíquica, o direito a não discriminação por razões de gênero e o direito à saúde. E o fato de os governos locais não tomarem as medidas apropriadas para garantir a erradicação da mutilação genital feminina, por si só, já viola tais obrigações. De acordo com a Declaração Conjunta sobre a Eliminação da Mutilação Genital Feminina87: A mutilação genital feminina viola uma série de princípios, normas e padrões de direitos humanos bem estabelecidos que incluem os princípios da igualdade e não discriminação com base no sexo, o direito à vida – quando dos procedimentos resulta a morte – e o direito a estar livre de tortura, punição ou tratamento cruel, desumano ou degradante, assim como os direitos subsequentes. Uma vez que altera tecido genital saudável na ausência de necessidade médica e pode provocar consequências graves na saúde física e mental da mulher, a mutilação genital feminina é uma violação do direito da pessoa aos mais altos padrões de saúde. A mutilação genital feminina está reconhecida como discriminação com base no sexo porque se fundamenta em desigualdades de gênero e desequilíbrios de poder entre homens e mulheres e inibe as mulheres do exercício completo e igual usufruto dos direitos humanos. (...) A mutilação genital feminina priva as meninas e mulheres de tomarem uma decisão

                                                                                                                87

Declaração conjunta das seguintes agências especializadas das Nações Unidas: OHCHR, ONUSIDA, PNUD, UNECA, UNESCO, UNFPA, ACNUR, UNICEF, UNIFEM e OMS.

 

 

105 independente e informada sobre uma intervenção que tem um efeito prolongado nos seus corpos e que afeta a autonomia e controle individual sobre as suas vidas.

Desde a Declaração Universal de 1948 afirma-se que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Protege-se, entre outros, o direito à segurança dos indivíduos, à integridade física e psíquica e o direito a não serem submetidos a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, direitos estes diretamente violados por meio da prática da mutilação genital feminina. Os direitos humanos – civis, culturais, econômicos, políticos e sociais – estão enumerados em vários tratados internacionais globais e regionais. Diversos destes instrumentos normativos que especificam de forma mais detalhada os distintos direitos consagrados pela Declaração Universal afirmam que todas as formas de violência contra a mulher ou outras práticas tradicionais nefastas são um ataque à dignidade, à liberdade e à integridade da mulher e, consequentemente, uma ofensa aos direitos humanos. Por fim, algumas normas internacionais de direitos humanos (entre elas tratados amplamente ratificados) contêm proibições expressas acerca da mutilação genital feminina, como a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher (1993), que trata sobre a violência baseada no gênero “tanto na vida pública como na vida privada” e inclui a mutilação genital feminina em seu âmbito de aplicação, reconhecendo-a como prática tradicional nociva e como forma de violência contra a mulher. Esta dispõe, em seu art. 4o, que os Estados não devem invocar nenhum costume, tradição ou consideração religiosa para afastar sua obrigação de eliminar a violência contra a mulher. A Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher foi considerada internacionalmente como um marco para o combate à violência de gênero uma vez que detalha as medidas que os Estados devem adotar para impedir, punir e erradicar este tipo de violência, incluindo nestes deveres a adoção de medidas eficazes de proteção e a obrigação do Estado de investigar e punir tais práticas. O regime legal é complementado por uma série de documentos de consenso político, tais como os resultantes das conferências mundiais das Nações Unidas (tanto as Conferências Mundiais de Direitos Humanos quanto aquelas exclusivamente sobre os

 

 

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Direitos das Mulheres), que reafirmam os direitos humanos e apelam aos governos para que garantam o seu completo respeito, proteção e cumprimento. Muitos organismos de monitoramento dos direitos humanos das Nações Unidas incluíram a mutilação genital feminina nos seus relatórios de observação dos Estados, relativos ao cumprimento das obrigações para com os tratados. O Comitê para a Eliminação da Descriminação contra as Mulheres, o Comitê dos Direitos da Criança e o Comitê dos Direitos Humanos têm ativamente condenado a prática e recomendado medidas para o seu combate Neste passo, o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres já havia se referido à prática da mutilação genital feminina em várias de suas recomendações gerais quando elaborou a sua Recomendação Geral n. 14 (no ano de 1990)88 especificamente sobre a Circuncisão Feminina onde, dirigindo-se aos estados,                                                                                                                 88

Recomendação Geral n 14 (nona seção, 1990) – Circuncisão Feminina: “O Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres, Preocupado com a continuidade da prática de circuncisões femininas e de outras práticas tradicionais prejudiciais à saúde das mulheres; Tendo notado, com satisfação, que os governos dos países onde tais práticas existem, as organizações nacionais dedicadas às mulheres, organizações não governamentais, e organismos do sistema das Nações Unidas, assim como a Organização Mundial da Saúde e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), além da Comissão de Direitos Humanos e sua Sub-Comissão de Prevenção à Discriminação e Proteção das Minorias, continuam tratando da questão, tendo reconhecido particularmente que práticas tradicionais como a mutilação genital feminina acarretam sérias consequências para a saúde das mulheres e crianças; Tomando conhecimento, com interesse, do estudo do Relator Especial sobre Práticas Tradicionais Nocivas à Saúde das Mulheres e Crianças e do estudo do Grupo de Trabalho Especial sobre Práticas Tradicionais; Reconhecendo que as mulheres estão a tomar, por conta própria, importantes medidas para identificar e combater práticas prejudiciais à saúde e ao bem-estar das mulheres e crianças; Convencidos de que as importantes ações que estão sendo tomadas pelas mulheres e por todos os grupos interessados precisam ser apoiadas e estimuladas pelos Governos; Tendo notado, com grande preocupação, que ainda existem pressões culturais, tradicionais e econômicas que ajudam a perpetuar práticas nocivas como a circuncisão feminina, Recomenda que os Estados-partes: (a) Tomem medidas apropriadas e efetivas com o intuito de erradicar a prática da circuncisão feminina. Tais medidas incluem: (i) A coleta e disseminação de dados acerca de tais práticas tradicionais por universidades, organizações médicas ou de enfermagem, organizações nacionais dedicadas às mulheres ou outros organismos; (ii) O apoio de organizações dedicadas às mulheres nos trabalhos nacionais e locais para a eliminação da circuncisão feminina e de outras práticas prejudiciais às mulheres; (iii) O incentivo de políticos, profissionais, líderes religiosos e comunitários, em todos os níveis, incluindo os meios de comunicação e de artes, para que cooperem nas atitudes que influenciam na erradicação da circuncisão feminina; (iv) A introdução de educação apropriada e de programas de treinamento e seminários com base nos resultados de pesquisas acerca dos problemas decorrentes da circuncisão feminina; (b) Incluir em suas políticas nacionais de saúde estratégias apropriadas dedicadas a erradicar a circuncisão feminina do sistema público de saúde. Tais estratégias podem incluir a responsabilização especial dos profissionais de saúde, incluindo parteiras tradicionais, para explicar os efeitos nocivos da circuncisão feminina; (c) Requerer assistência, informações e conselhos das organizações especializadas do sistema das Nações Unidas para apoiar e assistir os esforços que estão sendo empregados para eliminar as práticas tradicionais nocivas; (d) incluir em seus relatórios ao Comitê, nos termos dos artigos 10 e 12 da Convenção para Eliminação de

 

 

107

apela para que estes adotem medidas apropriadas e efetivas com vistas à eliminação da prática, prevendo, entre elas, a introdução de estratégias sanitárias e educativas apropriadas, e que comuniquem tais medidas em seus relatórios dirigidos ao Comitê. Em sua Recomendação Geral n. 19, o Comitê estabeleceu uma conexão entre as atitudes tradicionais que rebaixam a mulher a uma posição de subordinação e as práticas violentas como a mutilação genital feminina, afirmando que “esses preconceitos e práticas podem chegar a justificar a violência contra a mulher como uma forma de proteção ou dominação da mulher”, sustentando ainda que a violência contra a mulher não só a priva de seus direitos civis e políticos (como o direito à integridade física) como também lhe nega seus direitos econômicos e sociais sob o fundamento de que as consequências estruturais básicas das violências reais ou ameaças de violências contra a mulher contribuem para mantê-las em um papel subordinado, com escassa participação política e em um nível inferior de educação, capacitação e oportunidade de emprego. O direito de desfrutar do mais alto nível de saúde física e mental foi consagrado pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que determina a obrigação por parte dos Estados em adotarem medidas concretas para sua efetivação, incluindo medidas para o desenvolvimento sadio da criança e para a redução da taxa de mortalidade infantil. Na Conferência Internacional das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento, celebrada no Cairo (1994), debateu-se a relação entre a saúde reprodutiva e os direitos humanos, sendo que no Programa de Ação resultante desta conferência determinou-se expressamente aos Estados que colocassem fim à prática da mutilação genital feminina e que promovessem programas de educação neste campo. Vale destacar que, dos 29 países africanos em que se pratica a mutilação genital feminina, 22 contam com delegações do Comitê Interafricano sobre Práticas Tradicionais que Afetam a Saúde das Mulheres e Crianças, órgão criado pela ONU em 1984 para coordenar as atividades das ONGs de âmbito nacional, realizando atividades de formação, organizando campanhas de conscientização e captando apoio na âmbito local, nacional e internacional.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, informações acerca das medidas que estão sendo tomadas para eliminar a circuncisão feminina.

 

 

108

As Nações Unidas também organizaram, ao longo dos anos, seminários regionais (Burkina Faso, 1991 e Sri Lanka, 1994) para avaliar os aspectos relativos aos direitos humanos violados pela mutilação genital feminina e por outras práticas tradicionais que afetam as mulheres e crianças, o que deu origem ao Plano de Ação das Nações Unidas para a Eliminação das Práticas Tradicionais que Afetam a Saúde das Mulheres e Crianças. Este plano de ação estabelece 62 medidas que devem ser adotadas pelos governos em âmbito nacional. Entre elas, destacam-se as seguintes: assumir firmemente o compromisso de colocar fim as práticas tradicionais e, em particular, à mutilação genital feminina; ratificar e aplicar os instrumentos tradicionais pertinentes; elaborar leis que proíbam tais práticas e criar órgãos e mecanismos que garantam o cumprimento das medidas adotadas. Além dos direitos fundamentais supracitados, é certo que a prática da mutilação genital feminina, na grande maioria das ocasiões, viola ainda os Direitos da Criança. Diante da vulnerabilidade e da necessidade de cuidados específicos, a legislação de direitos humanos confere às crianças proteção especial. Um dos princípios basilares da Convenção sobre os Direitos da Criança é a atenção para com “os superiores interesses da criança”, fazendo referência ainda ao envolvimento e à capacidade das crianças de tomarem decisões relativas a assuntos que a elas dizem respeito. Já mencionamos que, quase sempre, são os pais que tomam a decisão de submeter as suas filhas à mutilação genital feminina (tendo em vista que a maioria das mutilações é feita entre os 04 e 08 anos de idade), pois acreditam que os benefícios obtidos através da intervenção são maiores que os riscos daí resultantes. Tal percepção, contudo, não pode justificar a prática de um ato que causam sequelas permanentes e que constitui uma clara violação dos direitos humanos fundamentais das meninas. No mais, quando se trata da mutilação genital feminina, mesmo nos casos em que a menina exprime seu desejo ou concorda em se submeter à intervenção, tal concordância resulta, na realidade, da pressão social a que é exposta, traduzida nas expectativas de seus familiares e nas aspirações de ser aceita como membro de pleno direito da sua comunidade, sem contar no temor da rejeição caso se recuse a passar pela circuncisão.

 

 

109

Por esta razão, a decisão de uma menina de se submeter a uma mutilação genital feminina não pode ser designada como livre, consciente ou isenta de coação, mesmo porque, dificilmente uma menina que sequer atingiu a puberdade terá plena consciência dos efeitos e das consequências reais que decorrem da mutilação de seus órgãos genitais. Indubitavelmente, qualquer que seja a circunstância, a prática da mutilação genital feminina viola os direitos da criança, motivo pelo qual os instrumentos legais para a proteção dos direitos da criança reivindicam expressamente a abolição de práticas tradicionais que sejam prejudiciais para suas vidas e saúde. A Convenção sobre os Direitos da Criança refere-se de forma explícita às práticas tradicionais prejudiciais e o Comitê dos Direitos da Criança, juntamente com outros órgãos de controle da aplicação dos tratados em matéria de direitos humanos, destacam com frequência a mutilação genital feminina como violação dos direitos humanos, apelando aos Estados Parte para que tomem todas as medidas apropriadas e efetivas para que a prática seja abolida. Assim, podemos concluir que a mutilação genital feminina constitui clara violação de direito à integridade física e psíquica das mulheres e crianças e que não pode ser considerada independente do contexto da privação sistemática dos direitos civis, políticos, sociais e econômicos da mulher, reconhecendo que a violência contra a mulher é inseparável da discriminação baseada no gênero e que mantém com ela uma relação de interdependência.

 

 

 

110

 

 

Conclusões

Primeiramente, concluímos que as normas de direitos humanos possuem caráter universal e o sistema geral de proteção tem por endereçado toda e qualquer pessoa, concebida em sua abstração e generalidade, independente de raça, etnia, sexo, religião, idade, etc. Partindo da premissa de que os direitos humanos, inerentes a todo ser humano, considerados como tal, são inalienáveis, antecedem o poder do Estado e sua existência independe de qualquer positivação ou reconhecimento estatal, podemos afirmar que as práticas tradicionais discriminatórias e nocivas à saúde não podem ser invocadas para acobertar violações de direitos fundamentais que há séculos são perpetradas, especialmente contra as mulheres. Em que pese o posicionamento da corrente relativista, que alega ser o caráter universal das normas de direitos humanos, na verdade, mera imposição de um imperialismo cultural ocidental às demais culturas e sociedade, entendemos que nem toda diversidade e nem todo ponto de vista cultural são eticamente aceitáveis, não sendo dignas de proteção aquelas práticas que vulneram os direitos fundamentais do indivíduos, sejam elas perpetradas pelo próprio Estado ou nas relações de direito privado entre particulares. Ao nosso ver, é de rigor reconhecer que o multiculturalismo e a diversidade cultural podem significar avanços na democracia e na liberdade de uma sociedade, na medida em que são uma poderosa crítica ao etnocentrismo cada vez mais generalizado no mundo globalizado, contudo, nem o relativismo cultural nem o direito à autodeterminação dos povos não podem justificar ou prevalecer frente às graves violações de direitos humanos, ainda que estas façam parte de práticas arraigadas na cultura e nas tradições regionais de determinadas sociedades e comunidades. O combate a estas práticas milenares é medida que se impõe, alcançando novo vigor em face do movimento internacional dos direitos humanos, na medida em que este flexibiliza as noções de soberania nacional e de jurisdição doméstica, ao consagrar um parâmetro internacional mínimo relativo à proteção dos direitos humanos. Ademais, sustentamos ser urgente a necessidade de se construir coletivamente critérios éticos universais que retirem a legitimidade de todos os valores e práticas

 

 

111

baseados na dominação e na discriminação, devendo esta nova ética ser suficientemente universal para que não seja uma manifestação de etnocentrismo e para que as populações tradicionais não a percebam como tal, refutando-a. Por meio do presente trabalho pudemos concluir que em todas as sociedades em que é praticada, a mutilação genital feminina é uma manifestação de desigualdade de gênero que está profundamente enraizada em estruturas de ordem social, econômica e política. Assim como tantas outras práticas pautadas na discriminação de gênero (como a já extinta prática de enfaixamento dos pés, na China; a prática de dote e o casamento forçado de crianças, os queimaduras com ácido e apedrejamento de mulheres supostamente adúlteras, o tráfico e exploração sexual de meninas, etc.), a mutilação genital feminina representa uma forma de controle social sobre a mulher e pretende perpetuar o status de inferioridade da mulher. Nos locais onde a mutilação genital feminina é praticada de forma generalizada, é apoiada tanto por homens como por mulheres, geralmente de forma acrítica, e os seus opositores podem estar sujeitos à condenação e desonra, à perseguição e ao ostracismo. Como tal, a mutilação genital feminina é uma convenção social acompanhada por recompensas e punições que constituem uma poderosa força motriz para a continuação da prática. Face a esta natureza convencional e diante do fato de a mutilação genital feminina ser, na maioria das vezes, suportada por estruturas de poder e autoridades locais, a tarefa de erradicar a referida prática tradicional se torna muito mais difícil, mas não impossível. Neste passo, é importante destacar que a atuação das Nações Unidas e das organizações não governamentais 89 dedicadas à promoção dos direitos humanos das mulheres vêm conseguindo romper com o silêncio que envolvia a prática da mutilação genital feminina e introduziu, sem reservas, esta questão nos planos de trabalho do movimento internacional dos direitos humanos, fomentando o desenvolvimento de uma estratégia mundial para a erradicação desta prática.

                                                                                                                89

Dentre as ONGs que têm trabalhado com a questão da mutilação genital feminina podemos citar as seguintes: Forward International; Minority Rights Group; Commission pour l’Abolition des Mutilations Sexuelles (CAMS); Research Action Information Network for Bodily Integrity of Women (RAINBO); Equality Now.

 

 

112

Os seminários regionais (foros de discussão entre autoridades nacionais, organismos especializados da ONU e ONGs) além das Conferências Mundiais de Direitos Humanos também representaram marcos importantes no papel das Nações Unidas em relação a mutilação genital feminina. Além disso, é extremamente importante que os países adotem ações legais contra a mutilação genital feminina como parte das medidas que devem tomar para impedir a violência contra as mulheres e crianças, sendo de rigor que a legislação considere a referida prática como um delito (que, consequentemente, não poderá ser tolerado pelas autoridades). Contudo, também se faz necessário que tais ações legais sejam muito bem planejadas, levando-se em conta o tipo de legislação que convém implantar, o contexto em que ela será introduzida, como será aplicada e como combinará com outros aspectos de uma aplicação global de erradicação. Isso porque, caso não seja bem planejada, a introdução de uma nova legislação repressora pode provocar protestos e insatisfações populares, o que pode conduzir à renúncia de sua aplicabilidade ou que a sua criminalização converta a mutilação genital feminina em uma prática completamente clandestina, dificultando o trabalho setorial e de educação. Assim, para que a legislação seja eficaz, esta deve vir acompanhada de uma estratégia ampla que inclua a promoção da educação e o trabalho de conscientização da população da comunidade, dos líderes locais, dos profissionais da saúde, etc. Finalmente, concluímos que, ainda que seja extremamente importante que os países a adoção de leis que proíbam ou criminalizem a prática da mutilação genital feminina, a adoção de medidas especiais temporárias pelos governos e a introdução de campanhas informativas são essenciais para a erradicação da mesma e para que se possa alcançar um patamar de igualdade material entre homens e mulheres, pois, a maneira mais eficaz de acabar com as práticas discriminatórias que perpetram a violência contra a mulher é através da educação e do empoderamento social, cultural, econômico e familiar das próprias mulheres.

 

 

113

Anexo I: Prevalência da mutilação genital feminina na África (mulheres com idades compreendidas entre 15 e 49 anos)    

  Fonte: Declaração Conjunta para Eliminação da Mutilação Genital Feminina (OHCHR, ONUSIDA, PNUD, UNECA, UNESCO, UNFPA, ACNUR, UNICEF, UNIFEM, OMS)

                     

 

 

114

Anexo II: Países onde a mutilação genital feminina foi documentada Para os países que não estão assinalados com um asterisco (*), a prevalência calculada resulta da informação obtida com base em inquéritos a nível nacional (Inquéritos Demográficos de Saúde (DHS), publicados pela Macro, ou os Inquéritos Nacionais de Múltiplos Indicadores por Amostragem (MICS), publicados pela UNICEF). Estimativa de prevalência da mutilação genital feminina em País

Ano

meninas e mulheres com idade entre os 15 e 49 anos (%)

Benim

2001

16.8

Burquina Faso

2005

72.5

Camarões

2004

1.4

República centro Africana

2005

25.7

Chade

2004

44.9

Costa do Marfim

2005

41.7

Djibouti

2006

93.1

Egito

2005

95.8

Eritréia

2002

88.7

Etiópia

2005

74.3

Gâmbia

2005

78.3

Gana

2005

3.8

Guiné

2005

95.6

Guiné-Bissau

2005

44.5

lémen

1997

22.6

-

45.0

Mali

2001

91.6

Mauritânia

2001

71.3

Níger

2006

2.2

Nigéria

2003

19.0

Libéria

 

 

115

Quênia

2003

32.2

Senegal

2005

28.2

Serra Leoa

2005

94.0

Somália

2005

97.9

2000

90.0

Togo

2005

5.8

Uganda

2006

0.6

República da Tanzânia

2004

14.6

Sudão - região norte (aproximadamente 80% da população abrangida pelo inquérito)

Fonte: Declaração Conjunta para Eliminação da Mutilação Genital Feminina (OHCHR, ONUSIDA, PNUD, UNECA, UNESCO, UNFPA, ACNUR, UNICEF, UNIFEM, OMS)

Noutros países, alguns estudos procuraram documentar a mutilação genital feminina, mas não foram calculadas estimativas a nível nacional. Entre estes países encontram-se: • Índia (Ghadially, 1992) • Indonésia (Budiharsana, 2004) • Iraque (Strobel e Van der Osten-Sacken, 2006) • Israel (Asali et al., 1995) • Malásia (Isa et al., 1999) • Emirados Árabes Unidos (Kvello e Sayed, 2002) Além disso, foram registadas ocorrências episódicas de mutilação genital feminina em diversos outros países, como a Colômbia, a República Democrática do Congo, Oman, Peru e Sri Lanka. Os países nos quais a mutilação genital feminina é praticada apenas por comunidades migrantes não foram incluídos nestas listagens.

 

 

116

Anexo III: Prevalência da mutilação genital na África e os grupos étnicos que a praticam em cada Estado País Burkina Faso

Prevalência

Grupo étnico Ganzoungou, Hovet, Kenedougou,

70%

Kossi, Kdiogo, Mouhoun, Nahouri, Yatenga e Zounweogo 100% Muçulmanos;

Camarões

20%

63% Cristãos Sudoeste da Província do Norte

República Centro Africana

50%

Banda, Mandjia

Chade

60%

Regiões do Sul, Este e Centro de N’djamena

Costa do Marfim

60%

80% Muçulmanos, 16% Católicos e Protestantes

República Democrática do

-----

Não há informações

Egito

80%

Muçulmanos e Cristãos

Djibouti

98%

Quase todas as etnias

Eritreia

-----

Cristãos e Muçulmanos

Etiópia

90%

Cristãos e Muçulmanos

Congo

Mandigane Saraola (100%) Fula Gâmbia

80%

(93%) Jola (65.7%) Wolof (1.9%) Bussani, Frafra, Kantonsi, Kassena, Kassasi, Manprushie,

Gana

30%

Monshie, Nankanne, Dagarti, Grunshie, Kantosi, Lobi, Sissala e Walas

Guiné Conacry

50%

Não há informações

Guiné Bissau

50%

Mandingas, Fulas, Beafadas

Quênia

-----

Não há informações

Mali

80%

Todas as etnias

Libéria

60%

Só três grupos étnicos praticam

 

 

117

Mauritânia

25%

Não há informações Shuwa, Gourmanche, Courtey,

Niger

20%

Paulh, Songhai e Wogo

Nigéria

60%

Hausa, Ibo, Yoruba

Senegal

20%

Não há informações

Somália

98%

Todas as etnias

Serra Leoa

90%

Todas as etnias, exceto os Crios

Sudão

89%

Não há informações

Tanzânia

10%

Shaga

Togo

50%

Não há informações

Uganda

5%

Não há informações

Fonte:

Há que se ter em conta que estas práticas não se devem atribuir a uma determinada zona do país, nem a uma determinada religião mas às próprias comunidades. Assim, dentro de um território e dentro de uma religião pode acontecer de existir comunidades que executem este ritual e outras não.

 

 

118

Anexo IV: Legislação aplicável aos casos de mutilação genital feminina e medidas adotadas pelos Governos africanos que visam à erradicação da prática   País

Benin

Não há legislação específica no Cod. Penal. Possibilidade de aplicar os arts. de “feridas intencionais ou cortes”.

Burkina Faso

Proibição expressa: lei aprovada em 1996.

Camarões

Não há nenhum artigo específico do Cod. Penal. Possível aplicação do art. referente à “danos físicos graves”

Chade

Não existe legislação específica. Possibilidade de aplicação dos art. 252 a 254 do Cod. Penal referentes à integridade corporal

Costa do Marfim

 

Legislação aplicável

Lei específica de 1998

Penalidade

Diferentes sanções

Pena de 6 meses a 10 anos dependendo da gravidade das sequelas e multas de 50.000 a 900.000 francos

De 10 a 20 anos de prisão

Mutilação de um membro pode ir até 10 anos de prisão e multa de 500 francos

Até 5 anos de prisão mais multa. Será o dobro se for realizado por um profissional da saúde. Se ocorrer morte poderá chega até 20 anos de prisão

Outras medidas que visam à erradicação da prática Algumas atividades em zonas rurais sobre os risco para a saúde que contemplam a MGF

Programas de prevenção, educação etc. Campanha contra as práticas tradicionais prejudiciais para as mulheres (Min. dos assuntos da Mulher, ONGs)

Não existem

Não existem

 

119

Egito

Eritreia

Etiópia

Não figura no Cod. Penal. Possibilidade de aplicação do conceito “danos graves” Não há proibição específica no Cod. Penal. Possibilidade de aplicação dos art. relativos à “ofensas contra a pessoa e a saúde”

Gâmbia

Não há menção específica. Possibilidade de aplicação do art. Referente à “danos graves”

Gana

É considerado um delito desde 1994, segundo o art. 64 do Código Penal.

Guiné Bissau

Guiné Equatorial

Quênia

Libéria

 

Código penal não faz menção específica, no entanto o art. 240 “sanciona aqueles que o pratiquem”

Não há referência no Cod. Penal. Possibilidade de aplicação dos art. Referentes à “danos físicos intencionais”

Considerada delito de castração Segundo o art. 265 do Cod. Penal A proposta para a criminalização da MGF foi recusada. Possibilidade de aplicação das normas relativas a “crimes graves contra a vida e a saúde” Não há legislação específica. Potencialmente aplicável o art. 242 referente a “privação de um membro”

3 anos de prisão mais trabalhos forçados podendo chegar a 7 anos de prisão se provocar a morte

Até 10 anos de prisão

Até 10 anos de prisão

Até 7 anos de prisão

Prisão por um período mínimo de 3 anos

Diferentes sanções segundo os danos físicos

Trabalhos forçados, em caso de morte da vítima o executor é condenado à morte e executado

De 1 a 5 anos de prisão, segundo a gravidade da situação

Até 5 anos de prisão

Min. Saúde proibiu a execução em hospitais públicos

Campanhas para a sua eliminação (Min. da Saúde e Educação) O governo apoia a eliminação da MGF, mediante campanhas de sensibilização

Apoio de ONGs em campanhas para a eliminação desta prática Várias estratégias para erradicar a prática, através do Serviço de Políticas em saúde sexual e reprodutiva Iniciativas por parte do Min. de assuntos da Mulher e Educação

Declaração do Governo

Declarações do governo condenando a MGF, proibições para prof. de saúde, educação.

Comitê Nacional Contra as Práticas Tradicionais Prejudiciais para as mulheres e crianças

 

120

Mali

Mauritânia

Níger

Nigéria

Não há lei específica no Cod. Penal. Possibilidade de aplicação dos art. 166 e 171 que sancionam os atos “de violência contra uma pessoa”

Art. 285 do Cod. Penal estabelece penas para “adultos que intencionalmente provoquem feridas e amputações em outrem”, onde a MGF poderia ser enquadrada

Não há proibição expressa no Cod. Penal. Possibilidade de aplicação das normas que regulam as “feridas e golpes intencionais”

Não há legislação específica, possibilidade de aplicação do art. 204 “danos”

Penas desde 1 anos até 20 anos de prisão e trabalhos forçados em caso de morte da vítima

Sanções desde 10 dias a 2 anos de prisão acrescidos de multas

De 3 a 2 anos de prisão, 8 anos em casos de mutilação e 20 em caso de morte

Até 14 anos de prisão no caso de mutilações

República Centro Africana

Lei de 1996 que aboliu a MGF em todo o país

Até 2 anos de prisão e multas

República Democrática do Congo

Não há proibição expressa. Possibilidade de aplicação do Art. 46 e 48 “danos corporais intencionais”

De 8 a 20 anos de prisão (em caso de morte)

 

Existência de um Comitê Nacional Contra as Práticas Tradicionais Prejudiciais para as mulheres e crianças, apoiado por ONGs e o desenvolvimento de um programa para a erradicação da MGF até 2007 O governo terá editado um guia sobre os direitos da mulher no qual confirma os malefícios da MGF para a saúde das mulheres, afirmando que não existe esta exigência por parte do Islamismo O Min. da Saúde em 1997, criou um programa de Ação para a Eliminação de Todas as Formas de MGF O Min. da Saúde dispõe de uma política específica sobre MGF cujo principal objetivo é a eliminação da prática Campanha de educação do Min. de Assuntos Sociais destinada a abolir a prática

Não existem

 

121

Senegal

Proibida desde 1999, segundo o art. 299

De 6 meses a 5 anos de prisão. Em caso de morte, trabalhos forçados.

Serra Leoa

Não existe legislação específica. Possibilidade de aplicação do art. sobre prevenção da crueldade contra crianças

Multas e prisão de 6 meses a 2 anos

Somália

Sudão

Tanzânia

Togo

Uganda

 

Não há proibição específica. Possibilidade de aplicação teórica dos art. “que regulam os danos à integridade física”

Programa de Saúde Sexual e Reprodutiva do Min. da Saúde que incluí medidas políticas, legislativas, sensibilização, educação etc.

Não existem

De 3 meses a 7 anos de prisão

Todos os avanços estão parados desde 1991, com a complicação da situação política do pais.

Não há lei específica. Possibilidade remota de se aplicar o art. de “danos”

De 6 meses a 5 anos de prisão

Seminários e cursos dirigidos aos executores através de ONGs e da Organização para a Erradicação das Práticas que Afetam a Saúde das Mulheres e crianças

Existe desde 1998 uma lei que condena a MGF, incluindo-a dentre os atos de “crueldade para com as crianças”

De 5 a 15 anos de prisão e/ou multas

Explicitamente proibida desde 1998

Não há legislação específica. Possibilidade de serem aplicadas as normas sobre “danos graves”

De 2 meses a 10 anos de prisão. Também existem penas de até 1 ano de prisão para quem tenha conhecimento de alguma situação de MGF e não informe

Até 7 anos de prisão

Programas educativos e sensibilização por parte do Min. da Saúde

Comitê sobre práticas tradicionais prejudiciais para a saúde das mulheres e crianças

O estatuto do menor estabelece que é ilegal submeter a criança a práticas perigosas para a saúde

 

122

Djibuti

Reformas do Cód. Penal em 1995, para incluir um artigo abolindo expressamente a MGF

Fonte:

                                                                 

 

5 anos de prisão e multa de 1 milhão de francos

Os Min. da Saúde, Justiça e Educação colaboraram com ONGs para erradicação da prática

 

123

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