A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS SIGNIFICADOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR

July 21, 2017 | Autor: Claudio Gastal | Categoria: Politics
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A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS SIGNIFICADOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR


Autor: Cláudio Luis da Cunha Gastal[1]

Resumo
Este artigo deriva-se da revisão bibliográfica realizada para
dissertação de mestrado sobre as relações entre participação popular e
representações sociais referentes ao direito á saúde.
Nele buscamos rastrear as transformações que o tema "participação
popular" entre o período pós-guerra e os dias atuais. Buscamos enfatizar os
aspectos especificamente brasileiros desse desenvolvimento, principalmente
a partir do período inicial da redemocratização do país, ainda sob o regime
militar, período esse no qual ocorreu uma ampla mobilização da sociedade
civil.
Observamos que "participação popular" é um conceito essencialmente
vinculado aos momentos históricos políticos pelos quais nosso país passa e
passou, podendo assumir significados amplamente vinculados à transformação
social ou, ao contrário, significados que servem ao intuito de manutenção
do status quo.
Atualmente "participação popular" parece perder sua dimensão de
contato com as lutas sociais e restringir-se a uma mera "participação
comunitária", com ação coadjuvante à do Estado e vinculada a chamamentos
do Estado, como o voluntariado.
Palavras chave: Participação Comunitária, Estado, Democracia

Abstract
This paper arises from a bibliographical revision realized for a
master's degree dissertation, versing about the relationship between
popular participation and social representations tied to the right to
health.
In this paper we aim understand the changes that the expression
"popular participation" has suffered between the postwar period and the
present. Our objective was to emphasize the aspects of this development
specifically related to Brazil, with special attention at the initial
period of the of country redemocratization's process, still under the
domain of the military regimen, period this in which occurred an ample
mobilization of the civil society.
We observe that "popular participation" is a concept essentially tied
with the historics and politics stages through them the Brazil
underwent, and still undergoes, being possible to assume meanings strongly
linked to the desire of social transformations, or, in contrast, meanings
that serve to the objective of maintenance of the status quo.
In the present historic moment, "popular participation" seems to lost
it's dimension of contact with the social fights and to restrict itself at
a mere "communitarian participation", with an State's auxiliary function,
and linked at the State's callings, as, for example, the voluntary work.
Keywords: Community Participation, State, Democracy


1- Introdução:

Em pesquisa realizada para dissertação de mestrado, versando sobre as
relações entre participação popular e representações sociais sobre direito
à saúde, realizamos uma revisão bibliográfica sobre participação popular, a
qual nos proporcionou uma visão sobre o desenvolvimento histórico das
formas que tal participação assumiu dentro da sociedade brasileira.
Optamos por ampliar essa revisão e transformá-la em artigo, analisando-a
mais especificamente dentro da área da saúde.
A importância de uma compreensão maior a respeito de participação
popular reside no fato de que nela, pelo menos parcialmente, é que se dão
as interações entre população e Estado, nos permitindo compreender
características do Estado Brasileiro.
Tal compreensão cumpre importante papel na compreensão de uma outra
coisa: da experiência empírica de que o Estado Brasileiro possui uma
inércia muito grande em relação às mudanças constitucionais garantidoras de
direito, como por exemplo, os dispositivos constitucionais a respeito da
saúde ( os quais foram conquistas populares obtidas através de alguns
segmentos organizados da sociedade civil, como o movimento pela reforma
sanitária).


2- Metodologia da revisão

A revisão foi realizada através das bases de dados Medline, Scielos e
Scirus, através do descritor "participação comunitária" e das palavras ou
expressões "participação popular", "participação social", "participação da
comunidade", "participação", "envolvimento da população". Encontramos 53
artigos, 8 estrangeiros e 45 nacionais.. Destes selecionamos 13, por serem
abrangentes e lidarem com os conceitos relativos à questão participativa de
forma mais concisa. Além dos artigos utilizamo-nos dos livros mais
relevantes e recentes a respeito do tema.


3- Participação popular e os distintos momentos históricos

Primeiramente é necessário tornar claro que, quando nos referimos à
participação popular, não usamos o senso estrito da expressão; mas sim um
sentido mais amplo, que abrange, também, o que poderíamos denominar de
participação comunitária e participação social. Assinalamos assim uma
imprecisão semântica associada ao tema. Tal imprecisão, segundo Donadone &
Grun (2001) estaria associada a processos sociais mais amplos, onde
diferentes grupos sociais embatem-se na atribuição de significados para
'participação'. Ou seja, os autores vêem a questão da participação como um
construto histórico e social não acabado.
Essa visão da participação como um construto histórico e social leva
Briceño-Leon (1998) - ao analisar a participação comunitária na América
Latina - a considerar que seu conceito constitui-se polissemicamente, e que
a esta abertura de sentidos aderem interesses políticos diversos, até mesmo
antagônicos. Participação comunitária seria, pois, uma expressão aberta a
vários sentidos, tanto histórica como transversalmente.


3.1- Participação popular no contexto do pós-guerra e da guerra fria.

Prosseguindo com Briceño-León(1998), esse autor realizou uma análise
que lhe permitiu dividir momentos históricos diferentes, sendo que em cada
um deles participação tinha um significado hegemônico diverso.
Considera ele que 'participação comunitária' adquiriu relevância
principalmente no contexto da guerra fria, como reação à idéia de Estado
forte e centralizado,com ampla ingerência sobre a sociedade, representada
pelo Estado soviético. Participação, neste contexto, seria, pois, dar
relevância à ação individual e à iniciativa privada. Segundo o autor, uma
análise objetiva deste momento histórico encontraria quatro sentidos
básicos para participação: 1) manipulação ideológica, enquanto centrada em
"programas de desenvolvimento comunitário" desenvolvidos em cooperação
entre empresas e Estado, com o objetivo básico, segundo o autor, de
legitimar a iniciativa privada; 2) mão de obra barata, enquanto
incorporação da população na construção de escolas, casas e hospitais; 3)
facilitadora da ação médica, enquanto propiciadora de aceitação pela
população das recomendações e ações médicas e; 4) como subversão, quando
não era de iniciativa do estado ou de empresas.
Observa-se como núcleo destas concepções o fato de a população ser
vista como objeto e não como sujeito desta participação.
É interessante que neste período, década de 60, surge nos Estados
Unidos o movimento da Saúde Comunitária, ou Medicina Comunitária.
Donnângelo (1976, pp. 72-73) - embora sua análise seja bastante mais ampla
– refere, especificamente dentro da proposta da medicina comunitária, que:
"...'participação comunitária' [seria vista] como forma de superação dos
problemas sociais identificados."(p.72). Paim & Almeida Filho (2000),por
seu lado, entendem que a proposta da saúde comunitária incorporava
aspectos de sociologia, antropologia e psicologia, aplicados aos problemas
de saúde, mas como forma de tornar possível a cooptação de lideranças
locais para programas implementados pelo Estado.
Tanto na análise de Donnângelo como na de Paim & Almeida Filho torna-
se evidente uma proximidade com a interpretação de Briceño-León referente a
uma participação comunitária instrumental, aplicada aqui ao campo da saúde.
Seria uma iniciativa unidirecional do Estado, não derivada de uma
comunidade organizada.
Parece-nos que tal concepção em muito influiu na estruturação dos
programas de saúde do terceiro mundo, inserindo nesses uma visão
instrumental de participação comunitária.
A própria adjetivação "comunitária", parece ter como base uma
eufemização da expressão "participação popular".

3.2- Participação popular a partir da década de 60 do século XX

Retornando a Briceño-León, num momento histórico imediatamente
posterior, o Estado soviético tem seu poder crescentemente questionado ao
mesmo tempo em que surgem movimentos sociais independentes, não
identificados com os Estados capitalistas. Aqui, o significado de
participação comunitária passa a adquirir outros contornos. O autor chama
a atenção para a aproximação que se deu, a partir da década de 70, entre
militantes de movimentos de esquerda - decepcionados com a burocratização
dos estados comunistas - e grupos religiosos, principalmente a então
denominada ala progressista da Igreja Católica, que trabalhava com as
Comunidades Eclesiais de Base. Aqui entramos, já, mais especificamente
relacionadas ao Estado brasileiro. Esse foi um período no qual as
concepções de Gramsci começaram a ter maior penetração no Brasil (Luz,
1979, p. 29; Minayo et al., 2003; Secco, 2002, Stotz, 2003), sendo
difundidos os conceitos de bloco histórico, hegemonia e intelectual
orgânico. Tal contexto leva a um fortalecimento dos movimentos sociais nas
periferias das grandes cidades, os quais vem a ter forte influência na área
da saúde (Cohn, 2002; Gerschman, 1992).
Aqui já nos situamos num contexto bastante diferente de participação
comunitária, onde esta adquire um sentido de participação popular.
Donadone e Grun (2001) fazem, também, uma análise da "participação"
nesse período, mas sob outra ótica: a do movimento dos trabalhadores. Aqui,
participação era proposta como uma alternativa às burocracias sindicais,
consolidando-se na criação de comissões de fábrica. Tal forma de
participação adquire o mesmo sentido de participação popular.

3.3- Participação popular no contexto do processo de redemocratização do
Brasil

No Brasil, tais conotações de participação popular ou comunitária se
dão no contexto de desestruturação do regime militar e de democratização da
sociedade brasileira, emergindo com muita intensidade e politização.
Adquirem uma característica de "...colocar-se como uma consciência critica
do Estado, exigindo deste uma intervenção mais efetiva..." (Gerschman,
1992, p. 263). Ou seja, encontramos aqui um movimento social organizado
que pressionava o Estado para que este assumisse funções mais efetivas,
inclusive dentro da área da saúde. Parece-nos que configurava-se um tipo
especifico de relação entre sociedade civil e Estado, dentro da qual a
primeira percebia o segundo como objeto de democratização.
Neste período, a sociedade civil organizava-se em vários setores. No
setor da saúde, por exemplo, encontramos a consolidação do Movimento
Sanitário.
Com o evoluir do processo de democratização e com a queda do regime
militar, as forças sociais oriundas de uma aliança entre o Movimento
Sanitário e os movimentos sociais encontraram vias alternativas de
desenvolvimento e tiveram de fazer escolhas. O Movimento Sanitário divide-
se em uma facção que percebia o Estado como espaço exclusivo das classes
dominantes, advogando um distanciamento em relação ele e enfatizando a
importância do controle social. Outra facção acreditava não ser o Estado um
bloco tão sólido que não apresentasse brechas através das quais fosse
possível negociar e obter conquistas na área da saúde. (Gerschman, 1992;
Stotz,2003). A segunda corrente torna-se predominante. Contudo, como
assinala Valla (1998)[2] (comentando a crescente presença do pensamento
gramsciano no movimento sanitário), citado por Stotz (2003):
A conquista de posições no interior do aparelho de
Estado, dentro de uma concepção crescentemente
instrumental, distanciou-se, cada vez mais, da resistência
cristalizada por uma concepção de autonomia do movimento
popular" . [E acrescenta ainda, como advertência:] "... a
falta de um forte respaldo no movimento popular... coloca
o risco permanente de a conquista da hegemonia transformar-
se em processo de cooptação. P.27


3.4- Participação popular e a rearticulação das classes dominantes no
Brasil

Estamos aqui, portanto, num momento em que começa a ocorrer um
esvaziamento da influência do movimento popular dentro da formulação de
políticas de saúde, pois dentro do Estado a predominância de velhas
tendências reemerge gradativamente. A advertência de Valla, em nossa
opinião parece procedente, pois, Campos (1991) comenta que:
...não se alterou, na década de 80, a correlação de forcas
que determina a vigência de políticas de saúde
[anteriores]. Os produtores privados, as correntes médicas
neoliberais, detém maior capacidade de influencia nas
instâncias de poder do Estado do que as forcas populares,
fenômeno que, inclusive, tem limitado as possibilidades de
implantação efetiva mesmo de objetivos previstos nos
projetos oficiais de Reforma Sanitária.
Assim, quando o Poder Executivo, com o apoio
explícito ou velado de setores do Movimento Sanitário,
dificulta a participação popular, promove o afastamento de
trabalhadores e dos profissionais de saúde da gestão do
Sistema, está, de fato, inviabilizando qualquer projeto de
Reforma Sanitária, uma vez que esse 'vazio' político
tenderia a ser imediatamente preenchido por forças que
defendem a manutenção do atual status quo sanitário,
advogando a privatização dos serviços de saúde e propondo
um papel bastante restrito para a saúde pública e para o
Sistema Único. P.100-101



Ao agregarmos a isso o poder da burocracia estatal e dos "anéis de
influência" formados pela convergência de setores burocráticos e privados
(Paim, 1992), temos a participação popular como algo que progressivamente
se distancia das políticas de saúde. Mas, sem dúvida, alguns progressos
são conseguidos: Constitucionalmente saúde passa a ser considerada direito
de todos e dever do Estado. A criação do Sistema Único de Saúde propõe
espaços de participação comunitária e o conceito de controle social. As
instâncias de participação popular no SUS são progressos inegáveis enquanto
espaços possíveis de participação popular, contudo, esta participação não
depende apenas da existência desses espaços. (Luz, 2003, Valla, 1999).
Até aqui vimos a questão da participação popular no Brasil, mais
especificamente na área da saúde, até o inicio da implantação do SUS,
assinalando um esvaziamento progressivo dessa participação. Quanto à
questão do SUS, participação popular e controle social, será necessário que
a analisemos em um capítulo específico.
Acreditamos ser ainda importante verificarmos como foi a evolução da
participação popular como um todo desta época até os dias de hoje.
Donadone & Grun (2001), analisando a evolução da participação no meio
trabalhista, mostram muito claramente que foi um conceito progressivamente
apropriado pelo empresariado, sendo gradativamente transformado. Sendo
antes uma forma de participação operária efetiva nas indústrias, passa a
ser um instrumento de redução de custos, aumento de produtividade e
qualidade. Os autores concluem, dizendo que o conceito de participação
... começou sua carreira como ponto fundamental das
estratégias mais radicais do movimento operário, que se
confrontava com o peleguismo sindical e o autoritarismo
governamental, para chegar ao limiar do século XXI como
uma ferramenta gerencial quase perfeitamente
pasteurizada.( p. 123).


Participação, que era vista antes como instrumento de luta, passa a
ser vista como meio de colaboração.

3.5- Participação popular frente à hegemonia do ideário neoliberal
Quando Briceño-León (1998) nos fala da participação comunitária
dentro do contexto de ajuste neoliberal, assinala que o conteúdo conceitual
anterior muda radicalmente. Agora estamos num momento em que se advoga uma
redução do Estado em suas funções e em seu tamanho. O Estado, antes centro
de referência das atividades participativas, agora se torna "...casi uma
mala palabra..." (Briceño-León, 1998, p. 144). A crítica já não é em
relação a um Estado autoritário, ou a um Estado burguês, mas sim em relação
ao Estado enquanto Estado; enquanto organizador do espaço público. O
Estado não mais deve executar, mas sim restringir-se a orientar e dirigir.
Desta forma, deve ocorrer uma transferência de muitas das atividades do
Estado para a sociedade civil; inclusive ações de saúde, não importando se
esta transferência se dê para uma comunidade, uma ONG ou empresa.
Ilustrativo desta conotação seria o que Celedón & Noé (2000) propõem:
Como és sabido, la sola operación del mercado no
garantiza la equidad ni la eficiência em la funcion de
financiamento del sistema de salud. Por ello, la acción
del Estado y la participación y control por parte de los
ciudadanos son fundamentales para um eficiente desempeno
de esta función.
La función Del Estado em el financiamento
consiste em establecer lãs fuentes de recursos y las
reglas de recaudación y de asignación de subsídios, asi
como velar pelo cumplimiento de estas. p. 101.

Assim, neste horizonte, participação comunitária vai sendo definida
em um novo sentido: retorna a hegemonia do "comunitário" sobre o "popular",
reduzindo essa participação a uma ação complementar à do Estado. Deste
modo, na área da saúde, o Estado procuraria reduzir os custos dos serviços
fazendo com que estes sejam pagos, executados ou supervisionados
diretamente pelas pessoas.
Encontramos na literatura relatos de experiências que se
aproximariam disto. Fernandes & Monteiro (1997), por exemplo, relatam a
experiência de um posto comunitário na favela da Rocinha, Rio de Janeiro,
montado e gerido pela comunidade e conveniado ao SUS. Em nosso parecer
tais situações são ambíguas, pois se por um lado são ações complementares
das do Estado, eximindo-o de assumi-las; por outro refletem todo um
processo de mobilização da comunidade.
Contudo ainda nos parece mais fundamental a visão do Estado
subjacente a tais iniciativas. O Estado parece ser considerado ineficiente
e buscar-se-ia alternativas fora dele. Estaria implícita uma desvalorização
do Estado e uma abdicação do poder de transformá-lo. De certa forma seria
como abdicar do Estado enquanto instância de intermediação e delegar à
sociedade a responsabilidade de, sozinha, resolver seus problemas e
conflitos. O que não deixaria de ser uma versão da idéia neoliberal de que
o mercado tudo resolve, sendo o Estado uma interferência indevida. Tais
formas de atuação comunitária, hoje em dia, estão bastante presentes, sendo
comum vermos ONGs assumir tais papéis, ou o próprio Estado convocando as
pessoas para "ações cidadãs" de voluntariado.
Ainda, segundo Briceño-León (1998), a participação pode se dar como
privatização dos serviços de saúde, "...con la ingerência de la empresa
privada o de organizaciones no-gubernamentales para gestionar y ejecutar
tareas que antes eran asunto exclusivo del Estado." (p. 144-45).
Finalizando, o autor assinala modos de participação que, segundo
ele, buscariam uma forma democrática de cidadania, ou seja, a participação
como organização democrática, sendo esta um mecanismo permanente de
inovação e construção da democracia. Implicaria em que a iniciativa de
diálogo e negociação não partisse de um Estado que estaria querendo
desfazer-se de suas funções; mas sim da população, com propostas de
programas estipulados por ela mesma e executados com o Estado. O autor
ainda assinala que a participação comunitária autêntica pode ser um
mecanismo de transformação dos serviços de saúde, na medida em que seria
um apoio importantíssimo para as ações de prevenção e atenção primária em
saúde, fazendo com sejam vencidas as resistências advindas de interesses
econômicos e do poder médico; abrindo espaço para uma visão holística da
saúde, onde estariam incluídos fatores tais como renda, emprego, aspectos
políticos e ambientais.
Como podemos ver, o conceito de participação passou por vários
momentos de transformações de significado, na dependência de injunções
políticas e correlações de forças sociais e econômicas. Contudo, antigos
significados não foram propriamente substituídos por significados mais
novos, mas permaneceram no meio social enquanto representações sociais,
sempre presentes em uma virtualidade possível de atualização. Deste modo,
embora possa haver um significado hegemônico de participação, ele coexiste
com significados bem diversos.
Hoje em dia o significado hegemônico tenderia o de ser participação
uma forma de mobilização social complementar (ou substitutiva) da ação do
Estado; com uma implícita desvalorização do Estado e quase que
identificando os conceitos de mercado e sociedade civil. A mobilização da
sociedade civil seria utilizável, mas não dirigida no sentido de uma
consciência da necessidade de democratizar o Estado. Seria sim uma posição
mista de antagonismo e complementaridade em relação a este. E, com
freqüência, neste terreno indefinido, o próprio Estado parece advogar
contra si mesmo.
Segundo Silva (2003) embora o Estado diminua suas funções sociais,
tem seu poder de defesa do capital aumentado. Ou seja, o Estado por um lado
mantém-se forte, e desta forma tentaria desviar a participação popular para
fora de seu espaço.
Desta forma, participação comunitária, hoje em dia, estaria mais
vinculada à manutenção do status quo do que com a idéia de transformação da
realidade.
Gohn (2001), com propriedade assinala que:
Observa-se que há um total e completo esvaziamento
do conteúdo político da mobilização e a sua transfiguração
em processo para atingir resultados. O novo conceito de
mobilização passa a ser uma das diretrizes básicas
preconizadas nos programas para uma gestão participativa
desenvolvida pelas novas ONGs do terceiro setor. p. 59.



3.6- A participação no contexto de outros países

O que foi anteriormente assinalado talvez permita entender melhor
algumas definições de participação que surgem na literatura não brasileira:


Bronfman & Gleizer (1994) assinalam três posições favoráveis à
participação comunitária. A primeira a concebe em seus aspectos políticos
e sociais, como uma atividade necessária por seus efeitos democratizadores
sobre a sociedade; a segunda vê participação comunitária como uma
estratégia que possibilita aos programas de saúde maiores possibilidades de
êxito; e a terceira, sob a argumentação de que a participação tem efeitos
favoráveis no nível de saúde, esconde um propósito de manipulação no nível
social e político.
Abelson et al.(2003), referindo-se à participação comunitária na
saúde no Canadá, considera que existe uma concordância sobre a importância
desta participação, mas por motivos distintos. Alguns a postulam devido a
ideais democráticos, de transparência e de responsabilidade. Outros por
motivos mais pragmáticos, como o desejo de alcançar apoio popular para
medidas impopulares.
Rutter et al. (2003) Consideram que, na Europa, a questão da
participação comunitária adquiriu ênfase a partir da crise dos estados de
bem estar social. Participação estaria vinculada a uma estratégia de
legitimação dos sistemas de saúde frente às mudanças restritivas
decorrentes da crise.
Contandriopoulos (2003) critica a concepção norte-americana de
participação comunitária por considerá-la ingênua, na medida em que não
percebe que nela sempre está implícita uma questão de poder; possibilitando
assim seu uso ideológico.
Pickard et al. (2002), acreditam que na Inglaterra a participação
comunitária foi introduzida nos serviços de saúde com os seguintes
objetivos: 1) restaurar a confiança pública no sistema de saúde; 2)
Propiciar uso mais adequado dos serviços de saúde; 3) melhorar os
resultados da atenção para pacientes individuais; e 4) ter um potencial de
melhor custo benefício.

3- Considerações finais
Acreditamos que chegar a conclusões a respeito de participação
comunitária, seria negar aquilo que se evidencia nesse artigo: que tal
participação é um construto histórico-social e que depende da conjuntura de
relações de forças sociais do momento. Quando buscamos assinalar essa
característica inevitavelmente somos já partícipes desse jogo de forças. Ao
constatarmos que os movimentos populares vem perdendo espaço frente a um
estado identificado com o ideário neoliberal, passamos a tornar nosso
objetivo o de fornecer elementos críticos que possam passar a se tornarem
elementos dos embates sociais. Portanto, optamos por considerações finais
ao invés de conclusões. As verdadeiras conclusões encontram-se na arena dos
embates sociais.
Mas, de qualquer forma, tentando sintetizar o sentido que foi
configurando-se no decorrer desse artigo, diríamos que participação
comunitária pode adquirir significados tão diversos, que vão desde o da
defesa do Estado mínimo, com a sociedade assumindo papéis tradicionalmente
do Estado, como o que acontece atualmente, até o de ser um mecanismo
político de democratização do Estado. Portanto assinala-se aqui uma relação
inextrincável entre a concepção do que deva ser o Estado e participação
popular. Uma relação que pode concretizar-se, seja em termos da prática,
seja em termos das representações sociais a seu respeito, de modos muito
diversos, e que depende fundamentalmente do entrejogo de poder entre
interesses, classes e movimentos sociais.
Podemos observar que, apesar de toda uma mobilização social ocorrida
durante o período de redemocratização do Brasil, o Estado brasileiro não
respondeu de modo satisfatório, permanecendo um território onde as elites
ainda controlam o poder, refreando uma participação popular genuína,
autêntica.
Para os profissionais que trabalham junto à população, nos parece ser
de suma importância que reflitam sobre os significados de participação
popular, pois somente uma visão clara do tema é que poderá lhes
proporcionar uma escolha a respeito de que lado do balcão desejam
trabalhar: daquele de onde se vê a população como agente passivo de
práticas alheias, ou daquele em que se percebe essa população como uma
força viva e criadora, capaz de articular projetos e lutar por eles.

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[1] Professor Ms da Universidade do Contestado - Campus Mafra.

Rua Mathias Piechnick, 670 - Caixa postal 163
89300-000 - Mafra - SC
Fone: (47) 3642-0555
e-mail: [email protected]
[2] Valla, Victor Vincent. Reflexões desenvolvidas a partir do Projeto de
Pesquisa: Educação, Saúde e Cidadania. Rio de Janeiro; Escola Nacional de
Saúde Publica, 1988 ( Relatório Final apresentado à FINEP)
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