A excentricidade do psicanalista

June 14, 2017 | Autor: Luciano Mattuella | Categoria: Psychoanalysis, Psicanálise
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A excentricidade do psicanalista

Luciano Mattuella

É comum que o psicanalista apareça no imaginário social como aquela figura estranha, por algumas vezes taciturna, silenciosa, respeitável; mas também, por outras vezes, o psicanalista surge como uma caricatura de si mesmo: um sujeito meio fora do ar, distraído, mais preocupado com as fantasias sexuais do que com as contas a pagar no final do mês – Woody Allen é mestre em prestar este tipo de “estranha homenagem” aos analistas em seus filmes. Quem aqui nunca ouviu as histórias de Lacan, esse francês de fala fina e olhar cansado que fumava um charuto torto e tomava uísque com alguns pacientes nas primeiras consultas? Porém, quando lemos sobre os tratamentos que conduzia, temos notícia de um Lacan que fazia bom uso dessa estranheza, como quem a todo tempo se preocupava em não se conformar a um papel pré-determinado – não são poucos os pacientes que relatam que Lacan era um homem improvável, impossível de prever: como um ator de improviso, tudo para ele se dava no plano da surpresa, do inusitado – relatos falam de um psicanalista que falava quando não se esperava isso dele, que encerrava a sessão no meio de um frase, que folhava revistas e respirava fundo quando algo o inquietava. Era, em outros termos, um sujeito bastante excêntrico. Tenho pensando nos últimos tempos o quanto é necessária ao psicanalista uma certa dose dessa excentricidade. Não necessariamente algo bizarro ou ofensivo, mas sim no sentido de que o analista possa ser aquele que deixe as coisas um pouco fora de lugar, que se preocupe com o que está “fora” do

padrão, com o acidente. Em termos freudianos, acredito que a excentricidade do analista – lembrando que excêntrico é, etimologicamente, aquilo que está fora do centro – tem alguma relação com a noção de estranheza familiar, de Unheimlichekeit. Recordem que Freud decompõem esta palavra alemã dando especial ênfase ao termo “Heim”, que significa “casa, lar”. O que é estranho – excêntrico, eu diria – circula por esta dimensão do “fora da casa” – expressão, inclusive, que hoje em dia faz eco à loucura: “fulano está fora da casa” significa dizer que tal pessoa “perdeu a razão”, enlouqueceu. A questão que eu gostaria de trazer aqui faz ressonância a isto: não estamos todos, afinal, sempre “fora de casa”? Gosto muito da ideia de que a Psicanálise ajudou o homem moderno a não se sentir tão confortável com as suas convicções sobre si mesmo - Freud nos faz pensar que, uma vez que seres constituídos pela linguagem (linguagem esta que nos vem de “fora”), nós nunca temos claras as fronteiras do “eu”. Este “eu” que justamente não é senhor em sua própria casa. Em Lacan temos a ideia radical de que nos constituímos como sujeitos olhando para um espelho cujas bordas são as narrativas simbólicas que nos ancoram em uma história: é com essa imagem que nos identificamos para pensar quem somos – mas somos mais além do que isso, somos também as palavras que margeiam esta imagem, palavras que não nos pertencem. Ou seja, enquanto sujeitos, a nossa casa é uma alteridade absoluta: a linguagem (algo que Heidegger já dizia, aliás, quando sugeria que a linguagem é a morada do homem).

Há mais de um ano venho sustentando um trabalho de escuta clínica e de transmissão em Osório, esta cidade com a peculiaridade de estar numa

condição de suspensão: nem é região metropolitana de Porto Alegre, nem ainda litoral. Com seus quixotescos cata-ventos (sempre lembro dos dragões), Osório é uma cidade que traz em sua constituição esta marca de um lugar “entre”, de fronteira (é a sua forma de ser litoral, pensando bem). Tem sido um trabalho que vem, literal e metaforicamente, me tirando de casa. Alguns pacientes trazem em sua fala esta minha posição excêntrica: “É melhor falar com alguém que vem de fora”. Logo me lancei a pensar sobre isso: o que significa sustentar uma escuta em outro lugar que não o que temos como casa? Aos poucos fui percebendo não só as especificidades da rede de significantes que constitui Osório – como “a depressão do inverno”, o “vento muito forte”, o “mirante no morro” – mas, mais importante do que isso, fui estranhando o meu próprio lugar de origem, ou seja, o discurso no qual eu estou subjetivado. Escutar pacientes em Osório, acabei vendo, me permitiu que se tornassem opacos para mim alguns dos significantes da minha – suposta – casa; afinal, para podermos pensar a nossa própria Cultura, é necessário que saiamos do seu foco, do seu centro. Pensar de onde se vem é já uma forma de nos tornarmos excêntricos a nós mesmos. E, me pergunto, psicanalisar não é sempre estranhar o familiar? O trabalho em Osório tem me lançado, por vezes, no registro do desamparo que é característico, penso eu, de quando se torna evidente o nosso exílio fundamental na linguagem. Explicita de alguma forma o caráter ficcional das minhas origens porto-alegrenses, esta cidade na qual me sinto em casa. A nossa casa, neste sentido, nada mais é do que uma entre tantas ficções possíveis que alguém pode construir para estabilizar minimamente o real do mundo e da vida.

Mais ainda: acredito ser muito importante que não resumamos a questão ao par binário “de fora e de dentro”; nossas análises pessoais e o nosso trabalho clínico nos transmitem precisamente que, mesmo em casa, somos todos “de fora”, estamos exilados em uma narrativa com a qual nos identificamos minimamente – mas que não é só nossa, é também da Cultura que nos precedeu e que nos seguirá. Portanto, mais do que inaugurar um “fora do centro”, escutar sujeitos em outras cidades, acredito, reduplica na cena do mundo, isso sim, a nossa condição primordial de exílio – e toda forma de procurar suturar esta condição é, sabemos, da ordem da resistência, do apaixonamento pela imagem. Assim, melhor parece ser que possamos saberfazer com esta excentricidade que nos é constitutiva – afinal é justamente ela que nos permite escutar o sujeito em sua singularidade.

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