A Expedição Roncador-Xingu e a Epopéia do Brasil Moderno Uma breve análise à luz da antropologia de Georges Balandier

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS









A Expedição Roncador-Xingu e a Epopéia do Brasil Moderno
Uma breve análise à luz da antropologia de Georges Balandier












Gustavo Racy
06001110
Antropologia VII
Professor Rinaldo Arruda




Junho/2009
Índice


"Introdução "3 "
"Emergência de uma nova Antropologia "4 "
"A Descoberta do Brasil Central "9 "
"O Parque Nacional do Xingu "12 "
"Conclusão "16 "
"Bibliografia "17 "
"Anexo – sobre o Xingu "18 "




































Introdução


Frente à proposta de um trabalho de tema livre sobre alguma etnia
indígena brasileira, analisada segundo o pensamento de algum autor lido
durante o curso de Antropologia VII, este trabalho pretende, de forma
breve, analisar primeiro a obra de Georges Balandier, para, em seguida,
tentar relaciona-la a um caso específico. Esse caso específico não se
detém, no entanto, em uma etnia indígena particular, mas – tema principal
da obra de Balandier lida no curso -, na relação entre certas etnias
brasileiras (as xinguanas), frente à certa política institucional cunhada
principalmente pelos sertanistas Villas Boas.
Assim sendo, este trabalho tem por objetivo muito mais a explicitação
e a compreensão de um certo pensar antropológico do que a legitimação dele.
Espera-se atingir este objetivo relacionando aquela que Balandier cria ser
a tarefa da Antropologia Política e a atitude de três irmãos que, mesmo não
sendo antropólogos de formação, atingiram objetivos que muitos antropólogos
defenderam sem nunca alcançar. Cabe lembrar que esses irmãos contaram com
grande apoio de importantes indigenistas, principalmente do Marechal
Rondon, tido ainda hoje como heróis por diversas tribos indígenas e Noel
Nuttels.
































Emergência de uma nova Antropologia


De acordo com Hegel, em suas Lições Sobre a Filosofia da História
Mundial, os homens ditos primitivos se encontram abandonados à margem da
história, são como máquinas que funcionam no vazio em sobrevivência
anacrônica. Elas desconhecem o trabalho do negativo, ou seja, da
transformação temporal. E somente o que não é atravessado pela dúvida e
pelo desespero pode fugir da ação do tempo. A China e a Índia forma, para
ele, povos que perduraram sem história. Já a Pérsia, tendo sido o primeiro
império que desapareceu, foi o primeiro povo histórico, sofrendo com a
ruína e a queda, processos para ele naturais.
Os povos históricos são, assim, aqueles cujo negativo emerge em seu
interior, nos quais a violência externa não é determinante. Isso significa
dizer que nas sociedades sem história, o desaparecimento da civilização é
efeito de uma catástrofe que lhe é extrínseca. Sua estabilidade e sua
"fraca temporalidade" fazem com que sejam vulneráveis aos arbítrios
externos, de modo que o negativo que as destrói vem de fora. A história
destas sociedades se firma, assim, como uma "história sem história",
repetição de uma mesma ruína: o novo elemento que substitui o anterior
sempre perecerá.
Para Georges Balandier, em Antropo-lógicas, a recusa pela história na
análise antropológica, herdada da tradição neokantiana, hegeliana e
durkheimiana, foi corrente até a metade do século XX, o que mostra o atraso
da ciência em relação à sua ciência irmã, a Sociologia. Por isso, o
objetivo principal deste antropólogo será cunhar uma antropologia da
modernidade, uma antropologia do atual, uma vez que o ofício do antropólogo
- de interpretar sociedades e culturas firmadas na diferença - e a do
sociólogo – de apreender a própria sociedade no que esta revela de si mesma
nos problemas atuais - entraram em crise na primeira metade do século XX: a
Sociologia por não conseguir se distanciar das categorias próprias das
sociedades ocidentais industrializadas, com a idéia de ser sempre o regime
"que rege a produção que determina o ponto principal do debate"[1]; e a
Antropologia por se firmar como pesquisa meramente de sociedades arcaicas,
sem notar a relação destas com as sociedades de onde provinham os próprios
pesquisadores, fechando os olhos para o diálogo entre si mesma e outros
campos de saber.
Desse modo, observando a emergência da antropologia crítica, que
insere suas considerações no campo de certo tipo de antropologia
fundamental, alguns antropólogos se deterão na questão do trato entre as
sociedades desenvolvidas e aquelas ditas arcaicas ou primitivas, observando
que este trato não engendra necessariamente, a deserção do "atual". O
primeiro destes antropólogos havia sido Franz Boas. Retomando esta atitude,
de revisão e intersecção entre antropologia e outras ciências e saberes, a
fundamentação de uma antropologia do moderno será traçada, sendo que o
primeiro passo será o de uma definição e intitulação coerente daquilo que
seja a modernidade. Esse conceito, reformulado, trará a idéia de que as
sociedades tradicionais e aquelas chamadas de históricas, não são como até
então haviam sido interpretadas, contrárias, sendo uma o negativo da outra.
Balandier se preocupa, neste ponto de vista, com a questão da
colonização, na qual se efetivam os contatos entre as sociedade
tradicionais e as modernas, pois por eles se consolidarão os dinamismos e
os movimentos históricos que transformam os sistemas de instituições das
sociedades, dos quais a Antropologia Política deve se encarregar de
interpretar. Ou seja, é pelo contato entre as sociedades tradicionais e
modernas, que ambas se transformarão, sem necessariamente se esfacelar, mas
criando algo novo e é dessas transformações que o antropólogo deve se
responsabilizar. Por isso, o estudo das sociedades tradicionais
necessariamente perpassa a reflexão do estatuto da modernidade.
È estudando a África negra que Balandier nos mostrará a evidenciação
das conseqüências políticas imediatas da situação colonial. Essas
conseqüências serão divididas em cinco características principais:
a) A desnaturação das unidades políticas tradicionais – O Reino do
Congo, por exemplo, foi teve seu território cortado em pedaços no momento
das partilhas coloniais com o Tratado de Berlim;
b) A degradação pela despolitização – Transformam-se os problemas
políticos em problemas técnicos, dependente da competência administrativa;
c) A ruptura dos sistemas tradicionais de limitação do poder – Falseia-
se a relação e as obrigações recíprocas já não parecem tão nítidas. As
relações de poder, opinião pública e religião são perturbadas pela
existência do fato colonial;
d) A incompatibilidade dos dois sistemas de poder e de autoridade - o
fato colonial introduz forçosamente a existência de outros tipos de relação
de poder e subordinação, o que impele à racionalização, entendida
weberianamente, o modo de governar tradicional;
e) A dessacralização parcial do poder – O poder do soberano e dos
chefes tradicionais se legitima antes por referência ao governo colonial
que por referência aos antigos processos rituais.
Embora essas características possam diferenciar entre as sociedades, o
ponto principal é que a colonização e o contato entre sociedades históricas
e a-históricas se deu geralmente de modo à subjugar um ou outro tipo de
organização social. De modo que é


"pela modificação das estratificações sociais que o processo de
modernização, aberto no momento da intrusão colonial, influi
indiretamente na ação política e suas organizações. Ele põe a
funcionar s geradores de classes sociais constituídas fora do quadro
estreito das etnias"[2].


De modo geral, é observável que na maioria dos países sujeitos à
colonização e, posteriormente, à descolonização, os efeitos acumularam-se
de modo a degradar em demasia os poderes antigos para que estes pudessem se
remodelar sob um aspecto moderno e à incapacidade de provocar além dos
limites étnicos, as mudanças que fariam da nova estratificação social o
único gerador da atividade política moderna.
Acima de tudo, o fato colonial transforma ambas as sociedades.
Correntemente, a mais afetada será aquela de molde tradicional. Não
obstante, a noção de "tradicionalismo" ainda carece de uma definição
precisa. Geralmente essa noção é definida como continuidade, enquanto a
modernidade é ruptura; define-se pela conformidade a regras imemoriais,
geralmente míticas, transmitidas de diferentes formas. A análise deve se
voltar deste modo, para a configuração atual do que seja o "tradicional",
uma vez que aquelas sociedades tradicionais sofreram transformações das
mais diversas com o fato colonial. Só deste modo, a Antropologia Política
dará conta de uma análise que preencha as lacunas deixadas pela colonização
e pela descolonização. A primeira expressão, das quatro apontadas por
Balandier, da configuração do tradicionalismo atual é:
a) o tradicionalismo fundamental - aquele que tenta salvaguardar os
valores das organizações sociais e culturais garantidos pelo passado;
b) o tradicionalismo formal – geralmente coexistente com a figura
precedente, definindo-se pela "manutenção de instituições, de quadros
sociais ou culturais, cujo conteúdo se modificou; da herança passada, só se
conservaram alguns meios – as funções e as finalidades modificaram-se"[3];
c) o tradicionalismo de resistência – quando existiu, serviu de
anteparo ou camuflagem que permitia dissimular as reações de recusa frente
ao colonizador. Frequentemente ocorreu no plano religioso;
d) o pseudotradicionalismo – no qual a tradição manipulada torna-se o
meio de dar sentido às realidades novas, ou de exprimir uma reivindicação
marcando a dissidência em relação aos responsáveis modernistas. Conjuga-se
intimamente com a expressão precedente.
Aliando estes componentes, uma análise antropológica consistente, se
dá pelo diálogo entre o tradicional e o moderno, do ponto de vista das
defrontações políticas que se expressam, não exclusivamente, de fato, por
esse embate. Assim o fazendo, a Antropologia Política deve determinar as
unidades e níveis de inquérito em que a análise será suscetível de atingir
uma eficácia científica crescente. Balandier reconhece algumas destas
unidades:
a) a comunidade aldeã – Constitui uma sociedade reduzida, como
fronteiras precisas, nas quais se reconhece com nitidez a defrontação entre
tradicional e moderno, sacral e histórico. No seio dessas comunidades há
uma cisão entre o domínio da vida interna – dado pela tradição – e o da
vida externa, que organiza as relações múltiplas estabelecidas com
"exterior" – ande se impões as forças e os agentes modernos. Esses fatores
modernos são geralmente constatados alheios às sociedades aldeãs. Não
obstante, essas comunidades são as que explicitam melhor a dinâmica em que
se determinam, em estado nascente, novas estruturas em que as incidências
da ação política moderna se manifestam de maneira mais imediata. São as
unidades de pesquisa mais pertinentes, de acordo com Balandier;
b) o partido político, instrumento "modernizante" – A insurgência de
partidos representa a forma de organização de Estados nascentes ou
renascentes. É o primeiro dos meios de modernização e é quase geral nas
sociedades descolonizadas;
c) a ideologia, expressão da modernidade – a ideologia política surge,
no caso da África negra, estudada por Balandier, no momento revolucionário
e de mudanças profundas das sociedades, colocando-se sobre as ruínas dos
mitos. Geralmente alimentam projetos de construção nacional, marcadas pelas
reações à situação de dependência. Atua como um new deal emotivo, dividindo-
se num discurso destinado às elites políticas e intelectuais e num outro
discurso de adaptação das palavras da tradição às populações camponesas e
às camadas sociais menos marcadas pela educação moderna. Levada ao extremo,
essas ideologias assumem aspectos utópicos e milenaristas.
São essas ideologias que constituem, para a Antropologia Política um
terreno de investigação rico de problemas mal elucidados. É essa trilha que
nos interessa, que nos abre a possibilidade de estudar aquilo que o mito
tradicional encerra de ideologia política e aquilo que as doutrinas
políticas encerram de mito. É esse o ponto de intersecção que nos chama
para a não contrariedade total entre sociedades modernas e sociedades a-
históricas. "Esse problema é o da dialética permanente entre tradição e
revolução"[4].




































A descoberta do Brasil Central


Percorremos, em parte, o caminho que conduz do mito tradicional à
doutrina política moderna. O mito, encerrando em si um saber unido aos
meios simbólicos, faz às vezes de gênese e funciona como arquivos que
frequentemente lembram as migrações e as peripécias, evocando clãs
originais e seus fundadores. Encerra, no entanto, uma parte de ideologia,
pois devem ser vistos como diz Malinowski, "como uma carta social
concernente à forma existente da sociedade, com seu sistema de distribuição
do poder, do privilégio e da propriedade"[5].
É no contato colonizatório que esta questão tomará forma nova uma vez
que toda administração colonial tentou pôr em cena um aparelho
despolitizado, esforçando-se, por conseguinte, no sentido de expurgar o
político de todas as manifestações da vida indígena. É fundamental, então,
uma análise antropológica que desvele as relações criadas no contato entre
as sociedades tradicionais com as sociedades modernas, uma vez que ele traz
à tona uma gama de mudanças que visam a dita modernização e o
desenvolvimento das sociedades colonizadas.
No Brasil, o fato da colonização também é observável e este fato ainda
não se encerrou. O primeiro contato dos portugueses colonizadores com os
índios foi traumático, embora tenha sido menos violento do que em outras
regiões da América. Durante a história da consolidação do país, quando já
existem os "brasileiros", por assim dizer, os conflitos ainda existem e
atualmente, de tempos em tempos, alguma questão relativa aos indígenas
ganha destaque e importância no cenário nacional. O que queremos, no
entanto, é nos centrar numa questão em particular: a do Parque Indígena do
Xingu e da epopéia da Expedição Roncador-Xingu, que deu forças e destaque
ao grupo de sertanistas mais importantes do Brasil, os irmãos Villas Bôas.
A Expedição Roncador-Xingu teve base na concretização de um plano que
vinha sendo esboçado no Brasil desde a proclamação da República: o de
transferir a capital do país para o interior, região ainda erma e
pouquíssimo explorada. Com a Primeira Guerra, a idéia ganhou corpo, tanto
que durante a década de 20 se vendiam lotes no Brasil Central aos montes.
No entanto, somente na Segunda Guerra é que a tese voltou a ganhar força. O
Brasil deixava de ser uma nação litorânea e a população não parava de
crescer. A Segunda Guerra, com tônica de espaço vital, serviu para trazer à
visão dos governantes a carta geográfica do país com suas imensas zonas em
branco. Nasceu, então, em meio ao estado de guerra, um impulso
expansionista, aleitado pelo próprio Estado. Esse impulso se efetivou por
meio de dois órgãos criados pelo Estado: o primeio, a Expedição Roncador-
Xingu, que tinha por objetivo entrar em contato com as "zonas brancas" das
cartas geográficas; e o segundo, a Fundação Brasil Central, com a função de
implantar núcleos populacionais nos pontos ideais marcados pela Expedição.
Para dirigir os primeiros passos, e fiscalizar a administração, que
contava com pouca verba devido à guerra, Getúlio Vargas, então presidente,
designou o ministro João Alberto Lins de Barros, da Coordenação e
Mobilização Econômica, criada especialmente para a Guerra. Ele deveria
providenciar estatutos, estipular dotações, instalar sedes, ajustar gente e
tudo o que fosse indispensável para o funcionamento de ambos os órgãos,
somando a isso a responsabilidade de ser cauteloso nos gastos, o que fez
com que sugerisse uma campanha de doações, na qual São Paulo se destacou
mormente. As primeiras frentes da Expedição foram compostas por paulistas e
cariocas principalmente, contando na maioria com médicos e oficiais do
exército.
A Expedição partiu, então, para o Brasil Central, compreendido entre o
rio Araguaia e seus afluentes, mas não é na expedição que nos focaremos e
sim na principal conseqüência dela: a formação do Parque Nacional do Xingu
pelos irmãos Villas Bôas. Orlando, Cláudio e Leonardo, irmãos de uma
família de 11 filhos do interior de São Paulo, perderam o pai em 1941,
quando tinham entre 27 e 23 anos. Cinco meses depois, perderam a mãe,
deixando então o casarão que ocupavam, alugando uma casa menor para os
irmãos e mudando-se para uma pensão na Vila Buarque. Quando ficam sabendo
da Expedição, em 43, decidem inscrever-se. Procuram a Fundação Brasil
Central e são recusados, pois por ordem superior, só eram aceitos
"sertanejos". Decidem, então ir diretamente para Barra do Garças, onde
estava sendo montada a base da Expedição. Disfarçam-se de sertanejos e
ganham emprego: Cláudio e Leonardo na enxada; Orlando, auxiliar de
pedreiro. Devido a problemas com a construção da base, os irmãos acabam
ajudando e, revelando-se educados e alfabetizados, tem seus cargos
trocados: Cláudio é nomeado chefe do pessoal, Leonardo chefe do
almoxarifado e Orlando secretário da base.
Assim começou a epopéia de 40 anos destes irmãos. Epopéia essa que
deixou impressionantes 1500 quilômetros de picadas abertas, 1000
quilômetros de rios percorridos, 43 vilas e cidades nascidas no roteiro da
marcha, 19 campos de pouso, dos quais quatro se tornaram bases militares e
pontos de apoio de rotas aéreas internacionais, 5 mil indígenas contados e,
por último, a criação do Parque Nacional do Xingu, descrito pelos irmãos
como uma "sociedade de nações", onde viviam, em 1994, 6 mil índios falando
dez línguas diferentes em 18 aldeias. O sucesso da criação do Parque é
reconhecido internacionalmente e rendeu aos irmãos diversos prêmios. Isso
nos leva a repensar a forma pelas quais as sociedades se relacionam.
Obviamente, muito mudou desde a criação do Parque e posteriormente da
FUNAI, onde Orlando foi diretor. Não obstante, o primeiro contato, entre
diversas etnias indígenas que habitam o que hoje é o Parque, e os irmãos,
brancos, ocidentais, de certa forma determinou um tipo novo de política a
ser adotada frente às sociedades "arcaicas" ou "primitivas".














































O Parque Nacional do Xingu – O Moderno delimitando o Tradicional


O Parque constitui uma reserva federal, criada pelo Governo Jânio
Quadros em 1961. Está situado ao norte do Estado do Mato Grosso, numa zona
de transação florística entre o Planalto Central e a Amazônia. A região é
cortada pelos formadores do Xingu e pelos seus afluentes da esquerda e da
direita. Os cursos formadores são os rios Kuluene, Ronuro e Batoví. Os
afluentes, os rios Suiá-Missí, Maritsauá-Missú, Uaiá-Missú, Auaiá-Missú e
Jarina.
O Parque foi criado tendo em vista dois objetivos: constituir uma
reserva natural onde a flora e a fauna intocadas guardassem, para um Brasil
futuro, um testemunho do Brasil do Descobrimento e, acima de tudo, fazer
chegar diretamente Às tribos indígenas a ação protetora do Governo,
prestando assistência e defendendo-as de contatos prematuros com as frentes
de ocupação nacional.
Em 1946, ano da chegada dos irmãos, os povoadores da área do Xingu
eram estritamente is mesmos encontrados pelo etnólogo alemão Karl von den
Steinen em 1977. A distribuição das aldeias era a mesma, o intercâmbio era
o mesmo e assim também eram a hospitalidade, a curiosidade e as atitudes
ingênuas e amistosas que impressionaram o explorador alemão. A única
mudança considerável era a redução de quase metade do número de seus
habitantes, tomando como verdadeiro o montante ponderado naquela ocasião,
que, se real, ocorreu provavelmente devido a surtos gripais e disentéricos
levados por índios do baixo Kurizêvo que entraram em contato com
povoamentos do Alto Paranatinga, do Posto Simões Lopes e de outros locais.
Os grupos indígenas que vivem na região são representantes de três das
quatro famílias lingüísticas do Brasil (Jê, Karib, Tupi e Aruak), além de
uma família isolada, cujos hábitos e costumes são descritos detalhadamente
pelos irmãos Cláudio e Orlando Villas Boas. Eles atentam, por exemplo, para
a mesma crença entre as tribos e para as festas e ritos cerimoniais
realizados da mesma forma.
O que nos interessa aqui, no entanto, não é só o trabalho etnográfico
dos irmãos, mas a política que eles cunharam que ditaria, de meados da
década de60 em diante, a forma de relacionamento entre Estado e sociedades
primitivas. Obviamente, a política indianista que eles traçaram não deixa
de certa forma, de ser um trabalho etnológico, uma vez que ela é resultado
de anos de contato e convívio com os índios xinguanos. É preciso ter em
mente também que, embora essa política tenha se tornado um modelo admirado
internacionalmente, ela não é absoluta e hoje em dia o que vivemos
cotidianamente é um distanciamento dela, uma vez que ela é provavelmente a
única reserva não dizimada no país[6].
De fato, o que fizeram os Villas Boas, foi, nada mais nada menos, que
saber lidar com os povos, adquirindo uma consciência do valor que os povos
de lá possuíam. Darcy Ribeiro dizia que todo contato da "civilização" com
os índios era ruim. No caso dos xinguanos foi menos pior, porque esse
contato se deu pelos irmãos.
Qual a relação, no entanto, com a primeira parte deste texto, a
Antropologia de Balandier, com estas segunda e terceiras partes? Ora, a
relação é que, sem nos aprofundarmos muito, podemos enxergar diversos
pontos de intersecção entre a postura dos Villas Boas e aquela à qual
Balandier acreditava ser a de uma séria Antropologia Política.
A primeira de todas, se seguirmos os passos da primeira parte deste
texto, é de que toda história, seja ela mítica ou não, é História. E os
Villas Boas perceberam isso. Tanto o perceberam que, para conhecer os
hábitos, os costumes e para entender o funcionamento das sociedades
xinguanas, registraram dezenas de mitos fundadores. Nunca desconsideraram
os vestígios arqueológicos, parcamente estudados, da presença humana na
região, ou seja, nunca desconsideraram juízos científicos da história das
tribos xinguanas, mas tampouco consideraram inverídicas as lendas e mitos
contados pelas tribos.
O segundo ponto, é que coincidentemente, cuidaram para que o contato
com os índios tenha preservado os limites regionais corretos. Nos 30 mil
quilômetros que preenchem o Xingu, nenhum território tribal foi posto de
fora. Quanto aos problemas políticos, talvez não seja muito considerar que
tenham sido transformados em problemas técnicos, mas nem por isso,
perderam, para os Villas Boas, o caráter político. Diversas medidas foram
tomadas dentro do Parque para que as sociedades não fossem
descaracterizadas e um dos maiores feitos dos irmãos, foi a quase que
reconstrução de todo um povo, os Yualapiti. Quanto à forma de poder, essa
questão era, no início, mais facilmente resolvida, uma vez que, tal qual
observamos em Clastres, as tribos xinguanas não possuíam chefes no sentido
"ocidental" da palavra, ou seja, não possuíam um líder, detentor de poder,
responsável pelas decisões totais dos grupos. Quanto aos Villas Boas, o
Parque não visava ditar a forma de organização das tribos, senão preservar
exatamente essas formas tais quais lá se encontravam. O mesmo vale para as
formas religiosas e os representantes desta instância. De fato, alguns dos
textos etnográficos de Orlando, se deterá exatamente na questão dos pajés,
cuja mágica ele via como uma arte. Neste texto, ele explicita a relação
entre os pajés e os médicos funcionários do parque. Segundo ele, a visão
dos pajés sobre a medicina ocidental não é contrária. A "nossa" medicina
vem simplesmente como "algo a mais" para os pajés, como um tratamento
adicional. A cura – e isso o sabemos desde que Lévi-Strauss explicitou as
características da eficácia simbólica – vem na verdade da magia do pajé, de
modo que a medicina é só uma proteção, uma segurança.
A emergência de uma política organizacional por parte dos irmãos
Villas Boas, aparece, assim, ligada ao estudo das sociedades que pretendiam
proteger. Não havia, para eles, possibilidade de se firmar um comportamento
por parte das instituições governamentais moldado puramente pelos padrões
"modernos". Tudo deveria correr, para eles, no sentido de influenciar o
mínimo as sociedades indígenas. Lembremos, mais uma vez, que tratamos da
política firmada quando da formação do Parque Nacional do Xingu, há 48 anos
atrás e não do Parque como se encontra hoje, com lideranças indígenas e
degradações ecológicas advindas na maioria de fora do Parque. Queremos
entender aqui a atitude do irmão Villas Boas na liderança de uma
recolonização do Brasil.
No que diz respeito à tradição, algo a que Balandier dará grande
ênfase, não parece haver, segundo os irmãos Villas Boas, uma disparidade
inerente entre as sociedades, uma vez que o próprio Balandier assume haver
dentro da tradição um "quê" de ideologia e dentro da ideologia um processo
de tradicionalização. O próprio exemplo da medicina explicita isso muito
bem. Talvez haja uma atitude da sociedade moderna de trazer abaixo a
tradição indígena, mas quem permite o sucesso dessa atitude ou não, são os
indígenas até o ponto em que não se pretenda destruir os moldes de
organização de determinada sociedade primitiva para melhor domina-la. Os
irmãos Villas Boas guiavam as relações com os indígenas, sentido oposto ao
que os irmãos Villas Boas pretendiam. A medicina moderna, por exemplo, não
destitui a crença na arte pajé. E a delimitação territorial institucional
da região, não parece fazer diferença para os índios, contanto que ela
designe os fins para os quais foi feita. Havia e parece haver ainda, uma
forte conservação do tradicionalismo fundamental. Esse talvez seja um dos
maiores sucessos da criação do Parque. Se o contato seria imprescindível,
que ele pelo menos se institucionalizasse com preceitos que garantissem a
reprodução cultural das sociedades que ali se encontravam.
Há, de fato, a observância das tribos xinguanas como aquilo que
Balandier de comunidade aldeãs, ou seja, observa-se o embate entre tradição
e modernidade, sacral e histórico e, uma vez que inseridas no seio de um
Estado-nação, o confronto inevitável entre as forças externas, advindas das
mais diversas esferas da República e as internas, dadas pelas tradições.
Internamente, no entanto, os problemas parecem ser resolvidos. Os índios
eram capazes de continua se organizando da mesma forma como faziam antes do
contato com o branco. Externamente, enquanto o Parque foi dirigido pelos
irmãos, era possível manter a dignidade dessas sociedades. O cenário muda,
principalmente a partir do momento em que as lideranças do Parque são
transferidas para os índios.


















































Conclusão


Pela retomada que fizemos da antropologia de Balandier e da construção
e a ação dos irmãos Villas Boas, vemos que a questão da modernidade frente
à tradição e vice-versa no Brasil está longe de se esgotar. Não chegamos a
resposta e nem mesmo à uma análise aprofundada do tema proposto, mas talvez
podemos concluir que a questão principal, no que diz respeito ao confronto
da sociedade brasileira moderna frente às sociedades tradicionais do país,
é que os irmãos pregaram uma política reconhecida no mundo porque souberam,
de fato, respeitar as particularidades dos povos indígenas, reconhecendo a
importância da riqueza cultural desses povos. Mais do que isso,
reconheceram a importância de nos determos politicamente nestas sociedades
uma vez que, dominados


"por uma sociedade mais forte, todas as motivações de sua cultura
deixam de constituir a força motriz de sua evolução social. Assim os
índios não pararam no tempo; foram e estão sendo, isto sim, impedidos
de progredir a sua maneira, uma vez que sua evolução se dá em outro
ritmo e não tem necessariamente de caminhar na mesma direção da
nossa"[7].


Talvez a questão que mais valide o sucesso dos irmãos em relação ao
comportamento entre sociedades tradicionais e modernas, tenha sido a
atitude honesta de reconhecer que esse contato tenha sempre em vista a
dominação. Mas essa dominação pode levar ao estabelecimento de relações
sólidas que perpassam a dominação política, uma vez que a tradição tem algo
que a aproxima à modernidade – aquele "quê" de ideologia – e, por sua vez,
a modernidade tem algo que a aproxima da tradição – ela funda-se como uma
tradição em si. E isso talvez se exprima pelo fato de que quando morre um
pajé, já que ele é "iã-catú" (alma boa), seu "iã" parte para o "umanô-
retam" (a aldeia dos que morrem), no "ivát" (céu). É no Kuarup que várias
tribos xinguanas se unem e, evocando Mavutsinim (o herói mitológico),
homenageiam aqueles de iã-catú, há alguns anos, Cláudio Villas Boas foi
homenageado.








Bibliografia


BALANDIER, Georges. Antropologia Política. São Paulo: Difusão Européia
do Livro, Editora da Universidade de São Paulo.


___________________ Antropo-lógicas. São Paulo: Cultrix, 1976.


____________________ As Dinâmicas Sociais. Sentido e Poder. Rio de
Janeiro: DIFEL, 1976.


CLASTRES, Pierre. A Questão do Poder nas Sociedades Primitivas. In:
Arqueologia da Violência. Ensaio de Antropologia Política. São Paulo:
Brasiliense, 1982.


VILLAS BOAS, Orlando e Cláudio. A Marcha Para o Oeste. A Epopéia da
Expedição Roncador-Xingú. São Paulo: Editora Globo S.A; 1994.


______________________________ Xingu. Os Índios, seus Mitos. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1979.


VILLAS BOAS, Orlando. A Arte dos Pajés. Impressões sobre o universo
espiritual xinguano. São Paulo: Editora Globo S.A. 2000.


Webgrafia


http://www.brasiloeste.com.br/


http://www.funai.gov.br


http://www.expedicaovillasboas.com.br








Anexo


O Parque Nacional do Xingu





Tribos do Xingu:


Metade Norte:
Suiá, Txucarramãe (Jê); Caiabí e Juruna (Tupi);


Metade Sul:
Kamaiurá, Aueti (Tupi); Kuikúru, Kalapalo, Matipú, Nafiquá (Karib);
Waurá, Meinacó, Yualapiti (Aruak); Trumái (família isolada).


Mavutsinim: O primeiro homem (mito kamaiurá)


Mitos do Xingu:


Mavutsinim: o primeiro homem (Mito Kamaiurá).


"No começo só havia Mavustinim. Ninguém vivia com ele. Não tinha
mulher. Não tinha filho, nenhum parente ele tinha. Era só.
Um dia ele fez uma concha virar mulher e casou com ela. Quando o filho
nasceu, perguntou para a esposa:
- É homem ou mulher?
- É homem.
- Vou levar ele comigo.
E foi embora. A mãe do menino chorou e voltou para a aldeia dela, a
lagoa, onde virou concha outra vez.
-Nós – dizem os índios – somos netos do filho de Mavutsinim".


Medicina Xinguana


Os aspectos principais da medicina xinguana são dois: o primeiro pode
ser definido como de "pronto atendimento", para dor de cabeça, dor nos
olhos e etc, provido pela flora abundante; e o segundo, o que sai do
ervatário e vai para o pajé, que busca no sobrenatural as explicações e as
curas para os males dos mamaés, os espíritos. É a cura mágica.
Os principais mamaés são:
Anhangu – muito temido;
Arimacu - duende d'água, curável por pajé, gera impaludismo;
Cunhãrrapim – da dor de barriga;
Iaruiáp – quem o vê adoece;
Iputsát – quem julga vê-lo entra em torpor;
Ivát – se configura numa grande máscara de madeira. Dá inchaço no
pescoço e dor no braço;
Jacuí – se faz presente por toque de flauta. Quem ouve sente dor no
peito e no pescoço;
Jacuí Catú – dá dor e inchaço na omoplata;
Karitoá – Ataca a garganta e provoca tosse;
Kuarrarrã – ataca a garganta e danifica a fala;
Meacarin – dá dor de barriga e desinteria;
Tavarit – dá ânsia de vômito.














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[1] BALANDIER, Georges. Antropo-lógicas. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 241.
[2] BALANDIER, Georges. Antropologia Política. São Paulo: Difusão Européia
do Livro, Editora da Universidade de São Paulo. p. 155.
[3] BALANDIER, Georges. Antropologia Política. Op. Cit. p. 160.
[4] BALANDIER, Georges. Antropologia Política. Op. Cit. p. 171.
[5] MALINOWSKI, Bronislaw. The Foundations of Faith and Morals, Londres,
1936. In: BALANDIER, Georges. As Dinâmicas Sociais. Sentido e Poder. Rio de
Janeiro: DIFEL, 1976. p. 203.

[6] Essa afirmação é de Fernando Zarur e pode ser checada em
http://www.brasiloeste.com.br/noticia/1193/invasao-branca
[7] VILLAS BOAS, Orlando. A Arte dos Pajés. Impressões sobre o universo
espiritual xinguano. São Paulo: Editora Globo S.A. 2000. p.36.
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