A EXPERIÊNCIA DA PAISAGEM ESTANCIEIRA: UM ESTUDO DE CASO EM ARQUEOLOGIA FENOMENOLÓGICA.

May 27, 2017 | Autor: Clarissa Rahmeier | Categoria: Arquitetura, Fenomenología, História, Identidades, Arqueologia Da Paisagem
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CLARISSA SANFELICE RAHMEIER

A EXPERIÊNCIA DA PAISAGEM ESTANCIEIRA Um estudo de caso em arqueologia fenomenológica. Estância Vista Alegre, Noroeste do Rio Grande do Sul, séc. XIX.

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Área de Concentração: História das Sociedades Ibéricas e Americanas.

Orientador: Prof. Dr. Arno Alvarez Kern

Porto Alegre

2007

2

CLARISSA SANFELICE RAHMEIER

A EXPERIÊNCIA DA PAISAGEM ESTANCIEIRA Um estudo de caso em arqueologia fenomenológica. Estância Vista Alegre, Noroeste do Rio Grande do Sul, séc. XIX.

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Área de Concentração: História das Sociedades Ibéricas e Americanas.

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Arno Alvarez Kern (orientador) – PUCRS

Prof. Dr. Klaus Hilbert – PUCRS

Prof. Dr. Teófilo Otoni Vasconcelos Torronteguy – UFSM

Prof. Dr. Artur Henrique Franco Barcelos – UCS

Prof. Dr. Luís Augusto Ebling Farinatti – UNIFRA

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Pra ti, mãe.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Arno Alvarez Kern, grande incentivador, que fez com que meu projeto de tese se tornasse um projeto de vida. Minha experiência além-mar e meu crescimento intelectual são, com certeza, resultado do seu incentivo e apoio constantes; Ao Prof. Dr. Klaus Hilbert, que inspirou os caminhos teóricos que acabei por seguir no desenvolvimento dessa tese e que sempre acompanhou e apoiou os passos que tenho dado desde o Mestrado; Ao Prof. Dr. René Gertz, por se dispor em auxiliar na viabilização de meus estudos no exterior; Aos secretários do PPGH, Alice, Davi, e especialmente à Carla Carvalho, que acompanhou toda a minha trajetória enquanto aluna da PUCRS mostrando extrema competência e, acima de tudo, amizade; À CAPES, pela Bolsa com a qual iniciei meus estudos de Doutorado; Ao CNPq, pela Bolsa que me permitiu a continuidade dos estudos no Brasil e o amadurecimento intelectual no exterior; Às pessoas que contribuíram para a realização das diversas etapas do trabalho de campo: Walter Jobim Filho, Marília e Cláudia Paglioli Jobim, Wanda Castilho, Iolanda e Sandra Gomes Brum, Luiz Rodrigues Jardim, Ilza Farias de Farias, Silmara e Ricardo Luiz Berwanger, Pedro Jorge Medeiros de Farias, Aline e Iloí Pereira, Wilson Brum Filho, Arani Senna e Ferigollo; Aos alunos e colegas da Universidade de Cruz Alta, que sempre entenderam, apoiaram e viabilizaram meus estudos e necessários afastamentos; Aos colegas do NARq-UNICRUZ, em especial ao Jonathan Santos Caino, Paulo Roberto Koch Jr. e Fernando Santos de Almeida, pelo auxílio nos trabalhos de campo e, principalmente, pela troca de idéias. Ao Paulo agradeço, ainda, pelo auxílio nas medições e no desenho de implantação da Vista Alegre;

5

Ao Professor Christopher Tilley, que orientou meus estudos na University College London, por generosamente compartilhar seus conhecimentos e possibilitar a realização de meu Doutorado na Inglaterra. Sua disponibilidade e apoio constantes foram

essenciais

para

o

desenvolvimento

de

meus

estudos

e

para

o

amadurecimento de minhas idéias; Aos componentes da Banca, pelo interesse e pelo gentil aceite em participar dessa importante etapa de meu trabalho. À Olga, pelo apoio emocional e por dividir choros e risadas no Tolllington Court, e à Ana, flatmate que se tornou amiga e família, nos tempos de Londres e hoje; Aos meus amigos, aos tios, tias, primos, primas, cunhadas e cunhados, que me deram suporte afetivo na realização dessa etapa de minha vida. Especialmente ao tio do coração, Gilberto Caino Silveira Netto, que também foi pesquisador ao meu lado quando essa tese ainda era um projeto; À família Ferman, especialmente aos “tios” Dório e Sima, por me acolherem com tanto carinho, pelo incentivo dado, e pelo Marcelo; À querida amiga Beatriz Augusta Mânica Pereira da Cruz, pelas inúmeras discussões teóricas e metodológicas e, principalmente, pelo apoio incondicional, a qualquer hora; À amiga-irmã Helen Scorssato Ortiz, pelos comentários muito bem-vindos, pela mão nos inventários, pelo incentivo de sempre e pelo ouvido; Aos meus irmãos, pelos quais sou apaixonada, Ike, Nando e Cris, pela torcida constante e por compreenderem minhas ausências. Especialmente à Cris, por acompanhar de perto as diversas etapas desse trabalho, pelo corre-corre no pega-edevolve livros, pelo apoio logístico em Porto Alegre, pelo ombro e pelo incentivo; Ao pai e à mãe, Ariberto e Lacy Rahmeier, por tudo o que são e pelo apoio amoroso em meus projetos de vida, sem o que essa tese não teria se realizado; e Ao Marcelo, meu grande amor, pela cumplicidade, pelo apoio, pela paciência, por compartilhar sonhos, e por tudo o que virá.

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Habit of seeing opposites

The general imprecise way of observing sees everywhere in nature opposites (as, for example, "warm and cold") where there are, not opposites, but differences in degree. This bad habit has led us into wanting to comprehend and analyse the inner world, too, the spiritualmoral world, in terms of such opposites. An unspeakable amount of pain, arrogance, harshness, estrangement, frigidity has entered into human feelings because we think we see opposites instead of transitions.

Friedrich Nietzsche (Der Wanderer und sein Schatten, § 67 [The Wanderer and his Shadow])

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RESUMO

Esta tese propõe uma abordagem fenomenológica sobre a história e a cultura material do Rio Grande do Sul no século XIX. Apresentando como estudo de caso a estância Vista Alegre, demonstra em que medida as regularidades na implantação das sedes dos estabelecimentos pastoris no Noroeste do estado revelam a lógica da elite proprietária de terras e a estruturação de espaços hierárquicos e hierarquizantes. Palavras-chave: Fenomenologia, Cultura material, Estâncias.

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ABSTRACT

This thesis presents a phenomenological approach on the history and material culture of Rio Grande do Sul State in the nineteenth century. Focusing on Estância Vista Alegre, it demonstrates to what extent the ranches settlement regularities in the Northwest region reveal the land owner logic and the configuration of a hierarchical space.

Key-words: Phenomenology, Material culture, Ranches.

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LISTA DE FIGURAS

Fig. 1 – Serafim Corrêa de Barros, então coronel......................................................30 Fig. 2 – Sede da estância Vista Alegre......................................................................31 Fig. 3 – Localização da estância Vista Alegre............................................................33 Fig. 4 – Casa-sede da Fazenda Ivahy........................................................................97 Fig. 5 – Casa-sede da Fazenda Ivahy........................................................................98 Fig. 6 – Detalhe da casa-sede da Fazenda Ivahy......................................................99 Fig. 7 – Detalhe da casa-sede da Fazenda Ivahy....................................................100 Fig. 8 – Casa-sede da Fazenda Ivahy no século XX...............................................101 Fig. 9 – Casa-sede da atual Cabanha Taquarembó................................................103 Fig. 10 – Casa provisória na Granja Santa Eliza.....................................................106 Fig. 11 – Casa provisória na Granja Santa Eliza.....................................................107 Fig. 12 – Reparo feito com cimento – casa provisória Granja Santa Eliza..............108 Fig. 13 – Material construtivo – casa provisória Granja Santa Eliza........................108 Fig. 14 – Atual sede da Granja Santa Eliza..............................................................109 Fig. 15 – Sede da Cabanha Tabor no início do século XX.......................................112 Fig. 16 – Atual alpendre da Cabanha Tabor............................................................113 Fig. 17 – Ala nova da casa-sede da Cabanha Tabor...............................................114 Fig. 18 – Sede da Fazenda do Triunfo.....................................................................116 Fig. 19 – Casa-sede da Fazenda do Triunfo............................................................117 Fig. 20 – Detalhe da casa-sede da atual Fazenda Toropi........................................119 Fig. 21 – Casa-sede da Fazenda Toropi..................................................................120 Fig. 22 – Casa-sede da estância Vista Alegre.........................................................122 Fig. 23 – Interior da casa-sede da estância Vista Alegre.........................................123 Fig. 24 – Fachada da casa-sede da estância Vista Alegre......................................124 Fig. 25 – Senzala da Fazenda Ivahy........................................................................133 Fig. 26 – Senzala da Fazenda Ivahy........................................................................134 Fig. 27 – Fachada da senzala da estância Vista Alegre..........................................136 Fig. 28 – Interior da senzala da estância Vista Alegre.............................................137 Fig. 29 – Parede da senzala da estância Vista Alegre.............................................138

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Fig. 30 – Telhado da senzala da estância Vista Alegre...........................................138 Fig. 31 – Fundos da senzala da estância Vista Alegre............................................139 Fig. 32 – Interior da senzala da estância Vista Alegre.............................................140 Fig. 33 – Desmoronamento da parede da estância Vista Alegre.............................141 Fig. 34 – Senzala da Fazenda do Sobrado..............................................................143 Fig. 35 – Galpão da Cabanha Taquarembó.............................................................147 Fig. 36 – Galpão da Cabanha Taquarembó.............................................................148 Fig. 37 – Galpão na Fazenda do Triunfo..................................................................149 Fig. 38 – Fachada do galpão da estância Vista Alegre............................................150 Fig. 39 – Fundos do galpão da estância Vista Alegre..............................................151 Fig. 40 – Interior do galpão da estância Vista Alegre...............................................152 Fig. 41 – Implantação da sede da Fazenda Monte Alvão........................................184 Fig. 42 – Implantação da Fazenda do Cadeado......................................................186 Fig. 43 – Implantação da Fazenda do Sobrado.......................................................188 Fig. 44 – Implantação da Fazenda das Brancas......................................................190 Fig. 45 – Sede da estância Vista Alegre (imagem digitalizada)...............................192 Fig. 46 – Implantação da sede da estância Vista Alegre.........................................193 Fig. 47 – Espessura da parede da senzala da estância Vista Alegre......................200 Fig. 48 – Espessura da parede do anexo da senzala, estância Vista Alegre..........200 Fig. 49 – Tesoura e treliça em madeira no telhado da senzala, Vista Alegre..........203 Fig. 50 – Telhas capa e canal..................................................................................203 Fig. 51 – Telha empregada nas construções da estância Vista Alegre...................204 Fig. 52 – Telha empregada nas construções da estância Vista Alegre...................204 Fig. 53 – Beiral em cimalha na casa-sede da estância Vista Alegre.......................206 Fig. 54 – elementos decorativos na lateral da casa-sede, Vista Alegre..................207 Fig. 55 e 56 – Aproximando-se da Vista Alegre no sentido Leste-Oeste................215 Fig. 57 – Chegada à estância Vista Alegre pelo sentido Leste-Oeste.....................216 Fig. 58 e 59 – Aproximando-se da Vista Alegre no sentido Oeste-Leste.................217 Fig. 60 – Chegada à Vista Alegre pelo sentido Oeste-Leste....................................218 Fig. 61 e 62 – Chegada à Vista Alegre pela frente, no sentido Norte-Sul................219 Fig. 63 e 64 – Chegada à Vista Alegre pelos fundos, no sentido Sul-Norte............220 Fig. 65 e 66 – A Vista Alegre a partir da Fazenda Santa Lídia................................221 Fig. 67 – Vista que se tem a partir da casa-sede da estância Vista Alegre.............224 Fig. 68 a 71 – Casa-sede da estância Vista Alegre.................................................225

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Fig. 72 a 75 – Senzala e anexo da estância Vista Alegre........................................226 Fig. 76 a 78 – Vista que se tem a partir da casa-sede da Vista Alegre....................227 Fig. 79 a 81 – Vista que se tem a partir da senzala da Vista Alegre........................227 Fig. 82 a 85 – Galpão da estância Vista Alegre.......................................................229 Fig. 86 – Implantação da sede da Vista Alegre, evidenciando as aberturas...........234 Fig. 87 – Modelo interpretativo da sede da estância Vista Alegre...........................235

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Animais arrolados no inventário de Carolina Corrêa de Barros (1884).........................................................................................................................53 Gráfico 2 – Animais arrolados no inventário de Serafim Corrêa de Barros (1886) ....................................................................................................................................54 Gráfico 3 – Perfil do plantel de animais da propriedade de Serafim Corrêa de Barros.........................................................................................................................56 Gráfico 4 – Valor total do plantel de animais da propriedade de Serafim Corrêa de Barros (em mil réis)....................................................................................................56 Gráfico 5 – Valor individual dos animais arrolados no inventário de Carolina Corrêa de Barros (em mil réis)...............................................................................................57 Gráfico 6 – Valor individual dos animais arrolados no inventário de Carolina Corrêa de Barros (em mil réis)...............................................................................................58

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Relação dos escravos arrolados nos inventários de Carolina e Serafim Corrêa de Barros........................................................................................................66 Quadro 2 – Presença de edificações no conjunto arquitetônico original da sede das estâncias pesquisadas, considerando os componentes básicos que possibilitam a verificação de disparidades sociais............................................................................93 Quadro 3 – Elementos construtivos empregados nas moradias da estância Vista Alegre.......................................................................................................................197 Quadro 4 – Dimensões das moradias da estância Vista Alegre..............................209

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Animais arrolados no inventário de Carolina Corrêa de Barros (1884).........................................................................................................................51 Tabela 2 – Animais arrolados no inventário de Serafim Corrêa de Barros (1886).....52

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................18

1

A ESTÂNCIA VISTA ALEGRE, A POSSE DA TERRA E A SOCIEDADE NO NOROESTE DO RIO GRANDE DO SUL, SÉCULO XIX.........................25

1.1

Serafim Corrêa de Barros e a fundação da estância Vista Alegre............26

1.2

A formação da Vista Alegre e a propriedade da terra no Noroeste do Rio Grande do Sul....................................................................................32

1.2.1 As concessões de sesmarias..........................................................................35 1.2.2 As posses livres e a Lei de Terras...................................................................39 1.2.3 O gado e a formação das estâncias................................................................44 1.2.4 A estância Vista Alegre....................................................................................49 1.3

Os escravos na Vista Alegre e a escravidão nas estâncias do Noroeste do Rio Grande do Sul...................................................................59

1.4

Os peões nas estâncias do Noroeste do Rio Grande do Sul....................70

2

A CULTURA MATERIAL: PARA INTERPRETAR A SOCIEDADE ESTANCIEIRA................................................................................................75

2.1

A terra como cultura material: poder e status no contexto estancieiro......................................................................................................79

2.1.1 Alienabilidade e inalienabilidade da terra e a conformação social..................82 2.2

As formas arquitetônicas como cultura material: as moradias que compunham as sedes das estâncias...................................................90

2.2.1 A casa do estancieiro (casa-sede)..................................................................95 2.2.2 A senzala.......................................................................................................131

16

2.2.3 O galpão........................................................................................................145

3

OS ESPAÇOS CONSTRUÍDOS, A EXPERIÊNCIA CORPORAL E A FORMAÇÃO IDENTITÁRIA...................................................................153

3.1

A pluralidade do espaço e o enfoque fenomenológico...........................154

3.2

Os espaços e seus lugares: a formação identitária na perspectiva fenomenológica...........................................................................................163

3.3

Fenomenologia da paisagem.....................................................................166

3.4

O corpo humano, a experiência da materialidade e os estudos sobre a cultura material .............................................................................170

4

ESPAÇO ARQUITETÔNICO, EXPERIÊNCIA CORPORAL E SOCIEDADE ESTANCIEIRA........................................................................178

4.1

Conjunto arquitetônico e hierarquia social: interpretações sobre a disposição das sedes....................................................................178

4.2

A experiência corporal na sede da estância Vista Alegre.......................194

4.1.1 Os elementos construtivos e a hierarquia social...........................................195 4.1.2 Experienciando a Vista Alegre.......................................................................210

CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................236

REFERÊNCIAS........................................................................................................241

ANEXO A – Os municípios rio-grandenses criados em 1809..................................249 ANEXO B – O município de Rio Pardo em 1809.....................................................250 ANEXO C – O município de Cruz Alta em 1833......................................................251 ANEXO D – Os municípios do Rio Grande do Sul em 1857....................................252 ANEXO E – Os municípios do Rio Grande do Sul em 1917, com destaque para a região Noroeste........................................................................................................253

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ANEXO F – O município de Júlio de Castilhos e as modificações em seus limites políticos desde sua emancipação, em 1891............................................................254 ANEXO G – A vegetação original do Rio Grande do Sul e as quatro unidades morfológicas do estado: Planalto, Missões, Campanha e Depressão Central........255 ANEXO H – Carta do Exército, com destaque para a localização da Vista Alegre. Ministério do Exército – Depto. de Engenharia e Comunicações. Carta Santa Maria (Folha SH.22-V-C MIR-534). Escala: 1:250000.......................................................256 ANEXO I – Localização da estância Vista Alegre no Rio Grande do Sul.................257 ANEXO J – A estância Vista Alegre e os municípios ao seu redor..........................258 ANEXO K – A estância Vista Alegre e os municípios ao seu redor.........................259 ANEXO L – A estância Vista Alegre, entre Tupanciretã e Júlio de Castilhos..........260 ANEXO M – Profissão dos escravos (inventário de Serafim Corrêa de Barros)...............................................................................................................261-262

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INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas os estudos sobre a cultura material têm sido marcados por um enfoque mais humanizado, que percebe as pessoas e as coisas como formadas pela influência mútua de umas sobre as outras no processo de criação, confirmação e transformação social. Constituindo-se não só em uma alternativa, mas também em um complemento às pesquisas que tratam do objeto em si, esses estudos têm ampliado significativamente as possibilidades de compreensão da sociedade por meio das formas materiais. Se no passado as pesquisas em Arqueologia limitavam-se a descrições tecno-tipológicas

e

à

conseqüente

organização

de

conjuntos

culturais

representantes de contextos sociais diversos, dispostos em museus e catálogos, o que se verifica hoje é uma variedade de abordagens que faz do estudo da materialidade um campo eclético, interdisciplinar e dinâmico. É essa pluralidade que conduz a presente pesquisa, que propõe o estudo da sociedade estancieira da região de Cruz Alta, RS, através de sua cultura material. A problemática desta tese é inédita: por tratar das estâncias da região de Cruz Alta sob a ótica da arqueologia; pelas fontes utilizadas – documentos primários e remanescentes arquitetônicos das sedes das estâncias; e pelo desenvolvimento de uma metodologia fenomenológica aplicada ao contexto estancieiro do Planalto Médio rio-grandense. Os aspectos teóricos que norteiam esta pesquisa estão em grande medida fundamentados na produção arqueológica pós-processual, o que não faz desta tese

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uma bandeira pós-processualista, mas uma tentativa de se pensar a arqueologia histórica e a história do Rio Grande do Sul por um prisma não estritamente delimitado. Ao mesmo tempo em que esta orientação teórica decorre de uma posição pessoal frente à construção do saber, resultado de uma dificuldade em separar o conhecimento em áreas disciplinares compartimentadas, ela também é fruto de uma trajetória acadêmica plural, iniciada na Universidade Federal de Santa Maria, continuada na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e estendida à University College London. Desse histórico institucional resultou uma prática de pesquisa guiada pelo entendimento de que a construção do saber passa pela superação do isolamento das disciplinas. Esse pensamento orientou a presente tese, que busca na fenomenologia da paisagem as bases para a compreensão das pessoas por meio das coisas. A opção pela fenomenologia direcionou as leituras realizadas para a produção bibliográfica inglesa, em especial para trabalhos publicados por arqueólogos, antropólogos, historiadores e geógrafos nos últimos vinte anos, época em que as pesquisas com o foco na intrínseca relação entre as pessoas e as coisas tornaram-se mais presentes no âmbito acadêmico. A fenomenologia da paisagem está sendo aqui proposta como a fundamentação teórica para o estudo do contexto estancieiro e como uma metodologia de pesquisa de campo para sítios históricos, o que caracteriza esta tese como uma contribuição diferenciada ao conhecimento científico já produzido 1 . Além

1

Cabe apontar, aqui, o trabalho de Mestrado desenvolvido por Mariana Cabral sobre sítios préhistóricos, no qual a autora propõe, por meio da experiência do corpo no espaço, uma interpretação da cultura material produzida por grupos caçadores coletores no vale do Rio Maquiné, RS. CABRAL, Mariana Petry. Sobre Coisas, Lugares e Pessoas: uma prática interpretativa na arqueologia de caçadores coletores do Sul do Brasil. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PUCRS, 2005.

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da proposta teórico-metodológica a inovação desta pesquisa reside também no próprio tema estância, pesquisado por historiadores, arquitetos, sociólogos e geógrafos, e ainda pouco trabalhado por estudiosos da cultura material. Com relação ao contexto estancieiro rio-grandense, pode ser citado o trabalho arqueológico desenvolvido por Flamarion Gomes na Estância Velha do Jarau, na região da Campanha, sudoeste do estado 2 . Entretanto, o trabalho de Gomes diferencia-se do aqui apresentado não somente pelo contexto enfocado como também pelo objetivo de sua pesquisa, que buscou evidenciar a organização da estância levando em conta a disposição e a finalidade de suas edificações, bem como sua instalação em meio à paisagem natural da Campanha. A proposta desta tese segue outra direção. Por meio do estudo dos remanescentes arquitetônicos ainda existentes na região que pertencia a Cruz Alta no século XIX busca-se chegar às pessoas que vivenciaram esse contexto. Para tanto o trabalho foi desenvolvido considerando as formas materiais, as fontes bibliográficas, bem como informações obtidas junto a documentos primários. A multiplicidade dessas fontes exigiu uma análise multivariável pautada pelo confrontamento dos dados empíricos e em sua correlação com as concepções teóricas. Disso resultou uma interpretação do contexto em questão, e não um modelo explicativo da sociedade estancieira. As teorias interpretativas propostas ao longo do trabalho caracterizam-se, dessa forma, como modelos para pensar o mundo, e não modelos do próprio mundo. O passo inicial para o desenvolvimento dessa pesquisa foi o levantamento dos estabelecimentos pastoris localizados na região que pertencia a Cruz Alta no

2

GOMES, Flamarion Freire da Fontoura. Aspectos da Cultura Material e Espacialidade na Estância Velha do Jarau (1828-1905): um estudo em Arqueologia Histórica Rural. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PUCRS, 2001.

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século XIX e que foram erigidos nessa época. A escolha do período justifica-se pelo fato de que foi na década de 30 do século XIX que as estâncias foram estabelecidas no que correspondia ao recém-criado município de Cruz Alta. Assim, foram selecionadas sete propriedades rurais dentro da região enfocada, nos atuais municípios de Júlio de Castilhos, Tupanciretã, Quevedos, Boa Vista do Incra e São Miguel das Missões. Dentre essas, somente a estância Vista Alegre ainda conserva o conjunto arquitetônico básico das sedes oitocentistas, composto por casa-sede, galpão e senzala. Essa propriedade, localizada no atual município de Júlio de Castilhos, é uma fonte de pesquisa ímpar para o estudo do contexto estancieiro do Planalto Médio no século XIX. As evidências da cultura material ainda existentes na Vista Alegre conferem a esta estância o caráter de sítio arqueológico – um arquivo da história, portanto. Esses elementos compõem uma documentação rica que ainda não foi estudada, que é pouco conhecida pelos próprios moradores da região, e que, pelo seu atual estado de conservação, em pouco tempo estará destruída. A presença das fontes citadas possibilitou que fosse desenvolvido na sede da Vista Alegre um trabalho diferenciado, teoricamente orientado pelas concepções advindas da fenomenologia da paisagem, em que a experiência do corpo em meio às formas materiais aproxima o pesquisador dos grupos humanos que ele busca compreender. O estar dentro da paisagem vivenciada por comunidades do passado possibilita a apreensão dos fenômenos produzidos quando do contato físico com as formas materiais, o que faz do corpo humano a ferramenta básica das pesquisas em arqueologia fenomenológica. Para o desenvolvimento dessa abordagem foram consideradas, em um primeiro momento, as informações obtidas a partir do estudo do contexto estancieiro regional em geral. Após foi desenvolvida uma metodologia

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fenomenológica dentro da estância Vista Alegre. A partir dessa metodologia chegouse a interpretações mais abrangentes acerca da sociedade que vivenciou o quotidiano da estância. Ao longo da tese aqui desenvolvida são combinadas descrições, explicações e interpretações a respeito da problemática proposta. Inicialmente é feito o confrontamento dos dados obtidos junto a fontes bibliográficas e primárias, na busca de contextualizar historicamente a sociedade em estudo e os remanescentes da cultura material existentes na Vista Alegre. Assim, é discutido o processo de formação das estâncias no Noroeste do Rio Grande do Sul e a composição social desse contexto tendo em vista as pessoas ligadas diretamente à dinâmica da estância, ou seja, os proprietários da terra, os trabalhadores escravizados e os trabalhadores livres. Dentro desse objetivo foram discutidas algumas interpretações propostas

pela

historiografia

rio-grandense,

às

quais

foram

confrontadas

informações fornecidas pelo recenseamento geral realizado no Brasil em 1872 e dados contidos nos inventários post-mortem do casal proprietário da Vista Alegre, Carolina e Serafim Corrêa de Barros, datados de 1884 e 1886-91, respectivamente. A seguir parte-se para o contexto material da região de Cruz Alta, em que é proposto o entendimento da sociedade estancieira por meio de dois elementos que compunham seu universo cultural: a terra e as moradias. A opção por trabalhar com esses dois componentes da cultura material deve-se ao fato de que os mesmos têm uma influência inegável no processo de formação identitária da sociedade em questão.

Assim,

concepções

teóricas

pós-processuais

são

utilizadas

para

compreender as relações de poder advindas da posse da terra e para demonstrar de que modo as construções que compunham a sede das estâncias podem ser vistas como fontes para o entendimento da sociedade. Além da abordagem teórica, são

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apresentados dados da cultura material presentes ainda hoje no contexto em estudo, o que é feito através de uma ampla documentação fotográfica que tem como foco as casas-sede, as senzalas e os galpões que compunham as sedes das propriedades pesquisadas. A fim de sustentar teoricamente o desenvolvimento do trabalho em fenomenologia da paisagem, é proposta uma reflexão a respeito do modo como as pessoas e as coisas formam-se mutuamente, num contínuo processo de ser e tornar-se. O entendimento de conceitos como espaço, paisagem e lugar são chave nesse sentido, e são tomados aqui em uma perspectiva humanizada, orientada especialmente pela proposta de Christopher Tilley, cujo trabalho A Phenomenology of Landscape 3 constitui um marco no desenvolvimento de pesquisas em arqueologia fenomenológica. A recorrência às idéias de Merleau-Ponty também caracteriza essa abordagem, a qual, sem ter a pretensão de constituir um trabalho filosófico, busca nas concepções fenomenológicas o entendimento da relação entre as pessoas e as coisas. Também os conceitos de objetificação e incorporação, propostos inicialmente por Pierre Bourdieu, são discutidos em sua relevância no processo de formação identitária dos grupos humanos em meio a materialidade de um lugar. A discussão teórica que compõe essa tese conta ainda com concepções advindas da Geografia e da Antropologia, o que demonstra a multiplicidade de enfoques em torno de um mesmo tema: a compreensão das sociedades por meio da cultura material. Por fim, é apresentada uma proposta teórico-metodológica para o entendimento da sociedade estancieira através da experiência corporal em meio às moradias que compunham as sedes. Para o desenvolvimento dessa etapa da

3

TILLEY, Christopher. A Phenomenology of Landscape. Places, paths and monuments. Oxford: Berg, 1994, p. 9.

24

pesquisa a familiarização com a história regional e com os dados da cultura material obtidos nos diversos trabalhos de campo empreendidos nas propriedades rurais em estudo mostrou-se essencial. Assim, combinando interpretações referentes à disposição do conjunto arquitetônico nas sedes das estâncias à experiência física proporcionada pelo estar no lugar efetiva-se uma tese em fenomenologia da paisagem, e apresenta-se uma metodologia criada para a interpretação das formas arquitetônicas da estância Vista Alegre, única propriedade da região que, como referido anteriormente, possibilita esse tipo de abordagem.

25

1 A ESTÂNCIA VISTA ALEGRE, A POSSE DA TERRA E A SOCIEDADE NO NOROESTE DO RIO GRANDE DO SUL, SÉCULO XIX.

Dentre as propriedades pastoris estabelecidas no Noroeste do Rio Grande do Sul no século XIX a Vista Alegre é uma das poucas, senão a única, a apresentar remanescentes arquitetônicos que possibilitam o estudo da sociedade estancieira por meio da cultura material. Para a realização de uma pesquisa em torno de suas formas materiais é necessário, primeiramente, conhecer o contexto histórico em que se deu a estruturação e o funcionamento dessa estância. Nesse sentido, a recorrência a fontes primárias e historiográficas fornece um instrumental teórico básico para o desenvolvimento de interpretações acerca da sociedade e da cultura material que caracterizam o referido contexto, sem o que, como afirma Arno Kern, “perde-se em conteúdo e na possibilidade de confrontação da documentação material com a iconográfica ou a textual” 4 . Localizada no atual município de Júlio de Castilhos, a estância Vista Alegre foi fundada em área pertencente a São Martinho 5 , que em meados do século XIX correspondia ao Nono Distrito de Cruz Alta. Por isso compreender a estruturação das estâncias tendo como foco especialmente a região de Cruz Alta 6 torna-se relevante para o entendimento da própria Vista Alegre.

4

KERN, Arno Alvarez. “Temas e problemas da arqueologia do Rio da Prata” in KERN, Arno Alvarez [et. al.]. (org.) Sociedades Ibero-Americanas: reflexões e pesquisas recentes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 368. 5 São Martinho foi emancipado de Cruz Alta em 1876, permanecendo como município até 1901, quando foi anexado a Vila Rica (atual Júlio de Castilhos). 6 Entre 1834 e 1901 Cruz Alta sofreu diversas alterações em sua configuração territorial e administrativa, abrangendo uma série de distritos, hoje municípios emancipados, como Ijuí, Tupanciretã, São Luiz Gonzaga, Fortaleza dos Valos, Santa Bárbara, Boa Vista do Cadeado, Boa

26

A pesquisa junto a fontes historiográficas, nesse sentido, possibilitou a discussão do contexto histórico em que se estruturaram as estâncias, o que foi feito dentro da idéia, proposta por Gordon Childe, de que “os textos escritos se acrescentam aos testemunhos arqueológicos e enriquecem-nos, sem que os ponham de parte ou os tornem supérfluos” 7 . Somaram-se a essas fontes as informações obtidas a partir do Censo Geral realizado no Brasil em 1872, e de inventários post-mortem, os quais forneceram indicações da dinâmica da estância Vista Alegre. A análise confrontada da documentação primária e bibliográfica, desse modo, pautou o desenvolvimento do presente capítulo e deu chances a uma melhor compreensão da sociedade estancieira em estudo.

1.1 Serafim Corrêa de Barros e a fundação da estância Vista Alegre

Em Fundação e Evolução das Estâncias Serranas Aristides de Moraes Gomes relata o quotidiano das estâncias a partir de sua própria experiência, “em conversas ouvidas desde guri carregador de mate”. Neste livro Gomes dedicou um capítulo a seu avô, o Cel. Serafim Corrêa de Barros (figura 1), sugestivamente intitulado De como os serranos faziam-se soldados e heróis. As seis páginas do referido capítulo são suficientes para apresentar Serafim Bravo, “o herói”. E também

Vista do Incra, Quinze de Novembro, Ibirubá, Panambi, Pejuçara, entre outros. Em 1855 o município atingiu sua maior extensão territorial, contando, nessa fase, com nove distritos: Vila do Espírito Santo, Santo Ângelo, São Miguel, Piratini, São Xavier, São Martinho, Soledade, Passo Fundo e Palmeira. 7 CHILDE, V. Gordon. Introdução à Arqueologia. S/l: Publicações Europa-América, 1977, p. 23.

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para criar uma imagem da propriedade que erigiu, “sua esplêndida ‘Estância Vista Alegre’” 8 .

Nas coxilhas verdes e dobradas do planalto, nas imediações da Guarda de São Pedro, nasceu um guri num galpão de estância, que se criou sadio, forte e abrutalhado, sem o amparo paterno. Campereando, no rigor da lida, laçando, pealando e gineteando, montava qualquer bagual aporreado ou potro de colmilhos amarelos e maçarocudo, pegado a laço no fundo de um rincão. Até a espada já floreava com galhardia. Mocinho, entusiasmou-se com as idéias republicanas que se cruzavam preparando para a Revolução de 35. Sabendo que José Gomes Portinho, de Cachoeira, cidadão de elevado conceito e valor, andava em Cruz Alta, reunindo gente para combater o governo imperial, empolgou-se e mandou fazer uma lança encabada em aste de guajuvira e guardou-a num canto do galpão. Soube certa tarde que Portinho estaria de pouso perto de Tupanciretã com muita gente. Levantou de madrugada grande, tomou muito mate, churrasqueou e disse para os companheiros que ia para a Revolução. Montou a cavalo, volteou a sua quadrilha escolhida e gordacha, ajeitou o toso de todos, embuçalou um gateado cabos negros, encilhou a capricho, atou o laço à bate-cola, amarrou o poncho nos tentos do lombilho, pôs a mala de garupa com alguma roupa e os avios de mate em baixo dos pelegos e quebrou o cacho do pingo. Pediu à mãe que lhe desse uma tira de pano encarnado e amarrou-a na ponta da lança. Disse-lhe que ia com Portinho, não sabia quando voltava, ou se voltaria. Abraçou-a. Despediu-se do padrasto e do irmão mais moço, Antônio José da Silveira, e de seus compadres de lida. Apresilhou a espada na cintura, pegou a lança, montou e tocou a quadrilha. [...] Serafim Jacinto, voluntarioso e destemido, não perdia entrevero ou carga, manejando aquela lança com destreza e vigor. Nos intervalos das lutas quebrava queixo de potrada, refazendo a cavalhada da força, que era a sua maior arma. Aqui nestas coxilhas da querência, Serafim Jacinto veio combater, batendo ferro branco com os “camelos” (imperiais), em combates em que tomou parte o valoroso Gen. Bento Gonçalves da Silva, e até Giuseppe Garibaldi, acompanhado da inseparável e destemida Ana de Jesus Ribeiro – Anita Garibaldi, em 1842. [...] Já no final da revolução, num intervalo de luta, Serafim Jacinto, ostentando os galões de alferes, conseguiu licença e voltou à querência, onde ficou campereando e gauchando. Neste intervalo, engraçou-se e logo era noivo da graciosa morena Carolina, filha do casal Antonio e Faustina Padilha, e numa vinda do padre, cura de São Martinho, o então alferes Serafim Corrêa de Barros e Carolina Padilha recebiam os santos sacramentos do matrimônio. O alferes Serafim arranchou-se no campo de 8

GOMES, Aristides de Moraes. Fundação e Evolução das Estâncias Serranas. Cruz Alta: Ed. Liderança, 1966, p. 106.

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sua mãe, numa linda coxilha de pedras, a que deu o nome de “Vista Alegre”. 9

Serafim Corrêa de Barros nasceu em 02 de agosto de 1817, possivelmente nas proximidades de São Pedro Tujá (Abacatu), em terras pertencentes ao atual município de Júlio de Castilhos 10 . Pode-se dizer que ele faz parte das primeiras gerações de luso-brasileiros nascidos no Planalto Médio do Rio Grande do Sul, Noroeste do estado, em um período em que o domínio luso estava se efetivando na região. Oficialmente português desde 1801, devido ao Tratado de Badajoz, o sul do Brasil foi sendo aos poucos ocupado por gente vinda de outras áreas, como Porto dos Casais (atual Porto Alegre), Santa Catarina, Paraná e São Paulo, com o incentivo da administração colonial. A ocupação luso-brasileira por meio da concessão de títulos de posse de terras – as sesmarias – foi um mecanismo utilizado pelo governo nesse sentido. Serafim era filho do paulista Serafim Corrêa de Barros e de Ana Maria de Jesus. Não há dados a respeito do local de nascimento da mãe, mas sabe-se que foi batizada em 1795 na Capela curada de Santa Bárbara da Encruzilhada, RS. Por parte de mãe, seus avós eram Jacinto Pereira Henriques, natural do Porto dos Casais, e Vicência Maria de São Joaquim, nascida em Rio Pardo em 1776 11 . A mãe o teve solteira, aos 22 anos. Talvez por isso ele usasse, quando jovem, o sobrenome Jacinto – por causa do avô 12 , Jacinto Henriques, ou do tio, o Cel. Zeferino José Jacinto 13 .

9

GOMES, 1966, p. 103-05. COSTA, Firmino. Terra de Vila Rica. Contribuição ao estudo da história do município de Júlio de Castilhos. Júlio de Castilhos: Publicação do Centro Cultural Francisco Salles/Prefeitura Municipal de Júlio de Castilhos, 1991, 454. O autor não conseguiu confirmação oficial para o local de nascimento de Serafim Corrêa de Barros. 11 COSTA, 1991; Pereira, 2004. 12 GOMES, 1966, p. 104. 13 COSTA, 1991, p. 454. 10

29

O pai teve outros cinco filhos, entre 1824 e 1834, com Comba Maria d’Almança 14 , natural de Piratini, com quem foi casado. Serafim, o paulista, faleceu em 1836, em Olhos D’Água, no município de Bagé, deixando herança ao filho homônimo 15 . Durante a Revolução Farroupilha, em um intervalo de batalha (1843 ou 44), Serafim, o filho, casou-se com Carolina Josefa Leopoldina 16 , ou Carolina Padilha 17 , natural de São Miguel das Missões, também filha de pai paulista e mãe riograndense (de Rio Pardo) 18 . Então, por volta dos 27 anos, Serafim Corrêa de Barros fundou a estância Vista Alegre (figura 2), propriedade que leva o nome da coxilha “batizada” por ele. Diferentemente da ordem em que é apresentada no livro de Aristides de Moraes Gomes, como uma conseqüência da vida e obra do Cel. Serafim Bravo, foi a estância Vista Alegre que levou esta pesquisa ao conhecimento de Serafim Corrêa de Barros. E foram as coisas de sua terra que a conduziram à gente de sua época.

14

PEREIRA, Cláudio Nunes. Genealogia Tropeira. Rio Grande do Sul, século XIX e XX. Coletânea de material histórico e genealógico. 2004, p. 185. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2006. COSTA (1991, p. 454) usa grafia diferente: Comba Maria de Almanso. 15 GOMES, 1966, p. 106; PEREIRA, 2004, p. 184. 16 COSTA, 1991, p. 455. 17 GOMES, 1966, p. 105. 18 PEREIRA, 2004, p. 219.

30

Figura 1: Serafim Corrêa de Barros, então coronel. Fonte: Costa, 1991, p. 454.

Figura 2: Sede da Estância Vista Alegre. Fonte: Arquivo da autora (25/08/2006).

31

32

1.2 A formação da Vista Alegre e a propriedade da terra no Noroeste do Rio Grande do Sul.

Aristides de Moraes Gomes 19 afirma que a Vista Alegre foi estabelecida na propriedade da mãe de Serafim Corrêa de Barros, Ana Maria de Jesus. Já Firmino Costa, que buscou respaldo em dados oficiais para escrever Terra de Vila Rica (1991), diz que a Vista Alegre foi erigida em terras do sogro de Serafim, o paulista Antônio Rodrigues Padilha, dono de uma sesmaria perto da guarda de São Pedro, falecido em 1849. Com base em informações dadas por Firmino Costa, Cláudio Nunes Pereira conta, em Genealogia Tropeira 20 , que Serafim Barros procedeu ao registro paroquial de suas terras em 01 de julho de 1856, no Distrito de São Xavier, em São Martinho 21 . Segundo o referido registro, suas possessões compreendiam: Um campo situado entre o Toropy e o Caneleira, que terá 2 léguas quadradas. Ao Norte, limita com José Dutra e Geraldo Machado, ao Sul com o Barão de Jacuí e João Jacinto Fogaça, ao Oeste com José Pereira de Souza, ao Leste com Joaquim Manuel Pinto. Parte desse campo foi herdado por herança do finado sogro Antônio Rodrigues Padilha e outra parte por compra que fez a Joaquim Pereira. (Ver figura 3, a seguir).

19

GOMES, 1966, p. 105. PEREIRA, 2004, p. 186-187. 21 Segundo Costa (1991, p. 128-29), o município de Cruz Alta, desmembrado de Rio Pardo em 1833, foi dividido, em 5 de agosto de 1836, em seis distritos: Vila, São Martinho, Botucaraí, Passo Fundo, Palmeira e São Miguel. O atual município de Júlio de Castilhos estava então situado parte no 1º Distrito – Vila de Cruz Alta, e parte no 2º. Distrito – São Martinho, o qual se estendia da Serra Geral ao Toropi e pontas do Jaguari. Em 1855 São Martinho passou a ser o 6º Distrito; em 1863 o 9º, permanecendo como tal até sua emancipação, em 1876. 20

33

Figura 3: Detalhe de Carta do Exército demonstrando a localização da sede da estância Vista Alegre (circulada em vermelho), do Arroio Caneleira e do Rio Toropi (indicados pelas setas vermelhas). Fonte: Ministério do Exército – Depto. de Engenharia e Comunicações. Carta Santa Maria (Folha SH.22-V-C MIR-534). Escala: 1:250000. Ver carta inteira no anexo H.

34

Além da herança e da compra, Costa 22 ainda levanta a hipótese de que talvez esta área fosse antiga propriedade do avô materno de Serafim, Jacinto Pereira Henriques. Cabe lembrar que o registro da terra havia se tornado obrigatório dois anos antes, com a regulamentação da Lei de Terras, sancionada pelo Governo Imperial em 1850. De acordo com a referida Lei, os proprietários deveriam registrar suas posses junto à Repartição Especial das Terras Públicas. Esse órgão era a representação, nas províncias, da Repartição Geral das Terras Públicas, instituição governamental criada em 1854 especialmente com a finalidade de medir, revalidar e legitimar domínios públicos e particulares, assim como vender e conservar terras devolutas, determinando os procedimentos para o registro das terras já possuídas 23 . Fazia parte do procedimento o registro paroquial das possessões, que consistia em uma declaração do possuidor de terra, em duas vias, escrita pelo próprio ou por um representante seu, entregue ao vigário de sua freguesia, que por fim efetivava o registro 24 . Na referida declaração não precisavam constar dados como a extensão e os limites da terra registrada, sendo necessário somente o nome do possuidor e a localização de sua posse, o que levou a registros imprecisos e com informações bastante heterogêneas 25 . Além disso, não era necessário provar o que estava sendo declarado.

22

COSTA, 1991, p. 99. ORTIZ, Helen Scorsatto. O Banquete dos Ausentes: A Lei de Terras e a formação do latifúndio no norte do Rio Grande do Sul (Soledade, 1850-1889). Dissertação de Mestrado. Passo Fundo: UPF, 2006, p. 49; COELHO, Lucinda de Mello. “Terras e Colonização no Segundo Reinado” in Anais da XX Reunião da SBPH/Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica. Rio de Janeiro: SBPH, 2000, p. 291. 24 COELHO, 2001, p. 292. 25 ORTIZ, 2006, p. 51. 23

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1.2.1 As concessões de sesmarias

No Rio Grande do Sul a posse da terra e do gado, segundo Sandra Pesavento 26 , foi definida pelo regime de sesmarias, o qual possibilitou o início do estabelecimento das estâncias por volta de 1730. As sesmarias, terras medindo em tese 3 léguas por 1 légua (cerca de 13.000 hectares) 27 , eram concedidas como retribuição a serviços militares prestados, não sendo exigido aos beneficiados, futuros estancieiros (ex-tropeiros ou militares que haviam dado baixa), a disponibilidade de recursos econômicos, dado que diferenciava o processo de concessão realizado na Província de São Pedro do praticado no Nordeste, por exemplo 28 . Já Mário Maestri aponta as posses pessoais como um dos fatores a ser considerado pela administração colonial no julgamento de uma requisição territorial. Segundo o autor, no Sul os contemplados com sesmarias eram “os oficiais superiores e subalternos, os aventureiros e comerciantes bem sucedidos, os homens de posse” 29 . Mesmo que não fosse requisito indispensável à concessão de terras, ter meios econômicos era, segundo Helen Osório 30 , condição que favorecia o acesso às sesmarias. Porém, o interesse da Coroa na ocupação e defesa militar desse território sobrepunha-se aos critérios de possuir recursos e cultivar efetivamente as

26

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990, p. 15. 27 KÜHN, Fábio. Breve História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Leitura XXI, 2002; OSÓRIO, Helen. Apropriação da Terra no Rio Grande de São Pedro e a Formação do Espaço Platino. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 1990; ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002. No início da colonização as sesmarias não tinham essa extensão fixada, podendo ultrapassar a medida de 3 X 1 légua. 28 PESAVENTO, 1990, p. 15. 29 MAESTRI F°., Mário. O Escravo no Rio Grande do Sul. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984, p. 47. 30 OSÓRIO, 1990.

36

terras. Não foi critério de concessão, por exemplo, o possuir escravos, ao contrário de outros espaços coloniais 31 .

A mesma autora, assim como Fábio Kühn 32 , apontam ainda para o fato de que se o requerente possuísse relações com a hierarquia militar o processo de concessão de terras seria favorecido. No mesmo sentido, Paulo Zarth 33 afirma que o tamanho da propriedade estava ligado ao grau militar e à influência do beneficiado. Como afirma Helen Osório, A débil organização do aparelho administrativo colonial transformou os militares, comandantes de distritos, em peças fundamentais no processo de concessão de terras. Feitos os requerimentos, cabia a eles a informação sobre a situação das terras pedidas 34 .

A doação de terras em forma de sesmarias foi iniciada, no Rio Grande do Sul, “na região que se estendia de Tramandaí aos campos de Viamão, passando por Gravataí e um pouco mais ao sul, acompanhando o caminho dos tropeiros no exíguo Rio Grande português da época” 35 . A primeira concessão de sesmaria no Continente de São Pedro ocorreu em 1732, no lugar chamado Conchas, nos campos de Tramandaí 36 . Segundo Fábio Kühn, essas primeiras concessões foram seguidas das apropriações de terras na bacia do Jacuí, na década de 1750 37 . Quando em 1777, pelo Tratado de Santo Ildefonso, os portugueses conseguiram recuperar terras ocupadas pelos espanhóis no Sul, tornou-se comum que os governos que se seguiram, como o de Sebastião Xavier (1780-1801) e Paulo José da Silva Gama (1803-1810), expulsassem alguns indivíduos que já ocupavam a região, redistribuindo as terras tomadas em favor de outros, conforme lhes

31

OSÓRIO, 1990, p. 63. KÜHN, 2002, p. 56. 33 ZARTH, 2002, p. 58. 34 OSÓRIO, 1990, p. 228-29. 35 PESAVENTO, 1990, p. 15. 36 TORRONTEGUY, Teófilo O. V. As Origens da Pobreza no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto/Instituto Estadual do Livro, 1994, p. 25. 37 KÜHN, 2002, p. 56. 32

37

conviesse 38 . O acesso a terra, desse modo, estava condicionado não somente à Lei sobre a doação de sesmarias, de aplicação diversa ao longo do território brasileiro 39 , mas também às relações pessoais com a elite rio-grandense. Já com relação à região das Missões Teófilo Torronteguy 40 vincula a ocupação lusa dessa área, que culminou com o Tratado de Badajoz (1801), a uma ação estratégica dos militares de Rio Pardo. Segundo o autor, quando as Missões ainda encontravam-se sob o domínio do Vice-Reinado do Prata, Borges do Canto e Manuel Pedroso comandaram indígenas e soldados portugueses e, partindo de Santa Maria, tomaram a Guarda Espanhola de São Martinho 41 . Esse episódio, de acordo com Torronteguy, deu início à ocupação portuguesa do território missioneiro; a partir daí, segundo o autor, toda a região da Depressão Central até a fronteira ocidental, rio Uruguai, foi distribuída em sesmarias pelos portugueses, sendo que esses novos limites passaram a ser patrulhados pelos estancieiros com seus peõessoldados. Entretanto, esse processo de ocupação lusa do território missioneiro foi realizado também às margens do sistema oficial de concessão de sesmarias. De acordo com Paulo Zarth 42 , as terras da região missioneira que foram conquistadas pelos portugueses em 1801 passaram a ser vendidas pelos administradores do território, que se julgavam com o direito de fazer este tipo de negócio. Zarth afirma, ainda, que era mais fácil comprar a terra do que requerê-la em forma de sesmaria,

38

ZARTH, 2002, p. 58-59. Conforme Helen Osório (1990), mesmo com a tentativa da Coroa de unificar e consolidar a legislação a respeito da concessão de sesmarias, o que se deu por meio do Alvará de Regimento das Sesmarias no Brazil, de 5 de outubro de 1795, na prática o que se presenciou foi a disparidade na aplicação de suas regras conforme a região e os interesses da Coroa. 40 TORRONTEGUY, 1994, p. 32. 41 Não confundir com o Distrito de São Martinho, onde foi estabelecida a estância Vista Alegre. 42 ZARTH, 2002, p. 60. 39

38

“processo que exigia demorada tramitação e que, no final, dependia da indicação dos mesmos chefes militares que vendiam as terras por preços bastante baixos” 43 . De acordo com Helen Osório 44 , nessa região o processo de concessão de sesmarias, desencadeado após a decadência das Missões jesuítico-guaranis, seria iniciado somente em 1810, no governo de D. Diogo de Souza. Nessa área, as doações contemplaram, em grande medida, moradores e negociantes em Porto Alegre, comandantes e seus parentes, em prejuízo dos soldados rasos que haviam ocupado a terra anteriormente. As áreas abrangidas então eram as terras entre os rios Ibicuí, Ibirapuitã, Jaguari, Grapuitã, Santa Maria e Vacacaí 45 . No Noroeste do estado, região que também abarca parte da área missioneira, a ocupação mais efetiva da terra por parte de estancieiros luso-brasileiros deu-se no século XIX, após o domínio luso oficializar-se com o Tratado de Badajoz. Mesmo que inicialmente concedidas em forma de sesmarias, as terras nessa área do Rio Grande do Sul acabavam sendo transferidas a outros proprietários através de mecanismos ilegais, como já vinha ocorrendo no restante da Província, como atesta o ofício do Vice-rei do Brasil ao Provedor da Fazenda Real, datado de 1784: Desta notável irregularidade procede a má fé, com que muitos requerem as mesmas sesmarias e logo as traspassam e vendem para pretender outras até por interpostas pessoas, de modo que [...] se faz manifesta a insofrível desigualdade, com que uns cheios de ambição insaciável desfrutam, alienam e traspassam a maior parte dos terrenos, ficando outros, conseqüentemente, privados dos quais podem cultivar com maior utilidade do Estado e mais conhecida vantagem dos rendimentos 46 .

43

ZARTH, 2002, p. 60-61. OSÓRIO, 1990, p. 215. 45 OSÓRIO, 1990, p. 215-16. 46 Ofício do Vice-rei do Brasil ao Provedor da Fazenda Real. Rio de Janeiro, 7/3/1784. ANRJ, cód. 104, v. 6, fls. 562-563 in OSÓRIO, Helen. “Estancieiros que plantam, lavradores que criam e comerciantes que charqueiam: Rio Grande de São Pedro, 1760-1825” in GRIJÓ; KÜHN; GUAZZELI; NEUMANN; OSÓRIO (et. al.), Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2004, p. 76. 44

39

Os registros do viajante-naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire 47 apontam para a situação em que se encontravam os camponeses pobres mediante a prática da doação de sesmarias. Em sua visita à estância do Rincão da Boca do Monte, no atual município de Santa Maria 48 , Saint-Hilaire relata: O mesmo terreno é dado seguidamente a várias pessoas. Mais freqüentemente ainda acontece que um pobre agricultor, inteiramente estranho aos litígios, se estabelece em um terreno, com permissão do Comandante, e quanto tem colocado aí seu gado e construído sua choupana, homens ricos de Porto Alegre e de outras partes obtêm títulos de sesmaria do mesmo terreno e pretendem expulsar aquele que o desbravou com sacrifício, substituindo-o por um administrador para auferir as rendas, sem se dar ao menor trabalho 49 .

No município de Cruz Alta, Noroeste do Rio Grande do Sul, o povoamento luso-brasileiro desenvolveu-se de forma mais decisiva a partir da década de 30 do século XIX. É nesse período, em 1843/44, que a estância Vista Alegre foi estabelecida em São Martinho, Distrito então pertencente a Cruz Alta.

1.2.2 As posses livres e a Lei de Terras

Como visto anteriormente, a estância Vista Alegre não foi estabelecida em terras concedidas a Serafim Corrêa de Barros em forma de sesmaria. Esse fato chama a atenção para a maneira como as terras foram ocupadas por estancieiros

47

Em sua viagem pelo Rio Grande, iniciada em junho de 1820 e findada um ano depois, Saint-Hilaire foi acolhido em diversas estâncias, ao longo das localidades de Torres, Porto Alegre, Tramandaí, Viamão, Mostardas, Rio Grande, Pelotas, Uruguaiana, São Borja, Santa Maria, Cachoeira do Sul e Rio Pardo. Desse empreendimento resultou a Voyage à Rio Grande do Sul, publicada pela primeira vez em 1887, em Orléans, 34 anos após a morte do autor. No Brasil a obra chegou, traduzida parcialmente, em 1935. A obra de referência para o presente estudo, em sua quarta edição por Martins Livreiro (2002), é a tradução integral feita por Adroaldo Mesquita da Costa. 48 A atual cidade de Santa Maria pertencia, nessa época (1821/22), ao município de Rio Pardo, do qual originou-se Cruz Alta. 49 SAINT-HILAIRE, 2002, p. 333.

40

entre 1822, data oficial do fim da concessão de sesmarias, e 1850, data em que a Lei de Terras foi sancionada. Segundo Helen Ortiz 50 , “a partir de 1822, excluídas a compra e a herança, a posse passou a ser a única forma de obtenção de terras, na falta de qualquer lei que normalizasse seu uso e exploração”. A autora chama atenção para o fato de que, nesse período, o termo posseiro deixou de referir-se apenas aos detentores de pequenas extensões de terras com produção para subsistência e a pequenos plantadores que participavam subsidiariamente da produção para exportação, e passou a dizer respeito a todo aquele que ocupava a terra sem que esta lhe tivesse sido concedida previamente 51 . Dessa forma, a designação de posseiro aplicava-se também ao grande proprietário. O sistema de posse, segundo Zarth 52 , permitia que qualquer morador ocupasse a terra de forma mansa e pacífica. Esse sistema teoricamente teria dado chances aos grupos menos abastados que criassem pequenas propriedades rurais, preferencialmente visando à produção agrícola. Torronteguy aponta para os conflitos gerados pelo apossamento das terras no Rio Grande do Sul, onde antigos tropeiros, soldados desmobilizados e mestiços indígenas transformaram-se em posseiros, entrando em conflito com os estancieiros 53 . Na concepção de Nelson Piletti e Ivone Mosolino 54 , a ausência de uma legislação que regulamentasse a posse da terra, a partir da independência do Brasil até 1850, possibilitou que homens livres pudessem ocupar pequenas áreas de terras devolutas. Entretanto, na prática, o que ocorria era a posse de mais terras pelos já detentores de grandes extensões de campo. O 50

ORTIZ, 2006, p. 39-40. ORTIZ, 2006, p. 40. 52 ZARTH, 2002, p. 75. 53 TORRONTEGUY, 1994, p. 59. 54 PILETTI, Nelson; MOSOLINO, Ivone. A Questão da Terra no Brasil. Caxias do Sul: Maneco Livraria & Editora, 1999, p. 26. 51

41

latifúndio ampliava-se, e os lavradores mais pobres, assim como grupos indígenas, se viam restringidos a trabalhar para os estancieiros ou migrar para as terras que não interessavam à elite rural. A posse da terra por meios não oficiais, embora legítimos, foi, assim, o que conduziu o processo de apropriação territorial entre 1822 e 1850. Por não ser regulado, o acesso a terra acabou sendo ditado, por assim dizer, pela “lei do mais forte”: grandes porções de terras foram ocupadas pela já formada elite territorial, que muitas vezes ignorava a presença anterior de posseiros mais humildes. Também a compra e a venda de terras, mesmo que não respaldadas por vias documentais, consistiam em um expediente recorrente nesse período de posses livres. No município de Cruz Alta há vários exemplos dessa prática. Um deles parte da declaração feita por Salvador Martins França ao Registro Paroquial de Terras de Cruz Alta, em 1850. Segundo Zarth 55 , o declarante registrou ser possuidor de sete sesmarias de campo, adquiridas em 1845, mediante compra, do Ten. Cel. Vidal José do Pilar, ao qual as terras haviam sido concedidas, entre 1817 e 1831, por outros chefes militares e pelo Presidente da Província. Outro exemplo dessa prática de compra e venda de terras na região de Cruz Alta entre 1822 e 1850 pode ser verificado no depoimento que João César Medeiros de Farias deu ao arquiteto Nery A. Silva, disponível em Arquitetura Rural do Planalto Médio 56 . Segundo o depoente, seu bisavô, João Medeiros de Farias, e seu irmão, José Serafim Medeiros de Farias, compraram juntos, por volta de 1837, as terras da fazenda do major Dias, a qual havia sido requerida por sesmaria. Fundaram, então,

55

ZARTH, 2002, p. 61. SILVA, Nery L. Auler. Arquitetura Rural do Planalto Médio. Séc. XIX. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2004, p. 151. 56

42

a Fazenda do Triunfo, localizada no atual município de São Miguel das Missões, que também pertencia a Cruz Alta 57 . Outra forma de apossamento nesse período em que o Estado estava ausente das questões referentes à ocupação territorial dava-se por meio da doação de terras, mesmo que não mais em caráter de sesmaria. Exemplo dessa prática pode ser conferido na declaração do Ten. Cel. Joaquim Thomas da Silva Prado, feita junto ao Registro Paroquial de Cruz Alta em 1855, por meio da qual o proprietário registrou a extensão de 39.200 hectares, os quais lhe haviam sido concedidos pelo comandante da fronteira, Cel. João Palmeiro, em 1825 58 . Serafim Corrêa de Barros ocupou suas terras nesse período de posses livres, em que o Estado estava ausente das tramitações relativas à propriedade territorial. Sua declaração ao Registro Paroquial é também uma demonstração de como as propriedades constituíam-se entre 1822 e 1850: “parte desse campo foi herdado por herança do finado sogro Antônio Rodrigues Padilha e outra parte por compra que fez a Joaquim Pereira” 59 . Se por um lado esse registro de posses, obrigatório 60 a partir da Lei de Terras, era uma tentativa de garantir por lei os domínios territoriais já estabelecidos no campo, por outro, era um meio de legitimar e até incentivar posses fraudulentas. Isso porque, na medida em que não era exigido que se comprovasse o que estava

57

A segunda sede da Fazenda do Triunfo, erigida a partir da divisão das terras entre os irmãos Medeiros de Farias, em 1870, ainda encontra-se em pé, tendo sido até pouco tempo atrás um hotel fazenda. 58 ZARTH, 2002, p. 62. 59 PEREIRA, 2004, p. 187 (citação já feita). 60 Embora obrigatório, o registro de terras nem sempre era efetivado, e não somente por falta de recursos econômicos por parte das camadas mais pobres da sociedade. Segundo Luís Augusto E. Farinatti, “é difícil saber como a obrigatoriedade da declaração ao vigário foi entendida e praticada nas diferentes regiões da província” (FARINATTI, Luís Augusto Ebling. “Por uma história agrária do Rio Grande do Sul” in Histórica: Revista da Associação dos Pós-Graduandos em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, n. 5. Porto Alegre, APGH, PUCRS: 2001, p. 204).

43

sendo declarado, os declarantes tinham a possibilidade de tomar terras de indígenas, de pequenos proprietários, e terras não ocupadas (do Estado, portanto), e registrá-las, por vias legais, em seu próprio nome. Torronteguy, nesse sentido, afirma que “muitos estancieiros haviam ocupado terras além de seus limites patrimoniais e também em outros lugares. As posses dessas terras extras foram legalizadas” 61 . Dessa forma, a Lei de Terras acabou por respaldar a estrutura latifundiária que se configurava no Rio Grande do Sul, perpetuando a exclusão social. Nas palavras de Aldomar Rückert, “por meio de pedidos de legitimação de posses ao governo provincial, os estancieiros consolidam a grande propriedade privada de vastas extensões de campo” 62 . O processo de privatização das terras deu continuidade à exclusão social que já vinha sendo praticada desde a entrada dos portugueses no território sulino, mas adquiriu nova roupagem. A aplicação da Lei de Terras acabou por legitimar um sistema de exclusão já vigente em todo o Brasil. Entretanto, seu foco principal era com relação à regularização do trabalho, o que passava pela questão da regulamentação das terras ainda não ocupadas – as terras devolutas. Em seu artigo primeiro, a Lei determinava: “Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de compra”. Por devolutas, no período, entendiam-se todas as terras que não fossem ocupadas, que estivessem vagas 63 . Em um contexto no qual a vinda de imigrantes europeus para o Brasil e a crescente pressão pelo fim da escravidão apontavam para uma complexificação social, as questões relativas à propriedade da 61

TORRONTEGUY, 1994, p. 60. RÜCKERT, Aldomar A. A Trajetória da Terra: ocupação e colonização do centro-norte do Rio Grande do Sul – 1827-1931. Passo Fundo: Ediupf, 1997, p. 29. 63 Originalmente, o termo devolutas dizia respeito às terras que, concedidas como sesmarias, eram tomadas de volta pela Coroa pelo fato de não terem sido aproveitadas dentro do prazo de cinco anos. Com o passar do tempo, o termo passou a ser usado como sinônimo de vaga, desocupada. 62

44

terra exigiam um cuidado maior. A Lei de Terras, nesse sentido, intentava impedir que a ampla faixa de terras livres ou devolutas do Brasil fosse ocupada por escravos emancipados. Desse modo, de acordo com José de Souza Martins, o Estado se incumbiu de restringir artificialmente a abundância de terras 64 . Ao mesmo tempo, ao limitar a posse de terras à compra a Lei acabaria por direcionar as futuras levas de mão-de-obra imigrante para o trabalho em terras de outrem 65 . Com a Lei de 1850 o governo imperial não desejava redefinir os papéis sociais ou promover uma reforma no campo, mas sim garantir que a posse territorial ficasse nas mãos da elite rural brasileira. Dessa forma, a lei assegurou que as terras permanecessem nas mãos desse grupo social, certificando-o, por vias legais, como proprietário – pelo reconhecimento das terras que o declarante afirmava já possuir ou pela compra de terras devolutas.

1.2.3 O gado e a formação das estâncias

De acordo com Heloisa Reichel e Ieda Gutfreind, a exploração do gado alçado (nas chamadas vacarias) alcançara o atual estado do Rio Grande do Sul após 1650, com o incremento do comércio de couro, quando foi estendida para o Sul de Buenos Aires e, na Banda Oriental, para o Norte 66 . As estâncias missioneiras ocupavam a região platina desde o início do século XVII, e responderam a uma 64

MARTINS, José de Souza. Capitalismo e Tradicionalismo: estudos sobre as contradições da sociedade agrária no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1975, p. 52-53. 65 Sobre a Lei de Terras e suas conseqüências para os trabalhadores camponeses livres, dentre os quais os imigrantes, ver MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a Política no Brasil. As lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. Petrópolis: Vozes, 1981, especialmente páginas 31-35 e 41-43. O mesmo autor aborda a questão ideológica que sustenta o trabalhador livre sob o jugo do grande proprietário na obra O Cativeiro da Terra. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979, especialmente páginas 145-148. 66 REICHEL, Heloisa Jochims; GUTFREIND, Ieda. As Raízes Históricas do Mercosul. A região platina colonial. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2001, p. 116.

45

necessidade de sobrevivência da própria Missão ao garantir a permanência do gado em seus domínios. Nos diversos momentos de desorganização missioneira, em que os padres jesuítas eram obrigados a transferir seus povoados de acordo com exigências políticas ou para fugir aos ataques bandeirantes, o gado era deixado para trás, multiplicando-se pelos campos. Esse fator teve proporções enormes com a tentativa de efetivação do Tratado de Madrid (1750) 67 pelas tropas luso-espanholas, da qual decorre o episódio que ficou conhecido como Guerra Guaranítica (1754-56). O processo de desestruturação das Missões culminou em 1801, com o Tratado de Badajoz, que passava definitivamente os Sete Povos para o domínio luso. A desorganização – desta vez definitiva – dos Sete Povos liberou, novamente, o gado missioneiro, que acabou sendo incorporado aos rebanhos das estâncias lusas. Nas palavras de Torronteguy, “a partir da tomada das Missões a criação de gado pôde estender-se e intensificarse” 68 . Foi, portanto, o gado oriundo das próprias Missões jesuíticas espanholas (descendentes, por sua vez, do gado de São Vicente, de onde alguns animais haviam sido levados para o Paraguai ainda no século XVI 69 ) que proporcionou o estabelecimento das estâncias lusas no território que hoje corresponde ao Rio Grande do Sul. Conforme Reichel e Gutfreind, as estâncias lusas estabelecidas na região platina tenderam a aumentar no final do século XVIII, quando os portugueses passaram a se interessar pelo Continente de São Pedro como um espaço

67

Deve-se lembrar que o Tratado de Madrid acabou por ser anulado com o Tratado de El Pardo, de 1761. 68 TORRONTEGUY, 1994, p. 32. 69 ZARTH, 2002, p. 228-29; REICHEL e GUTFREIND, 2001, 112. Segundo esses autores, a esse gado oriundo de São Vicente teria se somado o gado vindo do Peru. O cruzamento de ambos deu origem ao gado crioulo, predominantemente criado nas estâncias do sul no século XIX (ZARTH, 2002, p. 229).

46

estratégico, que precisava ser povoado e melhor explorado economicamente 70 . Incentivados com a expulsão dos jesuítas das Missões, os negócios envolvendo o gado adquiriram importância econômica ainda maior, constituindo-se na base da economia gaúcha no século XIX – e fonte, também, de problemas entre o Rio Grande e o governo imperial. Na fronteira do recém português Rio Grande, a criação de gado vacum, muar e cavalar tornara-se, segundo Guilhermino César, uma “atividade aventurosa”, em razão de freqüentes embates armados. Segundo o autor, esse fato acabou por estimular a formação de estâncias em outros pontos aquém da Campanha: “os Campos de Cima da Serra, as pastagens de Passo Fundo e Cruz Alta, onde os pioneiros curitibanos e paulistas se instalaram com os seus criatórios, deram novo impulso à pecuária” 71 . Cabe ressaltar que na época em que foi fundada a Vista Alegre o significado da palavra estância diferia daquele conferido no século XVIII, o qual dizia respeito simplesmente à propriedade em que se criava gado, não importando a sua extensão ou a forma como a pecuária era nela praticada (se constituía ou não uma atividade econômica exclusiva) 72 . Segundo Helen Osório, a quase onipresença da pecuária no Rio Grande do Sul a partir da segunda metade do século XIX deve ter originado a ligação do termo à atividade pecuária também para o século XVIII 73 . Mário Maestri também vincula o termo estância à atividade pecuária, associando a vinda de

70

REICHEL e GUTFREIND, 2001, p. 126. CÉSAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul: período colonial. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2002, p. 252. 72 OSÓRIO, 2004, p. 82. 73 OSÓRIO, 2004, p. 82. 71

47

tropeiros vicentinos para o Sul com a fixação destes nessa região, o que acabou por dar origem às primeiras estâncias 74 . Auguste de Saint-Hilaire 75 fez largo uso do termo em seus registros referentes às propriedades rurais, incluindo as regiões de Santa Maria da Boca do Monte e Missões (na época de sua viagem o município de Cruz Alta ainda não havia sido criado). No mesmo sentido corroboram as anotações do viajante francês Arsène Isabelle 76 , que, ao percorrer o Rio Grande do Sul em meados do século XIX, referiase às grandes propriedades pastoris como estâncias, associando a elas um número expressivo de animais, como na passagem que segue: E como a ambição dos estancieiros consiste em possuir grandes rebanhos, de cinco, dez e trinta mil cabeças de gado, resulta que procuram possuir a maior extensão possível de campo; deste modo, não é raro ver-se estâncias, sobretudo nas Missões e na parte vizinha da Banda Oriental, de dez, vinte e trinta léguas ou mais de extensão 77 .

Também o belga A. Baguet 78 , que percorreu o Rio Grande do Sul em 1845, comentou, a respeito da definição desses estabelecimentos pastoris: “Foi somente em 1721 que, pouco a pouco, os habitantes do Rio Grande começaram a se dedicar à criação de gado e a seus estabelecimentos, aos quais se deu o nome de estâncias” 79 .

74

MAESTRI, 1984, p. 40. SAINT-HILAIRE, 2002. 76 Isabelle percorreu as regiões de Uruguaiana, Itaqui, São Borja, Alegrete, Santiago do Boqueirão, São Francisco de Assis, São Vicente, Santa Maria, Cachoeira, Cruz Alta, Rio Pardo, Porto Alegre, Viamão, Santo Antônio da Patrulha, São Leopoldo, Pelotas, São José do Norte e Rio Grande. Seus registros foram traduzidos para o português em 1946, por Dante de Laytano, a partir da edição publicada no Havre em 1835. A obra consultada para o presente estudo, em sua segunda edição (1983), foi publicada por Martins Livreiro sob o título Viagem ao Rio Grande do Sul, 1833-1834. 77 ISABELLE, 1983, p. 43. 78 Baguet deixou à posteridade o livro Voyage au Rio Grande do Sul e ao Paraguay, precede d’une notice historique sur la découverte du Brésil, publicado na Bélgica em 1874. Deste foi selecionado o trecho Voyage ao Rio Grande do Sul, traduzido por Maria Alves Müller, para publicação, em uma edição conjunta da UNISC e PARAULA, com o título de Viagem ao Rio Grande do Sul. A. Baguet descreveu inúmeras passagens sobre as estâncias rio-grandenses, as quais também foram referência para o presente estudo. 79 BAGUET, 1997, p. 45-46. 75

48

Reichel e Gutfreind relacionam o termo às atividades desenvolvidas na propriedade pastoril da região platina como um todo. Nesse sentido, diferenciam as estâncias coloniais das estâncias mais modernas: enquanto nas primeiras realizavam-se desde a criação de gado até a extração do couro, nas demais eram praticadas atividades quase que exclusivamente ligadas ao desenvolvimento dos rebanhos e à venda do gado em pé 80 . Segundo Paulo Zarth, “a palavra estância é utilizada, normalmente, com o significado de grande estabelecimento pastoril (uma propriedade de 13.000 hectares povoada de reses), mas nem sempre corresponde à realidade” 81 . O autor afirma, com base em registros de terras, que sob a denominação de estância existiam estabelecimentos cujos proprietários possuíam pouquíssimos animais, do que decorre, na sua concepção, a existência de vários padrões de estâncias 82 . Na região de Cruz Alta, as propriedades rurais do século XIX são comumente referenciadas como estâncias, sendo caracterizadas, do ponto de vista econômico, como estabelecimentos pastoris. A criação de gado, na região, destinava-se à venda nas feiras de Sorocaba, até onde os animais eram conduzidos pelos tropeiros. Especificamente com relação à localidade onde se situa a Vista Alegre, Firmino Costa afirma que “não só o comércio de muares, mas também a criação de bovinos constituiu-se numa das principais fontes de renda dos primeiros moradores dos campos de Júlio de Castilhos” 83 . A propriedade de Serafim Corrêa de Barros se enquadra nessa constatação, conforme atestam os dados arrolados em seu inventário e no de sua esposa (ver tabelas e gráficos no item a seguir).

80

REICHEL e GUTFREIND, 2001, p. 127. ZARTH, 2002, p. 111. 82 ZARTH, 2002, p. 111. 83 COSTA, 1991, p. 67. 81

49

1.2.4 A estância Vista Alegre

Com relação à Vista Alegre, em particular, não há um conformidade quanto à definição desta propriedade. Costa 84 a ela se refere como Fazenda da Vista Alegre; Pereira 85 refere-se a este estabelecimento ora como fazenda, ora como estância; Gomes 86 usa somente o termo estância. Em nenhum dos três trabalhos existe uma preocupação em definir a Vista Alegre com relação a sua extensão ou à atividade econômica nela desenvolvida, possivelmente porque os autores prendem-se mais à figura de Serafim Corrêa de Barros do que à sua propriedade ou ao contexto da época. Buscando evitar essa displicência quanto ao uso do termo, por ser este de relevância para o entendimento da Vista Alegre no contexto histórico do século XIX, esta propriedade é aqui denominada de estância, uma vez que tinha como atividade econômica principal a criação de animais. Os dados obtidos nos inventários de Carolina e Serafim Corrêa de Barros atestam essa condição, como demonstrado nas tabelas (1 e 2) e nos gráficos (1 e 2) a seguir, a respeito dos bens semoventes do casal. Com relação à prática da agricultura nas terras do Cel. Serafim, o inventário de sua esposa faz referência a “uma data de matos com terras de lavoura, casa e paiol, cita no Rincão dos Mellos, avaliada por 1:500$000”, e a existência de “pomar e horta” junto à casa de moradia, a qual, ao que tudo indica, corresponde à morada do casal. Já no inventário do Cel. Serafim os únicos bens possivelmente ligados ao cultivo de alimentos são “quatro machados em meio uso” e “duas foices em meio 84

COSTA, 1991. PEREIRA, 2004. 86 GOMES, 1966. 85

50

uso”. Em seu trabalho de Mestrado Luís Augusto Farinatti atentou para a ausência desse tipo de material nos inventários de donos de estâncias apenas de campos na região de Santa Maria, dentre os quais 82% não apresentam qualquer instrumento agrícola entre seus bens. O autor atribui essa ausência ao fato de que nesse tipo de estância dedicavam-se preferencialmente à pecuária, sendo a produção agrícola destinada somente ao consumo interno, o que gerava a dependência de produtos cultivados por donos de unidades produtivas mistas e, principalmente, por lavradores nacionais. Os demais proprietários de apenas áreas de campos que apresentavam em

seus

inventários

instrumentos

como

enxadas,

machados,

foices

e,

eventualmente, arados, possivelmente praticavam agricultura de alimentos em zonas florestais internas à propriedade 87 . Mesmo que referentes a terras localizadas no Planalto Médio, os inventários de Carolina e Serafim Corrêa de Barros confirmam esse apontamento de Farinatti.

87

FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Sobre as Cinzas da Mata Virgem – os lavradores nacionais na Província do Rio Grande do Sul (Santa Maria: 1845 – 1880). Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PUCRS, 1999, p. 69.

51

Tabela 1 – Animais arrolados no inventário de Carolina Corrêa de Barros (1884) Número de animais

%

Valor (em mil réis)

%

reses de criar novilhos bois mansos cavalos mansos potros éguas de criar mulas de marca para cima mulas mansas burros echores ovelhas

1245

47,56%

12450

51,61%

258

9,85%

5160

21,39%

54

2,06%

1290

5,35%

88

3,36%

1232

5,11%

106

4,05%

1060

4,39%

626

23,91%

1252

5,19%

76

2,90%

1140

4,73%

3

0,11%

75

0,31%

12

0,46%

240

0,99%

150

5,73%

225

0,93%

Total

2618

100%

24124

100%

Fonte: Inventário de Carolina Corrêa de Barros – Cartório do Cível, município de Júlio de Castilhos – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo número 40. Maço 01. Estante 132. Ano: 1884.

52

Tabela 2 – Animais arrolados no inventário de Serafim Corrêa de Barros (1886)

cavalo baio reses de criar chucras reses de criar mansas bois mansos cavalos tubianos ditos regulares ditos inferiores potros regulares burros regulares éguas regulares bestas de 1 a 2 anos ditas mansas superiores dita inferior ovelhas regulares porcos capões burros regulares potrilho de raça Total

Número de animais

%

Valor (em mil réis)

%

1

0,14%

100

1,70%

166

22,93%

1660

28,27%

151

20,86%

1812

30,86%

13

1,80%

286

4,87%

10

1,38%

200

3,41%

11

1,52%

220

3,75%

22

3,04%

130

2,21%

14

1,93%

160

2,73%

6

0,83%

150

2,55%

162

22,38%

324

5,52%

39

5,39%

465

7,92%

2

0,28%

64

1,09%

1

0,14%

25

0,43%

112

15,47%

198

3,37%

7

0,97%

35

0,60%

6

0,83%

12

0,20%

1 724

0,14% 100%

30 5871

0,51% 100%

Fonte: Inventário de Serafim Corrêa de Barros – Cartório Provedoria, município de Júlio de Castilhos – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Autos número 19. Maço 01. Estante 133. Ano: 1886.

2,06%

3,36%

4,05%

2,90%

9,85%

23,91%

0% 1% 2% 3% 4% 5% 6% 7% 8% 9% 10% 11% 12% 13% 14% 15% 16% 17% 18% 19% 20% 21% 22% 23% 24% 25% 26% 27% 28% 29% 30% 31% 32%

0,11%

0,46%

5,73%

Fonte: Inventário de Carolina Corrêa de Barros – Cartório do Cível, município de Júlio de Castilhos – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo número 40. Maço 01. Estante 132. Ano: 1884.

rezes de criar

novilhos

bois mansos

cavalos mansos

potros

éguas de criar

mulas de marca para cima

mulas mansas

burros echores

ovelhas

Gráfico 1: Animais arrolados no inventário de Carolina Corrêa de Barros (1884) - %

53

0,14%

0%

1%

2%

3%

4%

3,04%

5%

6%

5,39%

7%

8%

20,86% 22,93%

22,38%

9% 10% 11% 12% 13% 14% 15% 16% 17% 18% 19% 20% 21% 22% 23% 24% 25%

15,47%

Fonte: Inventário de Serafim Corrêa de Barros – Cartório Provedoria, município de Júlio de Castilhos – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Autos número 19. Maço 01. Estante 133. Ano: 1886.

cavalo baio

reses de criar chucras

reses de criar mansas

1,80%

1,38%

cavalos tubianos

bois mansos

1,52%

1,93%

ditos regulares

ditos inferiores

potros regulares

burros regulares

éguas regulares 0,83%

0,28%

bestas de 1 a 2 anos

0,14%

dita inferior

0,97%

0,83%

0,14%

ditas mansas superiores

ovelhas regulares

porcos capões

burros regulares

potrilho de raça

Gráfico 2: Animais arrolados no inventário de Serafim Corrêa de Barros (1886) - %

54

55

Analisando os dados compilados por Paulo Zarth a respeito da pecuária no Planalto rio-grandense 88 verifica-se que o perfil do plantel de animais de Serafim Corrêa de Barros (gráfico 3) correspondia ao verificado na região no mesmo período. O gado muar, embora não representasse o maior número na estância, era o mais valorizado, seguido do gado bovino (gráficos 4, 5 e 6), que adquiriu maior importância a partir de fins do século XIX.

88

Perfil elaborado por Paulo Zarth a partir de inventários post-mortem pesquisados nos municípios de Cruz Alta, Passo Fundo e Palmeira das Missões. ZARTH, Paulo. História Agrária do Planalto Gaúcho, 1850-1920. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 1997, p. 108.

56

Gráfico 3 – Perfil do plantel de animais da propriedade de Serafim Corrêa de Barros (%) 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0%

suíno ovino muar cavalar bovino

1884

1886

Fontes: Inventário de Carolina Corrêa de Barros – Cartório do Cível, município de Júlio de Castilhos – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo número 40. Maço 01. Estante 132. Ano: 1884; Inventário de Serafim Corrêa de Barros – Cartório Provedoria, município de Júlio de Castilhos – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Autos número 19. Maço 01. Estante 133. Ano: 1886.

Gráfico 4 – Valor total do plantel de animais da propriedade de Serafim Corrêa de Barros (em mil réis)

20000 18000 16000 14000 12000 10000 8000 6000 4000 2000 0

bovino cavalar muar ovino suíno

1884

1886

Fontes: Inventário de Carolina Corrêa de Barros – Cartório do Cível, município de Júlio de Castilhos – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo número 40. Maço 01. Estante 132. Ano: 1884; Inventário de Serafim Corrêa de Barros – Cartório Provedoria, município de Júlio de Castilhos – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Autos número 19. Maço 01. Estante 133. Ano: 1886.

57

Gráfico 5 – Valor individual dos animais arrolados no inventário de Carolina Corrêa de Barros (em mil réis)

25

mula mansa boi manso

20 novilho burro echore 15 mula de marca para cima cavalo manso 10 potro rês de criar

5

égua de criar ovelha

0 Valor

Fonte: Inventário de Carolina Corrêa de Barros – Cartório do Cível, município de Júlio de Castilhos – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo número 40. Maço 01. Estante 132. Ano: 1884.

58

Gráfico 6 – Valor individual dos animais arrolados no inventário de Carolina Corrêa de Barros (em mil réis)

35 besta mansa superior boi manso

30 25

rês de criar mansa besta de 1 a 2 anos potro regular

20 15

rês de criar chucra égua regular

10 5

ovelha regular

0 Valor

Fonte: Inventário de Serafim Corrêa de Barros – Cartório Provedoria, município de Júlio de Castilhos – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Autos número 19. Maço 01. Estante 133. Ano: 1886.

59

A proximidade entre as datas dos inventários (1884 e 1886) não permite que se trace um panorama das modificações na atividade econômica da Vista Alegre ao longo do tempo, mas as informações obtidas a partir dos mesmos são suficientes para atender aos objetivos da presente pesquisa. A comprovação da dimensão da atividade

pecuária

desenvolvida

na

Vista

Alegre

possibilita

uma

melhor

compreensão de sua dinâmica e também da estrutura social que compunha o seu dia-a-dia. Cabe agora traçar um panorama sobre os grupos sociais que, por não serem proprietários de terras, tinham sua vida atrelada à elite rural na região em análise. O entendimento do contexto histórico da formação da Vista Alegre passa, desse modo, por uma reflexão sobre a situação em que se encontravam os escravos e os peões no Noroeste do Rio Grande do Sul no século XIX.

1.3 Os escravos na Vista Alegre e a escravidão nas estâncias do Noroeste do Rio Grande do Sul

Em 1820, cerca de quinze anos antes da formação da Vista Alegre, SaintHilaire registrava, para a Capitania de São Pedro, as seguintes informações:

Segundo dados que me foram fornecidos pelo senhor José Feliciano Fernandes Pinheiro, que é inspetor da alfândega e se ocupa atualmente com a publicação de uma História da Capitania, sua população se eleva a 32.000 brancos, 5.399 homens de cor livres, 20.611 homens de cor escravizados, e 8.655 índios. Nas Missões, em particular, contam-se 6.395 índios e 824 brancos. Tudo isso coincide com o que têm me informado outras pessoas 89 .

89

SAINT-HILAIRE, 2002, p. 51.

60

Embora haja consenso na historiografia contemporânea de que a mão-deobra escrava estava presente nas estâncias pecuaristas do Rio Grande do Sul, os dados existentes não fornecem muitos detalhes a esse respeito. Em 1982 Margaret Bakos já constatava a falta de fontes estatísticas, atribuindo essa carência, em grande medida, ao desinteresse dos órgãos governamentais oitocentistas no sentido de coletar e organizar dados, ao que se soma o cumprimento, no Rio Grande do Sul, da Portaria de 29 de junho de 1891, que determinava a queima de papéis, livros e matrículas relativos à escravidão 90 . Dentre os trabalhos que tratam da escravidão no Rio Grande do Sul uma atenção especial é dedicada para a região das charqueadas, onde a concentração de escravos era maior. A obra O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese do escravismo gaúcho, do historiador Mario Maestri, é um exemplo dessa produção. Mesmo que concernente à escravidão na zona das charqueadas, o estudo de Maestri dá informações mais amplas sobre o trabalho cativo no Rio Grande. Segundo o autor,

quem se volta para os documentos, encontra o traço do ‘negro’ já nos primeiros anos; quem se detém nos quartéis, na atividade econômica específica, nas ‘vacarias’, encontra o homem livre, seja o lusitano, o mestiço ou o indígena aculturado 91 .

Maestri afirma que o escravo foi introduzido no Rio Grande do Sul juntamente com os primeiros lusitanos, e que, inicialmente, não se constituiu em mão-de-obra largamente utilizada, uma vez que, segundo o autor, “o comércio e o contrabando no Prata, a caça ao couro ou o comércio com os animais, baseavam-se,

90 91

BAKOS, Margaret M. RS: escravismo e abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982, p. 17. MAESTRI, 1984, p. 35.

61

fundamentalmente, no trabalho livre (secundado, em algum grau, pelo trabalho africano ou indígena)” 92 . De acordo com Maestri, o trabalho escravo nas estâncias não chegou a constituir um Modo de Produção Escravista. Nessas propriedades, os escravos foram utilizados em menor ou maior número de acordo com a época e a região 93 . Com relação a esse aspecto, pode-se dizer que a escravidão configura-se em uma instituição jurídica que não determina, necessariamente, a existência de um Modo de Produção Escravista. Considerando-se que os modos de produção podem, na prática, não ocorrer de forma pura, como na teoria tão facilmente se delineiam, é preciso aceitar a possibilidade de coexistência de traços tanto capitalistas quanto escravistas na sociedade em questão. Também é preciso considerar que os modos de produção, se considerados como unidades de análise, não são homogêneos nas sociedades em que ocorrem, possuindo características diversas conforme a região em que se estruturam e as pessoas que os fazem desenvolver. À época da fundação da estância Vista Alegre o Rio Grande do Sul contava com uma população de 2.944.204 brancos, 220.659 pretos, 843 amarelos e 153.376 pardos 94 . Mesmo que os dados apontem para o número de pessoas que trabalhavam na condição de escravos na então Província, não se tem uma precisão quanto à função que os cativos desempenhavam, pois nem as informações estatísticas, nem os inventários post-mortem, importantes fontes de pesquisa da história do período, apresentam informações seguras nesse sentido 95 .

92

MAESTRI, 1984, p. 35. MAESTRI, 1984, p. 52. 94 RAMOS, Artur. Introdução à Antropologia Brasileira. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil. v. I, 1943; II, 1947, citado por CÉSAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul: período colonial. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2002, p. 33. 95 ZARTH, 2002, p. 115. 93

62

Aristides de Moraes Gomes, ao fazer um apanhado dos afazeres dos peões nas propriedades pecuaristas serranas (Planalto Médio do Rio Grande do Sul), afirma que, “primitivamente, a maioria dos trabalhadores das estâncias eram negros cativos” 96 . Com relação ao trabalho desenvolvido por esse grupo social, Gomes diz: Os serviços braçais, como construções de taipas de pedras, aberturas de valas, feitio de cêrcas de madeira ou taquarussú, cortes de madeira, serviços de lavoura, de olaria, atafona e lidas caseiras, eram executados pelos cativos, guiados por um prático empreiteiro. Nas lidas campeiras, havia índios campeiraços, mas a maioria eram negros e muitos tornaram-se extraordinários campeiros, domadores, laçadores e pealadores 97 .

Em História do Rio Grande do Sul, Danilo Lazzaroto também se refere à diversidade de tarefas que cabiam aos escravos, os quais estavam presentes em toda a vida na estância: “o negro se tornou artífice de quase tudo” 98 . Essa estreita vinculação do trabalho escravo às lides campeiras não está presente na análise de Maestri, para quem os escravos negros seriam empregados mais nas atividades agrícolas ou domésticas do que na pecuária 99 . Sandra Pesavento afirma que os escravos negros não constituíram a mão-de-obra fundamental das estâncias. Segundo a autora, a atividade de criação não foi capaz de propiciar uma acumulação que permitisse a introdução regular de negros nessas propriedades 100 . Entretanto, em um estudo mais recente sobre a escravidão em meio às estâncias, com especial atenção ao município de Alegrete, região da Campanha, entre 1831 e 1850, Luís Augusto Farinatti aponta para uma presença significativa de escravos homens. Segundo o autor, esse dado decorre não somente do

96

GOMES, 1966, p. 247. GOMES, 1966, p. 247. 98 LAZZAROTO, Danilo. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Sulina, 1982, p. 83. 99 MAESTRI, 1984, p. 50. 100 PESAVENTO, 1990, p. 15. 97

63

aproveitamento da mão-de-obra cativa em ofícios como carpinteiro, pedreiro e roceiro, mas, principalmente, de sua presença em atividades campeiras, como o costeio do gado 101 . Mais uma vez, a imprecisão das fontes quanto à atividade desempenhada pelos escravos impossibilita uma afirmação categórica quanto a sua função nas estâncias. Contudo, é válida a observação de Farinatti quanto a essa ausência de designação: é possível que o mesmo escravo desempenhasse diversas funções, não tendo uma posição fixa na estância. A partir da análise de inventários post mortem em Alegrete, o autor demonstra que a designação da ocupação do escravo estava presente entre os estancieiros mais afortunados, diminuindo a precisão das especificações na medida em que diminuía o poder aquisitivo do inventariado. Transferindo a atenção para a região em que a estância Vista Alegre está inserida, é possível obter informações bastante relevantes sobre a escravidão nessa área através de uma análise dos dados fornecidos pelo recenseamento geral do Brasil de 1872. Realizado quatro anos antes da emancipação de São Martinho, o recenseamento fornece um panorama de sua população, que na época constituía o Nono Distrito de Cruz Alta. De acordo com o referido recenseamento, a Parochia de São Martinho contava com 6.767 habitantes em 1872. Destes, 804 eram escravos. O levantamento também classifica a população de acordo com a profissão, evidenciando que dentre as 1.540 pessoas que exerciam a profissão de lavrador, 291 eram escravas. A população de criadores correspondia a 153, dos quais

101

FARINATTI, Luís Augusto. “Escravos do Pastoreio. Pecuária e escravidão na fronteira meridional do Brasil (Alegrete, 1831-1850)”, in Ciência & Ambiente. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria. UFSM. N. 33 (jul./dez. 2006), p. 142-43.

64

somente 13 eram mulheres (casadas). Como era de se presumir, não há menção a criadores escravos. Não há no censo referência às profissões ligadas à pecuária (peões campeiros, laçadores, domadores, pealadores, etc.), mas há um número significativo de escravos “sem profissão”: 121. Se seguirmos a lógica proposta por Farinatti, podemos inferir que os escravos talvez não possuíssem uma atividade fixa, podendo estar também sendo aproveitados na pecuária. Um dado que colabora para essa interpretação é que, no recenseamento, dentre as profissões possíveis de serem seguidas por escravos, somente uma – a de lavrador 102 – é explicitamente ligada ao meio rural, denominada inclusive de “profissão agrícola”, ao lado da atividade de “criador”, da qual, como já mencionado, os escravos não participavam. Afirmar categoricamente que os escravos lavradores e os sem profissão também trabalhavam com o gado é arriscado, mas deve ser uma hipótese a considerar. Dos 431 escravos homens, 15 eram operários em madeiras, 8 eram operários de edificações, 48 eram criados ou jornaleiros, 46 exerciam serviços domésticos, 259 eram lavradores e 55 foram listados como “sem profissão” 103 . Considerando que as crianças até 10 anos (incluindo essa idade) somavam 165, pode-se inferir que elas provavelmente não eram recenseadas quanto à profissão. Com relação à Vista Alegre, o inventário de Carolina Corrêa de Barros, de 1884, registra a presença de 14 escravos, dentre os quais 6 foram listados novamente alguns anos após, no inventário de seu esposo, o Cel. Serafim Corrêa de Barros. Somente neste último há o registro das profissões desempenhadas pelos

102

De acordo com Zarth (2002, p. 172), a palavra lavrador “é empregada, basicamente, para designar o que a literatura especializada chama de camponês”. 103 Transferindo essa análise para a Província como um todo, dos 35.686 escravos homens recenseados em 1872, 14,35% foram listados como “sem profissão”.

65

escravos, ainda assim incompleto, uma vez que designa a atividade de três cativos, apenas: José, campeiro; Delphina, cozinheira; e Laurentina, costureira. De acordo com o “Valor dado pela tabela” (ver anexo M), José estava avaliado, em 1887, em 900$000, enquanto que Delphina e Laurentina estavam avaliadas, individualmente, em 675$000, o que demonstra a valorização da atividade ligada à pecuária 104 . Mais adiante no inventário, quando são listados e avaliados todos os bens arrolados, entre móveis, semoventes e de raiz, os mesmos três cativos aparecem novamente, mas agora avaliados em 400$000 (José) e 300$000 (Delphina e Laurentina). Comparando esses dados com os apontados aos mesmos escravos no inventário de Carolina Corrêa de Barros, percebe-se uma queda de valores, como mostra o quadro a seguir.

104

Sobre a valorização dos escravos campeiros ver Zarth, 1997, p. 156-60.

66

Quadro 1 – Relação dos escravos arrolados nos inventários de Carolina e Serafim Corrêa de Barros

Nome

Inventário de Carolina

Inventário de Serafim

(1884)

(1886-92)

Cor

Idade

Avaliado em

Idade

Avaliado em

José

preta

19

450$000

22 (1887)

400$000

Delphina

preta

26

400$000

29 (1887)

300$000

Laurentina

preta

20

350$000

23 (1887)

300$000

João (doente)

parda

17

100$000

19 (1886)

Não consta

Maria

preta

42

200$000

44 (1886)

Não consta

Victorino

preta

24

450$000

26 (1886)

Não consta

Laurentino

pardo

44

200$000

Gaspar

preta

40

200$000

Marcelo

parda

28

450$000

Libanio

preta

22

450$000

Manoel

parda

15

300$000

Paulina

preta

17

250$000

Luciana

preta

31

200$000

Catharina

parda

15

300$000

Fontes: Inventário de Carolina Corrêa de Barros – Cartório do Cível, município de Júlio de Castilhos– Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo número 40. Maço 01. Estante 132. Ano: 1884. Inventário de Serafim Corrêa de Barros – Cartório Provedoria, município de Júlio de Castilhos – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Autos número 19. Maço 01. Estante 133. Ano: 1886.

67

A historiografia gaúcha por vezes associou o trabalho do negro escravizado nas estâncias à esfera doméstica. Entretanto, o censo de 1872 aponta que somente 46 escravos homens (dentre 431) desenvolviam esse tipo de atividade em São Martinho, contra uma população de 250 mulheres, o que demonstra que o trabalho doméstico era basicamente feminino, e que os homens cativos exerciam majoritariamente outra atividade. No inventário do Cel. Serafim, como já demonstrado, há a referência ao trabalho de cozinheira e de costureira, ambos desempenhados por mulheres. A título de comparação cita-se a única escrava arrolada no inventário de Anna Maria de Jesus, mãe de Serafim Corrêa de Barros, datado de 1874. Trata-se de Amância, menina de 12 anos de idade, costureira, avaliada em 500$000 réis. O valor superior de Amância pode ser devido ao ano de realização do inventário de Anna, período em que as campanhas abolicionistas estavam apenas iniciando na região de Cruz Alta. Em São Martinho, em meio à população brasileira livre que exercia a atividade de lavrador em 1872, 911 eram homens e 312 eram mulheres. Dentre os 26

estrangeiros

lavradores

livres

havia

20

homens

e

6

mulheres.

Se

desconsiderarmos a totalidade da categoria “sem profissão”, engrossada pelo elevado número de homens solteiros e de mulheres também solteiras, bem como de escravos e escravas, a grande maioria dos homens desempenhava profissão “agrícola”. Como o homem era comumente o chefe da família, pode-se inferir que a sociedade de São Martinho era essencialmente rural, dado bastante natural para a época e a região em questão.

68

Voltando ao contexto regional, segundo Margaret Bakos 105 , em 1859 Cruz Alta contava com uma população escrava de 4.019 negros, passando, em 1884, para 1.377 escravos, em 1885 para 206 e contando, em 1887, com 131 escravos. Esse decréscimo da população cativa em Cruz Alta acompanha a tendência verificada no restante do Rio Grande do Sul: a partir de 1874, quando o número absoluto de cativos chegou ao seu ápice (98.450), a percentagem de escravos sofreu um decréscimo contínuo na medida em que a população livre aumentava 106 . Em 1887, menos de 1% da população total da Província era composta por escravos, dado que, em 1874, correspondia a 21% 107 , o que colocava o Rio Grande, na época, em 3º lugar no país em número de escravos, atrás somente do Rio de Janeiro e do Espírito Santo 108 . Paulo Zarth 109 também apresenta dados bastante significativos referentes à escravidão no Rio Grande do Sul. Particularmente com relação a Cruz Alta o autor, baseado em fontes primárias, aponta o município como ocupando, em 1859, a quinta posição em número de escravos na Província, confirmando o número apresentado por Bakos para este ano, de 4019 cativos (15,17% dos habitantes). Por ser uma região que não se ocupava do charque, esse número pode ser considerado expressivo – segundo Zarth 110 , a média nacional em 1864 era de 15%. Tendo por base inventários post-mortem, o autor demonstra que, entre 1851 e 1881, dentre 95 inventários de proprietários rurais de Cruz Alta, 34 possuíam escravos (em um total de 168), o que equivalia a 35,7% das propriedades. Especificamente com

105

BAKOS, 1982, p. 22-23. BERND, Zilá; BAKOS, Margaret. O Negro: consciência e trabalho. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1998, p. 70. 107 BERND e BAKOS, 1998, p. 70. 108 ZARTH, 2002, com base no Relatório e Trabalhos Estatísticos da Diretoria Geral de Estatística (Relatório do Ministério da Agricultura, 1883). 109 ZARTH, 2002. 110 ZARTH, 2002, p. 122. 106

69

relação ao município de São Martinho, Margareth Bakos aponta que o mesmo contava, em 1884, com 741 escravos, número que se viu reduzido a 403 em 1885 e a 157 em 1887 111 . Margareth Bakos explica que essa redução verificada em todo o Rio Grande do Sul pode estar relacionada com o movimento libertário de 1884, uma contrapartida dos proprietários de escravos rurais perante a lei que criara, um ano antes, o imposto de 4$000 sobre todos os escravos não sujeitos à taxa geral. Quando elevado para 12$000, o imposto acabou fazendo com que muitos senhores libertassem seus escravos, os mantendo vinculados ainda por alguns anos mediante contrato de prestação de serviços 112 . É interessante notar que nos inventários de Anna Maria de Jesus, Carolina e Serafim Corrêa de Barros não há menção a esse tipo de relação de trabalho. Outro fator que corroborou para a diminuição do número de escravos na Província foi o desenvolvimento do processo de consolidação do capitalismo no campo, em meio ao qual a mão-de-obra imigrante tornava-se mais presente. Quanto a esse aspecto, Helen Ortiz ressalta que a imigração colonial-camponesa européia para o Rio Grande do Sul não visava à substituição dos trabalhadores escravizados, como ocorrera no Sudeste do Brasil a partir de 1850: O sul do Brasil conta com uma história singular a esse respeito. Em 1888, a falta de braços decorrente da abolição da escravatura foi resolvida pela contratação de trabalhadores livres e despossuídos, ex-cativos, descendentes de libertos, livres pobres e caboclos relativamente abundantes na província 113 .

É válido ressaltar, entretanto, que a contratação de trabalhadores vinha ocorrendo desde antes da Lei Áurea, como exposto anteriormente, quando muitos 111

BAKOS, 1982, p. 23. BAKOS, 1982, p. 20-21. 113 ORTIZ, 2006, p. 65. 112

70

donos de escravos se viram obrigados a liberar seus cativos da escravidão e atrelálos de outra forma – através da contratação – para fugir do pagamento de impostos. Os ex-escravos continuaram a participar da economia pastoril. Entretanto, enquanto esta se modificava, a condição dos negros, agora libertos, permanecia a mesma: eles ainda eram considerados subalternos. Paralela à escravidão estava a atividade desenvolvida pelos peões, trabalhadores que se dedicavam às lides campeiras. A ausência de sua figura no quadro das profissões levantadas no recenseamento de 1872 chama atenção. Entretanto, sabe-se que a peonada estava presente nas estâncias rio-grandenses, sendo representada por trabalhadores livres ou escravos, mas mais comumente designando os primeiros. Talvez essa categoria profissional estivesse sob o signo do lavrador, na medida em que o trabalho agropastoril era sazonal. Um melhor entendimento desse grupo também é necessário para a compreensão da composição social estancieira do Planalto gaúcho no século XIX. Entender o papel do peão na estância é compreender um pouco mais da gente da Vista Alegre.

1.4 Os peões nas estâncias do Noroeste do Rio Grande do Sul.

Essa indiada resoluta não agüentava carona dura, nascera livre e vivia dona de sua pessoa. [...] Essa gente, criada no rigor e no sacrifício, era dum valor inexcedível, não receavam nada, não sentiam cansaço nem fome; não exigiam calçados ou conduções, eram os afamados “pés no chão”, com uma carabina à tira-colo e o facão na mão 114 .

114

GOMES, 1966, p. 249-50.

71

Assim Aristides Gomes define os peões das estâncias serranas, na região de Cruz Alta. A condição errante e pobre da peonada é consenso na historiografia riograndense. Fruto de uma geração que viveu um processo de contato interétnico impactante, os peões faziam parte de um grupo social teoricamente livre, e concretamente marginalizado. Os trabalhadores do campo não proprietários e não escravizados estavam presentes em todo o Brasil, com pequenas diferenças de função. No Rio Grande do Sul, eles formam uma mão-de-obra mais significativa principalmente a partir da decadência das Missões, passando a constituir um grupo social que tinha em comum o passado indígena, no todo ou em parte, e a carência da posse formal da terra. Nas estâncias, os indivíduos que se dedicaram ao trabalho no campo, sob as ordens do estancieiro, receberam a denominação de peões, palavra associada, no Sul, ao trabalhador campeiro, ligado à pecuária. Sandra Pesavento 115 afirma que os peões, elementos subalternos oriundos do antigo bando armado que tropeava gado ou de grupos indígenas egressos das missões, constituíam-se em mão-de-obra fundamental nas estâncias de gado onde praticava-se a criação extensiva do rebanho. Em História Agrária do Planalto Gaúcho, 1850-1920, Paulo Zarth assim situa a origem dos peões do Planalto Médio rio-grandense: os primeiros peões campeiros do planalto procediam dos campos da fronteira sudoeste do Rio Grande de onde vinham acompanhando tropas de gado rumo a São Paulo, ou fugindo por motivos particulares, ou mesmo fugindo das guerras civis e externas que atingiam com mais intensidade aquela região: a guerra do Uruguai na década de 1820; a guerra dos farrapos; a guerra contra Rosas, em 1851 116 .

115 116

PESAVENTO, 1990. ZARTH, 1997, p. 168.

72

Quanto às atividades desenvolvidas pelos peões nos estabelecimentos pastoris, Zarth demonstra a relação entre o tipo de trabalho e a recompensa pelo mesmo: Os peões de estância formavam um grupo que se dividia em diversas categorias, em função do tipo de trabalho. Da sua especialidade vinha o seu lugar na escala de remuneração e prestígio. Grosso modo, eram importantes os capatazes, que dirigiam o estabelecimento dos proprietários ausentes, e os peões campeiros que, de um modo geral, eram solteiros e habilidosos nas atividades campeiras (laçar, domar, organizar rodeios) 117 .

Zarth elenca ainda os peões roceiros, que trabalhavam na produção de alimentos na roça da estância, e os peões posteiros, funcionários encarregados de controlar pontos estratégicos (os postos) nas grandes estâncias de grande porte 118 . Dentre os remanescentes arquitetônicos da estância Vista Alegre a construção que indica a presença dos peões é o galpão. Se moradores da sede, os peões comumente habitavam os galpões, não a senzala nem a casa do estancieiro. Como não há vestígios arquitetônicos de habitações de trabalhadores remunerados livres dentro dos campos da atual Vista Alegre, e considerando que é a partir dos remanescentes das edificações que compunham esta propriedade que se pretende chegar à compreensão da sociedade do período, justifica-se o fato de a presente pesquisa se ater aos peões relacionados à casa-sede 119 . Os peões campeiros eram geralmente solteiros, e constituíam uma mão-deobra de bastante mobilidade, uma vez que era comum que migrassem de propriedade em propriedade, sendo contratados pelo estancieiro mediante salário fixo. Segundo Aristides de Moraes Gomes, em fins do século XIX o peão da estância

117

ZARTH, 2002, p. 179. ZARTH, 2002, p. 180. 119 Desse modo, justifica-se o fato de os trabalhadores livres que exerciam atividades ou moravam em áreas mais distantes do complexo arquitetônico nuclear da estância Vista Alegre não constituírem o foco principal deste item. 118

73

ganhava 10$000 por mês, enquanto que o tropeiro “nos seus cavalos” 5$000 por dia e o domador 5$000 por potro 120 . Em seus registros, Saint-Hilaire aponta o perfil errante do trabalhador campeiro em um trecho referente à região de Santa Maria:

Em quase todas as estâncias dos arredores de Santa Maria, há índios desertados das vilas. Os homens se empregam como peões, trazendo consigo toda a família. Queixam-se geralmente os patrões da inconstância e do pouco apego desses homens. Dizem, também, que, quando se lhes paga adiantadamente, vão-se embora, não aparecendo mais 121 .

Essa passagem ilustra bem a idéia que vai aos poucos sendo construída, no Rio Grande oitocentista, do caráter errante do povo gaúcho, mais uma característica cultural que o discurso da elite rural tentou transformar a fim de propagar sua valentia e ideal de liberdade. A construção desse discurso passa, também, pela participação dos peões nas lutas de seus patrões. Como afirma Teófilo Torronteguy, os grandes proprietários passaram a ser chefes de tropas na Guarda Nacional, oficiais vitalícios; enquanto que os peões, changadores, posteiros, índios vagos e escravos, enfim, aqueles demais não-proprietários foram soldados vitalícios. Serviram ao proprietário, na guerra, como peõessoldados; na paz, como mão-de-obra nas estâncias e nas charqueadas e receberam em troca dos serviços o suficiente para a reprodução da força de trabalho. Tanto os escravos quanto os trabalhadores livres não poderiam optar por prestarem ou não aqueles serviços militares. Pode-se dizer que esses serviços foram praticamente compulsórios 122 .

A participação dos peões nas guerras que não eram suas contribuiu para a formação de um discurso que os enaltecia em palavras, mas que nada tinha a

120

GOMES, 1966, p. 156. Para fins de comparação cabe demonstrar que no mesmo período, segundo o mesmo autor, o gado estava pouco valorizado: 50$000, no máximo, para o boi gordo, e 30$000 o cavalo, ainda assim o dobro do preço em que os animais de Serafim Corrêa de Barros foram avaliados. 121 SAINT-HILAIRE, 2002, p. 338. 122 TORRONTEGUY, 1994, p. 57.

74

contribuir com a sua condição social. Os peões continuaram sendo subalternos e não proprietários, mesmo que “livres” e “donos de si”.

75

2 A CULTURA MATERIAL: PARA INTERPRETAR A SOCIEDADE ESTANCIEIRA

As pesquisas envolvendo a cultura material têm passado por um significativo incremento, marcadamente nas últimas duas décadas, quando pesquisadores de diferentes áreas produziram diversos estudos relativos à materialidade. Ao debruçarem-se

sobre

os

objetos,

sociólogos,

arqueólogos,

historiadores,

antropólogos, etnólogos, geógrafos, designers, entre outros, acabaram por construir uma disciplina que por meio da heterogeneidade de seu enfoque preserva sua unidade. Longe de fornecer um modelo de metodologia a ser seguido, os estudos relativos à cultura material têm apresentado uma variada gama de possibilidades na intenção de buscar o entendimento das formas materiais e dos indivíduos que com elas de algum modo se relacionam. Essa pluralidade de aproximações levou à construção de teorias também plurais para interpretar o ser humano e as coisas. As diferentes abordagens teóricometodológicas relativas ao estudo da cultura material somam-se sem se sobrepor umas às outras, funcionando mais como um sistema de idéias complementares do que como uma série de concepções antagônicas. Essa diversidade faz dessa área um campo disciplinar aberto e em construção, o que, em vez de tornar os estudos relativos à cultura material menos científicos, estimula a elaboração de novas interpretações e reflexões acerca das coisas e das pessoas. Essa amplitude revelase, inicialmente, no significado dado à expressão cultura material e ao conceito de materialidade, heterogêneo e até mesmo ambíguo.

76

Os estudos contemporâneos referentes à cultura material são pautados comumente por duas dimensões: ou têm como ponto de partida de sua análise determinadas qualidades das coisas ou, alternativamente, partem do próprio ser humano, individualmente ou em sociedade 123 . Enquanto que a primeira abordagem ocupa-se das qualidades dos objetos enquanto, por exemplo, estáticos ou móveis, raros ou comuns, locais ou exóticos, novos ou velhos, etc., a segunda se preocupa com a relação entre sujeito e objeto, considerando que os seres humanos e as coisas

se

influenciam

mutuamente.

Nesse

sentido,

não

se

pode

definir

abstratamente onde “começa” ou “termina” uma coisa ou um objeto, uma pessoa, a cultura e a cultura material. A definição desses conceitos depende diretamente do contexto de análise e pesquisa. Lançado em 2006, o Handbook of Material Culture é um referencial teóricometodológico que busca traçar o panorama das pesquisas sobre a cultura material que estão sendo desenvolvidas contemporaneamente. Sem a intenção de ser um modelo para conduzir novos estudos, o Handbook se caracteriza justamente por procurar garantir a amplitude de abordagens e o ecletismo presente nas pesquisas sobre a cultura material. Nesta obra diversos pesquisadores delineiam conceitos a respeito da materialidade de acordo com suas áreas de estudo. A partir desses conceitos são listadas dez concepções dadas às coisas, concepções estas que podem ser tidas como tradutoras, em um sentido geral, dos diversos entendimentos referentes à materialidade. Essas diversas compreensões englobam desde as coisas que existem independentemente de qualquer ação ou intervenção humana, como uma

123

TILLEY, C.; KEANE, W.; KÜCHLER, S.; ROWLANDS, M; SPYER, P. “Introduction” in TILLEY, C.; KEANE, W.; KÜCHLER, S.; ROWLANDS, M; SPYER, P. (eds.). Handbook of Material Culture. London: SAGE, 2006, p. 4.

77

montanha, um animal ou uma árvore, até as coisas criadas pelas pessoas – os artefatos – e suas características físicas, tecnológicas e de uso. Num sentido mais profundo, pode ser proposto, ainda, o entendimento das coisas enquanto parte e parcela da cultura e da sociedade humana. Dentro dessa concepção atenta-se para a forma como as coisas são utilizadas conscientemente pelas pessoas a fim de imprimir suas idéias, ou ainda, para o modo como inconscientemente as pessoas são afetadas pelas coisas, transferindo essa influência para seus hábitos e sua vida coletiva. Essa relação entre coisas e pessoas também está presente em explicações cosmológicas, em crenças, emoções e sistemas de valores, contribuindo para delinear identidades pessoais e grupais. Disso decorre, indo mais além, uma relação das coisas com a história e a tradição, com o delineamento de memórias individuais e coletivas, com a identificação com determinados lugares, paisagens, e também com conceitos relativos a essas paisagens e lugares, a movimentos ou permanências sociais. A interação entre pessoas e coisas tomada em um nível mais teórico leva também ao estudo da materialidade não só no âmbito dos objetos, separados dos indivíduos, mas também do corpo humano, em si mesmo uma forma material, dotada de mobilidade e de um aparato sensorial que lhe confere diferentes experiências do mundo físico ao seu redor, o qual, por sua vez, produz, estende e limita as capacidades corporais. Pelo exposto, é possível perceber como o conceito de materialidade é amplo. Quando ligado à cultura, esse conceito dá chance a estudos sobre diversas dimensões das coisas e também das pessoas, originando um campo de análise que gira em torno da expressão cultura material, também um conceito heterogêneo, dinâmico e eclético.

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Os estudos concernentes à cultura material não são fechados, mas as pesquisas já realizadas delineiam um quadro conceitual e temático que os coloca como sendo, de acordo com o Handbook of Material Culture, de três tipos: 1) aqueles que têm como objeto de estudo, dentro de um contexto específico, um domínio material particular, como a arquitetura, vestuário, alimentação, etc.; 2) aqueles que buscam ir além da especificidade, tecendo teorias mais gerais a respeito do significado e do poder das formas materiais e de sua capacidade de contribuir para a compreensão das relações sociais, debruçando-se sobre estudos de arte, paisagem, memória, tecnologia, troca e consumo, por exemplo, em estudos de caso ou considerando diversos contextos culturais; e 3) estudos mais holísticos que buscam analisar a diversidade dos domínios materiais (arquitetura, alimentação, tecnologia, paisagem, etc.) dentro do âmbito de pesquisas arqueológicas ou etnográficas mais específicas. Na presente pesquisa, em que a materialidade das coisas é tomada dentro de um amplo significado, tendo como principal foco a sua relação com os seres humanos, combina-se o estudo da estância Vista Alegre e do contexto histórico regional em que ela se insere a reflexões teóricas mais abrangentes. Nesse sentido são propostas, a seguir, duas abordagens acerca da cultura material em sua relação com a sociedade estancieira, tendo a terra e as formas arquitetônicas como o ponto de partida para tais reflexões.

79

2.1 A terra como cultura material: poder e status no contexto estancieiro

Da intrínseca e dinâmica relação entre as pessoas e a terra em meio ao contexto estancieiro oitocentista configurou-se no Noroeste do Rio Grande do Sul uma sociedade até hoje bastante ligada ao meio rural, direta ou indiretamente, através de laços econômicos, políticos, culturais e mesmo afetivos. Para apreender essa relação e o seu significado no processo de formação social a terra é aqui tomada como cultura material. No contexto estancieiro a posse legal da terra era, inicialmente, um referendo à condição de superioridade social, uma forma de legitimar um status adquirido por meio da guerra ou herdado por laços familiares. Com o fim das concessões de sesmarias por parte do governo imperial, o acesso a terra passou a se dar pela posse, em um primeiro momento, e, após a implementação da Lei de Terras, pela compra. Como exposto anteriormente no item 1.2, O contexto histórico da formação da Vista Alegre: a propriedade da terra e a formação das estâncias no Noroeste do Rio Grande do Sul, Serafim Corrêa de Barros teria estabelecido a estância Vista Alegre em terras de sua mãe, em um período marcado pelas posses livres. Quando do registro de suas terras, em 1854, consta que Serafim declarou ter adquirido parte de seus campos por meio de herança do sogro e parte através da compra. Na época em que o fundador da Vista Alegre estabelece sua estância (1843/44) a prática de concessão de terras já havia cessado, mas o prestígio atrelado a sua posse ainda vigorava. Terra, guerra e poder estavam estreitamente relacionados, condicionando um ao outro. No caso de Serafim Corrêa de Barros pode-se dizer que, se de um lado sua condição de proprietário de terras lhe conferia poder perante os demais elementos

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sociais que compunham o universo de sua estância, por outro sua participação em diversas batalhas a partir de meados do século XIX lhe conferiu prestígio junto à elite proprietária regional, da qual ele fazia parte. A ligação do fundador da estância Vista Alegre com a Guarda Nacional é um dos exemplos dessa relação entre os proprietários de terra e o poder. O estancieiro iniciou sua trajetória de lutas na Revolução Farroupilha, vestindo o lenço vermelho contra o Império. Mais tarde, forças antagônicas reconciliadas, Serafim seguiu servindo aos interesses do poder central, como relata Aristides de Moraes Gomes: Correu o tempo e nova luta envolve o Rio Grande, com as campanhas do estado Oriental, em lutas quer com êste, quer com as Províncias Unidas do Prata, contra Rosas, em 1852. O alferes Serafim não vacilou, empunhou suas armas, abraçou a espôsa resignada, acariciou os filhos, montou a cavalo e foi incorporar-se ao antigo comandante, o Gen. Portinho. Pelejaram com galhardia. Serafim ascende a tenente. Ao retornarem aos pagos, era êle agraciado com o pôsto de capitão. [...] O calendário vai andando com os dias alegres e tristes quando a pátria é invadida em São Borja e Uruguaiana, em 1865, pelos paraguáios de Lopez. O capitão Serafim, resoluto e destemeroso, reúne grande contingente de gaúchos bem montados e toca a juntar-se ao velho comandante e amigo, o Brigadeiro Portinho, que em São Bernardo organizava sua coluna, que incorporou-se à força que veio de Passo Fundo sob o comando do Cel. Antônio Mascarenhas Camelo Junior. Marcha a grande coluna para Uruguaiana com Portinho à frente, onde participa do assédio àquela Vila e após sua rendição, foram fazer a varredura de São Borja. Alí receberam o imperador D. Pedro II. De São Borja atravessaram o Uruguái em “Garruchos”, entrando em território da aliada Argentina. Em São Tomé ou São Tomás, foi dada a organização geral às fôrças brasileiras que operaram na República do Paraguái. O Cap. Serafim Corrêa de Barros, é nomeado Ten. Cel. Comandante do 1º. Corpo de Cavalaria da Guarda Nacional, compôsto de seis esquadrões, enquanto os demais corpos só o eram de três. Fica pertencendo à 5ª. Brigada de Cavalaria do comando do Cel. Antonio M. Camelo Junior, da 4ª. Divisão de Cavalaria do comando do Brigadeiro José Gomes Portinho, do 2º. Corpo do Exército do comando do Ten. Cel. Visconde de Porto Alegre (Marquês de Souza). O Ten. Cel. Serafim, na frente do 1º. Corpo, fazia a vanguarda das fôrças brasileiras, travando combate a 28 de setembro de 1865; desaloja os paraguáios no Passo do Juty, em Tebicuari, saindo-se galhardamente (citado por Tasso Fragoso em sua História do Paraguái).

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Serafim tomou parte em diversos combates, tendo sido ferido à lança, em entrevêro, quando o seu ordenança, o negro Nicolau, golpeou o paraguáio que o agredia; foi condecorado com a medalha do Mérito Militar. De regresso à Pátria, a 4 de março de 1870, é promovido a Coronel, em Comissão, e em junho do mesmo ano foram-lhe conferidas as honras de Coronel Honorário do Exército Nacional 124 .

No século XIX os proprietários de terras gaúchos, essencialmente criadores de gado ou donos de charqueadas, exerciam forte influência no cenário político local, regional e nacional, e de certa forma representavam o poder central junto a sua comunidade, mesmo que por diversos períodos da história tenha sido verificada uma disputa entre essas esferas. A influência desse grupo social estava ligada a sua condição econômica. Como afirma Fernando Henrique Cardoso em Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, as bases da economia senhorial prendiam-se fundamentalmente à economia do gado 125 . A contrapartida também era garantida: conforme afirma Torronteguy, “o governo e a câmara representavam os criadores, por isso a política da época era de dar suporte aos grandes estancieiros” 126 . A relação entre os proprietários de terras, a Guarda Nacional e o poder local, dessa forma, era bastante forte. Torronteguy com propriedade se refere ao preconceito em que estava envolta a sociedade estancieira, o qual, segundo o autor, atuava como o divisor de dois mundos: de um lado, o mundo dos proprietários, e, do outro, o dos não proprietários. Soma-se a isso a ascendência européia dos estancieiros, mais um motivo alegado para justificar a separação entre esses dois mundos a que Torronteguy se refere.

124

GOMES, 1966, p. 105-107. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 156. 126 TORRONTEGUY, 1994, p. 31. 125

82

Separação esta que, conforme o autor, perpetuou-se após o cercamento dos campos 127 . É fato, portanto, que a propriedade da terra conferia poder a quem a detivesse. A partir de concepções teóricas propostas por estudiosos da cultura material é possível traçar uma análise dessa relação entre a terra e o status por ela conferido. Mais do que reforçar explicações um tanto evidentes sobre as interações sociais, essas concepções dão chances a uma reflexão a respeito da relação entre a cultura material e conformação social. Dentro dessa idéia os conceitos de alienabilidade e inalienabilidade da cultura material constituem-se um ponto de partida para uma reflexão a respeito da sociedade estancieira a partir das relações entre a terra e as pessoas.

2.1.1 Alienabilidade e inalienabilidade da terra e a conformação social

Buscando compreender o quanto do indivíduo circula no mundo físico por meio da circulação ou detenção das formas materiais é que autores como Arjun Appadurai 128 , Igor Kopytoff 129 , Nicholas Thomas 130 e Janet Hoskins 131 atentaram para o estudo da alienabilidade da cultura material – a carga simbólica atribuída a uma dada materialidade determinaria seu caráter: alienável ou inalienável.

127

TORRONTEGUY, 1994, p. 122. APPADURAI, Arjun. “Introduction: commodities and the politics of values” in APPADURAI, A. (ed). The Social Life of Things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 1986, p. 3-63. 129 KOPYTOFF, Igor. “The Cultural Biography of Things: commodization as process” in APPADURAI, A. (ed). The Social Life of Things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 1986, p. 64-91. 130 THOMAS, Nicholas. Entangled Objects: exchange, material culture, and colonialism in the Pacific. Cambridge, Massachussetts, London: Harvard University Press, 1991. 131 HOSKINS, Janet. Biographical Objects. How things tell the stories of people’s lives. New York and London, Routledge, 1998. 128

83

Segundo Thomas 132 , os elementos da cultura material podem ser classificados dentro de duas categorias: os objetos inalienáveis – gifts, e os objetos alienáveis – commodities 133 . Na categoria de gifts podem ser relacionados os objetos nos quais se investe uma carga significativa forte e estreitamente relacionada ao indivíduo que os possui. Devido a essa significação que lhe é atribuída, o objeto, ao ser consumido (por exemplo, por meio de trocas, oferendas, homenagens) faz circular pessoas. Dito de outra forma, o valor de estimação conferido a um dado objeto faz com que sua circulação na sociedade, entre diferentes indivíduos, represente a circulação desses mesmos indivíduos. Quando um objeto é dado a outrem com o sentido de conferir a esta pessoa algum grau de distinção perante os demais, esse objeto é considerado inalienável, uma vez que, nesse momento, não lhe é atribuído valor de troca ou equivalência monetária. Janet Hoskins traz outra denominação para os objetos inalienáveis, embora o sentido dado por ela a essa categoria seja o mesmo dado por Thomas. A autora, baseada em Carrier, dá o nome de possessões (possession) às coisas que possuem uma relação bastante estreita com seu proprietário e que, por carregarem uma identidade pessoal, não são comercializadas 134 . Já na categoria de commodities podem ser relacionados, segundo Thomas, os objetos que possuem valor utilitário, que são destituídos de significados que remetam à personalidade de quem os intercambia 135 . Quando da circulação (consumo) desses objetos no meio social, o que circula é tão somente o objeto, sua materialidade, na medida em que ele não é entendido como a representação de

132

THOMAS, 1991, p. 13. Por considerar “presente” e “mercadoria” traduções que podem trazer algum prejuízo aos conceitos aqui trabalhados, optou-se por preservar os termos no original inglês. 134 HOSKINS, 1998. 135 THOMAS, 1991. 133

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algum indivíduo. Por sua impessoalidade, e por ser tratado como mercadoria, esse tipo de objeto (commodity) possui caráter essencialmente alienável. Appadurai 136 dá um sentido diferente aos objetos alienáveis. O autor argumenta que a alienabilidade não destitui as coisas de vida social, na medida em que a própria atribuição de valor de troca é uma característica conferida ao objeto, o que o torna mediador de relações sociais. A definição dada por Igor Kopytoff pode ser considerada complementar ao sentido dado por Appadurai aos objetos alienáveis. Segundo ele, commodity é algo que tem valor de uso, e que pode ser trocado em uma transação. Entretanto, para que ocorra esse intercâmbio, é necessário

que

haja,

no

imediato

contexto,

uma

contrapartida

de

valor

equivalente 137 . Comumente esses conceitos relativos ao entendimento da cultura material são aplicados a estudos de sociedades não ocidentais e não capitalistas, em que as coisas não são vistas como dissociadas das pessoas, mas, ao contrário, representam uma parte do ser humano. Em An Ethnography of the Neolithic Christopher Tilley 138 faz referência a essa distinção entre as concepções ocidentais contemporâneas e o pensamento compartilhado pelas sociedades de menor escala, não industriais. Segundo o autor, no nosso senso comum ocidental contemporâneo, tendemos a absolutamente distinguir o mundo “das pessoas e suas palavras” do mundo “das coisas e seus atributos”: o mundo das coisas, ou objetos, é tipicamente considerado mudo e inerte, somente animado pelas pessoas e suas palavras, que criam sistemas de significados culturalmente variáveis. Por outro lado, em

136

APPADURAI, 1986, p. 3. KOPYTOFF, 1986, p. 68. 138 TILLEY, Christopher. An Ethnography of the Neolithic. Early prehistoric societies in Southern Scandinavia. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. 137

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comunidades não industriais essa separação entre pessoas e coisas não é considerada válida 139 . A sociedade que se estruturou no contexto estancieiro do século XIX na região de Cruz Alta mescla diferentes concepções a respeito do mundo, uma vez que é composta por indivíduos de diferentes matrizes culturais, ocidentais (europeus e seus descendentes) e não ocidentais (indígenas e seus descendentes, grupos africanos e seus descendentes). O contato interétnico presente em meio a esse contexto, representado não só pelo convívio em uma mesma sociedade, mas também pela miscigenação, possibilitou que fosse desenvolvido um processo de transculturação entre os grupos que interagiam no meio rural cruz-altense. Entretanto, o que prevaleceu como pensamento direcionador da sociedade que se estruturava foi o modelo ocidental. A dicotomia presente nessa forma de pensar o mundo, quando trazida para a esfera material dos objetos e sua significação, difundiu também a divisão entre a sociedade, cujos componentes eram considerados de acordo com duas categorias: os proprietários e os não proprietários de terras. A

condição

de

proprietário

direcionava

os

papéis

sociais

e,

conseqüentemente, as relações que daí decorriam. Mesmo se tratando de uma sociedade ocidental que se organizava cada vez mais de acordo com as relações advindas de um capitalismo que emergia, é possível pensar na sociedade estancieira também a partir dos conceitos de alienabilidade e inalienabilidade da terra. Entretanto, empregar esses conceitos a um ramo da cultura material que é imóvel – a terra – exige uma reflexão diferenciada, mas nem por isso menos válida. Por sua característica imóvel – mas não imutável – a terra não pode ser fisicamente intercambiada. Um terreno não circula no mundo como outros elementos 139

TILLEY, 1996, p. 247.

86

da cultura material, como colares, amuletos, relíquias, mantos, entre outros diversos exemplos. Estes objetos, móveis, são freqüentemente estudados devido a seu caráter biográfico, o qual é construído na medida em que o objeto circula por diferentes contextos, passando de mão em mão, sendo consumido por diferentes grupos e de diferentes formas. Um pedaço de terra não transita no mundo material, mas passa de mão em mão na medida em que é dado, vendido, trocado, ocupado, abandonado, e assim por diante. A terra também não circula por diferentes contextos, mas é recontextualizada na medida em que é consumida em diferentes épocas e por diferentes grupos humanos. Levando em conta somente o século XIX, os diferentes contextos econômicos e políticos por que passou a sociedade riograndense resultaram em diferentes formas de interação com a terra. Disso decorreram diferentes significados atribuídos a própria terra e também aos indivíduos que com ela de alguma forma se relacionavam. Como dito anteriormente, a propriedade da terra direcionava as relações sociais dentro do contexto estancieiro, e conferia significados variados ao seu proprietário de acordo com a época em análise. Dessa forma, seria possível também atribuir à terra um caráter biográfico, na medida em que a ela atrelavam-se atributos pessoais. E, mais do que isso, na medida em que a partir do significado dado a terra eram constituídos os papéis e as relações sociais, é possível traçar também uma biografia das próprias pessoas que a ela estavam de alguma forma ligadas. Nesse sentido é proposto, aqui, um estudo da terra, tomada como cultura material, para se chegar ao entendimento dos seres humanos. Em outras palavras, busca-se compreender como as pessoas que compunham a sociedade estancieira criaram suas próprias biografias através de sua relação com a terra.

87

Ao longo do século XIX o significado dado a terra na região de Cruz Alta variou na medida em que a área sofreu mudanças políticas, sociais e econômicas. De bem inalienável, conferidor de status e também de poder, a terra tornou-se um bem cujo valor de uso e de troca passou a ser auferido de acordo com as relações capitalistas que se consolidavam no campo. Essas mudanças alteraram também a posição do proprietário rural. Em um primeiro momento, dentro do contexto estancieiro, a terra era dada a um homem (europeu ou seu descendente) em caráter hereditário 140 . Esse passava a ter, então, um compromisso com o governo, sendo investido com poderes políticos na região em que sua possessão era estabelecida. Era o início de uma relação hierárquica baseada em uma possessão inalienável: uma vez possuindo formalmente um pedaço de terra – a sesmaria – o proprietário poderia então usar o trabalho dos “outros” – isto é, das pessoas que não possuíam terra. Essa rede social que se formava a partir da relação dos indivíduos com a terra exercia uma influência direta na formação identitária dos grupos que compunham o contexto estancieiro. De acordo com Weiner 141 , em geral todas as possessões pessoais inalienáveis invocam uma íntima conexão com seus proprietários, simbolizando uma experiência particular que, embora privada ou secreta, adiciona valor à identidade do indivíduo. A terra não foge a essa interpretação, e o fato de possuí-la contribuiu para a construção da identidade do gaúcho no Rio Grande do Sul, sendo uma característica que acabou vinculada à população rio-grandense em geral, e não somente às áreas rurais.

140

Como exposto no início do capítulo, os primeiros ocupantes da terra eram desconsiderados no processo de doação de sesmarias. 141 WEINER, A. Inalienable Possessions: the paradox of keeping-while-giving. Berkeley; Oxford: University of California Press, 1992, p. 36.

88

As coisas inalienáveis têm a capacidade de conferir um status diferenciado à pessoa ou ao grupo que as possui. É comum que esse status também confira poder, dependendo do contexto dentro do qual ele é dado/recebido/mantido. Possuir uma sesmaria significava possuir um bem inalienável que objetificava 142 um poder não somente econômico, mas também político, garantidor da estrutura social e dos laços de dependência que se constituíam a partir da propriedade da terra. Esse poder advindo da condição de proprietário de terras estava ligado ao status que essa mesma condição proporcionava. Ou seja, a terra como coisa inalienável conferia status ao seu possuidor e, por intermédio desse status, conferia poder. O status e o poder atribuídos ao estancieiro pela posse da terra eram utilizados por ele para usufruir do trabalho de indígenas e negros. A estrutura social configurava-se, então, de acordo com a propriedade da terra enquanto bem inalienável. Essa situação foi aos poucos se alterando na medida em que, a partir de meados do século XIX, o capitalismo se consolidava no campo – um reflexo do que vinha ocorrendo em escala mundial 143 . A ordem social estabelecida foi sendo alterada, e o superior não era mais o dono da terra, como gerações passadas haviam garantido, mas o detentor de bens que possuíssem liquidez. A simples posse foi, dessa forma, tornando-se uma condição conferidora somente de status, o qual não seria mais vinculado ao poder de determinar os papéis sociais, como até então vinha ocorrendo. A hierarquia social passou, então, a ser ditada pela posse de bens alienáveis. As coisas alienáveis, especialmente quando inseridas em uma sociedade capitalista, têm a capacidade de conferir poder, do qual decorre o status. Em

142

Sobre o processo de objetificação ver o item 3.4, O corpo humano, a experiência da materialidade e os estudos sobre a cultura material. 143 Cabe lembrar que ao longo do século XIX, por meio de tratados e leis, a Inglaterra pressionava o Brasil para que acabasse, primeiramente, com o tráfico de escravos e, em um segundo momento, com a própria escravidão.

89

sociedades em que os bens com liquidez são essenciais para a manutenção de poder, as coisas alienáveis são mais requeridas que as inalienáveis. Uma das modificações trazidas com o capitalismo foi a necessidade de tornar a mão-de-obra assalariada, o que contribuiu para que a terra enquanto possessão inalienável se tornasse algo antiquado dentro de uma sociedade que se configurava cada vez mais como sendo regulada pelo dinheiro – este sim capaz de determinar os papéis sociais e manter as pessoas sob o comando de outrem. Como elemento inalienável, a terra não teria mais o caráter simbólico que antes lhe era conferido pela sociedade como um todo. Seu valor enquanto mercadoria (elemento alienável, portanto) ou fonte de rentabilidade passou a ser a referência para o posicionamento social. A perspectiva colocada aqui dá ênfase ao fato de que as coisas possuem um significado que é fluido, dinâmico, que muda ao longo do tempo de acordo com o contexto em que estão inseridas. A condição de bem alienável ou inalienável, de mercadoria, possessão, presente, etc., marca somente um momento, um determinado significado conferido à materialidade conforme a época e o lugar em que ela está ou conforme a pessoa ou grupo que a percebe. O significado dado às coisas não é estático, assim como os efeitos que causam nos indivíduos também variam. O modo como as coisas são vistas influencia a consciência individual e coletiva, estrutura sistemas de valores pessoais e de grupo, e também direciona ações particulares e sociais. Desse modo, o significado das coisas ultrapassa a esfera do sentido, da definição que lhes é dada, e passa a ter importância ainda mais relevante porque provoca uma influência prática nas pessoas. Como afirma Tilley, as coisas fazem a diferença; elas têm papel dinâmico na formação das pessoas, instituições ou culturas. O pensar ou o agir dependem tanto dos objetos

90

que nos rodeiam quanto da linguagem que utilizamos ou intenções que temos. As pessoas se formam e também se reconhecem por meio das coisas 144 . Dentro do contexto estancieiro que se estruturou no Planalto Médio riograndense, a relação que as pessoas mantinham com a terra gerou significados e práticas sociais específicas, que em seu conjunto formaram a identidade individual e coletiva (mas não homogênea) dessa sociedade. Contribuindo para essa formação, o conjunto arquitetônico do meio rural em análise também representou uma parte significativa no processo de constituição identitária da sociedade estancieira. No item a seguir esse assunto é desenvolvido tendo por base os remanescentes arquitetônicos de estâncias que compunham a paisagem rural do Noroeste do Rio Grande do Sul no século XIX.

2.2 As formas arquitetônicas como cultura material: as moradias que compunham as sedes das estâncias.

Como afirmado anteriormente, os seres humanos influenciam as coisas ao mesmo tempo em que sofrem sua influência. As pessoas interagem com a materialidade ao seu redor, influenciando-a e sendo por ela influenciadas. O mesmo processo dialético e dinâmico ocorre com as formas arquitetônicas, também elementos da cultura material: biografias individuais e coletivas são constituídas por meio da interação do ser humano com os ambientes construídos, do que decorre que as próprias formas arquitetônicas constituem-se em fontes para o estudo das sociedades. 144

TILLEY, Christopher. “Theoretical Perspectives” in TILLEY, C.; KEANE, W.; KÜCHLER, S.; ROWLANDS, M; SPYER, P. (eds.). Handbook of Material Culture. London: SAGE, 2006, p. 10.

91

A interação entre arquitetura e comportamento humano já foi alvo de pesquisas de diversos especialistas, que demonstraram que os comportamentos individuais, os quais comumente representam valores culturais mais gerais, são corporificados na formação e no uso do ambiente construído 145 . Dentre esse setor da cultura material uma das mais expressivas fontes de pesquisa são os ambientes domésticos. De acordo com Maynard Cliff as moradias simbolizam, se tomadas individualmente, o status de seus ocupantes; coletivamente, simbolizam a estrutura social da comunidade da qual esses ocupantes fazem parte 146 . Em um sentido geral, as construções são manifestações culturais dos seres humanos, dependendo diretamente

de

seus

pensamentos

e

ações

para

serem

concretizadas.

Especialmente nos ambientes domésticos essa relação é bastante evidente, uma vez que comumente esses lugares recebem a influência direta de seus habitantes – na escolha de suas cores, divisórias, mobílias, decoração, ou, ainda, pela própria ausência desses elementos. Considerando somente a arquitetura das moradias, e não os seus componentes móveis, pode-se dizer que suas formas, disposição (de cômodos ou em relação a outras construções) e o uso que se faz delas, representam algo que ultrapassa o comportamento de seus moradores 147 . Nesse sentido, Sanders 148 lista sete fatores determinantes dos modelos construídos: clima, topografia, materiais disponíveis, nível de tecnologia, disponibilidade de recursos 145

SANDERS, Donald. “Behavioral Conventions and Archaeology: methods for the analysis of ancient architecture” in KENT, Susan (ed.). Domestic Architecture and the use of space: an interdisciplinary cross-cultural study. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 43. 146 CLIFF, Maynard B. “Domestic Architecture and Origins of Complex Societies at Cerros”, in WILK, R.; ASHMORE, W. (eds.), Household and Community in the Mesoamerican Past. Albuquerque: University of New Mexico Press, 199-225, citado por WASON, Paul. K. The Archaeology of Rank. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 136. 147 Aqui é valido salientar que a casa pode indicar muito dos hábitos, do comportamento de seus ocupantes. O mesmo não pode ser dito com relação ao pensamento dos mesmos, o qual não pode ser recuperado por meios das formas materiais – as pessoas não necessariamente externalizam o que sentem, por motivos emocionais, psicológicos ou econômicos. 148 SANDERS, 1990, p. 44.

92

econômicos, função e convenções culturais. Segundo o autor, cada um deles tem a capacidade de agir no sentido de modificar o nível de influência exercido pelos demais. A recuperação desses fatores por parte de pesquisadores da cultura material pode contribuir para o entendimento das sociedades que produziram esses ambientes e que os utilizaram. Entretanto, o detalhamento desses determinantes não deve ser o único foco das pesquisas: a elaboração de teorias para o estudo das interações entre as pessoas e as formas arquitetônicas que compõem os ambientes domésticos é extremamente relevante, uma vez que a simples descrição das formas, da disposição e dos materiais empregados nas construções não é suficiente para a interpretação desses lugares. Desse modo, é apresentado aqui um estudo das formas arquitetônicas das estâncias da região onde foi fundada a Vista Alegre, especialmente das construções que compunham o conjunto das sedes, que por meio de sua materialidade representavam e incentivavam a perpetuação de determinados padrões de comportamento de acordo com as convenções culturais presentes na sociedade estancieira do século XIX. Para a efetivação desse estudo foram realizados trabalhos de campo em sete propriedades rurais dentro da região que pertencia a Cruz Alta, nos atuais municípios de Júlio de Castilhos, Tupanciretã, Quevedos, Boa Vista do Incra e São Miguel das Missões. Dentre as sete propriedades selecionadas dentro dessa pesquisa – Ivahy, Santa Eliza, Taquarembó, Tabor, Toropi, Triunfo e Vista Alegre –, cinco apresentam um nível de intervenção significativo, que varia entre a descaracterização das formas arquitetônicas do conjunto da sede e a destruição de algumas de suas unidades construtivas, como demonstrado no quadro a seguir.

93

Quadro 2 – Presença de edificações no conjunto arquitetônico original da sede das estâncias pesquisadas, considerando os componentes básicos que possibilitam a verificação de disparidades sociais.

Santa Eliza (s/d) Vista Alegre (1843/44) Triunfo (1870) Ivahy (1873) Taquarembó (aprox. 1880) Toropi (1881) Tabor (1912)

A

pesquisa

Casa-sede Galpão Senzala Observações X 0 0 Casa-sede provisória 149 X X X X X 0 Galpão erigido em 1915 X 0 X Senzala descaracterizada X X 0 X 0 0 Casa-sede descaracterizada X 0 0

nessas

propriedades,

antigas

estâncias,

possibilitou

a

compreensão do conjunto arquitetônico rural oitocentista em um contexto regional, o que fundamentou o trabalho mais detalhado realizado posteriormente na sede da estância Vista Alegre. Os dados obtidos possibilitaram a elaboração de teorias interpretativas a respeito do modo como a sociedade estancieira influenciou e foi influenciada pela arquitetura das sedes, especialmente pela composição e disposição das habitações que as compunham. Um primeiro ponto a ser considerado, nesse sentido, diz respeito ao nível de influência que a sociedade e suas convenções culturais exercem sobre as formas arquitetônicas, especialmente sobre as moradias. De acordo com James Deetz, a forma de uma casa pode refletir fortemente as necessidades e o pensamento de quem a construiu, e, ainda, direcionar e moldar o seu comportamento 150 . No mesmo sentido Sanders afirma que os ambientes construídos codificam a visão de mundo e os valores culturais de seus empreendedores, e por isso exercem um papel crucial

149

Mais informações sobre a casa provisória no item 2.2. DEETZ, James. In Small Things Forgotten. An Archaeology of early American life. New York: Anchor Books, 1977, p. 126.

150

94

ao prover sinalizações que intentam conduzir ao desempenho de um comportamento social aceitável dos indivíduos perante a sociedade. Desse modo, a disposição final do ambiente construído não é algo aleatório ou fortuito, o que faz de uma edificação muito mais que um abrigo: em termos socioculturais, as construções fazem mais do que acomodar as pessoas 151 . Para os indivíduos que com elas se relacionam, as construções atuam como uma espécie de lembrete físico das convenções e regras socioculturais aceitas 152 . Vale ressaltar que essas regras não estão presentes em edificações arrojadas, que justamente são erguidas com o intuito de causar impacto, mudança e, por vezes, demonstração de poder. As construções que transmitem códigos sociais apresentam características morfológicas que se repetem em várias edificações, e que por isso representam padrões sociais de determinadas épocas e lugares. No caso das estâncias do Noroeste rio-grandense pode-se dizer que a sociedade se organizava de acordo com o sistema de propriedade territorial. Como discutido anteriormente, existia nesse contexto uma barreira dividindo dois universos sociais, o dos proprietários e o dos não-proprietários. Nas localidades em que as estâncias eram sediadas, esses dois mundos estavam claramente representados nas formas arquitetônicas, que manifestavam materialmente a hierarquia social padrão do período. Para a compreensão dessa hierarquia social por meio do estudo das formas arquitetônicas foram realizados trabalhos de campo e pesquisas a fontes bibliográficas, de onde resultaram duas abordagens metodológicas: 1) levantamento das moradias que compunham a sede das estâncias, ou seja, casa do estancieiro,

151 152

SANDERS, 1990, p. 45. SANDERS, 1990, p. 45-46.

95

senzala e galpão; e 2) levantamento da disposição do conjunto arquitetônico doméstico das estâncias. As informações obtidas por meio dessas duas abordagens possibilitaram a elaboração de interpretações a respeito do contexto estancieiro geral da região de Cruz Alta.

2.2.1 A casa do estancieiro (casa-sede)

De todas as construções que fazem parte das sedes pesquisadas, a casa do estancieiro é a melhor preservada, estando presente em todas as propriedades 153 . Sua presença pode ser relacionada a dois fatores, essencialmente: utilização contínua, uma vez que não caiu em desuso, como ocorreu com a senzala quando da crescente

liberação

da

mão-de-obra

cativa; e durabilidade dos

materiais

empregados. O material utilizado na construção das casas-sede erigidas a partir de meados do século XIX demonstra a combinação de elementos locais retirados diretamente da natureza, como madeira, basalto e arenito, e artefatos manufaturados, como tijolos, telhas e pregos. Mesmo que tenham passado por reformas, é possível perceber o diferencial dos materiais originalmente empregados nas casas dos estancieiros, se comparados às demais moradias que compunham o conjunto arquitetônico das sedes. É válido lembrar que o objetivo deste estudo não é descrever a tipologia dessas casas ou detalhar exaustivamente os seus aspectos arquitetônicos, uma vez que, para os fins

153

Essa constatação também está presente nas pesquisas de Luccas (1997) e de Silva (2004), demonstrando que as casas-sede foram, em todo o Rio Grande do Sul, as edificações que melhor resistiram ao tempo dentro do contexto estancieiro.

96

a que se propõe, esse detalhamento não é significativo. Para atender à proposta desta pesquisa, o levantamento das características morfológicas gerais das casassede selecionadas é suficiente, pois permite comparar essas casas entre si e também compará-las com as demais moradias do período, possibilitando que seja feita uma interpretação da sociedade estancieira através de suas construções domésticas. Fazenda Ivahy 154 Dentre as sedes levantadas para a realização desta pesquisa, a casa-sede da Fazenda Ivahy (estância de mesmo nome, no passado), no Distrito de Três Capões, município de Boa Vista do Incra 155 , impressiona pelo estado de conservação em que se encontra. Lá, a casa do estancieiro foi edificada em 1873, pelo então proprietário Salvador Martins França, seu fundador. Apesar das mudanças que a modernização da agricultura conferiu à propriedade, a sede da Fazenda Ivahy ainda conserva alguns traços da época de sua fundação, principalmente na casa-sede, como demonstrado nas figuras 4, 5, 6 e 7. Embora não tenha data precisa, a fotografia fornecida pelos atuais proprietários da fazenda (figura 8) demonstra como era a casa antes das reformas por que passou. Percebe-se, ao comparar as fotografias atuais com a fotografia mais antiga, que a casa sofreu alterações bastante significativas em suas aberturas.

154

Na área em estudo, as estâncias do século XIX foram transformadas, no século seguinte, em fazendas, granjas e cabanhas de acordo com a atividade produtiva nelas desenvolvida. A denominação utilizada neste trabalho refere-se à designação dada a essas propriedades por seus atuais donos. 155 Emancipado de Cruz Alta em 2001.

Figura 4: Casa-sede da Fazenda Ivahy. Fonte: Acervo da autora (02/01/2003).

97

Figura 5: Casa-sede da Fazenda Ivahy. Fonte: Acervo da autora (02/01/2003).

98

Figura 6: Detalhe que mostra o ano em que a sede da estância Ivahy foi construída e as iniciais de seu fundador. Fonte: Acervo da autora (02/01/2003).

99

Figura 7: O detalhe mostrado na fotografia anterior, agora visto de uma distância maior. A barra em cimento acima do detalhe contém a data em que a sede foi reformada (1968). Fonte: Acervo da autora (02/01/2003).

100

Figura 8: Casa-sede da Fazenda Ivahy no século XX (sem data precisa), antes de passar pelas reformas que modificaram sua fachada (comparar com fotografias anteriores). Fonte: Arquivo da família Paglioli Jobim.

101

102

No atual município de Tupanciretã localizam-se três das sete propriedades rurais consideradas dentro do presente estudo. A Cabanha Taquarembó e a Fazenda Santa Eliza ficam no interior desse município, enquanto que a Cabanha Tabor é bastante próxima à área urbana. Cabanha Taquarembó A sede da atual Cabanha Taquarembó foi erigida, segundo fontes orais, em 1880. A casa-sede da propriedade, de alvenaria, necessita de alguns reparos, o que não impede que a mesma seja utilizada pelos atuais proprietários. Não foi possível tirar uma fotografia da fachada da casa porque as árvores, plantadas muito próximas à parede, a encobrem. Mesmo assim, através da figura 9 é possível ter uma idéia de sua fachada original, especialmente da espessura de suas paredes, característica comum às moradias dos proprietários rurais no século XIX 156 .

156

Segundo Luccas (1997, p. 66), as paredes passaram a ter uma espessura menor a partir da utilização de tijolos industrializados, que, por serem regulares e uniformes, permitem a confecção de estruturas mais esbeltas – maiores alturas com menor espessura. O autor ainda afirma que, com essa mudança, “possibilidades construtivas com maior proporção de ‘vazios’ (aberturas) a partir de então, aliadas à produção crescente de artefatos como esquadrias, propiciarão casas com vãos mais próximos e maiores a partir de meados do século XIX, como requer um contexto mais amplo a caminho de uma “modernidade”.

Figura 9: Casa-sede da atual Cabanha Taquarembó. Fonte: Acervo da autora. (30/12/2002).

103

104

Fazenda Santa Eliza A Fazenda Santa Eliza foi estabelecida no século XIX, e não há precisão quanto à data em que foi erigida. Sua sede é a única que conta com a casa provisória (figuras 10 e 11) que abrigou o estancieiro e sua família antes que a casa principal fosse construída. Segundo informações dadas por Leonardo 157 , bisneto do Sr. Cândido Nascimento e Silva, fundador da estância, a casa-sede utilizada atualmente foi construída no século XX, o que é perceptível em sua arquitetura (figura 14). A casa que serviu de moradia provisória ao fundador da estância Santa Eliza tem hoje uma função prática, sendo utilizada como uma espécie de cozinha, anexa à casa principal. Uma explicação sobre esse tipo de moradia é encontrada em Luccas, que classifica as casas pioneiras, os abrigos provisórios, os postos de uso eventual ou destinados a empregados como sendo de tipologia arcaica. Segundo o autor, esse tipo de construção informal, de poucos compartimentos, é caracterizado pelo emprego de materiais encontrados na natureza, elementos artesanais e técnicas rudimentares – vedações de pau-a-pique, torrão, pedras ou tijolos; coberturas de capim santa-fé e telhas capa e canal; madeiramentos de paus roliços; e aberturas dispostas casualmente 158 . De acordo com Leonardo, essa casa provisória é a segunda da propriedade, sendo que a primeira já foi destruída. Nessa edificação foram empregados materiais construtivos variados (figura 13), demonstrando a tecnologia local aliada aos recursos disponíveis na região (elementos naturais e manufaturados). Os tijolos empregados nessa casa foram trazidos de Cruz Alta. Também foram utilizadas 157

Na ocasião Leonardo contou que nessa propriedade, nos tempos de seu bisavô, trabalharam escravos e taipeiros, homens contratados para erigir os muros de pedra (as taipas). 158 LUCCAS, 1997, p. 131.

105

pedras basalto na sua fundação. A argamassa empregada foi feita, segundo informado, a partir do amassamento de barro e esterco animal. As aberturas são de madeira. Percebe-se em alguns pontos da casa tentativas mais recentes de conter sua destruição, o que foi feito com a utilização de cimento (figura 12).

Figura 10: Casa provisória na Granja Santa Eliza. Fonte: Acervo da autora (30/12/2002).

106

Figura 11: Casa provisória na Granja Santa Eliza. Fonte: Acervo da autora (30/12/2002).

107

108

Figura 12: Reparo feito com cimento na busca de preservar a casa provisória da Estância Santa Eliza. Fonte: Acervo da autora (30/12/2002).

Figura 13: Detalhe da parede que evidencia o material construtivo empregado na casa provisória da Estância Santa Eliza. Fonte: Acervo da autora (30/12/2002).

Figura 14: A atual sede da Granja Santa Eliza, de construção mais recente À frente da casa, descendentes do fundador da propriedade. Ao fundo, à direita, a casa provisória. Fonte: Acervo da autora (30/12/2002).

109

110

Cabanha Tabor Localizada em um ponto cortado pela estrada de carretas que levava a Cruz Alta, a Estância e Cabanha Tabor foi iniciada em 1905 pelo ruralista gaúcho Francisco de Moraes Gomes. Quem fornece essa informação é seu irmão, Aristides de Moraes Gomes 159 , que em 1912 permutou seu campo da Estância do Lagoão pela Tabor. Em 1963 Aristides e sua esposa transferiram a propriedade para o filho Antônio Corrêa Gomes, que passou a administrá-la. Atualmente a Tabor pertence a D. Iolanda Gomes, viúva de Antônio Corrêa Gomes. Em Fundação e Evolução das Estâncias Serranas Aristides de Moraes Gomes dedica um capítulo a sua “Estância e Cabanha Tabor”, onde conta ter terminado as instalações da propriedade, “inclusive casa de alvenaria e pomar”. A Tabor foi inaugurada festivamente em 1913, por ocasião do casamento de Aristides Gomes com Iria Corrêa de Barros, se tornando a residência do casal. A Estância e Cabanha Tabor representa uma fase de transição sócioeconômica na região, em que a industrialização tomava espaço, incrementando os transportes, viabilizando relações comerciais e modificando as relações sociais, até então marcadas pela divisão social entre os proprietários e os não proprietários de terras. Em 1912 foi iniciada a criação de gado na propriedade, que ficou marcada pela importação de touros de porte (1912), pela criação de cavalo crioulo (1941) e pela inseminação artificial em ovinos (1953) e bovinos de corte (1956). Atualmente a propriedade apresenta uma casa-sede que congrega elementos de sua primeira construção (figura 15), da primeira década do século XX, e características mais recentes, resultado de reformas e do acréscimo de uma ala nova (figura 17). Apesar das alterações em suas formas, é possível perceber a 159

GOMES, 1966, p. 303-306.

111

estrutura original da casa no local onde hoje fica o alpendre (figura 16), inexistente na época de sua construção. A antiga fachada da casa-sede aparece na fotografia 15, tirada no início do século XX, que faz parte do arquivo particular da família Gomes. A Cabanha Tabor é bastante conhecida na região por ter sido pouso de tropeiros, e conserva ainda hoje o olho d’água que marca o local de parada desses homens. A propriedade ainda encontra-se nas mãos da família de seus primeiros fundadores,

que

antepassados.

guardam

com

zelo

as

memórias

registradas

por

seus

Figura 15: Sede da Cabanha Tabor no início do século XX. Fonte: Arquivo da família Gomes.

112

Figura 16: O atual alpendre, no local onde ficava a fachada da casa. Fonte: Acervo da autora (08/2006).

113

Figura 17: A ala nova da casa-sede da Cabanha Tabor. Fonte: Acervo da autora (08/2006).

114

115

Fazenda do Triunfo A primeira sede da então estância do Triunfo fora construída em 1837, em terras compradas do major Dias (que, por sua vez, as havia requerido por sesmaria) pelos irmãos João Medeiros de Farias e José Serafim Medeiros de Farias 160 . Desta primeira sede não existem mais vestígios. Da divisão das terras entre os dois irmãos, em 1870, originou-se a atual sede da Fazenda do Triunfo (figuras 18 e 19), cujo proprietário, na época, ficou sendo João Medeiros de Farias. Inserida na rota das Missões, distante 26 km das ruínas da Missão de São Miguel Arcanjo, em São Miguel das Missões, esta propriedade era, até pouco tempo, um hotel fazenda. A fazenda ainda conta com remanescentes arquitetônicos do século XIX, como valas e mangueiras de pedra, cemitério, além da própria casa-sede, em ótimo estado de conservação. Embora esta já tenha passado por reformas, ainda mantém elementos de sua fundação. Entretanto, construções como as que abrigavam os escravos (em número de 5, conforme Silva 161 ) e os peões já não existem mais. A casa-sede da estância do Triunfo permite compreender um pouco mais da arquitetura oitocentista, e compõe, juntamente com as demais propriedades da região de Cruz Alta, um padrão construtivo revelador da condição social de seus moradores.

160 161

SILVA, 2004. SILVA, 2004.

Figura 18: Sede da Fazenda do Triunfo. À esquerda o galpão (1915). À direita a casa-sede, (1870). São Miguel das Missões, RS. Fonte: Acervo da autora (fotografia de autoria de Fernando Almeida, 03/08/2006).

116

Figura 19: Casa-sede da Fazenda do Triunfo. Fonte: Acervo da autora (03/08/2006).

117

118

Fazenda Toropi Embora tenha sido estabelecida no século XIX, a sede da Fazenda Toropi, no município de Quevedos, apresenta características arquitetônicas contemporâneas (figura 21). Isso porque sua casa-sede, a única edificação presente na propriedade que conta com elementos do século XIX, passou recentemente por alterações que modificaram significativamente suas formas, especialmente suas aberturas e o telhado. Além disso, foram acrescidas a sua fachada varanda e churrasqueira. O único elemento externo que denuncia a época de sua construção está ainda conservado na parede: uma inscrição em alto-relevo onde consta o ano de 1881 (figura 20).

Figura 20: Detalhe da casa-sede da atual Fazenda Toropi. A marca preservada em sua parede registra o ano de sua construção, única evidência do século XIX mantida na fachada desta edificação. Fonte: Acervo da autora (25/08/2006).

119

Figura 21: Casa-sede da Fazenda Toropi. A reforma, feita recentemente, alterou significativamente a moradia. Fonte: Acervo da autora (25/08/2006).

120

121

Estância Vista Alegre A casa-sede da estância Vista Alegre, no interior do município de Júlio de Castilhos, destaca-se pela imponência de suas formas em meio à paisagem rural. Não é o luxo ou a riqueza de detalhes e elementos decorativos que a fazem sobressair, mas sua fachada caiada, simples, reta, limpa, como que fincada no topo de uma coxilha (figura 22). Como exposto no primeiro capítulo, a estância Vista Alegre foi estabelecida em meados do século XIX, em um intervalo entre as batalhas da Revolução Farroupilha (por volta de 1843/1844, mais especificamente). Embora sua estrutura esteja comprometida, como mostra a figura 23, a casa-sede sofreu poucas alterações em suas formas arquitetônicas, o que a torna um elemento da cultura material bastante fidedigno às suas origens oitocentistas, e, desse modo, uma fonte potencial para o estudo da história do período (figura 24).

Figura 22: Casa-sede da estância Vista Alegre. Fonte: Acervo da autora (25/08/2006).

122

Figura 23: No interior da casa-sede da estância Vista Alegre percebe-se o comprometimento do forro, amparado por madeira. Fonte: Acervo da autora (25/08/2006).

123

Figura 24: Fachada da Casa-sede da estância Vista Alegre. Fonte: Acervo da autora (fotografia de autoria de Paulo Roberto Koch Jr., em 16/01/2007).

124

125

Mesmo sendo propriedades de pessoas que compunham a elite social do Rio Grande do Sul no século XIX – militares ou homens com poderes equivalentes a tal – as estâncias da região estudada apresentam construções bastante simples se comparadas às zonas brasileiras de produção de açúcar ou café, por exemplo. Essa relativa simplicidade também é uma característica das moradias dos próprios estancieiros. Esse dado foi notado por Auguste de Saint-Hilaire, que por vezes se referiu às casas dos estancieiros de uma forma que evidenciava sua pobreza, como no trecho em que escreve: “A estância em que fiquei não passa de uma desprezível choupana, sem mobiliário 162 ”. Ou, ainda, quando registra: “Paramos numa estância pertencente aos campos percorridos. É uma casa muito mal construída, de pau-apique, mas coberta de telhas” 163 . As anotações de Saint-Hilaire fornecem informações relevantes a respeito das características arquitetônicas presentes no meio rural rio-grandense à época de sua visita (1820-21). Mesmo que o cronista tenha usado juízo de valor, classificando algumas casas de estancieiros de “desprezível choupana” ou “muito mal construída”, a partir de seu ponto de vista particular, as informações objetivas atribuídas a essas casas, como “sem mobiliário” e “de pau-a-pique”, constituem-se em dados mais precisos sobre as características dessas moradias. Entretanto, é possível que as casas a que Saint-Hilaire se refere sejam as moradias classificadas por Luccas como arcaicas, isto é, casas construídas com materiais locais e seguindo técnicas rudimentares. Essas características eram comuns às moradias provisórias ou pioneiras, provavelmente o tipo de construção que Saint-Hilaire presenciou.

162 163

SAINT-HILAIRE, 2002, p. 104. SAINT-HILAIRE, 2002, p. 19-20.

126

Em História do Rio Grande do Sul Moacyr Flores se refere a esse tipo de construção simples como sendo característica das sedes das primeiras estâncias, em que as casas eram “precárias, de paredes de pau a pique, cobertura de sapé e com apenas três peças” 164 . Essas construções possivelmente não constituíam a moradia definitiva dos donos. Na área considerada para o presente estudo foi encontrado um exemplar desse tipo de edificação provisória, na atual Granja Santa Eliza, dado confirmado pelo bisneto do fundador dessa propriedade. Mesmo constituída por paredes mistas, feitas de pedra e tijolos, as formas e o tamanho reduzido dessa moradia, se comparada às outras casas-sede do período, enquadram-na na descrição das casas provisórias do século XIX. A simplicidade das formas e materiais empregados nas construções provisórias estendeu-se para as casas definitivas construídas posteriormente, o que foi uma característica presente principalmente na metade norte do Rio Grande do Sul. De acordo com Luccas, as sedes construídas, em sua maioria, até meados do século XIX, evidenciam uma tipologia classificada de tradicional 165 . Mais uma vez, essa classificação não tem um limite cronológico fixo. No caso do Noroeste do Rio Grande do Sul, região ocupada tardiamente pelos portugueses, e onde as estâncias estruturaram-se somente a partir da efetivação do domínio luso (1801), a arquitetura das casas-sede acompanhou esse processo tardio, revelando em suas formas certo conservadorismo se comparadas a outras regiões da Província. Na região que correspondia a Cruz Alta, mais especificamente, onde o povoamento mais efetivo deu-se por volta de 1830, a arquitetura das casas dos estancieiros, mesmo das definitivas, é bastante simples, característica presente até mesmo nas construções 164 165

FLORES, Moacyr. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1997, p. 71. LUCCAS, 1997, p.133.

127

de fins do século, momento em que outras áreas do Rio Grande do Sul já incorporavam elementos inovadores, industrializados e até mesmo importados. Pode-se dizer que as casas-sede da região em estudo representam, em sua maioria, tipologias tradicionais. Esse tipo de moradia, segundo Luccas, apresenta um aspecto de construção definitiva, pelo porte (aumento do pé direito, se comparado ao das casas provisórias de tipo arcaico), pelos materiais utilizados (tijolos), e pelo emprego da técnica construtiva de pedra e cal (técnica que usa argamassa de cal e areia). Também a caiação branca é uma característica desses tipos tradicionais, bem como uma barra protetora junto à base das paredes externas, geralmente em cor combinada às aberturas – comumente o azul cobalto, o vermelho chinês, o verde e o amarelo cádmio. O autor ainda cita o emprego de caixilhos envidraçados exteriorizados nas aberturas. Em seu conjunto, essas características conferem à casa-sede um aspecto bastante simples, limitado a um repertório reduzido de elementos arquitetônicos, com materiais e procedimentos construtivos padronizados. Em sua pesquisa sobre a arquitetura rural do Noroeste do estado, Silva 166 registra o emprego de técnicas e de materiais diferentes dentro do mesmo contexto. A partir de suas informações pode-se inferir que não havia uma padronização tipológica entre as casas-sede, mas uma semelhança entre os materiais construtivos empregados, combinados de formas diversas. Dentre esses materiais, comumente foram evidenciados, combinados de diversas formas, tijolos, pedras (particularmente basalto e arenito), argamassa de cal, de cal e barro, de barro e estrume, de barro e areia, madeira e telhas (principalmente do tipo capa e canal). O uso desses elementos locais de acordo com técnicas construtivas rudimentares resultou em 166

SILVA, 2004.

128

construções de formas simples (se comparadas a outras regiões, como já mencionado). Ainda que fossem simples, as casas dos estancieiros no Noroeste da Província possuíam alguns elementos básicos que as diferenciavam das demais residências da sede, sendo superiores não só nos materiais empregados, mas também pela presença de diferentes espaços funcionais. Era característica comum das casas-sede a presença de dormitórios (entre 3 e 5), corredor, sala da frente, varanda, cozinha, dormitório de hóspedes, alcovas, capela, oratório ou nicho. Apesar da simplicidade, um relativo conforto e certa privacidade eram assegurados nessas moradias, o que não ocorria com as demais construções. Como afirmado anteriormente, a simplicidade das casas-sede é atribuída em grande medida à ausência de mão-de-obra especializada na realização de seu projeto e execução. Soma-se a isso o relativo isolamento entre uma sede e outra, o que limitava o convívio social e, conseqüentemente, os espaços para sua promoção. A combinação de mão-de-obra não especializada, ausência de plano arquitetônico e utilização de materiais construtivos locais na execução das moradias é uma característica do conjunto arquitetônico das estâncias estudadas. Somados, esses três elementos resultam na chamada arquitetura vernácula 167 . Segundo Deetz, a arquitetura vernácula, por ser executada sem o benefício de planos formais (como ocorre com a arquitetura acadêmica), apresenta estruturas que, sendo produto direto de seus usuários, formam um indicador sensível dos sentimentos dessas pessoas, de suas idéias com relação ao que lhes é ou não adequado. Conseqüentemente, mudanças em atitudes, valores e visão de mundo

167

“Própria de cada povo, executada com materiais locais e com limitado repertório técnico e estético” (SILVA, 2004, p. 223).

129

são comumente refletidas em mudanças nas formas desse tipo de construção. Desse modo, enquanto a arquitetura vernácula constitui-se em um aspecto da cultura tradicional, a arquitetura acadêmica é um aspecto da cultura popular, pois reflete estilos contemporâneos de design, mais ligados às tendências de mercado do que às atitudes e estilos de vida dos usuários de suas edificações 168 . Um incremento nas formas e técnicas construtivas foi introduzido aos poucos no século XIX, ainda que essa modificação tenha sido mais presente no sul do Rio Grande. Elementos mais rebuscados, inclusive importados da Europa, passaram a ser empregados nas construções na segunda metade do século XIX. O emprego de materiais industrializados também foi característica desse período. Contudo, esse incremento nas formas, nas técnicas e nos elementos decorativos, como dito anteriormente, foi uma característica de regiões menos isoladas, e, por conseguinte, menos conservadoras. As características arquitetônicas das casas dos estancieiros não foram modificadas conjuntamente no mesmo período. O que pode ser afirmado é que uma maior complexidade arquitetônica, percebida nas formas, materiais e técnicas construtivas, foi sendo introduzida no Rio Grande do Sul a partir da segunda metade do século XIX. Entretanto, essa inovação não foi adotada de forma homogênea. Luccas se refere a esse período de inovações como sendo o apogeu de inteligência empírica da arquitetura estancieira, o que teria sido alcançado por meio de uma experimentação prática. Essa experimentação incluía a apropriação de materiais locais e de métodos construtivos compatíveis com estes materiais e, ainda, soluções que buscavam maior conforto ambiental, combinando, de modo limitado, elementos de arquitetura (portas, janelas, vedações, coberturas, etc.) que 168

DEETZ, 1977, p. 126.

130

apresentavam comprovada correção construtiva e estética 169 . Segundo o autor, este “corpo de conhecimentos” é substituído devido a diversos fatores, como a melhoria dos meios de produção de manufaturados (tijolos, telhas, esquadrias, ...) ou sua importação, possível pelo transporte de mercadorias consolidado, o que resultou em uma razoável padronização dos meios construtivos, com as alvenarias de tijolos e outros elementos standards 170 .

Outro fator destacado por Luccas é a adoção de novos padrões externos, seja na tentativa rudimentar local, embasada na transmissão direta do conhecimento e marcada por um pragmatismo direcionador da construção, seja a partir de uma concepção

acadêmica,

transmitida

por

meio

de

profissionais

qualificados

especializados na atividade construtiva 171 . Enquanto o sul da Província, em maior contato com idéias inovadoras, foi marcado pelo segundo modelo, a região Noroeste do Rio Grande do Sul foi marcada pelas características construtivas do padrão rudimentar local. Pode-se dizer que a arquitetura rural do conjunto das estâncias analisadas, levando-se em consideração as casas-sede, representa a manifestação de formas vernáculas, característica da região no século XIX. Essas manifestações concretas da cultura regional estão sendo aos poucos substituídas por estilos acadêmicos. A escassa amostragem da arquitetura rural do século XIX presente hoje na área em estudo comprova esta substituição.

169

LUCCAS, 1997, p. 143. LUCCAS, 1997, p. 144. 171 LUCCAS, 1997, p. 144. 170

131

2.2.2 A senzala

Dentre os elementos arquitetônicos que compunham as sedes das estâncias pesquisadas, as senzalas, ou casas de negros, são as construções menos encontradas. Por terem sido construídas com materiais de baixa qualidade e também por terem sido desativadas em fins do século XIX, quase não há vestígios arquitetônicos dessas moradias. Embora sua presença fosse comum nas estâncias da época, as senzalas nem sempre eram a moradia dos escravos. Os espaços que abrigavam os cativos poderiam variar de acordo com a função exercida por esses trabalhadores: se domésticos, eles dormiam no chão de compartimentos da casa senhorial, como a cozinha, os corredores, os quartos e as alcovas, junto ao leito dos senhores ou encostados nas portas dos dormitórios; se campeiros, os escravos dormiam nos galpões, como as senzalas 172 . Como referido anteriormente, as estâncias do Rio Grande do Sul eram relativamente pobres, se comparadas às fazendas de café ou aos engenhos de açúcar, por exemplo. Entretanto, mesmo dentro dessas condições mais simples havia espaço para a manifestação de diferenciações sociais no plano arquitetônico. Isso ficava evidente na própria senzala, construção na qual eram empregados materiais construtivos ainda mais frágeis que os utilizados nas casas-sede. Além disso, o reduzido tamanho desse tipo de edificação, a ausência de divisões em seu interior, o piso de terra batida, o emprego de materiais descartados, como telhas e tijolos quebrados, entre outros elementos, mostram que essas moradias eram ainda mais pobres que as demais construções, também simples, que compunham as 172

SILVA, 2004.

132

estâncias mais humildes. As casas de negros estavam presentes mesmo dentro das sedes mais pobres, e a inferioridade de suas formas e elementos construtivos caracterizava um padrão para este tipo arquitetônico. Mais uma vez o diário de Saint-Hilaire registra essa situação: mesmo se referindo à casa de um estancieiro por onde passou como sendo “muito mal construída, de pau-a-pique”, o cronista registra ter visto, ao lado dessa moradia, “laranjeiras, currais, e algumas casas de negros” 173 . Da mesma forma, quando se refere à casa em que ficou como sendo uma “desprezível choupana, sem mobiliário”, registra também que esta casa estava “cercada de algumas senzalas” 174 . Embora comuns no século XIX, as moradias que abrigavam escravos são, como já afirmado, raramente encontradas hoje. Dentre as propriedades rurais consideradas na presente pesquisa, somente duas – a Fazenda do Ivahy e a estância Vista Alegre – ainda registram a presença da senzala. Entretanto, as estruturas arquitetônicas de ambas foram significativamente alteradas – uma, devido ao excesso de reformas por que passou; a outra, devido à falta de iniciativas que promovessem sua conservação. Na Fazenda Ivahy, a senzala (figuras 25 e 26) está posicionada nos fundos da casa-sede, a uma distância bastante reduzida – cerca de 10m. O aproveitamento dessa construção dentro da dinâmica da fazenda hoje resultou em uma alteração significativa em sua estrutura original: as paredes e o teto foram reforçados, as telhas originais foram substituídas por telhado de zinco, assim como foram colocadas portas e janelas de metal e vidro. A antiga senzala é atualmente utilizada parte como galpão, parte como casa para o capataz.

173 174

SAINT-HILAIRE, 2002, p. 19-20. SAINT-HILAIRE, 2002, p. 104.

Figura 25: A antiga senzala da Fazenda do Ivahy é hoje utilizada como galpão e casa para o capataz. Fonte: Acervo da autora (02/01/2003).

133

Figura 26: Antiga senzala da Fazenda Ivahy, hoje reformada. Fonte: Acervo da autora (02/01/2003).

134

135

Já na estância Vista Alegre a situação é extremamente oposta: a senzala encontra-se em ruínas (figura 27), em fase avançada de desmoronamento. Mesmo assim, as formas que lhe restam permitem visualizar importantes características arquitetônicas de sua composição original, como a estrutura em madeira que suporta o telhado (figura 28), o material utilizado em suas paredes (figura 29), as telhas capa e canal (figura 30), o chão de terra batida (perceptível nas figuras 28 e 32), e mesmo a disposição de algumas aberturas (figuras 27, 31, 32 e 33).

Figura 27: Fachada da senzala da estância Vista Alegre (da esquerda para a direita, abertura do anexo, ampliada devido ao desmoronamento da parede, e aberturas do corpo da senzala). Fonte: Acervo da autora (25/08/2006).

136

137

Figura 28: Interior da senzala da estância Vista Alegre. Fonte: Arquivo da autora (25/08/2006).

138

Figura 29: Parede da senzala da estância Vista Alegre. Fonte: Arquivo da autora (25/08/2006).

Figura 30: Telhado da senzala da estância Vista Alegre. Fonte: Arquivo da autora (25/08/2006).

Figura 31: Fundos da senzala da estância Vista Alegre. O desmoronamento da parede evidencia uma das aberturas frontais do corpo da senzala. Fonte: Acervo da autora (25/08/2006).

139

140

Figura 32: Interior da senzala da estância Vista Alegre. Fonte: Arquivo da autora (25/08/2006).

Figura 33: Interior da senzala da estância Vista Alegre, com destaque para o desmoronamento da parede lateral. Fonte: Acervo da autora (fotografia de autoria de Paulo Roberto Koch, Jr., em 16/01/2007).

141

142

A ausência das senzalas nas sedes das propriedades rurais da região de Cruz Alta também foi registrada por Silva. Dentre as oito propriedades estudadas pelo arquiteto, somente a Fazenda do Sobrado, contemporânea à Vista Alegre, ainda conserva um galpão de pedra que é tido como uma antiga senzala 175 . Este galpão (figura 34) teria sido inicialmente um posto jesuítico, ou parte de um aldeamento indígena da época missioneira. Quando, em 1840, João da Costa Furtado adquiriu essas terras e fundou sua estância, no atual município de Bossoroca, mandou erigir um sobrado, e utilizou o galpão de pedras já existente no local como senzala 176 . Embora essa informação não seja comprovada por documentação oficial, a construção é tida pelos habitantes locais como uma antiga senzala. Considerando essa informação válida, depara-se com um outro limite à pesquisa: mesmo que o referido galpão de pedra tenha sido utilizado como senzala, ele não foi construído com essa finalidade, pois já estava no local quando João da Costa Furtado ali se estabeleceu. Suas características, portanto, embora se assemelhem no tamanho e formato às outras duas senzalas (do Ivahy e da Vista Alegre), não podem ser consideradas referências para a arquitetura desse tipo de moradia. Desse modo, somente a senzala da estância Vista Alegre constitui-se em uma fonte para um estudo mais detalhado das formas e materiais empregados nesse tipo de construção.

175

SILVA, 2004, p. 147. BOSSOROCA. História e pontos turísticos. Prefeitura Municipal de Bossoroca. Secretaria Municipal de Turismo e Desenvolvimento Econômico. Administração 2001/2004. 176

Figura 34: Senzala da Fazenda do Sobrado, em Bossoroca. Fonte: BOSSOROCA. Pref. Municipal, 20001/2004.

143

144

Em um sentido geral pode-se dizer que além de apresentar um tamanho reduzido, se comparada à casa-sede, a senzala era inferior também em relação aos materiais utilizados. A diferença era tal que os viajantes do século XIX, ao percorrerem a Província do Rio Grande do Sul, facilmente identificavam as senzalas em meio às demais edificações que compunham a sede das estâncias. Isso considerando que a própria casa do estancieiro era também bastante simples, por vezes pobre, e feita com materiais locais. Como já referido, eram empregados nas construções das estâncias pedras, tijolos, argamassa, telhas, madeira, todos elementos encontrados na natureza ou confeccionados localmente – na própria estância ou em uma área próxima. Mesmo que a mão-de-obra e os materiais construtivos utilizados fossem os mesmos nas diversas edificações, as moradias que abrigavam os escravos tinham um resultado formal bastante precário, muito inferior à casa-sede. Esse dado está bastante evidente na senzala da estância Vista Alegre, e pode também justificar seu estado de degradação. Uma vez que o estancieiro tinha a seu dispor tanto a mão-de-obra cativa quanto os materiais construtivos, a explicação para a precariedade das moradias dos escravos vincula-se à própria decisão do dono da estância, direcionador de sua composição arquitetônica tanto no que diz respeito às funções das construções quanto às suas formas. Se essa opção dava-se por preconceito, subjugo, ou por necessidade de empregar a mão-de-obra cativa em serviços essenciais para o andamento da propriedade, não há como afirmar categoricamente. Entretanto, pelas características sociais hierárquicas da época, em que o negro era visto pela elite branca como inferior, é bastante provável que essa visão fosse traduzida também nas construções que tinham a função de abrigar os africanos e seus descendentes.

145

Desse modo, o piso de chão batido, as paredes de cacos de telhas e tijolos, a argamassa de baixíssima qualidade, o tamanho reduzido e a ausência de qualquer indício de conforto não podem ter somente uma justificativa econômica. Essas formas revelam a hierarquia do período e a condição social dos negros na sociedade estancieira do Rio Grande do Sul oitocentista. Não foi diferente na região de Cruz Alta.

2.2.3 O galpão

No estudo das moradias que compunham as sedes das estâncias do século XIX no Rio Grande do Sul é interessante notar que não há uma denominação exclusiva para identificar as residências dos peões. Enquanto que a casa-sede e a senzala são construções que se destinavam à família do estancieiro e aos escravos, respectivamente, as construções que abrigavam os trabalhadores livres das estâncias recebem a denominação genérica de galpões,

alguns de alvenaria, a maioria de tábuas, coberta de telhas ou tabuinhas. Alí ficava o alojamento dos peães, com tarimbas para as camas de arrêios, recanto para fogo e espaço grande para variadas finalidades, inclusive encilhar cavalos em dias de chuva. As estrebarias ficavam numa varanda do mesmo galpão. Num canto estava o quarto para hóspedes modestos ou viajeiros 177 .

O termo galpão designa, dessa forma, construções destinadas a funções variadas, como cozinha, atafona, armazém, casa dos arreios, depósitos de sal, estrebaria, curral, galinheiro, pocilga, paiol, quarto de hóspedes, senzala, e também residência dos peões. Embora suas formas pudessem variar de acordo com a

177

GOMES, 1966, p. 55-56.

146

função que desempenhavam na estância, elas comumente eram retangulares, cabendo às divisões internas a diferenciação dos ambientes de acordo com sua finalidade. Os galpões ainda existentes nas propriedades em estudo (figuras 35 a 40) foram edificados com pedras, tijolos, ou a combinação dos dois, estando presentes em todas as sedes das fazendas pesquisadas, onde são atualmente utilizados como construções de funções múltiplas, principalmente como depósito, cozinha, garagem e dormitório temporário.

Figura 35: Galpão de pedras na Cabanha Taquarembó. Fonte: Acervo da autora (30/12/2002).

147

Figura 36: Galpão de pedras na Cabanha Taquarembó. Fonte: Acervo da autora (30/12/2002).

148

Figura 37: Galpão de tijolos na Fazenda do Triunfo, construído em 1912. Fonte: Acervo da autora (fotografia de autoria de Fernando Santos de Almeida, em 03/08/2006).

149

Figura 38: Fachada do galpão da estância Vista Alegre. Fonte: Arquivo da autora (fotografia de autoria de Paulo Roberto Koch Jr., em 16/01/2007).

150

Figura 39: Fundos do galpão da estância Vista Alegre. Fonte: Arquivo da autora (25/08/2006).

151

Figura 40: Fogo de chão e ganchos para pendurar a carne no interior do galpão da estância Vista Alegre. Fonte: Arquivo da autora (25/08/2006).

152

153

3 OS ESPAÇOS CONSTRUÍDOS, A EXPERIÊNCIA CORPORAL E A FORMAÇÃO IDENTITÁRIA

Enquanto criações sociais, as formas arquitetônicas funcionam como instrumentos que, em níveis diferenciados de influência, direcionam os seres humanos para uma atuação no mundo. Essa direção é dada, embora nem sempre de modo consciente, de acordo com a lógica do indivíduo ou do grupo que criou essas formas. Em esferas particulares, como o interior de uma residência, por exemplo, a direção dada pelas formas arquitetônicas pode traduzir a idealização que o seu proprietário tem a respeito do que é uma casa. A “casa dos sonhos” que cada um imagina para si é uma idealização que representa essa lógica individual do ser humano, e por isso é desenhada com formas, cores e estilos tão diversos, muitas vezes impossíveis de serem concretizados. Não há um padrão que reprima as formas da casa idílica de cada um. O mesmo não ocorre em esferas sociais mais amplas, que atingem a coletividade – um grupo de famílias, uma vila ou uma cidade. As construções destinadas a constituir o ambiente de um grupo maior de pessoas refletem políticas públicas de determinada gestão governamental, concepções que comunidades específicas têm sobre formas de lazer, tendências arquitetônicas internacionais ou locais, entre tantas outras possibilidades. Em uma esfera mais ampla, que atinge uma coletividade social, o direcionamento dado pelas formas materiais construídas revela a lógica de seu idealizador. As construções, nesse sentido, atuam como formas de perpetuação de códigos culturais e de regras sociais, fazendo com que os ambientes que se formam a partir da inserção de

154

elementos construtivos em dada paisagem se constituam em espaços cheios de significados. Mesmo que sejam vivenciadas e entendidas de modos diferentes pelas pessoas, é inegável que as construções exercem algum tipo de influência nos indivíduos que com elas interagem. Aliás, interação é uma palavra-chave para o estudo das sociedades e suas construções – os seres humanos e as formas arquitetônicas interagem, formam-se, delineiam-se mutuamente, num contínuo processo de ser e tornar-se. Existe uma relação dinâmica e dialética envolvendo as pessoas e a materialidade em geral que faz dos ambientes construídos espaços de poder. É sobre o modo como essa relação se dá e como ela contribui para o processo de formação de identidades em meio ao contexto estancieiro da região de Cruz Alta que o presente capítulo diz respeito.

3.1 A pluralidade do espaço e o enfoque fenomenológico

Para tratar dos ambientes construídos enquanto espaços de poder é necessário que se explicite, em um primeiro momento, a noção de espaço que norteia esse estudo. Isso porque o conceito de espaço, freqüentemente utilizado de forma displicente, acaba por ser confundido com outros termos. Como bem observou Artur Barcelos em O Mergulho no Seculum, a dificuldade de lidar com a construção de conceitos alheios, como a própria idéia de espaço, resulta em uma adequação mais do objeto ao conceito do que o inverso 178 . Segundo o autor, é necessário

178

BARCELOS, Artur Henrique Franco. O Mergulho no Seculum: exploração, conquista e organização espacial jesuítica na América espanhola colonial. Tese de Doutorado. Porto Alegre: PUCRS, 2006, p. 15.

155

definir, “aprisionar” o espaço a fim de poder lidar com o mesmo enquanto uma categoria de análise da realidade:

Reconhece-se, assim, uma limitação nas interpretações sobre o espaço e se verifica o imperativo do método, que demonstra a forma como o espaço é apreendido, para logo, se possível, tornar-se inteligível 179 .

O cuidado na utilização do conceito de espaço não se limita, portanto, a evitar confusões de terminologia e semântica: o sentido que esse termo evoca dentro de um estudo científico evidencia as posições teóricas que o norteiam. Aqui o conceito de espaço tem sua fundamentação teórica nos pressupostos da fenomenologia da paisagem, linha de pesquisa que vem sendo desenvolvida há cerca de uma década 180 por estudiosos da cultura material. O conceito de espaço a ser trabalhado na presente pesquisa está estreitamente relacionado aos seres humanos, tidos em grupos sociais ou individualmente. Por sua dimensão humana, o espaço aqui apresentado é considerado dinâmico, relacional e temporal – ligado a um contexto, enfim. Por seu caráter contextual, o espaço torna-se plural – são vários os espaços, e não são homogêneos. São contraditórios em sua existência. São subjetivos, específicos, densos. São históricos. Nos anos 60 do século XX a Nova Arqueologia (posteriormente denominada Processual, devido à ênfase que dava à idéia de processo cultural) surgia como um movimento de insatisfação com relação ao modo como a Arqueologia vinha sendo até então praticada e entendida. A tentativa dessa corrente teórica anglo-americana em perceber as pessoas por detrás dos dados arqueológicos (dos artefatos) era embasada no ideal de fazer o trabalho do arqueólogo ser mais científico e mais 179

BARCELOS, 2006, p. 4. O trabalho de Christopher Tilley em A Phenomenology of Landscape, publicado em 1994, é considerado um marco nesse sentido. 180

156

antropológico. Até então, como Matthew Johnson coloca, os estilos cerâmicos e os tipos de casas pareciam ter criado pernas e andado por aí sem qualquer auxílio humano 181 . Entretanto, essa busca pela cientificidade acabou por aproximar a Nova Arqueologia da Nova Geografia, surgida uma década antes, o que trouxe para os estudos arqueológicos o conceito de um espaço estéril, desumanizado. A Nova Geografia buscava se cercar de elementos exatos, de definições precisas, de leis e regularidades comprovadas. Para atender a esse objetivo, empregou técnicas estatísticas, fez uso da geometria, adotou analogias com ciências da natureza, entre outras características que contribuíram para fazê-la conhecida como geografia quantitativa 182 . No mesmo sentido, a Nova Arqueologia buscava fundamentar sua cientificidade em elementos empíricos, em dados precisos, em números, tabelas e gráficos. Também se configurava como uma disciplina quantitativa. Dessas orientações teóricas resultou um espaço abstrato, entendido como um contêiner para as atividades e eventos humanos, conceitual e fisicamente dissociado dessas atividades e eventos e, por isso, concebido como universal: o espaço seria sempre o mesmo, desde os tempos mais remotos até o presente, conservando-se sem modificações também no futuro 183 . A suposta neutralidade desse espaço resultou em um entendimento de que o mesmo estaria divorciado de qualquer estrutura de dominação ou poder. Essa idéia deu origem a uma perspectiva simplista, traduzida em mapas repletos de pontos que deveriam indicar artefatos, sítios, populações, bem como o fluxo de objetos, informações e pessoas ao longo de diferentes áreas. Esses mapas formavam a representação de diferentes áreas culturais cronologicamente distribuídas. O espaço

181

JOHNSON, Matthew. Archaeological Theory. An introduction. Oxford: Blackwell, 1999, p. 21. CORRÊA, Roberto Lobato. Região e Organização Espacial. São Paulo: Ática, 1991, p. 18. 183 TILLEY, 1994, p. 9. 182

157

era apenas palco; era abstrato e ao mesmo tempo geométrico; poderia ser rigorosamente medido e descrito. Uma visão alternativa, pós Nova Arqueologia (pós-processual, portanto), mais preocupada com a interpretação do que com a explicação, veio propor um espaço humanizado, contextualmente constituído, ligado a biografias pessoais e a relações sociais. Segundo essa visão, o que o espaço é depende de quem o experiencia, e de que forma isso ocorre. Assim sendo, a experiência espacial não é inocente ou neutra, mas é investida com poderes de acordo com a idade, gênero, posição social e relacionamentos inter-pessoais 184 . Dessa forma, por ser, assim como o tempo, qualitativamente experienciado, o espaço não deve ser entendido simplesmente como uma variável neutra 185 . Como afirma Merleau-Ponty, o espaço não é o ambiente (real ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível. Quer dizer, em lugar de imaginá-lo como uma espécie de éter no qual todas as coisas mergulham, ou de concebê-lo abstratamente com um caráter que lhe seja comum, devemos pensá-lo como a potência universal de suas conexões. Portanto, ou eu não reflito, vivo nas coisas e considero vagamente o espaço ora como o ambiente das coisas, ora como seu atributo comum, ou então eu reflito, retomo o espaço em sua fonte, penso atualmente as relações que estão sob essa palavra, e percebo então que elas só vivem por um sujeito que as trace e as suporte, passo do espaço espacializado ao espaço espacializante. 186

Esse enfoque pressupõe uma contínua dialética entre os dados empíricos e as idéias, do que resulta um entendimento do espaço enquanto formado a partir da variedade de experiências e ações humanas. É possível afirmar, portanto, que o espaço possui historicidade, revela história, sendo composto de momentos

184

TILLEY, 1994, p. 11. HODDER, Ian and HUTSON, Scott. Reading the Past. Current approaches to interpretation in Archaeology. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 178. 186 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 328. 185

158

passados e presentes, do que aconteceu e do que está acontecendo, como define o geógrafo Milton Santos, que conceituou o espaço como sendo formado, “de um lado, pelo resultado material das ações humanas através do tempo, e, de outro lado, animado pelas ações atuais que hoje lhe atribuem um dinamismo e uma funcionalidade” 187 . Tempo passado e tempo presente somam-se na composição espacial, como ainda expôs Milton Santos:

O passado passou, e só o presente é real, mas a atualidade do espaço tem isso de singular: ela é formada de momentos que foram, estando agora cristalizados como objetos geográficos atuais; essas formas-objetos, tempo passado, são igualmente tempo presente enquanto formas que abrigam uma essência, dada pelo fracionamento da sociedade total. Por isso, o momento passado está morto como tempo, não porém como espaço; o momento passado já não é, nem voltará a ser, mas sua objetivação não equivale totalmente ao passado, uma vez que está sempre aqui e participa da vida atual como forma indispensável à realização social 188 .

A dinâmica do espaço o torna cheio de significados e também de significantes. O espaço é constituído de diversos elementos, da natureza, das criações humanas, de seres animados, inanimados, de um conjunto que faz com que sua existência seja atuante no mundo. O espaço não é palco. O espaço atua e faz atuar. É essa concepção de espaço humanizado que norteia a presente pesquisa. A natureza desse espaço não é inerte; também não é fixa. Em sua constituição estão envolvidos vários elementos, que fazem do espaço algo plural e relacional. Por isso é mais pertinente falar em espaços do que em espaço. O conceito não é fechado, nem geograficamente, tampouco idealmente. O espaço, como coloca Tilley 189 , é composto também pela terra, pelo céu e pelas constelações, pelas divindades, pelo nascimento e pela morte. Essa noção de

187

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: HUCITEC, 1997, p. 85. 188 SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem. São Paulo: Edusp, 2004, p. 14. 189 TILLEY, 1994.

159

espaço aberto, não quantificável ou mensurável em termos absolutos, conduz o estudo que aqui se apresenta. Por isso a dificuldade – e a impossibilidade – de apreender esse espaço em sua totalidade: é possível ouvir os sons, ver as cores, as formas, sentir os cheiros, os gostos, o toque, quantificar alguns elementos e narrar algumas sensações, mas a subjetividade do espaço enquanto participante da formação identitária de cada indivíduo não é mensurável. Pode ser imaginada, mas nunca será exata. Em vez de invalidar a pesquisa, esse conceito justamente traduz uma visão a respeito de ciência que não é fechada e que vê as teorias mais como modelos para pensar o mundo do que modelos do próprio do mundo. A impossibilidade de abarcar o todo é um dado que deve ser encarado pelos pesquisadores das ciências humanas como algo óbvio, não como um fracasso científico ou metodológico. É o reconhecimento de que o objeto de estudo final – o ser humano – não pode ser compreendido em sua totalidade mesmo com as técnicas mais avançadas de pesquisa empírica. Enquanto a descrição pode ser precisa e a explicação plausível, a interpretação é e sempre será subjetiva. Interpretar o passado possibilita compreendê-lo em alguns de seus múltiplos significados. Interpretar o espaço de hoje – ou alguns de seus significados – é mais uma forma de entender o passado. Didática e artificialmente é possível dividir o espaço para empreender seu estudo: o espaço físico do mundo não humanamente criado; o espaço tomado pelo corpo; o espaço mental da cognição e representação; o espaço construído; o espaço do movimento, encontro e interação entre os indivíduos e entre esses e as coisas, só para citar algumas possibilidades. Nesse sentido, em A Phenomenology of Landscape Christopher Tilley 190 identifica cinco formas de espaço propostas por 190

TILLEY, 1994, p. 15-17.

160

geógrafos que trabalham com o enfoque fenomenológico, como Taun, Pickles, Relph, Buttimer, Seamon e Mugerauer: o espaço somático, o perceptual, o existencial, o arquitetural e o cognitivo 191 . Abaixo há um apanhado das noções que fundamentam essa pluralidade de espaços. O espaço somático é o espaço da experiência sensória e do movimento corporal. O espaço abre-se ante o corpo e é diferenciável em termos de frente/trás; esquerda/direita;

vertical/horizontal;

topo/base;

ao

alcance/fora

de

alcance;

audível/não audível; dentro do campo de visão/além do campo de visão; aqui/lá. Dessa forma, o aparato físico do corpo impõe um esquema ao espaço através do qual este pode ser experienciado e entendido. É esse esquema que cria rotinas de movimento através do espaço arquitetônico, rotinas estas que tornam os indivíduos cientes de como prosseguir no mundo. O espaço perceptual é sempre relativo e qualitativo, uma vez que é baseado na percepção individual de cada ser humano. O espaço perceptual liga padrões de intencionalidade individual ao movimento corporal e à percepção. É um espaço que envolve sentimentos e histórias pessoais, que remete a sensações de medo ou conforto e fornece as noções de perto e longe, por exemplo. Através das ligações emocionais, esse espaço gera lugares de importância afetiva. O espaço existencial é estreitamente relacionado ao espaço perceptual. Seus significados transcendem o individual e formam a base para o espaço perceptual. É um espaço repleto de significados adquiridos ao longo da vida das pessoas em sociedade. Dá origem a sentimentos coletivos de pertença e reconhecimento grupal,

191

É importante lembrar que essa classificação não tem o objetivo de “encaixotar” o espaço, e apenas funciona como uma alternativa heurística para melhor entendê-lo.

161

os quais são constituídos a partir da existência de uma sociedade em contato com determinadas construções, objetos e características topográficas específicas. O espaço arquitetônico, também relacionado aos demais, envolve uma tentativa deliberada em criar o dentro, o fora, o entorno – canais por onde se realiza o movimento, enfim. A arquitetura é a criação deliberada de espaço feito tangível, visível e sensível. Por isso as construções têm um papel fundamental na criação e recriação, produção e reprodução do espaço existencial e contribuem efetivamente para estruturar o espaço perceptual. Por fim, o espaço cognitivo proporciona uma base para reflexão e teorização com relação ao entendimento dos outros. É o “espaço” da discussão, da análise e da interpretação. A multiplicidade de espaços também passa pela escala em que eles devem ser considerados. Existe algum espaço ideal a ser analisado? Depende do enfoque e dos objetivos da pesquisa. Não existe nenhuma escala de contexto espacial correta a priori – pode ser uma pequena área ou o mundo, de acordo com sua relevância para a pesquisa. Como Ian Hodder e Scott Hutson 192 bem exemplificam, a escolha de um espaço é similar às possibilidades de respostas dadas por uma pessoa quando lhe perguntam: “– De onde você é?”. A resposta – rua, bairro, cidade, estado, país, continente – dependerá de questões contextuais, como, por exemplo, com quem se está falando, onde, e porque a questão está sendo feita. Portanto, não existe uma correta ou ideal escala espacial de análise; esta é definida de acordo com o contexto que se quer analisar.

192

HODDER & HUTSON, 2003, p. 179.

162

Em seu estudo sobre o espaço missioneiro, resultado de seu trabalho de mestrado, Artur Barcelos 193 faz um apanhado das práticas e concepções teóricas sugeridas pela Arqueologia Espacial, apresentando concepções do espaço que conduzem a propostas concretas de intervenção arqueológica. O espaço, para fins de intervenção arqueológica dentro dos pressupostos da Arqueologia Espacial, é visto como um ambiente físico delimitado – classificado como micro, semi-micro ou macro, segundo a proposta de David Clarke, ou periferia, semiperiferia e interior do sítio arqueológico, de acordo com a idéia de Binford. Essas abordagens, dentre outras, não só se preocupam em delimitar o espaço a fim de que se possam planejar intervenções arqueológicas futuras, como também dizem respeito à inter-relação entre sítios e entre esses e seu entorno, em maior ou menor escala de abrangência. A Arqueologia Espacial apresenta, dessa forma, possibilidades de escalas espaciais de análise, apontando para uma arqueologia contextual inserida nos pressupostos teórico-metodológicos da middle-range theory 194 . Esse enfoque pode levar a uma visão estática do espaço, o que acaba por ser uma alternativa acessível para a prática arqueológica por oferecer modelos concretos para o desenvolvimento de pesquisas. No presente trabalho, uma idéia fechada de espaço limitaria a pesquisa e deturparia seus objetivos. Uma abordagem fenomenológica se interessa tanto pelo espaço do objeto localizado dentro do sítio quanto pelo espaço somático; se preocupa com a escala espacial não em termos mensuráveis, mas em relação ao fenômeno produzido quando da experiência corporal nesse espaço. Não separa coisa e espaço, corpo e ambiente, pensamento e materialidade, mas entende-os

193

BARCELOS, Artur Henrique Franco. Espaço e Arqueologia nas Missões Jesuíticas. O caso de São João Batista. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. 194 BARCELOS, 2000, p. 47.

163

como indissociáveis e formadores um do outro. Como afirma Merleau-Ponty 195 , “torna-se impossível distinguir rigorosamente o espaço e as coisas no espaço, a pura idéia do espaço e o espetáculo concreto que os nossos sentidos nos dão”. O fenômeno, como ele ocorre no encontro do indivíduo com suas vivências quotidianas, não é algo pensado cientificamente de antemão; isto é, as sensações produzidas pelo excitamento dos sentidos são espontâneas, e somente são assimiladas e racionalmente elaboradas pelos seres humanos após o evento ter ocorrido. Buscando recuperar alguns traços desses fenômenos, a arqueologia, através da fenomenologia, busca levá-los em conta em sua origem e relativa pureza, sem a rigidez científica advinda de uma elaboração mental, pensada e repensada, classificada, mensurada e compartimentada em “caixas de espaços”. Dessa forma, e reforçando as idéias apresentadas anteriormente a respeito da multiplicidade do espaço, tem-se este como “heterogêneo, com direções privilegiadas, que estão em relação com as nossas particularidades corporais e com a nossa situação de seres arrojados no mundo” 196 .

3.2 Os espaços e seus lugares: a formação identitária na perspectiva fenomenológica

O que faz do espaço uma dimensão menos abstrata é o fato de ele ser formado e significado a partir da existência dos lugares, para os quais fornece um contexto situacional. Sem lugares não há como existir espaços, e os primeiros têm

195 196

MERLEAU-PONTY, Maurice. Palestras. Lisboa: Edições 70, 2002, p. 28. MERLEAU-PONTY, 2002, p. 32.

164

significação ontológica primordial enquanto centros da atividade corporal aos quais os seres humanos atribuem significado e valor emocional 197 . A experiência de sentir um lugar, como Basso 198 enfatiza, é, então, uma dinâmica recíproca e incorrigível: como os lugares animam as idéias e sentimentos das pessoas que os freqüentam, estas mesmas idéias e sentimentos animam os lugares para os quais as atenções são voltadas. Em outras palavras, como o lugar é sentido, os sentidos são localizados; e como o lugar faz sentido, os sentidos também fazem o lugar 199 . O lugar, temporal e histórico, é parte essencial no processo de construção de valores e regras culturais que constituem uma sociedade. Como afirma Casey 200 , tempo e história, o meio diacrônico da cultura, estão tão profundamente inscritos nos lugares como são inseparáveis deles – tão inseparáveis quanto os corpos que sustentam estes mesmos lugares e carregam a cultura situada neles 201 .

Dessa forma, explorar a materialidade de um determinado lugar é explorar também a formação cultural e identitária de seu povo. Por isso a experiência fenomenológica dos lugares onde se estabeleceram as estâncias no século XIX, em

197

TILLEY, 1994. BASSO, K. H. “Wisdom Sits in Places. Notes on a Western Apache Landscape” in FELD, S.; BASSO, K. (eds). Senses of Place. Santa Fe, New Mexico: School of American Research Press, 1996, p. 55. 199 FELD, S. “Waterfalls of Song. An Acoustemology of Place Resounding in Bosavi, Papua New Guinea”, in FELD, S.; BASSO, K. (eds). Senses of Place. Santa Fe, New Mexico: School of American Research Press, 1996, p. 91. 200 CASEY, E. “How to get from space to place in a fairly short stretch of time: phenomenological prolegomena”, in FELD, S.; BASSO, K. (eds). Senses of Place. Santa Fe, New Mexico: School of American Research Press, 1996, p. 37. 201 “Time and history, the diachronic media of culture, are so deeply inscribed in places as to be inseparable from them – as inseparable as the bodies that sustain these same places and carry the culture located in them”. 198

165

especial da Vista Alegre 202 , constitui-se em uma possibilidade para o entendimento de seus habitantes. A formação da identidade de uma pessoa ou de um grupo ocorre em diversos níveis – individual e coletivo, dentro de um núcleo familiar e em sociedade, em uma região ou em escala global. Na medida em que a ação individual ou social torna-se mais abrangente, abarca uma diversidade maior de experiências de lugares. Como essas experiências acabam por formar identidades pessoais ou de grupo, a recuperação das mesmas por meio da fenomenologia é dada em uma escala proporcional ao enfoque da pesquisa. Em outras palavras, a experiência fenomenológica, sempre ligada ao lugar, pode se limitar a um lugar específico ou abranger uma série de lugares, dependendo do propósito da investigação. Se a intenção é compreender um núcleo familiar, o lugar a ser estudado pode ser a casa. Se o propósito é investigar a sociedade e as relações dos indivíduos que a compõem, os lugares a serem experienciados vão desde os de domínio público, como caminhos, coxilhas e vegetações, até os ambientes onde a vida privada se desenvolve. Na presente pesquisa, que busca interpretar a sociedade estancieira por meio da cultura material através do enfoque fenomenológico, um lugar chave para ser estudado é a sede da estância. Isso porque a sede, como exposto anteriormente, é composta de elementos arquitetônicos que representam, em uma escala mais restrita, o padrão de organização da sociedade em meio ao contexto estancieiro. Nesse sentido, a estância Vista Alegre é uma fonte singular para o estudo aqui proposto na medida em que possibilita compreender as limitações que suas formas

202

O destaque conferido à Vista Alegre como sítio arqueológico para o desenvolvimento da pesquisa fenomenológica justifica-se pelo fato de existir nesta propriedade a casa-sede, a senzala e o galpão, unidades básicas de análise dentro do estudo aqui proposto.

166

materiais – em especial as moradias – conferiam às pessoas que com elas interagiam. Essa limitação imposta pela materialidade ao corpo é um elemento importante na formação identitária de indivíduos e grupos sociais. Na medida em que essa imposição pode ser considerada um mecanismo de disciplina social, seu estudo torna-se relevante para o entendimento da sociedade estancieira oitocentista.

3.3 Fenomenologia da paisagem

Experienciar quotidianamente determinada materialidade na amplitude da dimensão em que essa experiência ocorre envolvendo tato, olfato, visão, paladar e audição, gera no indivíduo estruturas cognitivas que lhe permitem atuar no mundo sem que haja um planejamento prévio para a sua ação. Essas estruturas, formadas ao longo da singularidade de cada vivência do ser humano, são em grande medida o resultado da interação do corpo com a materialidade. São, dessa forma, um produto cultural que é naturalizado pelas pessoas na sua interação com o mundo material em que se inserem. Na formação dessa estrutura particular de cada indivíduo não há espaço para divisão entre natureza e cultura. Há espaço somente para a experiência do mundo material: para árvores e carros, para animais e flores, para pessoas e músicas, para cheiros e dores. Há espaço para sensações localizadas, mas não compartimentadas. Ao sofrer a experiência de um lugar as pessoas não o fazem acessando formas específicas de interação com a natureza ou com a cultura. Sentar à sombra de uma árvore envolve sentir esse lugar fisicamente em sua totalidade, não importando o que há de cultural ou de natural nessa ação, uma vez que o corpo

167

humano não faz a distinção entre natureza e cultura ao atuar no mundo. Essa divisão é feita pelo próprio ser humano a partir de sua subjetividade. Perceber natureza e cultura como instâncias opostas não é uma idéia inata ao ser humano, mas é uma construção social verificada especialmente no pensamento ocidental. Uma visão que supera o dualismo natureza/cultura vem sendo discutida dentro do Pós-Processualismo por estudiosos da cultura material que têm como foco de suas pesquisas a paisagem. O primeiro ponto a considerar, dentro de uma variedade de enfoques propostos por geógrafos, antropólogos, historiadores, arqueólogos, entre outros estudiosos da cultura material, é a dinâmica da paisagem. A ligação original do conceito de paisagem ao campo das artes fez com que seu significado fosse associado a algo imóvel, como um bosque representado numa tela. A paisagem seria algo dado, estático e estável. Objetivo, portanto. Por essa visão, comum ao pensamento ocidental contemporâneo, a paisagem é comumente relacionada à superfície da terra, podendo ser medida, descrita e desenhada 203 . Na perspectiva fenomenológica a paisagem que era somente objeto de contemplação deu lugar a uma paisagem contestada, trabalhada, constantemente alterada física e emocionalmente, considerada em sua interação com os seres humanos de acordo com circunstâncias individuais, sociais e políticas. A paisagem, por esse enfoque, está sempre em processo, sempre sendo e se tornando. O conceito compartilhado pela presente pesquisa é o proposto por Christopher Tilley em A Phenomenology of Landscape 204 , que rejeita uma noção de paisagem enquanto unicamente uma representação mental e cognitiva, ou enquanto elemento para mera contemplação. O termo paisagem se refere à forma física e 203

KÜCHLER, Susanne. “Landscape as memory: the mapping of process and its representation in a Melanesian society” in Bender, B. (ed), Landscape – politics and perspectives. Oxford: Berg, 1995, p. 85. 204 1994. Obra citada.

168

visual da terra, à sua aparência, que pode ser descrita em termos de topografia, contornos de rios, solo, vegetação, etc., mas também diz respeito às criações humanas, como monumentos e povoados. Dentro de uma paisagem as características geográficas ou humanamente criadas que recebem algum atributo qualitativo por parte de um indivíduo ou mesmo de uma sociedade dão origem aos locais. Estes possuem significado cultural e simbólico em meio a uma paisagem, o que a faz mais do que um objeto para simples contemplação, descrição e representação 205 . Em estudos sobre a cultura material a paisagem não deve ser um fim em si mesma, mas um meio para a compreensão das sociedades. Compreender a paisagem mais pela relação que se estabelece entre a mesma e os seres humanos do que pela definição exata e estática do seu conceito revela uma posição teórica que não compartimenta a realidade em categorias conceituais imutáveis e não compartilha da visão dual cartesiana. As paisagens se recusam a serem disciplinadas. Invocando tempo e espaço, passado e presente, estando sempre em processo e tensão, [os estudos da paisagem] ridicularizam as oposições por nós criadas entre tempo (história) e espaço (geografia), ou entre natureza (ciência) e cultura (antropologia) 206 “.

Para fins didáticos a paisagem pode ser conceituada de diferentes formas. Mas estes conceitos, construções sociais, devem ser tidos como múltiplas faces de um mesmo todo, uma vez que o entendimento da paisagem, como tido nesse estudo, passa pela aceitação de que a mesma envolve desordem. As teorias sobre a paisagem, como Barbara Bender afirma, deveriam abarcar ambigüidade e

205

Uma reflexão consistente a esse respeito é encontrada especialmente no capítulo Space, Place, Landscape and Perception: phenomenological perspectives na referida obra de Christopher Tilley, A Phenomenology of Landscape (1994). 206 BENDER, Barbara. “Place and Landscape” in TILLEY, C.; KEANE, W.; KÜCHLER, S.; ROWLANDS, M; SPYER, P. (eds.), Handbook of Material Culture. London: SAGE, 2006, p. 304.

169

contradição, evitar conclusões, reconhecer que pessoas, coisas e lugares estão sempre em processo, e que os limites entre eles são permeáveis e imbricados 207 . A

concepção

representação gráfica.

dinâmica

da

paisagem

problematizou

também

sua

Não que a tenha negado, mas admite que ela não é

suficiente. Como Johnson afirma, começa a fazer menos sentido pensar nos sítios como um número limitado de pontos em um mapa, e muito mais sentido pensar em uma paisagem inteira 208 . Uma planta baixa, uma carta geográfica, percebida pelo olhar de uma só vez, a um só lance, gera um conhecimento espacial abstrato dos lugares e paisagens. Segundo Tilley, essa postura de produzir trabalhos sobre a paisagem a partir de uma escrivaninha e não da própria paisagem acaba por gerar paisagens-papel, perspectivas-papel, estudos baseados em representações visuais e não em experiências corporais, os quais produzem modelos abstratos sobre o pensar as paisagens em vez de modelos das paisagens como elas são vivenciadas pelos sentidos humanos 209 . A superação desse modelo unicamente abstrato da paisagem pode ser empreendida através da fenomenologia. É necessário, portanto, como afirma Tilley, que se esteja em algum ponto dentro da paisagem que se estuda, o que pode ser alcançado de maneira mais eficaz através do enfoque fenomenológico: explorando o mundo através do corpo o pesquisador familiariza-se com as paisagens e os lugares que busca compreender 210 . Dentro dessa idéia é que a presente pesquisa é apresentada, indo além da arqueologia que reduz a sociedade a números, tamanhos e formas, na medida em que propõe compreender os grupos 207

BENDER, 2006, p. 310. JOHNSON, Matthew. “Thinking about Landscape”, in RENFREW, C.; BAHN, P. Archaeology. The key concepts. London: Routledge, 2005, p. 156. 209 TILLEY, 2004c, p. 27-28. 210 TILLEY, Christopher. “Round Barrows and Dykes as Landscape Metaphors” in Cambridge Archaeological Journal 14:2. United Kingdom: McDonald Institute for Archaeological Research, 2004b, p. 185. 208

170

humanos do passado por meio da experiência corporal na paisagem em estudo. Por meio da fenomenologia, em outras palavras.

3.4 O corpo humano, a experiência da materialidade e os estudos sobre a cultura material.

Em sua vivência quotidiana os seres humanos estão em contato contínuo com as formas materiais, sofrendo a experiência da materialidade que os cerca à medida que seus sentidos são estimulados. A audição, o tato, o olfato, o paladar e a visão constituem-se, desse modo, nos canais de comunicação que possibilitam a internalização do mundo extra-corpóreo. Esses canais comunicam os princípios do grupo no qual o indivíduo se insere, seja no nível familiar, seja no nível mais amplo da sociedade. Cabe lembrar que essa influência não é unidirecional, uma vez que os seres humanos também influenciam o mundo ao seu redor, externalizando o que faz parte de seu universo interior. Esses dois processos são denominados, de acordo com as idéias de Pierre Bourdieu, de incorporação e objetificação 211 . Como criações sociais, as formas arquitetônicas são instrumentos que direcionam os seres humanos para uma atuação no mundo de acordo com a lógica do grupo ou indivíduo que as criou. Na interação quotidiana essas formas contribuem para sugerir ou mesmo impor aos seres humanos modos de pensar e de agir de acordo com a estrutura social na qual se inserem. O processo de socialização é então direcionado de acordo com um conjunto de regras e valores objetificados na materialidade.

211

BOURDIEU, Pierre. Outline of a Theory of Practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1977, p. 72.

171

Situando essas experiências interativas dentro do contexto da estância Vista Alegre, percebe-se que a disposição das formas arquitetônicas em sua sede objetifica a estrutura social de que faziam parte seus habitantes. No processo quotidiano de interação entre as pessoas que viviam na estância, e entre essas e o espaço arquitetônico, as regras sociais objetificadas na materialidade das construções acabavam por ser incorporadas pelos indivíduos. Estes respondiam a essa dada materialidade de forma objetiva, mesmo que por vezes a partir de uma motivação subjetiva. Nessa dialética internalização/externalização eram formadas identidades

individuais

e

coletivas

que,

embora

nem

sempre

tomadas

conscientemente pelas pessoas, estavam de algum modo presentes em suas relações com o mundo exterior. Essa manifestação inconsciente da identidade cultural estruturada nos seres humanos ao longo de suas vidas é denominada habitus. O habitus pode ser caracterizado, segundo Pierre Bourdieu, como história tornada natureza 212 . Esse conceito pode ser entendido como a intervenção humana no mundo, através de pensamentos e de ações não premeditados, a qual é dada de acordo com a experiência particular de vida adquirida pelo indivíduo até o momento em que se dá essa intervenção. Embora objetivamente o habitus se apresente como uma estratégia de atuação, ele não é produto de uma intenção estratégica previamente elaborada. O habitus é um sistema socialmente constituído de estruturas cognitivas e motivacionais, mais profundas do que o que sustenta o simples interesse. Ter interesse e manifestá-lo é uma forma de exteriorizar um pensamento planejado, enquanto que o habitus não envolve planejamento prévio, caracterizando-se como

212

BOURDIEU, 1977, p. 78.

172

uma atitude que aparenta ser natural ao ser humano, mas que foi socialmente construída no decorrer de sua existência. Dentro de uma coletividade, como a do grupo que habitava a estância Vista Alegre, a história compartilhada pelos indivíduos gera entre seus componentes um tipo de comportamento semelhante. Certas atitudes, vocabulário, tom de voz para cada situação, caracterizam as pessoas que convivem dentro de um mesmo contexto, identificando-as com o mesmo. Esse conjunto de características é reproduzido no dia-a-dia, configurando o habitus de um grupo social. A manifestação do habitus, assim, pode ser considerada como a projeção, nas relações sociais, da estrutura do ser humano. Essa estrutura possibilita que dentro de um contexto específico sejam dadas certas respostas “naturais” a determinados estímulos. Mesmo que essas respostas possam variar de pessoa para pessoa, elas estarão dentro de uma gama de possibilidades geradas a partir da vivência individual passada – a partir da história, portanto. Essa resposta é o habitus, que constitui a estrutura social e cognitiva das pessoas. Esses princípios estruturantes não são fixos e invariáveis, mas se caracterizam como improvisações que seguem uma determinada lógica. Através do habitus a estrutura cultural que o produziu conduz a prática, não de forma determinista, mas por meio da orientação que ela mesma sugeriu no processo em que o habitus foi gerado. Por meio do habitus, portanto, estruturas culturais (em seu aspecto social, legal, moral, religioso, etc.) são reproduzidas. Ao serem manifestadas, essas estruturas recebem novos elementos culturais, o que provoca sua modificação. Assim como a história e a cultura não são estáticas, o habitus também não é.

173

Compreender o modo como o habitus é formado e manifestado em meio a uma sociedade possibilita uma melhor compreensão das identidades geradas na e pela mesma. Possibilita também um maior entendimento dos processos que levam à internalização das regras sociais, incorporadas pelos indivíduos em seu contato com os elementos materiais que objetificam essas regras, e à manifestação das mesmas no nível exterior, dada por meio do habitus e da objetificação. Uma vez que esses processos são desencadeados antes mesmo do ser humano ter desenvolvido pensamento abstrato ou teórico, o papel das formas arquitetônicas como disciplinadoras sociais é bastante significativo. Mesmo que as pessoas não sejam passíveis em meio às formas materiais, é inegável que o conjunto arquitetônico das sedes das estâncias constituía-se em um meio de preservação da hierarquia social. Essa hierarquia, manifestada na arquitetura, acabava por influenciar as formas de interação entre as pessoas e a materialidade, fazendo com que os indivíduos desencadeassem rotinas de movimento corporal para viver em meio à sede. Desse modo, a experiência corporal das pessoas nesses lugares, onde se localizavam suas moradias e onde se desenvolvia parte da rotina diária, contribuía para estruturar seus pensamentos. Estes, ao conduzir a ação humana, acabavam por interferir no mundo físico, gerando, assim, novos pensamentos nos seres humanos que o tinham modificado. É um ciclo contínuo no qual criador e criatura se confundem e influenciam um ao outro. O pensamento toma forma física e também acaba por originar, como uma extensão da mente humana, a cultura material 213 . Esta, por sua vez, ao atuar fisicamente no mundo, aguça os sentidos – visão, audição, paladar, tato, olfato – e internaliza esse mundo exterior ao nível particular de cada ser humano. 213

É válido ressaltar que aqui o conceito de cultura material não se restringe somente ao que é criado pelo ser humano.

174

O corpo vivo, como afirma Tilley 214 , nada mais é do que uma combinação dinâmica entre sujeito e objeto. Portanto, pode-se dizer que é impossível ser puramente objetivo ou puramente subjetivo, na medida em que a experiência e conhecimento do mundo resultam desses dois níveis. Nesse processo dialético de interação entre pessoas e coisas, idéia que dá base à fenomenologia, o mundo exterior

e

o

universo

interior

se

tornam

tão

intrinsecamente

ligados

e

interdependentes que já não é mais possível falar em sujeito e objeto de modo isolado. O pensamento humano ocupa lugares no mundo físico da mesma forma que as formas concretas têm lugar na mente. Um existe sem o outro, mas somente enquanto não se entrecruzam. No exato momento em que uma dada paisagem ou um dado objeto é percebido por um indivíduo a personificação das formas materiais e a objetificação do pensamento tomam seu lugar, dando forma e sentido a um mundo que é particular a quem o percebe. O mundo percebido é, portanto, o mundo real de cada indivíduo. Como afirma Merleau-Ponty, “não é preciso perguntar-se se nós percebemos o mundo, é preciso dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos” 215 . A ignorância é o que separa o irreal do real, o mundo fictício do mundo verdadeiro, e cada ser humano tem o seu próprio mundo, já que o percebe de uma forma particular. Dessa visão decorre um universo que se restringe à existência individual de cada ser humano: o que está fora do alcance físico ou imaginário de uma pessoa, o que ela ignora, não possui significado algum para a mesma, e por isso não pode ser considerado parte do seu mundo. Portanto o mundo não é somente quantificável e mensurável, mas é também sensível, sente e faz sentir.

214

TILLEY, Christopher. The Materiality of Stone. Explorations in landscape phenomenology. Oxford/New York: Berg, 2004c, p. 3. 215 MERLEAU-PONTY, 1999, p. 13-14.

175

Trazendo esse pensamento para o estudo das formas materiais busca-se romper com o modo de fazer arqueologia exclusivamente através de números, tamanhos e formas e propõe-se, a partir das idéias da fenomenologia, uma pesquisa que tem nas experiências sensoriais um método para compreender as sociedades passadas. Nas palavras de Merleau-Ponty, fenomenologia

é a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é, sem nenhuma deferência à sua gênese psicológica e às explicações causais que o cientista, o historiador ou o sociólogo dela possam fornecer 216 .

O objetivo da fenomenologia, portanto, não é explicar o mundo em termos de causalidade física, de eventos históricos ou disposições psicológicas, mas descrever esse mundo, o mais precisamente possível, da maneira como os seres humanos o experienciam 217 . Vendo, ouvindo, sentindo o mundo que busca entender, o pesquisador de hoje se aproxima das sociedades do passado na medida em que dá chances, por meio da experiência corporal, de que sensações físicas vivenciadas por esses grupos sejam reproduzidas. Se o mundo real é o mundo percebido, a busca, por parte do pesquisador, de se aproximar das sociedades passadas por meio da percepção do universo material do qual faziam parte é justificada. Não se trata de perceber pela visão dos outros, mas de buscar, através do contato físico com o meio com o qual os grupos humanos do passado interagiram, as experiências sensoriais que os seres humanos, em um sentido geral, são capazes de sofrer. Isso porque o corpo humano é, basicamente, igual. Desse modo, o contato direto com as estâncias que fazem parte deste estudo é essencial para a compreensão do

216 217

MERLEAU-PONTY, 1999, p. 1-2. TILLEY, 2004c, p. 1.

176

passado por meio das sensações provocadas pelo estar no lugar e pelo sentir o lugar, em termos físicos. Aplicada a estudos arqueológicos, a fenomenologia parte do princípio de que as qualidades sensoriais do corpo humano provêm o aparato necessário para que as mesmas formas materiais sejam fisicamente experienciadas de modo semelhante por todos os seres humanos, no passado ou no presente. A visão fenomenológica considera que a maneira como os indivíduos percebem o mundo está intimamente ligada com os tipos de corpos que todos têm e, basicamente, compartilham 218 . Uma vez que os seres humanos modernos, Homo sapiens sapiens, compartilham o mesmo nível biológico, sua experiência corporal será similar. Em outras palavras, os seres humanos de hoje têm a capacidade de sentir o mundo da mesma forma que seus antepassados o faziam, uma vez que, de um modo geral, são dotados dos mesmos cinco sentidos – tato, olfato, paladar, visão e audição. Os impactos psicológicos gerados pelo contato com o mundo material são particulares, individuais, e não podem ser reproduzidos, mas o modo como as formas materiais ativam os sentidos é praticamente a mesma. Disso decorre que o mundo

material

remanescente

do

passado

(paisagens,

objetos,

lugares,

construções, etc.) pode reproduzir hoje as mesmas sensações físicas que foram vivenciadas por comunidades de outrora. Mesmo que essa reprodução não seja exata, ela é mais uma possibilidade que aproxima os pesquisadores de hoje das sociedades do passado. Sentir a materialidade e desenvolver técnicas corporais de interação com a mesma não é somente de uma questão de tocar ou evitar tocar as coisas; mais do

218

TILLEY, Christopher. “Mind and Body in Landscape Research”, in Cambridge Archaeological Journal 14:1. United Kingdom: McDonald Institute for Archaeological Research, 2004a, p. 79.

177

que isso, o mundo material é um componente forte no processo de direcionamento da estrutura mental, do comportamento, das relações humanas, da vida, por conseguinte. A existência pessoal e a existência social estão intimamente ligadas às formas físicas que demarcam a conduta corporal humana. A partir de diferentes experiências corporais são criadas diferentes noções de espaços somáticos, desenvolvendo-se também noções distintas de espaços perceptuais e existenciais. Como as construções têm um papel crucial na criação, produção e reprodução do espaço existencial e, conseqüentemente, do espaço perceptual, as diferenças entre as formas arquitetônicas resultam em noções diferentes de identidade individual e coletiva. Considerando a sociedade estancieira do Noroeste rio-grandense por meio das formas arquitetônicas é possível afirmar que o padrão de distribuição dessas formas nas sedes pode ser interpretado como a objetificação da lógica de pensamento de um grupo social que se percebia como superior perante os demais. Uma análise da disposição das construções revela que o uso de determinados lugares estava associado à organização da sociedade estancieira e à conseqüente relação entre os indivíduos.

178

4 ESPAÇO ARQUITETÔNICO, EXPERIÊNCIA CORPORAL E SOCIEDADE ESTANCIEIRA

Dentro da região considerada no presente estudo, as sedes das estâncias possuíam uma organização bastante semelhante. A disposição das moradias seguia um padrão no qual a casa-sede ocupava sempre um ponto de destaque perante as demais edificações, localizando-se comumente no centro da sede, tendo a sua volta o galpão e a senzala, ou estando posicionada de modo a parecer projetada em meio às outras construções. Esse modelo, embora não fosse regra, é encontrado repetidamente, com pequenas variações, não somente no Noroeste do Rio Grande do Sul como também em outras áreas, como Luccas 219 evidenciou em seu trabalho sobre a arquitetura pecuária gaúcha. Nesse sentido, o presente capítulo propõe algumas interpretações a respeito da organização do espaço arquitetônico estancieiro a partir de teorias que relacionam a formação identitária do ser humano a sua interação corporal com a materialidade.

4.1 Conjunto arquitetônico e hierarquia social: interpretações sobre a disposição das sedes

É pelo corpo que o mundo é sentido e é também através do corpo que as sensações são expressas. De acordo com Merleau-Ponty 220 o corpo vivo é, ao

219

Trata-se de sua dissertação de mestrado, já referida anteriormente, Estâncias e Fazendas: Arquitetura e Pecuária no Rio Grande do Sul. 220 MERLEAU-PONTY, 1999.

179

mesmo tempo, sujeito e objeto, constituindo-se na própria consciência humana, na medida em que ela é formada a partir do contato físico com o mundo. Dessa forma, pode-se dizer que a consciência é corporal, que a subjetividade humana está intimamente relacionada com a atuação objetiva do indivíduo no mundo. Por isso o estudo das sociedades por meio das formas arquitetônicas é relevante: em uma dada materialidade o ser humano desenvolve esquemas corporais que lhe permitem interagir dentro da mesma. Essa atuação no mundo, dada através do corpo, gera uma consciência corporal e uma subjetividade específicas, originadas na interação do ser humano com as formas materiais. Desse modo, estudar as formas materiais da sede de uma estância permite apreender certas rotinas corporais que foram desenvolvidas pelos seres humanos ao interagirem com esses ambientes específicos. O aparato físico do corpo acaba por impor um esquema ao espaço através do qual ele pode ser experienciado e entendido, criando rotinas de movimento que tornam as pessoas conscientes de si mesmas e de seu mundo. Em pesquisas sobre a cultura material essa visão fenomenológica requer uma concepção teórica que ultrapasse a dicotomia característica dos estudos estruturalistas. O que o estruturalismo

considera

como

opostos,

a

fenomenologia

considera

como

complementares. Aplicado a pesquisas sobre a cultura material o estruturalismo acabou por não somente separar sujeito e objeto, como também por considerá-los antagônicos. Conforme essa visão as coisas somente adquiririam algum significado através da ação humana. Os objetos, portanto, seriam passivos. De acordo com esse pensamento, o objeto tão somente refletiria a estrutura da sociedade que o criou e consumiu, não podendo ser caracterizado como um agente transformador.

180

A superação desse dualismo não implica em negá-lo, mas em entendê-lo como uma construção social, e não como uma característica inerente ao ser humano, como propõe o estruturalismo. Para a fenomenologia a percepção dicotômica de mundo é baseada na bilateralidade corporal, sendo desenvolvida justamente pela atuação dos seres humanos no mundo, o que se dá por meio do corpo. As oposições seriam o resultado de uma interação do corpo com a materialidade pautada pelos padrões da cultura ocidental, e, por isso, ausentes no pensamento de outras culturas que interagem de modo diverso com as formas materiais. Se é o corpo que faz a ligação entre os mundos interno e externo, é compreensível que o pensamento e as ações dos seres humanos sejam formados e conduzidos pela bilateralidade. Afinal, o corpo é bilateral, do que decorre que as formas de interagir com o mundo podem ser resumidas a conceitos binários expressos

em,

basicamente,

seis

dimensões

concretas:

cima/baixo

(ou

acima/abaixo); esquerda/direita; e na frente/atrás 221 . Essas dimensões acabam por ser assimiladas pelas pessoas e posteriormente projetadas nos relacionamentos. Disso decorrem outras associações, também bilaterais, que norteiam a existência humana. Essas associações são expressas, por exemplo, em dualismos como frio e calor, claro e escuro, positivo e negativo, bom e ruim, bem e mal, dia e noite, e assim por diante. Interessante é notar que essas noções, nas sociedades ocidentais, em um sentido geral, estão ligadas a cima/frente/direita (positivo, bom, calor, etc.) e baixo/trás/esquerda (triste, frio, negativo, mal, etc.). Termos meramente relacionados à posição física das coisas em relação ao corpo acabam por codificar conceitos 221

TILLEY, 2004c, p. 4.

181

carregados de valor moral, conceitos que revelam idéias de superioridade e inferioridade, como cima e baixo, por exemplo. Assim como ocorre com as pessoas, pode-se dizer que também as coisas possuem o lado da frente e o lado de trás (carros, casas, jardins, livros) 222 , uma atribuição que lhes é dada pelos próprios indivíduos que com elas interagem. Desse modo, os lados de um lugar também têm implicações sociais e morais: a parte de trás é geralmente associada à impulsividade, ao comportamento moralmente incorreto, enquanto que o lado da frente é positivamente avaliado e colocado à mostra. Quando essa lógica é transposta para a organização de um conjunto arquitetônico, tem-se um modelo de organização dual. Outra forma de pensamento dualista advindo da experiência corporal no mundo pode ser verificada em relação a centro e periferia. De acordo com a lógica formada pela noção que o corpo dá ao ser humano pode-se afirmar que partindo do centro para a periferia há um decréscimo de dignidade e poder, o que é caracterizado como um modelo sociocêntrico. Esse termo foi proposto por Tilley 223 para fazer referência a uma concepção egocêntrica de mundo. Sendo o corpo o centro, é a partir dele que o mundo é valorado. Disso decorre a criação de um espaço arquitetônico no qual o centro é ocupado pelo componente de maior valor, sendo que a partir dele, em direção à periferia, são estabelecidos os elementos de menor valor (dentro da lógica de quem idealiza essa organização). A análise das sedes das estâncias localizadas na região de Cruz Alta possibilita uma interpretação que aponta tanto para o modelo sociocêntrico quanto

222 223

TILLEY, 2004c, p. 7. TILLEY, 2004c.

182

para o modelo dual. Para chegar a essa interpretação foram analisadas as disposições das moradias das sete sedes onde foram realizados trabalhos de campo, bem como a pesquisa empreendida pelo arquiteto Nery Silva, que disponibilizou em seu livro Arquitetura Rural do Planalto Médio 224 plantas-baixas de algumas das sedes das propriedades em que realizou sua pesquisa. Um especial destaque será dado à sede da estância Vista Alegre, por ser a única que preserva as moradias que compunham o conjunto arquitetônico básico das sedes das estâncias. Fazenda Monte Alvão Na figura 41 é demonstrado o desenho da implantação 225 da Fazenda Monte Alvão, localizada no município de Santo Ângelo. A partir de levantamentos junto a fontes primárias, Nery Silva 226 procurou reproduzir graficamente a implantação original da sede desta propriedade, sem considerar as recentes reformas que interferiram significativamente na disposição e nas formas do conjunto arquitetônico da fazenda. O arquiteto informa que não foi possível identificar na atual fazenda onde se localizavam o galinheiro, o chiqueiro, a atafona e o alambique, elementos construtivos citados no inventário de seu antigo proprietário, datado de 1879. Pelo desenho percebe-se que a casa do estancieiro estava localizada à frente das demais construções. Se comparada à casa dos peões e ao quarto das empregadas, a casa-sede não se destacava apenas pelo tamanho, mas também por estar em um ponto estratégico dentro do sítio, com as construções satélites localizadas ao seu redor e para trás. A implantação da sede da Fazenda Monte

224

2004. Obra citada. Implantação é o termo utilizado, em arquitetura, para designar a distribuição dos edifícios em uma determinada área ou local. 226 SILVA, 2004, p. 167-175. 225

183

Alvão pode ser interpretada como uma forma de organização que combina as lógicas sociocêntrica e dual, em que há um decréscimo de poder e status a partir do centro e da frente, área ocupada pela casa-sede.

Figura 41: A partir da casa do estancieiro são posicionadas as demais construções que compõem o conjunto arquitetônico da sede da Fazenda Monte Alvão. A implantação dessa sede demonstra um modelo hierárquico de espaço arquitetônico. Fonte: SILVA, 2004, p. 174, com adequação da autora (em cores).

184

185

Fazenda do Cadeado Um outro exemplo de espaço arquitetônico que pode ser considerado um modelo hierárquico de implantação da sede é encontrado na Fazenda do Cadeado, no atual município de Boa Vista do Cadeado. Segundo o arquiteto Nery Silva 227 , esta propriedade, erigida em 1836, possuía, lado a lado na mesma edificação, moradia, estábulo e comércio (com a moradia no centro da construção). Essa construção, da qual fazia parte a casa do estancieiro, apresentava-se como o volume principal da sede da estância. Embora não haja identificação de construções como senzalas ou moradia de peões, o desenho da implantação da Fazenda do Cadeado, feito por Nery Silva, apresenta cozinha suja e galpão de madeira, edificações que, na época, poderiam abrigar tanto trabalhadores livres quanto escravizados. A disposição do conjunto arquitetônico da sede da Fazenda do Cadeado (figura 42) pode ser interpretada como um modelo dual, em que a distribuição das formas arquitetônicas dá-se a partir da casa-sede para trás, demonstrando hierarquia – o que está na frente, exposto, é mais valorado do que o que se encontra nos fundos da sede.

227

SILVA, 2004, p. 161-167.

Figura 42: Implantação da Fazenda do Cadeado, de 1836. A noção de hierarquia é dada pela disposição das formas arquitetônicas conforme um modelo de organização dual. Fonte: SILVA, 2004, p. 164, com adequação da autora (em cores).

186

187

Fazenda do Sobrado Também no Noroeste do Rio Grande do Sul a Fazenda do Sobrado, no atual município

de

Bossoroca,

apresenta

uma

sede

em

que

as

construções,

especialmente as moradias, localizam-se em pontos que, tomando a casa-sede como referência, estão distribuídos atrás da mesma. Vale chamar a atenção, nessa sede, para a construção que servia como senzala, que já se encontrava no local antes da então estância do Sobrado ser erigida, em 1840. Mesmo não tendo sido planejada para compor a estância, essa edificação parece plenamente incorporada ao conjunto arquitetônico da sede, não destoando dos padrões comumente identificados nas estâncias do período. Na sede da atual Fazenda do Sobrado, mais uma vez a lógica de organização do espaço arquitetônico segue uma orientação que pode ser considerada como exemplo de modelo hierárquico, caracterizado pela lógica dual. Como a figura 43 mostra, a senzala e os galpões estavam localizados atrás da casa-sede.

Figura 43: Implantação da Fazenda do Sobrado, de 1840, em que a lógica dual cria a noção de hierarquia dentro do espaço da sede. Fonte: SILVA, 2004, p. 148, com adequação da autora (em cores).

188

189

Fazenda das Brancas Ainda na região de Cruz Alta, a Fazenda das Brancas, erigida em 1882 em uma área atualmente localizada entre os municípios de Palmeira das Missões e Santo Augusto, segue a orientação verificada nas demais propriedades estudadas: a implantação de sua sede destaca a casa do estancieiro perante as demais moradias. É interessante notar, na implantação dessa propriedade (figura 44), a presença de três casas de empregados, o que não ocorre nas demais sedes da região. Sabe-se que nas estâncias os peões casados comumente moravam em uma casa que abrigava somente sua família. Entretanto, era comum que essas casas ficassem em postos distantes da sede, em pontos estratégicos que permitissem tomar conta do gado do estancieiro. Esses postos não resistiram ao tempo, embora seja comum o relato de sua existência ou a referência a este tipo de moradia nos inventários dos grandes proprietários de terras e animais. No caso da Fazenda das Brancas, as três moradias de empregados em meio à sede chamam a atenção. Contudo, não há especificação, por parte de Nery Silva, arquiteto que pesquisou a fazenda, quanto à condição desses empregados – se livres ou escravizados. Também não há dados quanto à época em que essas moradias foram construídas – se são recentes ou se pertenciam à implantação original da fazenda. Ainda assim, sua posição ao fundo da casa-sede representa uma organização hierárquica mesmo nos dias de hoje.

Figura 44: Implantação da Fazenda das Brancas, de 1882. As casas dos empregados, dispostas atrás da casa-sede, compõem o conjunto arquitetônico da sede dentro de uma lógica dual. Fonte: SILVA, 2004, p. 180, com adequação da autora (em cores).

190

191

Estância Vista Alegre A implantação da sede da estância Vista Alegre segue a disposição verificada nas demais propriedades pesquisadas na região, como demonstrado nas figuras a seguir (45 e 46). O conjunto arquitetônico está organizado de modo que a casa-sede aparece em destaque, estando o galpão mais recuado, alinhado com os fundos da casa, e a senzala posicionada como se estivesse escondida, atrás da casa do estancieiro. Essa disposição pode ser caracterizada como representante das lógicas dual e sociocêntrica, em que a importância auferida a cada construção decresce a partir da frente e do centro em direção aos fundos e à periferia. Para o desenho do plano de implantação da sede da Vista Alegre foram consideradas as construções erigidas no século XIX. Elementos construídos recentemente, como poço, caixa d’água, mangueira e galinheiro não constam nesse desenho.

Seguro de pedra (construção antiga) Muro de pedra

Galpão

Senzala

Mangueira (construção recente)

Muro de pedra

Casa-sede

Figura 45: Imagem digitalizada da sede da estância Vista Alegre. Fonte: Google Earth (2007).

1

1’

2

Figura 46: Implantação da sede da estância Vista Alegre, evidenciando modelo de organização dual e sociocêntrico. Fonte: A autora e Paulo R. Koch Jr.

3 Galpão

2’ Anexo senzala

2 Senzala

1’ Anexo casa-sede

1 Casa-sede

Legenda:

3

2’

193

194

4.2 A experiência corporal na sede da estância Vista Alegre

Por ainda contar com a casa-sede, a senzala e o galpão, a Vista Alegre possibilitou a realização de um trabalho de campo mais acurado, com a descrição e comparação dos elementos arquitetônicos das moradias e o desenvolvimento de uma metodologia de pesquisa baseada na fenomenologia da paisagem. Desse modo, as interpretações propostas a partir do estudo da sede dessa estância basearam-se, em grande medida, na experiência de estar nesse lugar e senti-lo. Para tanto foram realizados trabalhos de campo buscando, em um primeiro momento, o reconhecimento da área em estudo, especialmente da sede e de seu entorno. Caminhadas por entre as construções hoje abandonadas, por caminhos antigos e recentes, ao longo de mangueiras e muros de pedra, possibilitaram uma primeira familiarização com a estância Vista Alegre, a partir do que foram traçados os passos seguintes da pesquisa. Em uma segunda etapa, os trabalhos de campo desenvolveram-se com o objetivo de detalhar os elementos construtivos e as formas arquitetônicas das moradias da sede da estância, o que exigiu uma reflexão maior sobre o lugar. Essa reflexão constitui-se também numa maneira de compreender os grupos humanos, uma vez que pensar nas coisas é um meio de alcançar as pessoas. O terceiro momento da pesquisa de campo constituiu-se no fechamento da metodologia fenomenológica, quando a experiência sensorial do corpo na sede da estância em questão tornou-se o foco dos registros em diário. A experiência prévia nas demais propriedades rurais que compõem esse estudo mostrou-se crucial para o desenvolvimento dos trabalhos na Vista Alegre, uma vez que possibilitou uma familiarização com o modelo de implantação das sedes das estâncias na região. A

195

sensação de estar no lugar e de vivenciá-lo não poderia ter sido substituída por informações orais, iconográficas ou bibliográficas, na medida em que não há fonte que substitua a experiência do lugar. Dessa experiência direta resultou uma descrição da paisagem, a partir da qual foram elaboradas interpretações sobre as relações sociais na Vista Alegre, particularmente, e sobre a sociedade nas estâncias do Noroeste do Rio Grande do Sul, em um sentido geral. Cabe lembrar que para a realização dessas interpretações todas as fontes disponíveis foram levadas em conta. Isso porque o estar no lugar é insubstituível para a experiência fenomenológica da paisagem, mas sozinho não é suficiente para a interpretação da sociedade que a compunha.

4.1.1 Os elementos construtivos e a hierarquia social

No estudo do espaço arquitetônico os elementos construtivos empregados nas edificações têm um papel fundamental. A qualidade desses materiais pode evidenciar, por exemplo, o local de onde foram retirados e a região onde foram adquiridos. Indo mais além, sua análise pode indicar a disponibilidade de recursos humanos e materiais para a execução de determinada construção. Se tomados dentro de um espaço que reúne diversas edificações, como um conjunto habitacional, uma área comercial, uma vila ou mesmo uma cidade, os elementos construtivos podem evidenciar semelhanças e diferenças quanto à posição social das pessoas que interagem com essas construções, vivendo nelas ou utilizando-as como locais de lazer, trabalho, estudo, oração, etc. As formas arquitetônicas não são

196

afirmações categóricas da composição social, mas dão indicações de sua configuração. Considerando as moradias, é possível afirmar que as diferenças entre sua localização dentro de um determinado espaço, entre os materiais de construção nelas empregados e as dimensões de suas formas são indicativos importantes da hierarquia social 228 . A análise das moradias que compõem a sede da estância Vista Alegre foi um meio de compreender como a disparidade social está manifestada nas formas arquitetônicas desse lugar. A comparação dos materiais utilizados na construção da casa-sede, da senzala e do galpão demonstra claramente que, embora a matéria-prima utilizada nessas edificações fosse a mesma, a forma como era empregada se diferenciava bastante. Tijolos, basalto, arenito, telhas, argamassa são elementos constitutivos tanto da casa do estancieiro como das habitações de seus empregados, mas aparecem na casa-sede de modo mais planejado que nas demais moradias. O quadro a seguir (quadro 3) detalha os elementos construtivos empregados nas moradias da Vista Alegre e possibilita a comparação dos dados para fins de interpretação do espaço arquitetônico em questão.

228

WASON, 1994, p. 136.

Paredes

Casa-sede Tijolos e arenito.

Anexo casa-sede Tijolos

Portas

Madeira

Madeira

Janelas

Internas: tampos de madeira pintada que abrem para dentro. Externas: madeira pintada e caixilhos de vidro tipo guilhotinha. Elevado e de madeira (assoalho). Piso de concreto colocado recentemente. Originalmente capa e canal, substituídas por telhas francesas em 1999.

Recentes; basculantes de metal e vidro.

Talvez na lateral oeste e nos fundos. Não é possível precisar.

Somente o vão. Esquadria de madeira sem tratamento.

Elevado em relação ao chão externo e mais baixo do que o piso do corpo da casa. Originalmente capa e canal, substituídas por telhas francesas em 1999. Treliça em madeira

Chão batido. Mesmo nível do solo.

Elevado 0,50m em relação à senzala. Tijolos.

Mesmo nível do solo externo. Chão batido.

Capa e canal.

Capa e canal.

Capa e canal.

Tesoura e treliça em madeira

Treliça em madeira

Tesoura e treliça em madeira

Em alguns pontos aleatórios. Composição: barro. Interno, em pontos aleatórios da parede. Não

Mais frágil nos fundos, mais resistente na lateral leste e na fachada. Interno e externo.

Sim. Areia e cal.

Piso

Telhas

Estrutura telhado

Tesouras, treliças e vigas de madeira.

Argamassa

Sim. Mistura de barro e estrume.

Sim. Não foi possível a identificação do material.

Reboco

Interno e externo.

Interno e externo.

Pintura externa

Recente. Em todos os lados da casa.

Recente. Em todos os lados.

Elementos decorativos

Beiral de cimalha na fachada e nas laterais, com mais detalhes no beiral da fachada e da lateral leste. Basalto

Não

Basalto e tijolos

Fundação

Senzala Cacos de tijolos e de telhas, basalto e arenito. Somente o vão

Anexo Senzala Tijolos

Galpão Tijolos

Somente o vão. Esquadria de madeira sem tratamento.

Várias: de madeira; somente o vão com esquadria em madeira; e somente vão. Somente o vão. Esquadria de madeira sem tratamento

Não

Recente. Somente na fachada e na lateral leste. Não

Na fachada e na lateral oeste. Recente. Somente na fachada e na lateral oeste. Não

Basalto

Basalto e tijolos

Basalto e tijolos

198

O quadro anterior possibilita que sejam feitas interpretações a respeito do modo como as formas arquitetônicas indicam a presença de hierarquia social no contexto da Vista Alegre, ao mesmo tempo em que permite uma reflexão a respeito das possibilidades de interação das pessoas com as construções. Como mencionado anteriormente, um dado bastante evidente é a diferença com que os mesmos materiais construtivos foram empregados na construção das três moradias em estudo. As paredes da casa-sede, por exemplo, devem sua durabilidade mais ao modo como foram estruturadas do que aos materiais nelas empregados. Elas são compostas de tijolos e blocos de arenito, e estão assentadas sobre fundação de basalto. O mesmo tipo de material foi utilizado na construção da senzala. Entretanto, para a edificação das paredes desta foram empilhados cacos de tijolos e blocos disformes de pedras basalto e arenito, cujos vãos foram preenchidos com cacos de telhas. A esse aglomerado de materiais foi misturada argamassa de barro, mas somente em alguns pontos e de forma aleatória. Já nas paredes da casa-sede foi utilizada como argamassa uma mistura de esterco e barro, ao que se sobrepôs o reboco e, por fim, a pintura. O reboco original ainda pode ser percebido hoje, mas a pintura, bastante desgastada pelo tempo, data da última reforma da casa, realizada por volta de 1999. Nas paredes externas da senzala não há indícios de reboco ou de pintura, o que deve ter acelerado o processo de deterioração dessa moradia. Já o anexo da senzala possui paredes melhor conservadas, com reboco em todo o interior, na fachada e na lateral externa. A pintura, também recente, está presente dentro do anexo, na sua fachada e também na lateral. É interessante notar que os lados externos que receberam um melhor acabamento (reboco e pintura) são os que integram a área de circulação entre as três moradias. A construção deste anexo da senzala parece ser mais recente, pois

199

suas paredes são feitas somente com tijolos regulares, além de sua espessura ser mais fina, uma característica que foi se acentuando cada vez mais nas edificações com o passar do tempo. As figuras 47 e 48 possibilitam comparar a espessura das paredes do anexo e da senzala.

Figura 47: Parede da senzala, medindo 0,48 m de largura. Fonte: Arquivo da autora (06/02/2007).

Figura 48: Parede do anexo da senzala, medindo 0,16 m de largura. Fonte: Arquivo da autora (06/02/2007).

200

201

A maneira como o material construtivo foi empregado nas paredes da casasede, da senzala e do galpão evidencia um cuidado maior com a estrutura da primeira, em melhor estado de preservação do que as demais. A durabilidade da casa do estancieiro parece ter sido uma preocupação de quem a idealizou e construiu. O mesmo não ocorre com a senzala, onde o emprego de materiais descartados e mal talhados evidencia a falta de interesse com sua resistência às intempéries e ao passar dos anos. Se os materiais utilizados eram basicamente os mesmos e se a mão-de-obra estava disponível na estância, compreende-se que a inferioridade na construção das moradias dos empregados teria como base a hierarquia social. Como a idealização da sede da propriedade partia de seu dono, entende-se o porquê das diferenças entre as moradias que a compunham. Um dado comum à casa-sede, à senzala e ao galpão é a utilização de telhas capa e canal. Entretanto, a casa do estancieiro é a única que conta com forro, tendo um pé direito bastante alto, característica verificada nas demais casas-sede do mesmo período pesquisadas na região. Tesouras e treliças de madeira (figura 49) dão sustentação ao telhado das três moradias, mas na casa do estancieiro a madeira empregada é mais robusta. A estrutura dos telhados das habitações da Vista Alegre é comum a outras propriedades rurais do mesmo período e também de períodos anteriores. As telhas capa e canal são características marcantes em diversos tipos de edificação, desde a época colonial até o início do século XX. Telhas francesas estão presentes em construções rurais mais recentes, sendo também utilizadas atualmente para substituir telhas em mau estado nas edificações oitocentistas, como ocorreu com a casa-sede da Vista Alegre. A figura 50 demonstra como eram encaixadas as telhas capa e canal, as quais serviam para drenar (como capa) e escoar (como canal) a água dos telhados. As figuras 51 e 52 demonstram os

202

dois modelos de telhas desse tipo utilizados nas moradias da sede da Vista Alegre 229 .

229

Não foi possível identificar se há diferença quanto ao emprego das duas telhas nessas construções.

203

Figura 49: Tesoura e treliça em madeira sustentam o telhado da senzala na estância Vista Alegre. Fonte: acervo da autora (foto de autoria de Paulo Roberto Koch Jr., em 06/02/2007).

Figura 50: Telhas capa e canal. Inicialmente empregadas nos telhados das casas provisórias, esse tipo de telha também foi comumente utilizado nos telhados das moradias definitivas, dos galpões e das senzalas. Fonte: SILVA, 2004, p. 111.

0,20m

0,26m

204

0,53m

0,16m

0,20m

Figura 51: Telha empregada nas construções da estância Vista Alegre. Fonte: Arquivo da autora (06/02/2007).

0,53m

Figura 52: Tellha empregada nas construções da estância Vista Alegre. Fonte: Arquivo da autora (06/02/2007).

205

O arremate entre o telhado e a parede é verificado somente na casa-sede, onde o beiral de cimalha (figuras 53 e 54) está presente na fachada e nas laterais. Uma discreta sobreposição de linhas foi aplicada na cimalha da frente e da lateral leste da casa, lados que estão voltados para a estrada principal que passa em frente à estância. A lateral oeste e os fundos da casa não são ornamentados com esse detalhe. Isso reforça a idéia de que as formas materiais também possuem o lado da frente e o lado de trás. As pessoas diferenciam a parte da frente e a parte de trás dos objetos e das construções que criam, comumente destacando e decorando os lados que ficam à mostra.

206

Figura 53: Beiral em cimalha, presente apenas na casa-sede. Fonte: Acervo da autora (fotografia de autoria de Paulo Roberto Koch Jr., em 16/02/2007).

Figura 54: Lateral leste da casa-sede. As setas apontam para os elementos decorativos da cimalha, presentes somente nesta lateral e na fachada da casa. Fonte: Acervo da autora (fotografia de autoria de Paulo Roberto Koch Jr., em 16/01/2007).

207

208

A hierarquia social estava expressa também no piso que compunha as moradias. Na casa-sede verifica-se a presença de assoalho assentado sobre vigas de madeira. A elevação do assoalho em relação ao solo dá espaço para o porão. O piso elevado é uma característica comum nas casas-sede das propriedades estudadas, cujo acesso é usualmente viabilizado por degraus colocados do lado externo da residência. Essa particularidade pode ser considerada um indicativo de disparidades sociais na medida em que está presente somente em frente às portas da casa-sede, não sendo verificada nos acessos à senzala ou ao galpão. O anexo da casa-sede, onde atualmente se localiza a cozinha e um quarto, também é elevado em relação ao solo, mas é mais baixo do que o assoalho do corpo principal da casa. Além disso, seu piso é de tijolos, e não deixa espaço para o porão, pois foi construído rente ao alicerce. Esse anexo recebeu um tratamento arquitetônico inferior se comparado ao restante da moradia, com teto mais baixo e sem forro. Uma porta o separa do restante da casa, sendo que um degrau conecta sua cozinha a uma sala destinada às refeições. Essa sala foi reformada recentemente, quando seu piso foi cimentado e a porta dos fundos, que levava ao pátio e à senzala, foi transformada em janela. Nas construções que abrigavam os empregados o piso era de chão batido, feito a partir da terra umedecida e socada. Tanto o piso da senzala quanto o do galpão equiparavam-se ao nível do solo. A exceção está no anexo da senzala, cujo piso, de tijolos, eleva-se em 0,50 m. Neste anexo há um cuidado maior quanto à escolha dos materiais construtivos. As paredes são de tijolos e argamassa, e há reboco na fachada e na lateral leste, o que não ocorre nos fundos dessa construção. Como dito anteriormente, percebe-se que havia um cuidado maior com as paredes que estavam voltadas para a área de circulação existente entre as moradias.

209

Segundo informações dadas por Arani Senna, ex-caseiro da Vista Alegre, esse anexo era utilizado como cozinha há alguns anos atrás. O estado de deterioração do conjunto inteiro da senzala (corpo principal e anexo) não permite que essa construção seja utilizada hoje. Embora bastante danificado, o galpão da Vista Alegre ainda é utilizado esporadicamente como dormitório. Isso ocorre comumente em épocas de marcação do gado, banho, vacinação, entre outras atividades ligadas à pecuária. Ainda de acordo com Arani Senna, o galpão foi sempre utilizado como dormitório dos peões, além de servir de depósito e como local para a produção de charque. Também essa construção recebeu um tratamento diferenciado nos lados mais à vista – fachada e lateral oeste, ambos voltados para a área de maior circulação de pessoas. As paredes desses dois lados receberam reboco e pintura, enquanto as paredes dos fundos e da lateral leste são compostas somente de tijolos e argamassa (ver figuras 82 a 85). Uma outra forma de expressão material das diferenças sociais vivenciadas pelos habitantes da sede da Vista Alegre é verificada nas dimensões das moradias. A casa do estancieiro se sobressai não somente pelo tamanho da área construída, mas também pela robustez de suas formas. O quadro a seguir (quadro 4) demonstra as dimensões das três moradias em estudo.

Quadro 4: Dimensões das moradias da estância Vista Alegre (em metros).

Casa-sede

Anexo Senzala Anexo Galpão Casa-sede Senzala 17,80 9,88 3,98 19,59 Fachada 12 3,68 divisória 5,30 9,67 Lateral leste 12 3,68 +5,20 divisória 8,55 Lateral oeste 9,37 + 8,43 (anexo) 8,43 9,88 3,98 19,59 Fundos U

U

210

4.1.2 Experienciando a Vista Alegre

É a partir de sua existência no mundo, por meio do corpo, que os seres humanos sofrem a experiência da vida, num contínuo processo de ser e tornar-se. A interação do corpo humano com a materialidade tem um papel importante na formação da identidade individual e coletiva. Em um estudo de arqueologia fenomenológica a experiência corporal em meio à cultura material remanescente da sociedade que se quer compreender é imprescindível. Isso porque a sensação física do lugar indica ao pesquisador de hoje os limites e as possibilidades que a materialidade conferiu às pessoas no passado. É a própria materialidade do lugar que restringe a experiência sensorial e a torna mais objetiva, uma vez que, como afirma Merleau-Ponty, “a qualidade não é um elemento da consciência, é uma propriedade do objeto” 230 . Nesse sentido, quanto menos alterações o lugar a ser F

F

experienciado tiver sofrido, mais precisos serão os resultados obtidos a partir do desenvolvimento de uma metodologia fenomenológica. Na sede da estância Vista Alegre a experiência corporal de hoje ocorre em um espaço arquitetônico semelhante ao existente na época em que Serafim Corrêa de Barros e sua família lá residiam. Segundo informações orais, as moradias que atualmente existem nessa propriedade datam da época de sua fundação (1843/44), sendo que as alterações por que passaram não descaracterizaram suas formas originais. O inventário de Serafim Corrêa de Barros, iniciado em 1886 e encerrado em 1891, não detalha as construções que compunham a sede da estância, mas faz 230

MERLEAU-PONTY, 1999, p. 25. É válido ressaltar que o termo qualidade aqui se refere à composição física do objeto, a sua própria materialidade, e não aos adjetivos que possam lhe caracterizar. U

U

211

referência à “casa de morada do casal, construída de tijolos e coberta de telhas e mais benfeitorias [ilegível] pertencentes a mesma casa”. Já no inventário de sua esposa consta uma outra caracterização da sede da propriedade: “uma casa de moradia – paredes de pedras cobertas de telhas, forrada e assoalhada, com pomar e horta, cozinha, galpão, mangueira de pedra”. Essas descrições não são excludentes, e a diferença em seu detalhamento parece se dever a uma falta de precisão no arrolamento dos bens do inventariado. O fato de a senzala não estar listada entre os bens de raiz também dá chances a algumas interpretações: 1) por ser uma construção inferior e não representar um valor significativo, ela não foi arrolada no inventário 231 ; 2) como era comum que os escravos dormissem nos F

F

corredores, ao pé da cama do senhorio, em galpões e mesmo na cozinha, é possível que a construção denominada aqui de senzala tenha sido utilizada como cozinha suja e como dormitório de escravos; ou 3) o que é denominado neste estudo de anexo da senzala pode ser o que é descrito como cozinha no inventário de Carolina, U

U

enquanto que o restante da construção corresponde à senzala. Cabe lembrar que todas as fontes orais consultadas 232 afirmam que a construção em ruínas atrás da F

F

casa-sede corresponde à antiga senzala da propriedade, orientação que foi seguida para realização dessa pesquisa. Na experiência da sede da Vista Alegre não há uma direção exclusiva a ser tomada, como ocorre com passagens em meio a grutas, dentro de uma igreja ou de um hospital, por exemplo, mas há uma orientação sugerida ao corpo pela arquitetura criada dentro desse espaço. Dentro da cultura ocidental existem certos padrões na

231

Em sua pesquisa sobre a Estância Velha do Jarau, Flamarion Gomes (2001, p. 37) comenta que “a senzala é um dos locais mais comentados, e ao mesmo tempo um dos menos conhecidos. Descrita geralmente como um cubículo sem janelas, muitas nem mesmo são mencionadas nos inventários devido a sua construção extremamente rústica”. 232 A saber, os atuais proprietários da Vista Alegre, o ex-caseiro que empreendeu sua reforma, o vizinho da propriedade e a viúva do bisneto de Serafim Corrêa de Barros.

212

interação do corpo com as formas materiais 233 que podem ser verificados em F

F

contextos diversos, e são esses padrões que apontam por onde seguir dentro de uma paisagem. É sabido, por exemplo, que as entradas frontais de uma residência são relacionadas a um nível maior de formalidade do que as entradas secundárias, como as portas localizadas na parte de trás. Estas são destinadas à circulação de pessoas ligadas a tarefas domésticas, manuais e também a indivíduos com os quais se tem uma relação mais próxima e não solene. Da mesma forma, a entrada pela janela é ligada a atitudes transgressoras. Também se verifica um padrão na disposição das casas dentro da cultura ocidental, as quais têm suas fachadas voltadas para a rua, lugar público, enquanto que o ambiente privado fica aos fundos, em meio a outros espaços também privados, separados por muros ou conectados por portões e áreas de uso comum, como ocorre nos condomínios. A rua, via pública, tem para si voltadas as fachadas das casas, dos prédios, dos estabelecimentos comerciais. As estradas também. Esse padrão, ou característica comum, é o que permite afirmar que existe uma sugestão dada ao corpo a partir das formas materiais que compõem a estância Vista Alegre. Entendido de outro modo, também é possível afirmar que o corpo ocidentalizado, de antemão sugestionado por determinados padrões culturais, em meio ao tipo específico de organização da Vista Alegre, acaba por tomar certas direções. Na prática, o que ocorre é que a entrada na sede da estância ocorre pela parte da frente, a partir da estrada. Por onde o corpo vai se movimentar dentro desse lugar depende das razões que o movem, do interesse que o conduz, e também do habitus. 233

Aqui cabe fazer referência à manifestação do habitus tema discutido no capítulo anterior, no item 3.4, O corpo humano, a experiência da materialidade e os estudos sobre a cultura material.

213

Chegar ao nível abstrato do pensamento das pessoas que interagiram com a estância Vista Alegre no século XIX é tarefa impossível de ser cumprida. Apreender as possibilidades concretas de movimento corporal dentro desse lugar é um objetivo que pode ser atingido por meio do desenvolvimento de uma metodologia para tal fim. Para o entendimento das formas de interação do corpo com a materialidade na Vista Alegre foi elaborado um plano metodológico que buscou recuperar o fenômeno gerado do contato direto com esse lugar levando em consideração somente dois sentidos: a visão e o tato. A escolha por ambos decorre da limitação de fontes a que se tem acesso hoje, ou seja, as formas arquitetônicas propositalmente alocadas em meio ao ambiente natural no qual a Vista Alegre foi estabelecida. É possível tocar e ver a casa do estancieiro, a moradia dos escravos e o lugar que abrigava os peões de um modo semelhante ao que ocorria no passado, uma vez que suas formas não foram significativamente alteradas. Os odores em que essas moradias e seu entorno estavam envoltos, os sons que sua gente ouvia, os sabores que eram degustados, não podem mais ser experimentados. A Vista Alegre está abandonada. Não existem escravos, nem peões, nem estancieiro, nem crianças nem adultos. Não existem mulas ou ovelhas. Não há fogo de chão ou tacho na brasa. Não há conversas, não há risos, nem tropeada nem latido. Não é possível ouvir os sons, nem cheirar os aromas, nem provar os gostos do passado na Vista Alegre. É possível somente ver e tocar as suas formas. A visão parece ter sido um sentido bastante considerado na escolha do local para o estabelecimento da Vista Alegre. Tanto para quem dela se aproxima quanto para quem nela se encontra, a sede dessa estância, localizada no topo de uma coxilha, a uma altitude de 478 m, é um ponto estratégico para se ver e para ser visto.

214

Dentro da sede, a casa do estancieiro ocupa posição privilegiada, podendo ser avistada a quilômetros de distância, como exemplifica a figura 65. Além disso, a casa-sede é a primeira construção a ser vista quando da aproximação a essa propriedade (como demonstrado nas figuras 56, 57, 59, 60 e 62). Uma vez que os campos da região foram bastante alterados, principalmente devido a sua utilização como lavoura, não é possível identificar os caminhos que eram utilizados originalmente para chegar à estância, mas é bastante provável que a estrada passasse em frente à sede, como ocorre hoje. Essa suposição torna-se mais segura quando se compara a implantação da Vista Alegre com as demais sedes das estâncias oitocentistas da região de Cruz Alta, nas quais as moradias dos estancieiros, por medida de segurança, tinham suas fachadas voltadas para a estrada.

Casa-sede

Figuras 55 e 56: Aproximando-se da Vista Alegre pela estrada principal (sentido Leste-Oeste). Fonte: Google Earth (detalhe) e a autora (fotografia de autoria de Paulo Roberto Koch Jr, em 16/01/2007).

215

Construção recente

Galpão

Senzala

Casa-sede

216

Figura 57: Chegada à Vista Alegre pela estrada principal (sentido Leste-Oeste). Fonte: A autora (fotografia de autoria de Paulo Roberto Koch Jr, em 16/01/2007).

217

Casa-sede

217

Figuras 58 e 59: Aproximando-se da Vista Alegre pela estrada principal no sentido Oeste-Leste. Fonte: Google Earth (detalhe) e a autora 16/01/2007.

218

Figura 60: Chegada à Vista Alegre pela estrada principal no sentido Oeste-Leste. Tanto de longe quanto de perto, a casa-sede é a única moradia possível de ser vista. Fonte: Arquivo da autora (16/01/2007).

218

219

Galpão

Casa-sede

219

Figuras 61 e 62: Chegada à Vista Alegre pela frente, no sentido Norte-Sul (não há estrada). Fonte: Google Earth (detalhe) e a autora (16/01/2007).

220

Sede da estância

Figuras 63 e 64: Chegada à Vista Alegre pelos fundos, no sentido Sul-Norte (costeando o muro de pedra). Somente as árvores de trás da sede são avistadas. Fonte: Google Earth (detalhe) e a autora (16/01/2007).

220

221

Fazenda Sta. Lídia

2,5 Km

Estância Vista Alegre

Estância Vista Alegre

221

Figuras 65 e 66: A Vista Alegre a partir da Fazenda Santa Lídia, distante 2,5 quilômetros (a Santa Lídia foi fundada em 1935, em campos de propriedade de Serafim Corrêa de Barros). Fonte: Google Earth (detalhe) e a autora (25/08/2006).

222

Como exposto anteriormente, a escolha do local onde a sede da estância seria erigida era comumente relacionada a áreas altas, por questão de salubridade e por possibilitar uma ampla visão das redondezas. Mesmo que essa escolha seja de ordem prática e funcional, sua interferência na esfera subjetiva também deve ser considerada. Isso porque, como demonstrado nas figuras precedentes, a casa do estancieiro acabava por tornar-se uma referência não só no ambiente da estância, mas também dentro de uma área mais ampla, na região a sua volta. O fato de estar projetada na paisagem, saliente perante as demais formas arquitetônicas, contribui para enaltecer a figura de seu proprietário. A casa-sede, nesse sentido, é um lugar significado e significante, um componente da paisagem que atua fortemente no processo de formação identitária da sociedade em questão. Ao mesmo tempo em que a casa-sede exerce influência por estar bastante exposta na paisagem, podendo ser vista a partir de diferentes direções e de pontos distantes, ela igualmente possibilita aos seus ocupantes uma visão ampla da área em que está inserida, como explicado acima. Se comparada às demais moradias da estância, a casa-sede revela-se um lugar hierarquizado também devido ao nível de visibilidade que proporciona. Contando com nove janelas e quatro portas comunicando interior e exterior (figuras 68 a 71) 234 , tem-se, a partir dessa moradia, a F

F

visualização da senzala, do galpão, e de uma ampla área de campos, como demonstra a figura 67 e as figuras 76 a 78. É preciso considerar também que o tamanho das aberturas dessa casa, bem maior do que o verificado nas demais construções da Vista Alegre, possibilita, além da visão mais ampla, maior incidência

234

Atualmente existem somente duas portas de acesso à casa-sede (o anexo não foi considerado), pois as outras duas foram transformadas em janelas. É possível que existissem outras aberturas na parede que hoje faz a divisão entre a casa e o anexo. Neste, duas janelas e uma porta viabilizam a comunicação com o exterior.

223

de luz no interior da casa, o que também tem papel importante na vivência quotidiana de seus habitantes. Na senzala, ambiente de um só cômodo, há duas portas voltadas para os fundos da casa-sede (b e c na figura 72). Não é possível precisar se existiam outras aberturas nas duas paredes em desmoronamento (d e f, nas figuras 73 e 74, respectivamente), tampouco se essas, caso existissem, eram portas ou janelas. Já no anexo da senzala é possível verificar a existência de uma janela e de uma porta, em lados opostos, voltadas respectivamente para a parte de trás da sede, onde hoje há somente mato, e para os fundos da casa do estancieiro. As figuras 72 a 74 mostram a posição das aberturas na senzala e em seu anexo, e as figuras 79 a 81 mostram a vista que se tem a partir da senzala.

Figura 67: Vista que se tem a partir da fachada da casa-sede. Fonte: arquivo da autora. 25/08/2006.

224

Fig. 69: Fundos da casa-sede e seu anexo. (Arquivo da autora).

Fig. 70: Lateral da casa-sede. (Arquivo da autora).

Fig. 71: Lateral da casa-sede. (Arquivo da autora).

225

Fig. 68: Fachada da casa-sede. (Arquivo da autora).

d a

b

Anexo 3,98m

c

Fachada senzala 9,88m

Figura 72: Fachada da senzala e do anexo. (Arquivo autora).

Lateral senzala 5,30m

e

f

Fundos anexo 3,98m

Figura 73: Fundos do anexo. (Arquivo autora).

Lateral anexo 5,30m

226

Figura 74: Lateral da senzala. (Arquivo autora).

Figura 75: Lateral do anexo. (Arquivo autora).

227

Figuras 76 a 78: Vista que se tem a partir da porta principal da fachada da casa-sede. Fonte: Arquivo da autora.

Figuras 79 a 81: Vista que se tem a partir da porta central da fachada da senzala. Fonte: Arquivo da autora.

228

O galpão (figuras 82 a 85) conta atualmente com nove portas e seis janelas. Entretanto, alterações mais recentes nessa edificação lhe acresceram algumas aberturas e transformaram outras já existentes. É provável que tenham sido realizadas outras reformas – internas e externas – no decorrer dos tempos, principalmente por ser o galpão uma construção que vem sendo constantemente utilizada, servindo hoje de moradia temporária para trabalhadores que lidam com o gado. A grande quantidade de portas facilita e dinamiza o acesso à área destinada às lides campeiras, como o seguro e a mangueira. Elas também viabilizam a comunicação direta entre o exterior e os cômodos de diferentes funções, como o depósito, os dormitórios, o local para o fogo de chão e para a produção de charque 235 . Ao contrário da senzala, que não possui divisões internas, o galpão F

F

possui diversas divisórias, algumas parecendo instalações provisórias, outras com caráter permanente, o que atesta sua utilização para fins diversos, de acordo com a necessidade de seus ocupantes.

235

Cabe ressaltar que o charque produzido destinava-se ao consumo na própria estância.

Figura 82: Fachada do galpão. Fonte: Arquivo da autora.

Figura 85: Lateral do galpão. Fonte: Arquivo da autora.

229

Figura 84: Lateral do galpão. Fonte: Arquivo da autora.

Figura 83: Fundos do galpão. Fonte: Arquivo da autora.

230

Além de conferir visibilidade e possibilitar a comunicação entre diferentes ambientes, as aberturas das moradias (ver figura 86) direcionavam a realização de atividades e criavam espaços de diferentes significados, nos quais se desenvolviam rotinas corporais de acordo com a dinâmica da estância e com os papéis sociais daí advindos. Em outras palavras, a disposição das portas em determinados pontos da casa-sede, da senzala e do galpão, sugere direções a serem tomadas pelos peões e pelos escravos no desenvolvimento de suas tarefas quotidianas dentro da sede. O cumprimento de tarefas domésticas e campeiras dentro da estância ocorria inicialmente a partir de uma orientação dada pelo proprietário e sua família, à qual era acrescido um direcionamento dado pela própria materialidade dos lugares. A partir das atividades desempenhadas na sede da estância decorria a elaboração, por parte dos indivíduos, de rotinas corporais que os habilitassem a interagir nos espaços em que suas funções eram requeridas. Compreender essa interação tornase relevante na medida em que ela tem influência direta no processo de formação identitária da sociedade. No caso da Vista Alegre é possível afirmar que a soma das experiências corporais vivenciadas nos diferentes lugares de sua sede contribuiu para perpetuar a organização social, uma vez que o próprio conjunto arquitetônico da estância constituía-se num espaço hierárquico e, por conseguinte, hierarquizante. O nível de visibilidade obtido a partir de cada moradia deve ser considerado como relevante no processo de estruturação da percepção de mundo de seus habitantes, na medida em que a amplitude ou a restrição visual desencadeiam diferentes sensações e relações com a paisagem. Assim como uma casa com vista para o mar proporciona a seus ocupantes uma sensação diferente daquela provocada por uma casa com vista para um prédio em obras, também a ampla visão

231

tida a partir da casa-sede provoca uma sensação que difere da proporcionada pela visão restrita que se tem a partir da senzala. A experiência visual quotidiana em cada uma dessas moradias influencia diretamente na formação do espaço existencial e perceptual. Recuperar o significado dessa experiência no nível subjetivo dos indivíduos que a vivenciaram em seu dia-a-dia é impossível. Entretanto, é preciso reconhecer que a existência ou não de barreiras limitadoras à visão provoca noções de identidade social diferenciadas. Nesse sentido, pode-se dizer que a visão restrita obtida a partir da senzala, a visão semi-restrita experienciada a partir do galpão e a possibilidade de uma visão irrestrita a partir da casa-sede não só demonstram a existência de um espaço hierarquizado, codificador da concepção de mundo de seu idealizador, como também constituem mecanismos que reafirmam constantemente a posição social que escravos, peões e elite proprietária ocupam na sociedade estancieira. A experiência sensória na sede da estância Vista Alegre também possibilita a interpretação das rotinas corporais desenvolvidas pelas pessoas em meio ao espaço arquitetônico das moradias. Além da diferença nas formas e nos materiais empregados em cada construção, assunto tratado no item anterior, também a disposição da senzala, do galpão e da casa-sede indicam que as disparidades sociais eram vivenciadas quotidianamente na realização das tarefas exigidas pela dinâmica da estância. Considerando as atividades básicas desempenhadas pelos trabalhadores campeiros e pelos trabalhadores domésticos na sede da Vista Alegre percebe-se a existência de um espaço destinado às tarefas domésticas e de um espaço ligado às atividades campeiras. A circulação de escravos entre a senzala e a casa-sede possivelmente originou um espaço somático altamente restrito. Isso porque o ambiente onde eram

232

desenvolvidas as tarefas domésticas por parte dos escravos estava circunscrito aos fundos da casa-sede e ao próprio entorno da senzala, área na qual estavam localizados o poço, o forno, a cozinha e provavelmente a horta. Mesmo o trabalho doméstico realizado na casa-sede estava relacionado a uma rotina corporal restrita pela materialidade dessa construção e pelas atividades designadas pelo senhorio, como a arrumação dos cômodos, a limpeza da casa e os cuidados com o servir a mesa, para citar alguns exemplos. Em um espaço mais amplo eram realizadas as atividades ligadas ao campo. Deixando de lado as lides com o gado e levando em conta somente as tarefas desempenhadas em meio às moradias que compunham a sede da Vista Alegre constata-se que a rotina corporal dos peões era mais flexível que a dos escravos. A existência de várias portas e janelas ligando o interior do galpão e a área externa possibilitava uma maior mobilidade corporal, como referido anteriormente. Entretanto, essa mobilidade também estava de certa forma restrita a um espaço específico dentro da sede. Isso porque o local utilizado pelo estancieiro para o pagamento dos peões e para tratar dos assuntos “burocráticos” relacionados à economia pastoril ficava na própria casa-sede, em um escritório ao qual se tinha acesso direto pela porta lateral 236 , voltada para o galpão. Desse modo, pode-se F

F

interpretar o espaço utilizado na sede para o desenvolvimento de atividades relacionadas ao gado como sendo de um médio nível de restrição corporal, caracterizado por dar chances mais amplas para o desenvolvimento de rotinas corporais tanto no galpão quanto entre essa construção e a casa do estancieiro. Dentre as três moradias em questão a casa-sede demonstra possibilitar diversas rotinas corporais, em grande medida porque não se tem uma precisão 236

Essa porta foi transformada em janela.

233

quanto às tarefas realizadas pelos seus habitantes. A bibliografia comumente apresenta a família do estancieiro como colaboradora no desempenho das atividades pastoris, o que estaria ligado à esfera masculina, ou na realização dos afazeres domésticos, relacionados ao âmbito feminino. Entretanto, não há uma precisão com relação às atividades desempenhadas pela família proprietária, tampouco uma garantia de que esse grupo social era responsável por alguma tarefa específica dentro da sede da estância. O desenvolvimento de rotinas corporais provavelmente restringia-se mais às possibilidades proporcionadas pelo patriarca do que à materialidade do lugar, propriamente dito. A essa gama de possibilidades soma-se o fato de que a frente da casa-sede era tida como um espaço destinado à elite da sociedade, onde a porta central, maior que as demais portas dessa moradia, destinava-se ao trânsito dos “iguais”, pessoas que também compunham a elite social do contexto estancieiro. Pelo exposto, é possível interpretar a sede da estância Vista Alegre como sendo constituída por três espaços somáticos, nos quais eram desencadeadas rotinas corporais específicas (ver figura 87). Na interação quotidiana dos grupos humanos com o espaço arquitetônico da estância formaram-se identidades sociais diretamente relacionadas com a função desempenhada por cada indivíduo e com a categoria social a que pertenciam. O espaço subordinado das atividades domésticas, ocupado essencialmente por escravos, o espaço não produtivo destinado especialmente à elite proprietária de terras e o espaço relacionado às funções campeiras evidenciavam, assim, níveis diferenciados de hierarquia presentes na interação dos seres humanos com a cultura material.

Figura 86: Implantação da sede da estância Vista Alegre. Fonte: A autora e Paulo R. Koch Jr.

N 234

ESPAÇO SUBORDINADO reboco

ESPAÇO INTERMEDIÁRIO

alimentação Piso de madeira elevado

quartos

escritório

reboco

reboco

reboco+beiral

Rotina corporal mais flexível (nível médio de restrição)

reboco+beiral+decoração

ESPAÇO DE ATIVIDADES LIGADAS AO CAMPO

reboco

Rotina corporal mais restrita (alto nível de restrição)

reboco

E S C R A V O S

reboco P E Õ E S

ESPAÇO DE ATIVIDADES DOMÉSTICAS

visão restrita

reboco

chão batido

visão semi-restrita

chão batido

tijolo elevado reboco

reboco+beiral+decoração

visão irrestrita

ESPAÇO NÃO PRODUTIVO Nível de restrição corporal baixo

P R O P I E T Á R I O S

F A M I L I A R E S

V I S I T A N T E S

ESPAÇO ELITIZADO

Figura 87: Modelo interpretativo da sede da estância Vista Alegre. Fonte: A autora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Críticos da fenomenologia argumentam que a descrição feita pelo pesquisador quando em contato com a paisagem é limitada a sua condição física, étnica, de gênero e de classe, do que resultaria um trabalho subjetivo, pouco científico e de validez questionável. Esse argumento parece refletir mais um desconhecimento do que uma apreciação consciente sobre a fenomenologia da paisagem. É preciso reconhecer que toda produção do conhecimento é comprometida com posicionamentos individuais, que vão desde a escolha do tema até a adoção de uma determinada forma de pensar o objeto de estudo, de acessá-lo e de escrever sobre ele. Assim, nenhuma metodologia é desvinculada de subjetividade – e a pretensa neutralidade do positivismo demonstrou isso muito bem. Em estudos sobre a cultura material as várias posições teóricas enfatizam aspectos alternativos da materialidade e do significado das coisas para pessoas, grupos e instituições, e nenhuma delas consegue exaurir o potencial que os objetos proporcionam para o entendimento da cultura e da sociedade. As teorias e os métodos que elas sustentam não são capazes de criar uma verdade absoluta sobre o passado, apenas possibilitam chegar a uma verdade relativa sobre o mesmo. Escolher uma teoria para rotular a sociedade é ignorar a complexidade das vivências humanas; desvincular-se de qualquer teoria é, além de uma tentativa sempre frustrada, um pensamento ingênuo perante o processo de construção do

237

conhecimento. A opção teórica torna o pesquisador consciente do que faz e do porque faz desse jeito e não de outro. Na tese aqui apresentada a fenomenologia possibilitou uma visão de mundo que percebe a cultura material e os seres humanos como extensões uns dos outros, como complementos, e não opostos. Por reconhecer essa intrínseca relação entre coisas e pessoas foi proposto um estudo que buscou na experiência da paisagem estancieira a compreensão da sociedade que dela fazia parte. A subjetividade dessa experiência não é negada, mas ela é restrita às sensações físicas provocadas pelo estímulo dos sentidos quando do contato com a materialidade em estudo. Dito de outra forma, o estudo em fenomenologia da paisagem desenvolvido na estância Vista Alegre foi limitado pela condição corporal de Homo sapiens sapiens em contato com um espaço arquitetônico específico, formado por construções que, como componentes físicos da paisagem, podem ser tocadas e vistas por qualquer ser humano que compartilhe da visão e do tato. Cabe ressaltar que a experiência corporal em meio às formas materiais não é em si a finalidade do estudo aqui apresentado. Ela é, sim, um meio para se chegar ao conhecimento da sociedade passada e, a partir disso, possibilitar a elaboração de interpretações sobre a mesma. É nesse ponto que a pesquisa em fenomenologia da paisagem dá sua contribuição aos estudos sobre a cultura material, possibilitando mais uma forma de pensar as sociedades do passado, a qual vem somar-se às demais interpretações já propostas por pesquisadores de orientação teóricometodológica diversa. Isso posto, vale lembrar que a tese aqui apresentada caracteriza-se como mais uma contribuição à construção do conhecimento – não a única, tampouco verdadeira, mas uma dentre tantas outras já apresentadas ou ainda por vir.

238

Estar dentro da paisagem estancieira é mais do que uma questão de U

U

caminhar e observar os modos como as construções se dispõem no espaço da sede. Pela exploração sensorial das moradias do passado através do corpo em uma escala humana, mais do que na escala abstrata de um mapa, de uma planta baixa ou de uma série de medidas, é possível apreciá-las e compreendê-las de um modo extremamente diferente. Caminhar, sentir, experienciar através do corpo possibilita que no mínimo alguma coisa seja compartilhada com as pessoas que viveram na estância Vista Alegre. É verdade que hoje a lavoura, algumas reformas e o próprio abandono fornecem uma experiência diferente da vivenciada no passado, mas a disposição e as propriedades físicas do conjunto de sua sede conservam-se praticamente as mesmas, o que desencadeia uma referência sensório-corpórea comum em relação à paisagem. Somente nesta limitada extensão é possível estar dentro do universo estancieiro. De resto, nada se compartilha – não é possível U

U

recuperar o habitus, tão importante na estrutura da dinâmica social. Também é preciso admitir que a vida dos habitantes da Vista Alegre no século XIX não era meramente contemplativa ou guiada pelo “experienciar o mundo tal qual ele é”, na origem dos fenômenos, e que as condições históricas em que eles se encontravam requeriam que certas coisas fossem feitas. Era no fazer o que a dinâmica da estância demandava que a história de seus habitantes foi construída, que as moradias foram erguidas, utilizadas e então abandonadas. Entender essa história possibilita entender como uma paisagem que contém uma dinâmica produtiva para uma geração deu chances a uma paisagem demarcada por espaços cognitivos para outra. O entendimento do contexto histórico de formação e funcionamento das estâncias do Noroeste do Rio Grande do Sul, e em particular da própria Vista Alegre, aproxima mais o pesquisador contemporâneo da sociedade estancieira oitocentista,

239

e fornece uma base para que as interpretações advindas da experiência corporal do lugar hoje sejam elaboradas dentro de uma coerência com a história. A proposta fenomenológica, especialmente se aliada ao conhecimento histórico, demonstra ser significativamente válida: o corpo e a consciência sensória constituem-se nas ferramentas que auxiliam a interpretar as sociedades passadas. Nesse sentido, a presente pesquisa propõe que a sede de uma estância de meados do século XIX constituía-se em um lugar hierárquico e hierarquizante. Isso porque o seu conjunto arquitetônico básico impunha barreiras limitadoras ao corpo humano, especialmente à visão e ao movimento, como pode ser experienciado ainda hoje dentre os remanescentes das moradias que compunham as sedes. Assim, além de manifestar materialmente a concepção de mundo de seu idealizador, o conjunto arquitetônico das estâncias constituía-se em um mecanismo que reafirmava constantemente a posição social que escravos, peões e senhorio ocupavam na sociedade de então, manifestando através da restrição corporal sugerida pela materialidade o nível de subordinação a que os indivíduos estavam sujeitos. Dessa forma, pode-se dizer que na interação quotidiana em meio ao espaço arquitetônico da estância formaram-se identidades sociais estreitamente ligadas à classe a que os indivíduos pertenciam e às funções que desempenhavam. Dentro dessa perspectiva fenomenológica é possível comparar semelhanças e diferenças locais, regionais e inter-regionais de uma maneira que nunca será possível através de escavações, de pesquisas bibliográficas e da investigação junto a documentos primários. Além disso, a viabilidade financeira da pesquisa em fenomenologia da paisagem deve ser considerada. Na medida em que um estudo da cultura material por meio desse enfoque demanda baixíssimo investimento, restrito, no caso da presente pesquisa, a uma trena, um diário de campo e um lápis, o

240

método fenomenológico pode ser desenvolvido de uma maneira que nunca será possível através de escavações, dadas as restrições financeiras, práticas e sóciopolíticas que a intervenção arqueológica envolve. A metodologia fenomenológica desenvolvida nessa tese não destruiu o registro arqueológico. A Vista Alegre pode ser estudada de inúmeras outras formas, por outros pesquisadores, a partir de outros enfoques. A narrativa produzida a partir do estar no lugar foi limitada à experiência corporal e à materialidade específica da U

U

Vista Alegre, que permanece disponível para ser experienciada infinitas vezes, desde que suas formas não se alterem significativamente. Esta tese pode ser contestada. A Vista Alegre não.

241

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___. Do Arcaico ao Moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.

248

FONTES PRIMÁRIAS

APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (Porto Alegre) U

U

Inventários Post-mortem:

Júlio de Castilhos – 1874: Serafim Corrêa de Barros (inventariante) e Anna Maria de Jesus (inventariada). Cartório de Órfãos e Ausentes, processo número 103, maço 04, estante 116.

Júlio de Castilhos – 1884: Serafim Corrêa de Barros (inventariante) e Carolina Corrêa de Barros (inventariada). Cartório do Cível, processo número 40, maço 01, estante 132.

Júlio de Castilhos – 1886: Salustiano Corrêa de Barros (inventariante) e Serafim Corrêa de Barros (inventariado). Cartório Provedoria, autos número 19, maço 01, estante 133.

249

ANEXO A – Os municípios rio-grandenses criados em 1809.

Fonte: LESSA, L. C. Barbosa. Rio Grande do Sul: prazer em conhecê-lo. Rio de Janeiro: Globo, 1984, p. 126.

250

ANEXO B – O município de Rio Pardo em 1809.

Fonte: ORTIZ, Elizete S. Educadores Capuchinhos em Soledade: criação do Ginásio São José e da Escola Técnica de Comércio Frei Clemente (1936-1978). Dissertação de Mestrado. Passo Fundo: UPF, 2004, p. 51 in ORTIZ, Helen S. O Banquete dos Ausentes: A Lei de Terras e a formação do latifúndio no Norte do Rio Grande do Sul (Soledade, 1850-1889). Dissertação de Mestrado Passo Fundo: UPF, 2006, p. 78.

251

ANEXO C – O município de Cruz Alta em 1833.

Fonte: ORTIZ, Elizete. S. Educadores Capuchinhos em Soledade: criação do Ginásio São José e da Escola Técnica de Comércio Frei Clemente (1936-1978). Dissertação de Mestrado. Passo Fundo: UPF, 2004, p. 51 in ORTIZ, Helen. O banquete dos ausentes: A Lei de Terras e a formação do latifúndio no norte do Rio Grande do Sul (Soledade, 1850-1889). Dissertação de Mestrado Passo Fundo: UPF, 2006, p. 78.

252

ANEXO D – Os municípios do Rio Grande do Sul em 1857.

Fonte: POZZEBON, Maria Catharina Lima. O caminho das tropas e a formação de Cruz Alta. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PUCRS, 2002.

253

ANEXO E – Os municípios do Rio Grande do Sul em 1917, com destaque para a região Noroeste.

Fonte: ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho, 1850-1920. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 1997, p. 27.

254

ANEXO F – O município de Júlio de Castilhos e as modificações em seus limites políticos desde sua emancipação, em 1891.

Fonte: COSTA, Firmino. Terra de Vila Rica. Contribuição ao estudo da história do município de Júlio de Castilhos. Júlio de Castilhos: Publicação do Centro Cultural Francisco Salles/Prefeitura Municipal de Júlio de Castilhos, 1991.

255

ANEXO G – A vegetação original do Rio Grande do Sul e as quatro unidades morfológicas do estado: Planalto, Missões, Campanha e Depressão Central.

Fonte: ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho, 1850-1920. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 1997, p. 23.

256

257

258

259

260

261

ANEXO M – Designação da profissão dos escravos no inventário de Serafim Corrêa de Barros, no ano de 1887 (continua na página seguinte).

262

Continuação

Fonte: Inventário de Serafim Corrêa de Barros – Cartório Provedoria, município de Júlio de Castilhos – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Autos número 19. Maço 01. Estante 133. Ano: 1886.

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