A experiência de um professor homossexual com o ensino crítico de línguas

May 28, 2017 | Autor: Lucas Rigonato | Categoria: Critical applied linguistics
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A Experiência de um Professor Homossexual com o Ensino Crítico De Línguas Lucas Gustavo do Nascimento Rigonato 2015-2016 Fulbright Fellow, The Catholic University of America (USA) Universidade Federal de Goiás (Brazil) Resumo As práticas críticas no processo de ensino e aprendizagem de línguas (Pennycook) têm adquirido cada vez mais espaço no âmbito da Linguística Aplicada. Pesquisas (Rigonato, Urzêda-Freitas, Pessoa, and Silvestre) têm sido realizadas a respeito do ensino crítico de línguas estrangeiras, e discussões pertinentes têm sido levantadas sobre um ensino de línguas que seja problematizador, em que professoras/es se engajem em discussões sociais ao invés de permanecerem alienadas/os e distantes da realidade mais ampla, como outrora já fomos acusadas/os (Cox, and AssisPeterson). Este artigo busca refletir sobre a minha experiência com o ensino crítico de língua inglesa em um centro de línguas durante o primeiro semestre de 2009 e como a percepção que eu tinha sobre tal perspectiva foi sendo rearticulada na medida em que compreendi que o meu corpo estava presente na minha prática. Para tanto, revisitarei os dados da pesquisa realizada por Urzêda-Freitas em sua dissertação de mestrado. A pergunta de pesquisa que pretendo responder ao final do texto é: Como a minha visão sobre o ensino crítico de línguas mudou durante a minha experiência com tal perspectiva? Introdução. Os estudos críticos desenvolvidos na área de ensino de línguas têm sido pautados por uma prática que leve em conta o contexto em que é realizada, seja esse a universidade, os centros de línguas ou as escolas regulares. Ao alcançar lugares outros, essa prática de ensino, então, tem arrombado as portas da academia e se expandido para diferentes contextos educacionais. Algo que tem se discutido, também, é a figura da/o professora/professor que realiza a prática crítica do ensino de línguas, isto é, quem promove o ensino (Urzêda-Freitas, and Pessoa). Em outras palavras, de igual importância é a figura, o corpo da/o professora/professor que resolve trabalhar com o ensino de línguas, seja de maneira crítica ou não. Sabe-se que suas identidades estão presentes em toda a sua prática e seu corpo poderá servir de base de conflito para as problematizações agenciadas em sala de aula. Weeks argumenta que o corpo se apresenta como espaço de conflito: “marcado por gênero, raça, idade, e sujeito ao prazer, ao medo e à súbita extinção, o corpo é o lugar onde as diferenças são inscritas” (91). Na mesma linha de raciocínio, Louro afirma que os lugares ocupados pelos sujeitos no mundo social são definidos com base em seus corpos: “características dos corpos [cor da pele e dos cabelos, formato do nariz e da boca, presença da vagina ou do pênis, desejo pelo mesmo sexo e/ou pelo sexo oposto etc.] significadas como marcas pela cultura distinguem sujeitos e se constituem em marcas de poder” (76). Ao entrar em sala de aula, portanto, não há como nos despir de quem somos. Como em todos os outros momentos da minha vida, ao ensinar o inglês como língua estrangeira, sou indivíduo do gênero masculino, branco e homossexual, por exemplo, e essas características identitárias, bem como outras que me constituem, estão de alguma forma inscritas em meu corpo.

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Minha história com o ensino crítico. Minhas primeiras reflexões sobre o ensino crítico de línguas me levaram a entender o papel que a língua desempenha na construção e manutenção de poder de grupos hegemônicos e nações (Pennycook), e, a partir daí, a marginalização de grupos minoritários de etnia, classe, gênero, raça e identidade sexual. Talvez minha própria identidade sexual tenha servido como um combustível para a prática em que eu me engajaria na pesquisa a ser realizada. Minha atenção foi voltada, também, para fatos históricos que demonstravam a consolidação arbitrária da soberania de línguas durante os tempos (Jordão) e como a ideia da língua inglesa como língua internacional é algo construído (Pennycook). Passei a entender, então, que convenções assim poderiam ser questionadas e a utilização de uma língua como base para esses questionamentos, ou problematizações, poderia ser algo bastante interessante. Estimulado por essas leituras, passei a considerar importante um ensino de língua inglesa que pudesse contestar discursos hegemônicos que marginalizam grupos minoritários, e entendi a necessidade de problematizá-los com vistas à sua eliminação (Cox, and Assis-Peterson). A leitura de Jordão me chamou a atenção para um fato até então desconhecido ou ignorado sobre o ensino de línguas, o de que a “função da educação pelas línguas é formar alunos e professores para o exercício ativo da cidadania, local e global, para a participação de uma política informada, para a atuação efetiva nos rumos das sociedades” (8). Finalmente, fiquei muito interessado na postura sugerida por Pennycook diante de questões que já estão naturalizadas, ou seja, que não são mais contestadas. Para o autor, devemos ter atitude cética e questionadora diante daquilo que não é discutido pela sociedade. Essa visão de ensino me pareceu, à época, de considerável relevância. Além disso, minha ideia de concretização de um trabalho assim era que minha atuação seria livre de conflitos, pois me considerava um indivíduo de personalidade assertiva e livre de problemas ao apontar questões que poderiam ser problematizadas com vistas à eliminação de discursos hegemônicos diversos. Minha ideia de problematização era a de que as discussões aconteceriam na sala de aula, eu seria o facilitador dessas discussões, mas elas não me tocariam, isto é, imaginava que o meu corpo estaria isento da minha prática. De maneira geral, imaginava problematizações livres de conflito. Considero importante apresentar, ainda, uma breve descrição do estado da minha vida pessoal durante a realização do estudo. Na época da pesquisa, eu tinha 22 anos e em termos identitários, identificava-me como homem (gênero), branco (raça), de classe média (classe), cristão (religião) e homossexual (sexualidade). Durante o período em que as informações do estudo foram geradas, eu enfrentava um momento conflituoso com minha família, motivado pela minha decisão de abandonar as atividades religiosas da família por ser homossexual. Esta decisão acabou contrariando as expectativas da minha família, que era evangélica, mas especialmente do meu pai, um conhecido pastor. Além da crise com a família, vivenciava, no mesmo período, uma crise em relação à minha fé, a qual passei a questionar devido ao sofrimento que me foi imposto pelos discursos religiosos segundo os quais fui educado durante o decorrer da vida. Foi assim que iniciei meu trabalho com a perspectiva crítica de ensino de língua inglesa. Acredito que esses dados sejam importantes na medida em que possibilitam compreender os lugares de onde eu falava (Moita Lopes), bem como as vozes que estavam por trás de minhas percepções e relatos acerca do ensino crítico e da prática pedagógica crítica. Em outras palavras, esses dados permitem àquelas/es que leem situar a minha experiência e, assim, compreender minhas percepções e relatos como saberes localizados (Haraway).

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O estudo. Conforme mencionado anteriormente, neste estudo revisito os dados de uma pesquisa que foi desenvolvida como dissertação de mestrado (Urzêda-Freitas) e lanço um olhar específico sobre aqueles dados, gerados pelo autor, que são especialmente relativos à minha participação no estudo. As informações foram geradas por Urzêda-Freitas no decorrer das três fases de seu estudo, realizadas no primeiro semestre de 2009. A primeira fase teve por objetivo gerar percepções iniciais sobre o ensino crítico de línguas, tendo como fontes um questionário inicial (QI), uma sessão reflexiva inicial (SRI) e duas sessões reflexivas voltadas à discussão de textos teóricos (SRA1 e SRA2). Já a segunda fase teve por objetivo gerar percepções e relatos sobre o trabalho com o ensino crítico de línguas, tendo como fontes quatro sessões reflexivas destinadas à problematização da experiência das/os professoras/es-participantes, dos quais eu era um (SRB1, SRB2, SRB3 e SRB4). Por fim, a terceira fase teve por objetivo gerar percepções e relatos finais sobre a experiência do grupo como ensino crítico de línguas, tendo como fontes uma sessão reflexiva final (SRF), um questionário final (QF) e três trabalhos de conclusão de curso – além do meu (TCC1), havia ainda o de duas professoras-participantes (o tema desses trabalhos foi também a experiência com o ensino crítico). Para confecção deste artigo, então, utilizo os dados gerados por Urzêda-Freitas. Todos os excertos são falas minhas. Ensino crítico de línguas: percepções iniciais. Minha decisão de participar de uma pesquisa que envolvesse engajamento em questões sociais foi motivada, a priori, pelo meu interesse em realizar a produção de um trabalho de conclusão de curso. Após essa primeira decisão, percebime, então, instigado a desempenhar um papel mais relevante do que o de um mero instrutor de língua inglesa. Em seu livro, Pennycook sugere uma maneira diferente de trabalhar com o ensino de língua inglesa, o que ele chama de “Linguística Aplicada Crítica”, que para o autor seria “ensinar com atitude” (164). Esse “ensinar com atitude” envolve a ideia de uma percepção/conscientização da/o professora/professor de seu posicionamento político em relação ao seu papel como educadora/educador. A meu ver, o próximo excerto evidencia, então, o meu interesse em alcançar esse “ensinar com atitude”: O educador crítico pode ter um impacto maior ou diferente na vida dos seus aprendizes. Sua natureza crítica, suponho, o impelirá a encharcar seu discurso daquilo que pensa, da sua indignação. Desta maneira, seus alunos não receberão algo encaixado, mas cheio de possibilidades e vertentes. O educador crítico mostra (ou tenta mostrar) aos seus alunos o que a sociedade é, tentando enxergar aspectos importantes. (QI) Provavelmente, essa disposição foi iniciada pelas leituras de autoras/es como Cox e Assis-Peterson, Pennycook e Moita Lopes. Minha motivação estava relacionada às ideias dessas/es teóricas/os, particularmente aquela segundo a qual a sala de aula de línguas deveria ser um lugar de luta contra as forças hegemônicas invisíveis, porém concretas. Nesse momento, entendia que professoras/es deveriam levar suas/seus alunas/os a promover esse tipo de discussão e, dessa forma, fazer da educação uma “ferramenta” para a igualdade e transformação da sociedade. Entendi que deveríamos, enquanto professoras/es, utilizar dos momentos em sala de aula para problematizar construtos naturalizados, como o preconceito. De acordo com a minha concepção nesse momento da pesquisa, as/os professoras/es e as/os estudantes deveriam ser devidamente engajadas/os no processo educativo, de modo a desempenhar o papel transformador que a educação deveria exercer na sociedade (Moita Lopes). Acredito que esse interesse acentuado em mudança estava também relacionado às vivências pessoais que eu vivia na época. Os enfrentamentos diários pelos quais passava por conta da

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minha homossexualidade me instigavam muito fortemente a lutar por uma sociedade que fosse igualitária, e não excludente. No entanto, faz-se importante destacar, ainda, que eu tinha a preocupação que minhas/meus alunas/os tivessem a oportunidade de crescimento na língua-alvo. No meu entendimento, o ensino crítico seria uma excelente oportunidade de aprendizagem e produção linguística nas aulas, pois a partir das discussões as/os alunas/os se sentiriam instigadas/os a participar, expondo suas opiniões, sempre na língua inglesa. Essa intenção pode ser observada no seguinte excerto: ... eu vou estar lá com o Inglês 5, vou ter um conteúdo pra trabalhar... Então, como eu vou trabalhar o conteúdo que eu tenho que trabalhar e as discussões [sobre temas críticos]? (SRI) O que eu quero descobrir, na verdade, é se o ensino crítico contribui pra aprendizagem da língua estrangeira. ... Porque o sentimento que eu tenho é que eles [os alunos] vão sair desse semestre arrebentando. (SRA2) Para mim, então, o uso linguístico com vistas à comunicação levaria a um progresso no processo de aprendizagem de língua inglesa, uma vez que, no meu ponto de vista, as/os alunas/os estariam mais interessadas/os na mensagem que passariam do que na forma dessa mensagem. Percebo, nesse meu outro interesse, igualmente importante para mim à época, uma dependência de métodos de ensino que valorizam a comunicação acima de quaisquer outros objetivos, ligados à concepção de que aprendizes de línguas estrangeiras devem alcançar uma proficiência similar à daqueles que as utilizam como línguas maternas. Na próxima seção, apresento como foi, para mim, o ensino crítico de línguas na prática. Ensino crítico de línguas: a prática. O estudo que decidi realizar, como trabalho de conclusão de curso, envolvia a utilização de um livro literário como fomentador de discussões de temas críticos em uma sala de aula de nível pré-intermediário de inglês como língua estrangeira. A turma era composta por 15 alunos, em idade universitária (17-24 anos). Meu interesse era observar como uma adaptação do livro Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, poderia contribuir para o surgimento de discussões em sala. Eu escolhi este livro devido ao fato de que ele explora diversos problemas sociais e também porque é uma distopia, que é uma sátira de uma sociedade perfeita não-existente. Assim, algumas questões críticas poderiam ser facilmente encontradas no livro. Os tópicos das discussões eram evidenciados por mim, a partir do destaque de trechos no livro que fossem considerados pertinentes. Os tópicos trabalhos foram: poder político, ciência, religião, amor e preconceito. Além disso, eu objetivava conduzir aulas em que o livro didático utilizado no curso, o livro literário e as discussões fossem todas conectadas de alguma maneira (Rigonato). Nas discussões em que eu funcionava como facilitador e não expunha para os alunos detalhes pessoais, ou seja, em que meu corpo não estava em foco, a mera produção linguística das/os minhas/meus alunas/os me deixava bastante satisfeito. A seguir um excerto que evidencia tal percepção: ... quando eu fui trabalhar sobre religião, eu levei perguntas do estilo: Qual tipo de preconceito as pessoas religiosas têm contra aquelas que não são e também o contrário? O que é que acontece, como é que a religião pode prejudicar a humanidade? Como é que pode ajudar? E eu acho que foi interessante... Um aluno falava uma coisa que outro discordava ou então que ia contra a realidade [desse] aluno. (SRB4)

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Se o objetivo fosse, de fato, somente o de produção linguística por parte das/os alunas/os, poderia considerar a experiência um sucesso. No entanto, como já discuti anteriormente, o meu interesse não era somente o de produção linguística por parte das/os minhas/meus discentes. Havia, também, um interesse mais intrínseco ao instigar discussões de tópicos críticos. Acredito que minha identidade, então, como homem branco, cristão e homossexual, bem com as experiências que vivenciava na esfera pessoal, serviram como força motora para meu engajamento no ensino crítico, e serviram também como fonte de conflitos para minha experiência. Meu interesse era que, a partir da minha prática, eu pudesse ver algum tipo de transformação em uma sociedade que, para mim, era repleta de injustiça e falta de equidade. Contudo, eu acreditava que a ocorrência de conflitos não seria dolorosa para mim, pois entendia que o trabalho seria simplesmente emancipador para as/os alunas/os. Não entendia que meu corpo também serviria como fonte de conflitos. O excerto a seguir mostra o momento em que eu mesmo coloquei meu corpo como fonte de embate para a discussão que acontecia em uma aula cujo tópico a ser discutido era religião. No dia que eu levei a discussão sobre o amor, eu queria que eles falassem pegando coisas do livro, né? Eu queria que eles falassem sobre como eles entendiam o amor... Só que a conversa tomou um rumo diferente, que foi... tomou um rumo, não, eu acho que EU dei um rumo pra conversa com a minha pergunta. Um aluno foi falar sobre o momento em que ele terminou com a namorada dele, que ele sofreu por amor, que ela do nada terminou com ele. Só que, antes de dizer girlfriend, ele falou boyfriend. Aí, eu falei assim: “What did you say?” Aí, ele falou girlfriend. Aí, depois, em vez de falar she, ele falou he, e na hora que ele falou he, todo mundo riu, né? Aí, depois disso, eu esperei ele terminar o discurso dele e falei: “Por que vocês riram quando ele falou he?” Aí, um aluno falou assim: “Uai, porque a gente espera que ele seja normal”. Aí, eu falei (comigo mesmo): “Tá, e o que é ser normal?” E nisso eu já fiquei assim... e soltei a pergunta: “Tá, então o que é ser normal?” E ele: “Uai, ele é homem, a gente espera que ele goste de mulher”. E eu: “Por quê?” E ele: “Porque isso é natural, é comum”. Aí, eu falei: “Tá, então eu sou homossexual, e o que é que eu sou, então?” Aí, eu fui e escrevi no quadro: “Abnormal? É isso que eu sou?” Aí, o aluno falou: “Não, teacher, não é isso que eu estou querendo dizer”. Aí, eu falei: “Então tá, o que você está querendo dizer?” E ele: “Não, é comum ser homossexual, mas não é natural”. E eu perguntei: “Então tá, o que é que eu sou, então? Se eu não sou normal, eu sou abnormal, abnormality... ou, então, not natural... então, o que é que é isso? O que é que eu sou, gente?” (SRB4) Como pode ser notado, eu ditei o rumo que a conversa estava seguindo quando meu aluno falava sobre a sua experiência. Em um momento, provavelmente motivado pelo meu interesse pela mudança e pela dor que eu sentia por ser marginalizado, eu coloquei meu próprio corpo em evidência. Ao perguntar para minha turma “O que é que eu sou?”, eu trouxe o meu corpo para o centro e esse corpo lhes dizia muitas coisas (Louro). Meu corpo lhes dizia que eu era homem e homossexual e esse corpo era, para minha turma, algo divergente, desviante, não desempenhava o papel que a sociedade esperava que ele desempenhasse (Louro). Meu corpo estava, nesse momento, sendo comparado a um outro, considerado certo, normal, adequado, uma vez que o diferente é sempre considerado assim em relação a um outro, o “não-diferente” (Silva). Ao discutir o corpo como lugar de opressão, Beauvoir destaca que é nas formas e funções do corpo que a cultura se baseia para determinar o que mulheres e homens podem e/ou devem fazer e quais são os seus papéis na sociedade. Era isso que ouvia da leitura da minha turma, que todas/os percebiam e exacerbavam que o desempenho do meu corpo era errado, não o que era

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esperado pela sociedade. No seguinte trecho, relato a continuidade sobre a discussão sobre a minha sexualidade: Aí, eu fui e falei assim: “Tá gente, o Hélio está falando que eu não sou normal, então o que é que eu sou?” Aí, um deles, dos que estavam contra o aluno, foi e falou assim: “A freak”. E eu falei: “Exatamente. É isso que a gente pensa sobre os homossexuais: que são... freaks!”. E o que mais?” E um aluno falou: “Monsters”. E eu disse: “Isso! O que é que os homossexuais são? Monsters!” ... E eu falei: “O que vocês acham, gente? Que tipo de comentário é esse?” Aí, um aluno foi e falou: “Prejudice”. Aí, eu: “Ah, ok, preconceito... e preconceito é bom?” Aí, uma aluna da Psicologia falou que não, que preconceito não era bom, que isso era um atentado VIOLENTO à individualidade de cada pessoa, que cada pessoa tinha que escolher ser o que era e que ninguém tinha que rir ou falar que é comum, que não é comum, que não é normal. (SRB4) Percebo, na minha fala, um desejo imenso em “consertar” condições de injustiça, em educar minhas/meus alunas/os sobre o preconceito (Nelson), talvez por justamente ser o meu corpo que estava em evidência, sendo atacado, “violentado”. Ao realçar as palavras utilizadas por elas/es (“Monster”, “Freak”, como podem ser observadas no trecho anterior), para determinar o que meu corpo desviante (Louro) lhes é, procuro despertar alguma reação que as/os faça repensar sua fala, a violência que me causam ao me rotular uma aberração da sociedade, palavra que lhes ensinei em inglês no momento da discussão. Todavia, conforme Nelson, buscar defender identidades marginalizadas em sala de aula pode se mostrar limitado. Os questionamentos, por outro lado, como forma de problematização, podem ser mais frutíferos. Apesar disso, o meu anseio era mais prático, desejava ver alguma mudança ali na minha frente. Gostaria de poder tocar uma mudança na maneira que minha turma pensava, que fosse algo palpável, que minhas/meus alunas/os repensassem aquilo que diziam, a forma como agiam diante de um corpo que não fosse como o seu. Apesar desse anseio esmagador, após a aula em que esse momento crítico se deu, aproximei-me da conclusão de que a mudança não seria algo tão fácil, sequer possível, de se alcançar. Nos excertos a seguir, expresso o meu sentimento sobre a frustração da não mudança, bem como o meu desgaste diante de discussões que não levariam ao resultado que eu tanto buscava: ... não vai mudar a cabeça das pessoas, entendeu? As pessoas vão sair [da sala de aula] achando que gay é a mesma coisa, que é uma anomalia, que é uma coisa bizarra... E pra mim vai ser só um desgaste, porque eu não tenho maturidade o suficiente pra, tipo, dar essa aula e sair pra minha casa bem. (SRB4) Esse negócio da discussão, da decisão, da ruptura, isso aqui pra mim é muito brusco, entendeu? Eu já tive tanta discussão na minha vida que hoje eu falo: “Gente, eu não quero mais! Não quero mais de jeito nenhum!”. Você acha que veado tem que morrer? Então pense! Se exploda de pensar! Eu não penso assim e pronto. (SRA2) A partir dessas falas, noto a frustração a que cheguei ao perceber que a mudança que eu tanto ansiava não aconteceria assim tão facilmente. Ensino crítico de línguas: reflexões pós-experiência. Uma das minhas preocupações com as aulas em que discutiria questões críticas era que minhas/meus alunas/os pudessem ver coerência entre tudo o que eu fazia. Meu desejo de levá-las/os a se engajarem em discussões sobre tópicos críticos em sala de aula, deveria estar casada com um desempenho satisfatório da língua-alvo, isto é, as discussões deveriam acontecer somente na língua inglesa. Para tanto, tudo deveria estar

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conectado: os tópicos gramaticais sugeridos pelo livro didático, a leitura do livro fomentador das discussões e os objetivos da instituição para aquele nível. O preparo dessas aulas foi bastante dispendioso para mim, pois não havia material pronto para realizá-las. A sensação, no final desses dias de aulas, era de extremo cansaço. No excerto a seguir, exponho esse sentimento: ... eu queria, assim, dar uma aula toda ligada, toda... coerente. Então, eram aulas boas, bem preparadas, bem elaboradas, onde tudo estaria ligado. ... Então, pra preparar as aulas foi assim... foi... se eu tivesse que fazer de novo, eu acho que eu iria morrer. (SRF) Essa exaustão contribuiu para o sentimento de fracasso que me acompanhava durante o último semestre de faculdade. Como apontado no final da última sessão, cheguei ao final da experiência com o ensino crítico com um sentimento inevitável de frustração. O meu interesse em “endireitar” o mundo por meio da correção de injustiças e em educar minhas/meus alunas/os sobre questões de homossexualidade e preconceito (Nelson) resultou numa sensação quase inegável de fracasso, tanto na condução das aulas quanto no resultado que as discussões surtiram. Aliado a essa sensação, havia o problema que enfrentava na minha vida pessoal. Como já apontado, a difícil situação que enfrentava em minha família por ter decidido romper com a fé cristã protestante por conta da minha homossexualidade era igualmente ou ainda mais fatigante. Não seria absurdo traçar um paralelo entre minha frustração com minha turma e minha frustração com a minha família. Observe-se, no seguinte trecho como eu via discussões a respeito da minha homossexualidade com minha família antes da experiência com o ensino crítico: [Pra minha família] homossexualidade é pecado e leva ao inferno, entendeu? Essa é uma questão definida. E “é a palavra de Deus!” E meu pai, os evangélicos, são crentes desde que nasceram, então esse é o código de conduta pra eles. E vocês vão imaginar que foi assim que eu cresci também, entendeu?! Então, eu também tenho uma luta imensa, ou tive... e estou aprendendo a lidar com isso. (SRI) Ao perceber essa minha atitude em relação à resposta da minha família quanto ao preconceito, e a realidade também exteriorizada na fala de minhas/meus alunas/os, o objetivo de corrigir as injustiças do mundo, presentes nas percepções da minha turma, a sensação era de que meu vanguardismo em direção ao progresso, em direção à igualdade e justiça no mundo, estava fadado ao fracasso. Por fim, cheguei ao momento em que me pareceu que trabalhar a língua inglesa, somente em termos técnicos e estruturais, seria algo mais fácil, menos dispendioso e menos doloroso, pois acreditava que, embora meu corpo estivesse à mostra o tempo todo, eu não precisava evidenciar esse fato. Acreditava, assim, que pudesse camuflar o meu corpo e focar somente nas questões estruturais da língua a ser trabalhada (Louro). O sentimento de frustração me levou ao seguinte posicionamento: Então, a reflexão que causou em mim foi essa: é difícil, eu vou sair daqui e isso vai me dar dor de cabeça, eu não quero... isso... isso me DESGASTA, entendeu? Muito! Em outras palavras, eu não sou PAGO pra isso! Eu posso querer viver pra isso um dia, mas agora, não. (SRB4) O meu foco no início era que meu aluno produzisse língua, mas eu percebi que, a partir do momento que eu comecei a trabalhar com esses temas que eram relevantes pra mim também, que me tocam, aí eu vejo que... Aí, vem outro objetivo, que é a mudança, o resultado... Pra quê eu estou fazendo isso? Pra quê eu estou gastando horas preparando essa aula? Pra quê? Pra nada? Eu não estou preparando uma aula assim pro meu aluno achar interessante. Se eu estou falando de uma coisa que é tão importante pra sociedade, eu quero mudança. (SRF)

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Notadamente, cheguei ao final da experiência com o ensino crítico colocando em questão a minha identidade de educador. Acredito que essa dificuldade possa estar intimamente relacionada a minha crença anterior à experiência da pesquisa de que o ensino de línguas poderia ser algo que não fosse corporificado. Na próxima seção, teço os comentários finais a respeito da minha experiência com o ensino crítico de línguas. Reflexões finais. Com base nas análises compartilhadas neste texto, creio que seja possível traçar como a percepção que eu tinha do trabalho com o ensino crítico de línguas mudou durante minha experiência na medida em que compreendi que o meu corpo estava presente na minha prática. Acredito que a minha experiência pode ser dividida em três momentos. Inicialmente, eu percebia o ensino crítico como oportunidade de correção de injustiças, que apesar de ser eu também vítima de tais injustiças, o meu corpo não seria violentado durante as discussões. Percebia também o ensino crítico como uma perspectiva mais dialógica, por meio da qual as/os alunas/os teriam mais oportunidade de se comunicar utilizando a língua inglesa, havendo, portanto, um progresso no processo de aprendizagem em que estavam engajadas/os. Em um segundo momento, quando comecei a realizar intervenções críticas em minhas aulas, no instante em que percebi que não haveria como alienar o meu corpo da discussão sobre o preconceito, eu o coloquei em evidência. Trouxe o meu corpo e seu desempenho à mostra, para discussão, para que todas as pessoas presentes na turma (re)pensassem as suas falas. O meu objetivo era que houvesse algum tipo de mudança, de “endireitamento”. Ao notar que essa mudança não seria algo instantâneo, o sentimento foi de frustração. Neste terceiro momento da minha experiência, permiti que o desgaste enfrentado tanto na vida pessoal quanto na profissional tomasse conta da minha decisão em não continuar trabalhando com o ensino crítico de línguas. Embora hoje eu veja a minha experiência de outro lugar, foi assim que a percebi à época. A sensação era de que estaria realizando um trabalho do qual eu não veria resultado, e, talvez por estar em um momento de grandes mudanças, gostaria que meu trabalho surtisse efeitos que fossem mais concretos. Esse fato corrobora os achados de outros estudos (Urzêda-Freitas, and Pessoa) que demonstram que desafios assim podem levar professoras/es a desistir do trabalho crítico em suas salas de línguas. Hoje, percebo que a educação pode ser uma atividade com inúmeras características, exceto neutra. Percebo, também, que em cada escolha realizada em sala de aula, estamos tomando decisões que podem repercutir para além do que podemos enxergar. Apesar de ter desistido do trabalho crítico em 2009, o resultado que essa pesquisa surtiu em mim foi que minhas atitudes jamais contribuirão para a reprodução de inequidades na minha sala de aula. Nesses últimos 6 anos desde a pesquisa, cada vez que presenciei discursos hegemônicos, patriarcais, homofóbicos, racistas, misóginos, excludentes e discriminatórios eu fiz qualquer coisa, menos me calar e seguir um curso mais tecnicista. Cada vez que percebi em minhas aulas a reprodução deste tipo de discurso, eu tomei a decisão de interromper por um momento o que eu fazia e problematizar, discutir, questionar as posturas das/os minhas/meus alunas/os. Concluo afirmando que acredito que este é o papel das/os educadoras/es: contribuir sempre para as possibilidades de justiça entre todas as pessoas e esse papel se concretiza na nossa prática em sala de aula.

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Obras Citadas Assis-Peterson, Ana Almeida; Cox, Maria Inês Pagliarini. “Inglês em tempo de globalização: para além de bem e mal.” Calidoscópio (UNISINOS), v. 5, p. 5-14, 2007. Beauvoir, Simone de. The second sex. London: Vintage Books, 1997 [1949]. Cox, Maria Inês Pagliarini.; Peterson, Ana Almeida Assis. “O professor de inglês (entre a alienação e a emancipação).” Linguagem & Ensino (UCPel), Pelotas/RS, v. 4, n. 1, p. 1136, 2001. Haraway, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial.” Cadernos Pagu, v. 5, p. 7-41, 1995 [1988]. Louro, Guacira Lopes. “Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer.” Belo Horizonte, Autêntica, 2004, pp. 75-90. Moita Lopes, Luis. Paulo. “Socioconstrucionismo: discurso e identidade social.” In: Moita Lopes, Luis. Paulo. (org.). Discursos de identidades: discurso como espaço de construção de gênero, sexualidade, raça, idade e profissão na escola e na família. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 13-38. Nelson, Cynthia. “Sexual Identities in ESL: Queer Theory and Classroom Inquiry.” TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391, 1999. Pennycook, Alastair. “Critical Applied Linguistics: a critical introduction.” New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 2001. Pessoa, Rosane Rocha. “A critical approach to the teaching of English: pedagogical and identity engagement.” Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v.14, n.2, p.353-372, 2014. Rigonato, Lucas Gustavo do Nascimento. “Students’ views on the relevance of a literary book to the discussion of critical themes in the English classroom: a case study. 2009.” Trabalho de conclusão de curso de graduação − Faculdade de Letras, Universidade Federal de Goiás. Silva, Tomás Tadeu. da “Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.” Belo Horizonte: Autêntica, 1999. Urzêda-Freitas, Marco Túlio de. “Ensino de línguas como transgressão: corpo, discursos de identidades e mudança social.” Jundiaí-SP: Paco, 2013. Weeks, J. “Invented moralities: sexual values in an age of uncertainty.” New York: Columbia University Press, 1995.

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