A EXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA RECENTE: RESULTADOS E PERCEPÇÕES

July 15, 2017 | Autor: M. Tavares de Alm... | Categoria: Democracia, Opinião Pública
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Professora aposentada do Instituto de Relações Internacionais e do Departamento de Ciência Politica da Universidade de São Paulo e pesquisadora do CEBRAP.
Baseada em diferentes pesquisas – Datafolha, ESEB-CESOP, CESOP-NUPPES – Meneguello (2013:95) encontrou valores diferentes e bem mais favoráveis à democracia. A porcentagem dos brasileiros que preferiam a democracia à ditadura ou eram indiferentes foi de 43,6%, em 1989; 57,7,% em 1990; 57,9%, em 1993; 59,1%, em 2002; e 64,8%, em 2006.
Na questão sobre confiança nas instituições, o entrevistado é solicitado a localizar sua opinião em uma escala que vai de 1, significando nenhuma confiança a 7 que corresponde a muita confiança. Não há legenda para os valores entre 2 e 6.
A mesm tendência já havia sido encontrada por Veiga (2009).
" (...) o governo representativo é constitutivamente flexível. Reside aí a fonte de sua adaptabilidade e resiliência. O sistema é flexível porque alguns dos princípios que o organizam não são totalmente especificados, particularmente no que diz respeito à influência dos cidadãos sobre as políticas. Os princípios do governo representativo implicam que as preferências dos cidadãos devem ter alguma influência sobre as políticas. Todavia, esses princípios não determinam exatamente quanto peso os anseios dos cidadãos devem ter. A representação implica que os governos sejam responsivos aos anseios dos representados. Mas a responsividade admite graus, diferentemente do assentimento, por exemplo." (Manin, 2013: 8)
Morlino (s/d:4) observa que a qualidade pode ser pensada no plural e em termos de resultados, de conteúdos e de procedimentos. E define democracia de qualidade como aquela que "apresenta uma estrutura institucional estável que assegura liberdade e igualdade aos cidadãos por meio do funcionamento legítimo e correto de suas instituições e mecanismos". Não está claro, na definição se estabilidade, legitimidade e correção são qualidades discretas e dicotômicas – existem ou não existem – ou contínuas. De outra parte, Tampouco é claro como caracterizar, em termos de qualidade, um sistema democrático real quando as três qualidades não apontarem no mesmo sentido.

"Embora as instituições representativas ocupem um terreno menos articulado às noções de apoio ao regime democrático, a avaliação das instituições em geral, incluindo partidos e Congresso, tem papel primordial para o entendimento do desempenho do regime. As percepções sobre sua atuação, bem como da atuação do Estado por meio da execução dos serviços públicos, são as principais dimensões constitutivas da satisfação como o desempenho do sistema "(Meneguello, 2013: 114)

Em artigo recente, Melo (2014) argumenta que embora o presidencialismo brasileiro obrigue à formação de coalizões, seu tamanho e nitidez programática dependem de decisões do Presidente seu partido, responsáveis, em última instância, por " coalizões oportunistas" que gerariam "cinismo cívico".


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A EXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA RECENTE: RESULTADOS
E PERCEPÇÕES
Maria Hermínia Tavares de Almeida
Nossa mais longa e completa experiência democrática já dura mais de um quarto de século. Em 2014, o país realizará sua sétima eleição presidencial consecutiva e, nem os mais céticos imaginam que ela possa não ocorrer ou ser ameaçada por intervenção de forças antidemocráticas, como em passado não tão distante. Todas as forças políticas jogam o jogo da democracia e só ele.
Entretanto, nove em dez analistas políticos --na imprensa, no mundo dos partidos, nas organizações da sociedade ou na academia -- expressam, em graus diversos, descontentamento com o funcionamento da democracia no Brasil. Em sua opinião, o sistema político brasileiro parece não funcionar à altura dos desafios de toda ordem, que congestionam a agenda pública. E a reforma política tem sido, desde a democratização, bandeira agitada por governos e oposições, a cada impasse, a cada conflito que não se soluciona com rapidez. Se as coisas não vão bem é certamente porque as lideranças políticas fizeram escolhas institucionais erradas, diz a sabedoria convencional.
A desconfiança com relação ao sistema político não existe apenas entre as lideranças políticas ou sociais, o público de massa também não parece ter uma opinião muito favorável sobre as instituições democráticas.
Neste artigo, abordaremos o assunto pelo ângulo das percepções do sobre o sistema político, em especial, o que dele pensa o grande público. Mostramos que existe um descompasso entre os resultados produzidos desde que os militares deixaram o poder, em 1985, e a avaliação que surge de repetidas pesquisas de opinião. Não temos a pretensão de explicar esse descompasso, mas de explorar suas consequências para estabilidade da democracia no país, em diálogo com a literatura sobre o assunto. Sustentamos que a desconfiança em relação à democracia só poderá feri-la se e quando existirem lideranças dispostas a mobilizar esse sentimento contra o regime. Argumentamos, também, que as instituições existentes dão incentivos para que continuem fiéis ao jogo democrático.
Na primeira parte, apresentamos de forma sucinta o que nos parecem indícios seguros de que o sistema político, ao contrário do que pressagiaram muitos analistas no começo dos anos 1990s, superou obstáculos importantes e produziu resultados não desprezíveis do ponto de vista da gestão econômica, das políticas sociais e do processamento de crises políticas. Na segunda parte, utilizamos dados do Latinobarómetro e do LAPOP para discutir os níveis (baixos) de apoio do público de massa à democracia e suas principais instituições. Na terceira parte, discutimos com a literatura sobre as possíveis implicações das opiniões do público de massas para nossa vida democrática.
Capeando temporais
Quando os militares deixaram o poder, no começo de 1985, as condições sob as quais o sistema democrático deu os primeiros passos eram tudo menos alvissareiras. O ciclo de expansão econômica, cujo dinamismo deu margem a que se falasse em "milagre econômico", era coisa do passado. O crescimento rateava, os índices de inflação apontavam firme e consistentemente para cima e o endividamento externo era explosivo. A emenda constitucional Dante de Oliveira, que restabeleceria eleições diretas para a presidência da República, fora derrotada no Congresso e o candidato presidencial que unira as oposições e as levara à vitória no colégio eleitoral, Tancredo Neves, faleceu às vésperas da posse. Em seu lugar, assumiu um vice-presidente em que poucos confiavam, por seus laços com o regime autoritário. Iniciava-se um longo mandato durante o qual naufragaram três planos de estabilização monetária – Cruzado, Bresser e Verão – enquanto as elites políticas e sociais, entre confrontos e acordos, levaram dois anos para dar forma à nova Constituição.
No final da década, na primeira eleição presidencial direta desde 1959, a derrota dos partidos que asseguraram a transição para o regime civil —fragorosa no caso de PMDB -- e a vitória de Fernando Collor de Melo pareciam indicar que o sistema partidário tinha poucas chances de se estabilizar e desempenhar o papel de organizador da competição eleitoral.
Não foi, assim, por acaso que o diagnóstico de ingovernabilidade disseminou-se quando o assunto era o sistema político da Nova República e que a reforma política tornou-se um tópico quase permanente da agenda pública brasileira. Presidencialismo com alta fragmentação partidária e dispersão de poder decisório entre esferas da federação passaram a ser vistos como receita segura para tornar nossa democracia ingovernável.
Entretanto, contra a sabedoria convencional, as instituições políticas, estabelecidas no período pós-autoritário, mostraram-se capazes de entregar alguns dos resultados que se imagina as democracias devam assegurar: competição política limpa com chances razoáveis de alternância de partidos e coalizões no poder, capacidade de processar crises políticas, capacidade de produzir decisões de governo e implementar políticas públicas na direção desejada pelas maiorias. (Figueiredo & Limongi:1999 e 2005; Santos: 2003; Melo & Pereira:2013).
Crises de governo não se transformaram em crises de regime. O desmoronamento do governo Collor de Melo, sob denúncias de corrupção, teve solução constitucional, por meio do afastamento e cassação do primeiro presidente eleito; da mesma forma que o escândalo do "Mensalão", que abalou o governo Lula da Silva, foi processado por via judicial.
Um sistema político no qual são baixas as barreiras de ingresso à vida partidária e à disputa eleitoral, possibilitou que todos os principais partidos que se formaram na oposição ao regime militar ou dele desgarraram, encabeçando ou participando de coalizões, se alternassem na presidência ou fizessem parte do governo federal, além de controlar fatias variadas de poder estadual e municipal. O sistema de justiça, com prerrogativas ampliadas pela Constituição de 1988, tornou-se poder mais atuante, em suas diferentes esferas de jurisdição, e com frequência funcionou força anti-majoritária e contrapeso à preponderância do Executivo (Melo & Pereira: 2013).
De outra parte, o mesmo sistema político permitiu que consensos amadurecidos na sociedade, entre especialistas e lideranças políticas se transformassem em políticas razoavelmente eficazes, em geral iniciadas pelo Executivo, mas apoiadas pelo Congresso (Melo, Manor & Neghte, 2012; Arretche, 2014). A inflação descontrolada, que corroeu a economia brasileira por uma década, foi domada pelo Plano Real, em 1994 (Leitâo:2012). Um robusto consenso em torno da estabilidade da moeda formou-se e estabeleceu limites firmes às escolhas de política econômica de sucessivos governos. Um conjunto de reformas, muitas das quais demandando mudança constitucional (Melo: 2002) produziram instituições econômicas mais resistentes a impactos negativos da economia internacional.
Por último, mas não menos importante, ampla convergência em torno da necessidade de mudar o sistema de proteção social, tornando-o mais universal, menos regressivo e mais eficiente, possibilitou a reforma progressista das grandes políticas sociais – previdência social, educação, saúde, saneamento -- e a implantação de programas ambiciosos de transferência direta de renda, como o Bolsa Família (Pessoa:2011). Criou-se assim um sistema de proteção social de universalismo básico (Molina:2007; Huber & Stephens: 2012) em parte responsável pela significativa redução dos níveis de pobreza e desigualdade, pela melhoria dos indicadores de educação e saúde (Arretche, 2014) e pela expansão significativa dos estratos médios de renda (Neri, 2012). Os novos grupos médios são menos brancos, mais mesclados, a indicar uma redução, ainda que mínima, das desigualdades raciais (Almeida & Oliveira, 2011, Almeida & Guarnieri, 2013).
O país entrou em um círculo virtuoso caracterizado por intensa competição política e, simultaneamente, ampla convergência em torno de políticas públicas.
Um pouco por conta desses resultados, um pouco por conta de esforços diplomáticos para aumentar a projeção internacional do país, o Brasil ingressou no bloco das nações emergentes, das potências médias, que segundo os internacionalistas podem ter algum impacto sobre o sistema internacional, quando atuam como blocos ou no interior de organizações internacionais.
Naturalmente, não estamos aqui reduzindo a dimensão e gravidade dos problemas de toda ordem que o país enfrenta. A obtenção de bens privados por meio da utilização de recursos públicos parece ser o combustível que põe em movimento as engrenagens do sistema político. É grande a promiscuidade entre políticos, burocratas e empresas privadas. A economia, com moeda estável, não consegue ir além taxas de crescimento medíocres. A infraestrutura que deveria dar suporte à atividade econômica está defasada. Grandes estruturas públicas proveem, com pouca eficiência, serviços sociais universais, mas de baixa qualidade. Nas cidades grandes, o trânsito é moroso, o transporte deficiente e a segurança individual sempre ameaçada. Os problemas ambientais, à espera de atenção, são do tamanho do patrimônio de recursos naturais do país.
Mas, a dimensão dos logros socioeconômicos e da estabilidade democrática alcançados no período pós-autoritário não pode ser negada, nem minimizada. O país mudou consistentemente para melhor (Arretche,2014).
Entretanto, as instituições políticas que tornaram possíveis aqueles logros são vistas com desconfiança e olhar crítico pelos formadores de opinião, lideranças políticas e sociais e público de massas. As opiniões do público de massas sobre a democracia brasileira e suas instituições são examinadas a seguir.
Amor bandido: o público de massa e a democracia
Desde 1989, os brasileiros votam a cada dois anos para escolher os chefes do Executivo e os membros do Legislativo, nas três esferas da federação. Em um sistema de voto obrigatório o comparecimento é maciço, situando-se entre o mínimo de 78,5 % e o máximo de 86% dos votantes nas oito eleições para cargos executivos e legislativos, entre 1989 e 2012.
Os brasileiros praticam a democracia eleitoral, mas nem todos têm dela uma boa opinião. O Gráfico I, com dados do Latinobarómetro, mostra que pouco menos da metade dos entrevistados pensava, em 2013, que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo.







Gráfico I

FONTE: LATINOBARÓMETRO, 2014

Na verdade, nos últimos dezessete anos, apenas em quatro ocasiões os que consideravam a democracia preferível a outras formas de governo chegaram a ser 50% ou mais dos entrevistados. Nas, outras treze vezes, a maioria dos entrevistados não manifestou apreço especial pelo sistema democrático. Os resultados do Latinobarómetro são muito semelhantes aos obtidos pela pesquisa do LAPOP, da Universidade Vanderbilt. Em 2010, 53% dos brasileiros entrevistados responderam positivamente à pergunta: "a democracia tem alguns problemas, mas é melhor do que qualquer outra forma de governo". Os outros 47% ou eram indiferentes ou preferiam um regime autoritário.
O desapreço pela democracia não é idiossincrasia nacional. Farta literatura, empiricamente sustentada em sondagens de opinião, vem apontando que a desafeição pela democracia tornou-se, desde pelo menos o final dos anos 1980s, traço comum à maioria do países do Ocidente rico, onde aparece associada à erosão da identificação partidária, ao aumento da desconfiança nos partidos, à elevação da volatilidade eleitoral -- e, em alguns casos, à redução da participação eleitoral--, ao crescimento da desconfiança com relação aos legislativos e aos representantes eleitos e a impaciência com formas de corrupção política toleradas até então (Maier:1994; Putnam & Pharr: 2006, Dogan: 1995 ; Nye, Zelikow & King :1997, Anderson & Guillory: 1997; Norris :1999, 2002; Dalton:1999; Torcal:2003, Cain, Dalton, & Scarrow:2003).
Novas formas de sociabilidade e comunicação, a multiplicação de fontes alternativas de informação, a ascensão da videopolítica e a decadência das estruturas de mobilização partidárias, o surgimento de cidadãos informados e capazes de juízo mais severo sobre o funcionamento da democracia, foram fatores mobilizados pelos estudiosos para explicar o fenômeno do desencanto com a democracia representativa, nos países de longa tradição de política competitiva.
Se é verdade, que os brasileiros parecem acompanhar uma tendência quase universal, não é menos verdadeiro que o fazem com porcentagens de apoio à democracia que nos aproximam, na América Latina, de países onde a existência de sistemas políticos realmente competitivos é fenômeno muito recente e, na maioria dos casos, ainda pouco estabilizado: como Paraguai, Colômbia, Panamá, Nicarágua e El Salvador. É o que podemos observar, no Gráfico II, que compara os resultados para um grande número de países latino-americanos.













Gráfico II
Apoio à democracia na América Latina
2013

FONTE: LATINOBARÓMETRO, 2014
Se menos da metade dos brasileiros mostra adesão incondicional à democracia é ainda menor a parcela daqueles que veem positivamente os partidos e o Congresso.
Pesquisa feita pelo LAPOP, em 2010, revela que os brasileiros não confiam nos partidos e no Congresso, duas instituições centrais ao funcionamento do sistema democrático. É que podemos ver na Tabela I.
Tabela I
BRASIL


CONFIANÇA NAS INSTITUIÇÕES POLITICAS
2010


PARTIDOS
 
CONGRESSO
Nenhuma
30.46
22.4
2
13.99
10.3
3
19.29
17.3
4
14.53
16.5
5
12.21
16.3
6
4.59
8.9
Muita
4.93
8.1
FONTE: LAPOP, 2010



São significativas as porcentagens dos que afirmam não ter nenhuma confiança em partidos e no Congresso, bem como daqueles que revelam níveis baixos de confiança (33,25% no caso dos partidos e 27,63 % para o Congresso). Em outros termos, mais de 60% tem pouca ou nenhuma confiança nos partidos e 50% manifestam o mesmo distanciamento com relação ao Congresso.
A existência deste sentimento de distância com relação aos partidos é corroborada por outra medida frequentemente usada pelos analistas políticos: a identificação partidária.
Samuels & Zucco (2013), utilizando pesquisas realizadas pelo Instituto Datafolha, mostraram que, entre 1989 e 2010, a porcentagem dos brasileiros que afirmava identificar-se com algum partido oscilou entre 50% e 40%, com uma trajetória nítida de queda, devida à redução da identificação com o PMDB, não compensada por aumento importante da identificação com o PT até chegar ao teto de 25% e a manutenção, em níveis modestos – abaixo de 10% -- dos que se identificam com o PSDB. São esses, de resto, os três únicos partidos, entre as mais de duas dezenas de agremiações representadas no Congresso, a suscitar no eleitor algum sentimento de proximidade. O Gráfico III, trazido de Samuels & Zucco (2013) mostra com clareza a redução do contingente de cidadãos que não se reconhecem em nenhum partido.












GRÁFICO III
GRÁFICO III
Evolução da Identificação partidária no Brasil


FONTE: Samuels & Zucco (2013) com dados de DATAFOLHA
Em consequência, não é de espantar que não sejam poucos, aqueles que acreditam que a democracia pode funcionar sem partidos e sem Congresso. A tabela II compara a posição dos brasileiros com a de cidadãos de outros países latino-americanos.

Tabela II

América
Latina

Democracia
Partidos e
Congresso

% dos que pensam que democracia pode funcionar sem partidos
e sem Congresso




2013


 
SEM PARTIDOS
SEM CONGRESSO
 
México
45
38
México
Colômbia
43
32
Colômbia
Paraguai
39
34
Paraguai
Panamá
38
37
Panamá
Peru
36
35
Peru
El Salvador
34
30
El Salvador
Brasil
34
34
Brasil
Costa Rica
34
34
Costa Rica
Nicarágua
32
29
Nicarágua
Equador
32
32
Equador
Guatemala
32
28
Guatemala
Bolívia
30
25
Bolívia
Honduras
28
27
Honduras
Chile
25
20
Chile
Uruguai
23
17
Uruguai
Rep.Dominicana
18
20
Rep.Dominicana
Argentina
17
11
Argentina
Venezuela
14
14
Venezuela
América Latina
31
27
América Latina
FONTE: LATINOBARÓMETRO (2014)



Pouco mais de um terço dos brasileiros pensa que a democracia pode prescindir de partidos e pode funcionar sem o poder legislativo, opinião que coloca o país acima da média da América Latina e, ainda uma vez, o situa em um grupo de países, caracterizados, em sua maioria por menor desenvolvimento econômico, reduzida experiência de competição política democrática e por uma estória de instabilidade política, domínio oligárquico e episódios de guerra civil. É verdade que neste grupo figura também a Costa Rica, país com impecável trajetória de estabilidade democrática. É verdade também, que maioria significativa se não valoriza, pelo menos acredita que partidos e congresso são necessário à vida democrática. Mas, o contingente dos que dispensam as duas instituições é bastante significativo.
O mesmo descrédito com relação aos partidos, ao Congresso e aos políticos profissionais foi um componente significativo das multitudinárias manifestações de rua, nas principais cidades brasileiras, em junho de 2013, quando participantes hostilizaram a presença de símbolos e militantes partidários.
Esses dados não são importantes em si mesmo, mas em razão do impacto que podem ter sobre a estabilidade e o funcionamento do regime democrático. Discutimos a seguir suas possíveis implicações.

Desafeição e futuro da democracia
Os cientistas políticos se dividem com relação à interpretação do significado de manifestações expressas de desafeição pela democracia e por suas instituições basilares, como os partidos políticos e parlamentos. Alguns interpretam os resultados como indicação de crise estrutural da democracia devido à erosão da sua legitimidade, definida como aceitação subjetiva de suas instituições pela massa dos governados. As bases do sistema democrático estariam sendo erodidas na medida em que aquele se apoie crescentemente em cidadãos mais desiludidos e céticos. O abalo da crença difundida e compartilhada na legitimidade das regras que sustentam o regime o colocaria sobre alicerces frágeis e instáveis.
Outros autores, como Norris (1999 e 2002), Klingemann & Fuchs (1995) e Manin (2013) argumentam que menos do que crise estaríamos em presença de uma transformação nas relações entre os cidadãos e o sistema político, uma verdadeira mutação democrática nos países norte-ocidentais. Nas palavras de Manin, a democracia de partidos teria dado lugar a outra forma de governo representativo, a democracia de público. Essa transformação teria sido ensejada por uma característica da democracia representativa, subestimada pelos autores que profetizaram sua crise estrutural: a flexibilidade e capacidade de adaptação das instituições democráticas à existência de um público mais informado, menos fiel aos partidos políticos e menos dependente destes para formar opiniões e falar aos governantes.
Na verdade, muitos dos estudiosos que enfatizaram a desafeição pela democracia, baseados em sondagens da opinião do público de massas, tem evitado estabelecer relação direta entre aquele sentimento e a possibilidade de colapso do sistema democrático, deslocando a discussão do âmbito da consolidação do regime para o terreno da qualidade da democracia. Existe hoje uma caudalosa produção no Brasil e no exterior sobre o tema (O´Donnell, Vargas Cullel & Iazzetta, 2004; Diamond & Morlino, 2007; Landman, 2008; Moisés 2010; Morlino,2011, Levine & Molina, 2011; Moisés & Meneguello,2013).
O deslocamento do foco em direção à qualidade da democracia, entretanto, traz consigo desafios de monta para o analista. São muitas as dimensões contidas na ideia de qualidade do sistema democrático e é impossível enfrentar a discussão sem referi-la a algum ideal normativo do que seja boa democracia. É verdade, como observa Sartori (1987) que a análise da democracia sempre é feita a partir de uma posição normativa implícita ou explicitada. Todavia, é também verdade que as discussões feitas do ângulo da qualidade introduzem um componente valorativo, que sendo indispensável à retórica política e à construção de identidades de agentes políticos, pode dificultar a compreensão dos sistemas democráticos realmente existentes.
De toda forma, a discussão sobre a qualidade da democracia contribuiu para dar maior sofisticação às pesquisas de opinião, ao tratar de iluminar com mais nitidez a natureza dos sentimentos de desconfiança política do público nas democracias de massa. Assim, lastreada em rica evidência empírica proporcionada por pesquisas feitas no Brasil e em outros países da América Latina, Meneguello (2013) distingue entre apoio ao regime democrático e desconfiança com relação a suas instituições, especialmente partidos políticos e Congresso. Em outros termos, embora relacionados, a crítica ao funcionamento das instituições não se traduziria direta e inelutavelmente em rejeição ao regime.
Esses achados, ademais, têm implicações para a discussão já existente sobre construção e reforma institucionais. A discussão sobre qualidade da democracia alimenta o debate sobre as regras que regulam o processo eleitoral, a formação e atuação dos partidos, o funcionamento do Congresso, as relações entre poderes da República.
Mas, uma questão permanece sem resposta: afinal, qual efeito das percepções negativas do público de massa em relação às instituições sobre o futuro do regime democrático? Para os que consideram que a confiança nas instituições é um lastro importante das democracias a questão permanece: a longo prazo, é possível sustentar um regime em bases tão frágeis? Moisés (2013) resume bem o dilema:

"Em todos esses casos não há preferência por um regime antidemocrátrico, mas a desconfiança dos cidadãos em relação às instituições públicas aponta para um paradoxo cujos efeitos para a continuidade da democracia, em longo prazo, precisam ser mais bem conhecidos e avaliados. É razoável supor que a democracia pode conviver indefinidamente com o descrédito dos cidadãos em normas, procedimentos e instituições que, por definição têm função de mediar a competição de interesses divergentes e, ao mesmo tempo, promover a coordenação e a cooperação sociais necessárias ao funcionamento das sociedades complexas?" (O grifo é nosso).

A tensão apontada por Moisés (2013) é real, mas a pergunta importante é sob quais condições o descrédito do público de massas pode ameaçar a continuidade do regime.
Há décadas atrás, Juan Linz (1978), ao se indagar sobre a inevitabilidade da queda das democracias na América Latina, nos anos sessenta e setenta, ofereceu uma resposta certeira: a vitória do autoritarismo longe de ser inelutável, resultou de escolhas feitas por lideranças políticas, em especial daquelas que faziam uma oposição desleal ao regime democrático. Em outros termos, a presença de lideranças dispostas a apostar em soluções não democráticas constituiria o principal determinante do colapso dos sistemas competitivos.
Na esteira de Linz, poderíamos responder a pergunta de Moisés: a democracia pode conviver com o descrédito de cidadãos em suas normas, procedimentos e instituições enquanto não aparecerem lideranças políticas dispostas a capitalizar a desconfiança dos cidadãos contra o sistema.
Mas, por que o fariam? A experiência da curta história do regime democrático, no último século, parece mostrar que oposições desleais são mais prováveis -- e tem mais possibilidade de êxito -- quando atores políticos de peso passam a acreditar que seus interesses e objetivos não tem chances críveis de serem considerados e de virem a ser realizados por meio da competição democrática. Quando todos os atores relevantes acreditam que tem oportunidade de ganhos, aceitam as regras do jogo, e, em especial, acatam os resultados eleitorais que lhes são desfavoráveis. Nestas circunstâncias – e somente nelas– a democracia atinge um estado de equilíbrio, do qual nenhum deles está disposto a sair por sua conta e risco.
São muitos os arranjos institucionais que possibilitam a permanência daquele equilíbrio virtuoso e a extensa literatura sobre sistemas de governo, regras eleitorais e sistemas partidários não logrou, até o momento, recolher evidências empíricas capazes de sustentar a superioridade de um sobre outros.
De toda forma, é razoável supor que sistemas que facilitem a entrada de partidos na disputa eleitoral deem menos ensejo ao surgimento de oposições desleais, do que aqueles que tendem a reduzir a competição política e estimular formas oligarquizadas de competição pelo poder.
No Brasil, as instituições estabelecidas no período da democratização, cristalizadas na Constituição de 1988, e que dão forma ao chamado presidencialismo de coalizão sem dúvida tem algo a ver com a desconfiança revelada pelo público de massa e compartilhada pelos formadores de opinião, em uma escala superior àquela verificada em países vizinhos com níveis de modernização equivalentes. Os partidos se multiplicam, abrindo espaço para legendas que são balcões de negócio, e seu financiamento elude, com frequência, os controles existentes; governos de coalizão ampla tiram nitidez dos compromissos programáticos e implicam negociações complicadas na distribuição entre os partidos dos cargos de governo relevantes; os parlamentares eleitos para o Legislativo, por vezes, parecem girar em órbita própria, alheios às preocupações dos cidadãos; são muito os caminhos que permitem a promiscuidade entre interesses privados e agentes públicos.
Nada disto é peculiaridade do sistema político brasileiro, mas por razões que ainda não entendemos, parece calar mais fundo no público de massa brasileiro do que nos de outras democracias da região.
Paradoxalmente, o que produz desconfiança entre massas e formadores de opinião é, também, o que reduz os incentivos para o surgimento de forças anti-regime – as oposições desleais de que nos falava Linz --: um sistema que praticamente não impõem barreiras à entrada de novos contendores predispondo-os a jogar todas suas cartas na competição democrática por votos.
Se isso é certo, medidas imaginadas para aprimorar a democracia, que limitem a formação de partidos e reduzam o jogo eleitoral a poucos jogadores poderão abrir espaço para líderes políticos dispostos a correr por fora, explorando o desencanto de parcela do público de massas com os partidos, o Congresso e o próprio regime democrático.





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