A experiência trágica da loucura para Michel Foucault Uma interlocução com a psicanálise

June 8, 2017 | Autor: Lucíola Macêdo | Categoria: Michel Foucault, Psicoanálisis, Psicanálise, Filosofia e psicanalise
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1 Lucíola Freitas de Macêdo

A experiência trágica da loucura para Michel Foucault Uma interlocução com a psicanálise

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Lucíola Freitas de Macêdo

A experiência trágica da loucura para Michel Foucault Uma interlocução com a psicanálise

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Linha de Pesquisa: Lógica e Filosofia da Ciência Orientador: Prof. Dr. Ivan Domingues

Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - UFMG 2003

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Macêdo, Lucíola Freitas de A experiência trágica da loucura para Michel Foucault — uma interlocução com a psicanálise. Belo Horizonte: UFMG/FAFICH, 2003. 160p. Dissertação (mestrado) – UFMG. FAFICH. 1. Foucault, Michel 2. Trágico, experiência trágica 3. Loucura 4. Psicanálise

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4 Dissertação defendida e ______________, com a nota ___________, pela Banca Examinadora, constituída pelos Professores:

Prof. Dr. Ivan Domingues (Orientador) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais

Prof. Dr. Jesus Santiago – Faculdade de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais

Prof. Dr. Fernando Rey Puente – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais

Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais

Belo Horizonte, _____ de ________________ de 2003.

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Para o Ram, com amor.

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6 AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Ivan Domingues, pela disponibilidade, pelo rigor e paciência, transmitidos a cada passo, indispensáveis à elaboração deste trabalho, e pela oportunidade desta experiência. Ao amigo Prof. Dr. Newton Bignotto, pelo incentivo decisivo no começo de tudo, pelas sugestões imprescindíveis na escolha de um, entre tantos caminhos possíveis. Ao Prof. Dr. Tomas Abraham, pela leitura atenta do que era apenas um projeto, pela crítica que constrói, o que permitiu meu encontro com um novo e definitivo tema de investigação. À Prof. Dra. Virgínia de Araújo Figueiredo, com quem pude aprender uma leitura apaixonada do trágico. Às amigas Simone Pinho Ribeiro e Yolanda Vilela, companheiras de leitura, de inquietações e descobertas, dos arrebatamentos que brotam do universo da escrita. A Sérgio Laia e Teodoro R. Assunção, pelo amável empréstimo de obras sem as quais este percurso teria sido, certamente, menos enriquecedor. Ao Dr. Paulo Roberto de Freitas Guimarães, pelo apoio decisivo e fundamental, em um momento crucial, sem o qual teria sido muito difícil levar a cabo este projeto. À Marcela Antelo, com quem aprendi os ofícios de ler entre as palavras e de escutar entre as linhas. Ao Ram, companheiro de todas as horas, Juju e Ana, por trazerem a alegria que faz de cada dia um momento especial. Ao CNPq, pelo apoio dado para a realização deste trabalho.

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SUMÁRIO Resumo ___________________________________________________________ 9 Abstract ___________________________________________________________ 10 Introdução _________________________________________________________ 11 Capítulo 1 - O trágico em questão 1.1 – A fonte grega _____________________________________________ 26 1.2 – Estatutos do trágico ________________________________________ 30 1.3 – O personagem e sua ação: uma ética na Poética?__________________40 1.4 – Atualidade do trágico _______________________________________45 1.5 – O trágico em Michel Foucault ________________________________55 Capítulo 2 – A loucura enquanto experiência trágica em Michel Foucault 2.1 – A experiência enquanto conceito organizador ____________________ 63 2.2 – O herói trágico e o louco _____________________________________ 66 2.3 – Porque articular experiência da loucura e experiência trágica ________ 71 2.4 – O problema da origem ______________________________________ 78 2.5 – Foucault e a psicanálise ______________________________________80 2.6 – Do estatuto da loucura: o trágico como invariante? _________________90 Capítulo 3 – A experiência trágica da loucura: linguagem e transgressão 3.1- A experiência de transgressão __________________________________ 94 3.2 – A experiência de transgressão é relativa ao campo da linguagem ______ 96 3.3 – A loucura enquanto experiência de transgressão e a experiência literária 99 3.4 – A linguagem, entre a loucura e a obra ___________________________102

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8 3.5 – Loucura, literatura, e experiência trágica ________________________ 104 3.6 – A experiência de transgressão em Bataille ________________________108 3.7 – Hölderlin: onde termina a obra, onde começa a loucura? ____________ 112 3.8 – A experiência da loucura e a da linguagem _______________________ 118 Capítulo 4 – A loucura em questão 4.1 – A carne da loucura ___________________________________________ 127 4.2 – Nos confins do sentido: o real __________________________________ 132 4.3 – As palavras e os corpos _______________________________________ 140 4.4 – Da loucura: entre estetização e encarnação ________________________ 144 4.4 – Uma alternativa à estetização: o fora-da-lei e a transgressão ___________ 150 4.5 – Um outro caminho: o trágico como problema histórico _______________ 152 Conclusão ____________________________________________________________ 156 Referências bibliográficas _______________________________________________160 Bibliografia consultada A – Foucault _____________________________________________________ 165 B – Sobre Foucault e referências foucaulteanas __________________________ 166 C – Sobre o trágico ________________________________________________ 168 D - Psicanálise ___________________________________________________ 171 E – Outros ______________________________________________________ 173

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9 RESUMO

Esta dissertação tem por objetivo investigar o estatuto da loucura na obra de Michel Foucault. Encontra-se, no “Prefácio” de 1961, da História da loucura, uma indicação que orientou e norteou todo o curso desta investigação: a loucura se apresenta, antes de mais nada, como uma experiência trágica. Partindo de algumas referências relevantes no que concerne ao estatuto do trágico no mundo antigo, tentou-se construir critérios para interrogar sua atualidade. Para melhor situar essa problemática em Michel Foucault, formulou-se uma primeira hipótese de trabalho, a saber, que as formas residuais do trágico contemporâneo se atualizariam para Michel Foucault através da experiência da loucura. Esta investigação procura demonstrar que tal hipótese de trabalho se estende mais além do “Prefácio” de 1961, podendo ser também verificada em outros textos e conferências proferidas entre 1961 e 1966 e publicados em Dits et écrits. A partir das relações estabelecidas por Foucault entre a experiência trágica e aquela da loucura, no contexto do mundo antigo e do mundo contemporâneo, estabeleceu-se uma interlocução com alguns aspectos da teoria psicanalítica das psicoses. Para finalizar, algumas respostas para a grande questão que atravessa este trabalho foram lançadas, a saber, a pertinência do trágico como modelo para pensar e lidar com problemas da existência individual e coletiva, do drama humano, em que a loucura aparece, mais ou menos explicitamente, como uma de suas manifestações.

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10 ABSTRACT

This work is an investigation on the statute of madness in Michel Foucault’s writings. We give particular attention to an indication of his 1961 Preface to the “History of Madness”, where madness is presented as a tragic experience. According to some relevant references on ancient world’s idea of the tragic, we have tried to establish some criteria in order to measure its presence in the contemporary world. Our hypothesis is that we can infer from Foucault’s writings that the residual forms of tragic can be detected, in present times, in the experience of madness. We try to demonstrate that this hypothesis stands beyond the 1961 Preface and that it can be found also in Foucault’s 1961-1966 texts and conferences, which have been published later in Dits et écrits. In this work we have also tried to establish a relationship between Lacan’s psychoanalytical theory of psychosis and Foucault’s theories on madness as a tragic experience.

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11 INTRODUÇÃO

Esta dissertação teve como objetivo inicial investigar o estatuto da loucura na obra de Michel Foucault. Logo de início, encontra-se, no “Prefácio” de 19611, suprimido na segunda edição da História da loucura, uma indicação que orientou e norteou esta investigação: a loucura é aí concebida como uma experiência trágica. A leitura do “Prefácio” ganhou uma conotação especial a partir de uma declaração de Foucault retomada por Didier Eribon. Nela, ele explicita que, depois de estudar filosofia, nos anos 50, decidira trabalhar em um hospital psiquiátrico:

...tinha sido bastante louco para estudar a razão, era bastante sensato para estudar a loucura. Era a época da eclosão da neurocirurgia, do início da psicofarmacologia, o reino da instituição tradicional. No começo, aceitava essas coisas como necessárias, mas ao fim de três meses (tenho o espírito lento!), perguntei: “Qual é a necessidade deles?” Depois de três meses, abandonei esse trabalho e parti para a Suécia, com um sentimento de profundo mal-estar, e comecei a escrever uma história dessas práticas.2

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Mais adiante e com mais detalhe, será retomada a discussão sobre a supressão e substituição desse primeiro prefácio, datado de 5 de fevereiro de 1960, escrito por ocasião da publicação de uma das duas teses apresentadas por Foucault na Sorbonne, em maio de 1961, visando ao doutourado, Folie et déraison: histoire de la folie à l’âge classique, Paris, Plon, 1961. Nessa época, era preciso defender duas teses para obter o doutourado de Estado, uma tese principal e uma complementar. A outra tese apresentada por Foucault à Sorbonne se entitulava Genèse et structure de l’anthropologie de Kant. Na reedição de Folie et déraison, em 1972, além de suprimir o primeiro prefácio, conservou do primeiro título apenas a segunda parte: Histoire de la folie à l’âge classique (Paris, Gallimard). 2 FOUCAULT. L’intelellectuel et les pouvoirs, p.339.

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12 Essa declaração evidencia o que parece ter sido o cerne de sua posição no que se refere à relação entre loucura e razão. Poder-se-ia dizer que ela contém, já de partida, a semente de um paradoxo: suficientemente louco para estudar a razão e sensato para estudar a loucura. Ela aponta também para “um sentimento de profundo mal-estar” diante da instrumentalização da loucura pela ciência e técnica nascentes, que parecem ter sido o grande motor de sua investigação: qual é a real necessidade delas no que se refere ao campo das ditas “doenças mentais”? Tudo isso pareceu adequado para dar início à tentativa de elucidar de que modo a hipótese foucaulteana da loucura como experiência trágica se apresentava mais além do “Prefácio” de 61, no próprio corpo do texto da História da loucura. A partir daí, foi possível perceber que a problemática trágica aparece como uma questão de peso apenas nos dois primeiros capítulos da obra revisada, e, ainda assim, circunscrita a períodos históricos específicos: à Idade Média e ao Renascimento. Ou seja: o que, no “Prefácio”, se apresenta como uma inspiração decisiva e mesmo norteadora de toda a obra, no corpo do texto, aparece diluído em meio ao problema principal, a loucura na Idade Clássica, e à sua extensa pesquisa histórica. A hipótese desta investigação é a de que, tendo o “Prefácio” sido escrito após o corpo do livro3, tenha mais afinidade teórica com os escritos posteriores de Foucault, aqueles produzidos entre 1961 e 1966.

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O fato é que, de acordo com a cronologia de Daniel Defert e François Ewald, publicada no primeiro volume de Dits et écrits, Foucault teria aproveitado seu “exílio” em Upsália, para dedicar-se ao que será, futuramente, sua tese principal de doutourado. Ele fora indicado por Dumézil para ocupar a vaga do cargo de leitor e diretor da Maison de France em Upsália. Ocupa o posto em outubro de 1955, permanecendo na Suécia até outubro de 58, quando parte para Varsóvia, onde é encarregado de reabrir o Centro de Civilização Francesa. Em 58, escreve a última versão da tese e a submete a G. Canguilhem, que será relator de Foucault, junto com Daniel Lagache, em seu doutoramento. Folie et déraison é escrito, portanto, basicamente entre 1956-58, havendo entre a escrita do texto e a de seu prefácio, já com fins de publicação, um intervalo de dois anos. Em

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13 Os primeiros passos desta investigação foram dados na direção do trágico, tal como ele se apresentou para Foucault em sua herança nietzscheana, claramente colocada no primeiro prefácio da História da loucura. Percebe-se, entretanto, através da leitura do que foi produzido sobre o tema em Dits et écrits, que a articulação entre o problema trágico e a loucura extrapolava suas origens nietzscheanas, indo ao encontro da literatura, através de autores como Hölderlin, Mallarmé, Artaud, Bataille, Klossowsky, entre outros. A produção foucaulteana que contemplou a loucura como problema trágico, situada precisamente no período de 1961 a 1966, interessa aqui especialmente por dois motivos: primeiro, por ser contemporânea a uma obra de Foucault considerada, na época, como um marco epistemológico no campo das Ciências Humanas — As palavras e as coisas4; depois, pelo diálogo e pela confluência entre a produção deste período e a psicanálise5. O “Prefácio” de 61 e a produção sobre a loucura contemporânea à escrita de As palavras e as coisas foram, portanto, as principais referências de Foucault utilizadas nesta dissertação. A razão dessa escolha se justifica através desta tentativa de lançar um foco de luz sobre a propriedade, riqueza, complexidade e amplitude da tese apresentada no “Prefácio” de 61 e desenvolvida nos textos e conferências produzidos entre 1961 e 1966. Quanto ao “Prefácio”, poder-se-ia indagar por que valorizar um texto que fora suprimido

61, inicia a redação de Raymond Roussel, momento em que começa a se interessar amplamente pela problemática da linguagem e da literatura, em suas interfaces com a loucura; em 63, começa a escrever o que chamava na época de “um livro sobre os signos”, que será publicado em 1966, com o título As palavras e as coisas. 4 Apesar dos protestos de Foucault, esta foi considerada pelos intelectuais e críticos da época uma obra estruturalista. 5 Ainda de acordo com a cronologia de Defert e Ewald, Foucault favorece, em janeiro de 1966, a criação do Círculo de Epistemologia em torno de Jacques Alain Miller e François Régnault, sob o duplo apoio de Lacan e Canguilhem. Sua publicação, os Cahiers pour l’analyse, pretende, através de todas as ciências da análise, a saber, da lógica, da lingüística e da psicanálise, contribuir para uma teoria do discurso. Esse círculo terá também um caráter político, consistindo no primeiro movimento de inspiração maoísta no meio estudantil.

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14 por Foucault, por ocasião da reedição de História da loucura, pouco mais de dez anos mais tarde. O fato é que o dinamismo da produção de Foucault, sua capacidade de tratar de vários temas ao mesmo tempo, temas estes que extrapolam o campo da filosofia, adentrando os domínios das artes, da literatura e das ciências, se consuma na não existência de um pensamento sistemático, unitário, fechado, em seu trabalho. Isso permite uma certa liberdade de ir e vir e eleger, dentro de sua obra, uma ou outra passagem6 que pareça interessante por sua riqueza e complexidade. A supressão do primeiro prefácio não deixa de ser, por sua vez, um tema polêmico, e, portanto, objeto do comentário de pesquisadores e biógrafos7. Para Roberto Machado, esta parece incluir-se no bojo do que ele chamou de “O ocaso da literatura”, um dos capítulos de sua obra consagrada às relações entre a filosofia e a literatura em Michel Foucault. Segundo Machado, “o momento em que ele se distancia terminologicamente do estruturalismo é um marco importante da distância que assume em relação ao privilégio antes concedido à linguagem literária.”8 É isso o que fundamentaria também, na revisão feita por Foucault para a segunda edição do Nascimento da clínica, a decisão de eliminar as expressões que o apresentavam, em sua primeira edição, como uma análise estrutural, substituindo-as por uma terminologia consoante com a de A arqueologia do saber. Aliás, a publicação desta como também a conferência “O que é um autor?”, ambas datadas de 1969, poderiam, segundo Machado,

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Ver, a esse propósito, Foucault: o paradoxo das passagens, de André Queiroz, p.9-25. Foucault constrói, em um período de aproximadamente 30 anos, três sistemas de pensamento: uma arqueologia (do saber), uma genealogia (do poder) e uma hermenêutica (do sujeito). 7 Quanto a esse ponto, consultar Foucault e seus contemporâneos, de Didier Eribon, p.87-99. Ver também Foucault, a filosofia e a literatura, de Roberto Machado, p.117-136.

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15 servir como um marco dessa virada. Nelas, não mais se encontra o termo “linguagem”, substituído pelos termos “enunciado” e “discurso”. A hipótese defendida por Machado é a de que o desaparecimento de uma terminologia estruturalista, no momento em que Foucault define seu projeto de pesquisa histórico-filosófica como uma genealogia, teve como objetivo “marcar o afastamento de Foucault da problemática da linguagem — do modelo da fala, da língua, da escrita — que lhe tinha sido tão cara até então.”9 Para Didier Eribon, por sua vez, o “Prefácio” de 1961, de “ascendência dumeziliana”, estaria marcado, em primeiro lugar, pelo modo como Dumézil aplicara a idéia de estrutura à história das religiões. Foucault havia declarado, em entrevista ao Le Monde10, concedida logo após a publicação da primeira edição de sua História da loucura, que, de modo análogo ao qual Dumézil havia feito com os mitos, tentara descobrir uma “coerência estrutural”, ou, ainda, “formas estruturadas de experiência”, cujo esquema pudesse repetir-se, no campo da loucura. Para Eribon, a estrutura isolada por Foucault ao longo da História da loucura teria sido a da exclusão e da segregação. Além da idéia de estrutura como “forma de experiência”, Foucault estava em busca de um gesto inaugural que remontasse, até a “origem”, ao momento em que se estabeleceu a divisão radical, excludente e sem retorno, entre a razão e a desrazão, entre a razão e a loucura. Ainda que a “pureza primitiva” da loucura, anterior à “toda captura pelo saber”, lhe

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MACHADO. Foucault, a filosofia e a literatura, p.120. MACHADO. Foucault, a filosofia e a literatura, p.118. 10 Essa entrevista foi republicada em Dits et écrits, com o título “La folie n’existe que dans une société”, t.1, p.167-169. Foi republicada também em Ditos e escritos I — problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise, p.149-151. 9

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16 fosse inacessível, acreditava que o “estudo estrutural” lhe permitiria “remontar à decisão que liga e separa ao mesmo tempo razão e loucura.”11 Segundo Eribon, esse fato primitivo, fundador, constituinte da possibilidade mesma da história, foi encontrado por Foucault em Descartes. É na comentada frase da primeira das Meditações cartesianas, “Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos”12, que Foucault identificaria o gesto soberano pelo qual a razão excluiria a loucura. Esse gesto, contemporâneo da internação dos insensatos, vem acompanhado de um acontecimento histórico, o decreto de fundação do hospital geral de Paris, em 1656, como também de outros “acontecimentos clássicos”13, portadores de significados políticos, religiosos, econômicos e morais, consoantes às estruturas essenciais desse período em seu conjunto. É dessa sedimentação arcaica, selada pelo gesto cartesiano, que Foucault se pretende arqueólogo. Se, por um lado, o gesto cartesiano parece dar à loucura um lugar na ordem das razões, ainda que sob a égide da exclusão, por outro, parece confiná-la aos limites do corpo. A causalidade da loucura parece estar em outro lugar que não no vivido, no pensamento, ou

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FOUCAULT. Folie et déraison. Histoire de la folie à l’âge classique, p. VII. DESCARTES. Meditações, p.86. Essa frase se encontra no argumento do erro do sentido, primeiro grau da dúvida: “Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes, no que se refere às coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais não se pode razoavelmente duvidar, embora as conhecêssemos por intermédio deles: por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as mãos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que esta mão e este corpo sejam meus? A não ser, talvez, que eu me compare a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos.” 13 No segundo capítulo da História da loucura, Foucault explicita o que ele chama de acontecimento clássico: ele se refere claramente ao procedimento cartesiano, tido por ele como “o grande exorcismo da loucura”. Segundo Eribon, quando ele utiliza os termos “acontecimento clássico”, “sensibilidade clássica”, “cultura clássica”, “idade clássica”, está designando menos um período cronológico da história que a conjunção entre gestos situados simultaneamente na ordem do discurso filosófico, consoantes com ações que subsidiariam os fatos sociais, artísticos, morais, religiosos e econômicos dessa mesma época. 12

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17 na palavra. O cérebro do louco se apresenta, nas palavras de Descartes, impermeável ao pensamento, incapaz de um exercício tão nobre, ofuscado e perturbado que está, “pelos negros vapores da bile”. Algumas centenas de anos são transcorridas até que ao delírio se conceda a dignidade de um modo de pensamento, e, ainda, que se reconheça uma lógica própria onde reinava apenas o caos14. Foucault, nesse sentido, ainda que em campos diferentes do saber, trilha o caminho inaugurado por Freud e Lacan. O que lhe inquieta não é que a loucura seja considerada por Descartes, ao lado do sonho, como uma forma de erro, mas a exclusão absoluta que ele estabelece entre o pensamento e a loucura. Para ele, “eu, que penso, não posso estar louco”, o que confere a impossibilidade da loucura “não ao objeto do pensamento, mas ao sujeito que pensa”15. O estatuto da loucura passa a ser, portanto, aquele da impossibilidade do pensamento. A conseqüência desse gesto é que “o perigo da loucura desapareceu no próprio exercício da Razão”, afastando-se até mesmo de seu horizonte. A Razão, que se apresenta desde então “entricheirada na plena posse de si mesma, onde só pode encontrar como armadilhas o erro, e, como perigos, as ilusões.”16 A atribuição feita por Foucault ao Cogito cartesiano não deixou de gerar polêmica entre seus contemporâneos. Derrida17, por exemplo, retoma o Nietzsche de O nascimento da tragédia, preferindo situar o degredo contra a loucura não no gesto cartesiano, mas na vitória de Sócrates sobre os pré-socráticos. Parece que, não menos importante que o gesto

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Elisabeth Roudinesco promove uma instigante discussão sobre esse ponto em sua Introdução à obra Leituras da História da Loucura (1961-1986), p.7-32. 15 FOUCAULT. História da loucura, p.46. 16 FOUCAULT. História da loucura, p.47. 17 Consultar, a esse propósito, o texto de Derrida “Cogito et histoire de la folie”, em L’écriture et la différence, Paris, Seuil, 1967. Vale a pena consultar também “Fazer justiça a Freud”, em Foucault, leituras da História da Loucura, p. 53-107, onde Derrida retoma, anos mais tarde, essa questão.

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18 cartesiano, se não como gesto fundador, pelo menos na força de sua imagem, é a figura da stultifera navis. Vale lembrar que Foucault começa a grande epopéia da divisão entre razão e loucura com seu elogio à Nau dos Insensatos. Antes do capítulo “A grande internação”, tem-se “stultifera navis”. Foucault defende que, bem antes do Cogito, haveria uma arcaica implicação da vontade e da escolha entre razão e desrazão. A loucura, herdeira da lepra, é, nos confins da Idade Média e durante todo o Renascimento, o novo objeto provocador das reações de divisão, exclusão e purificação. É nesse contexto que ele afirma, junto aos grandes temas míticos das embarcações e dos heróis imaginários, a existência real, uma vez, de uma tal Narrenschiff. Retira esse dado de autores alemães, como T. Kirchhoff e Kriegk18. A Nau dos Loucos, esse estranho barco que deslizava ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos, ocupara, durante toda a Renascença, um lugar privilegiado na paisagem imaginária da época. Esses barcos, guiados por marinheiros, destinavam-se a levar loucos de toda espécie de uma cidade para outra. Além de uma medida de expurgo, eles funcionariam também como naus de peregrinação, “navios altamente simbólicos de insanos em busca da razão”.19 A “época clássica”20 é situada por Foucault como o momento

em que o

racionalismo desqualifica a loucura como erro e perda da verdade e da razão, e esta, por sua

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Consultar, a este propósito, História da loucura, p.8-10. FOUCAULT. História da loucura, p.10. 20 Pode-se afirmar, grosso modo, que a história da loucura foucaulteana se desenvolve segundo três grandes períodos: o final da Idade Média e o século XVI; a Idade Clássica, que abarca os séculos XVII e XVIII, e a contemporaneidade. Se se aprofundar um pouco esta análise, será possível perceber, através de suas referências, que e periodização utilizada por Foucault na História da loucura se aproxima mais daquela do campo das artes e da literatura que daquela da história e mesmo da filosofia. O fato é que o que baliza o tempo cronológico para Foucault em sua arqueologia é a busca de um mesmo “esquema”, de uma mesma “estrutura”, que comandariam os diferentes níveis, as modificações, os ajustes e as transformações próprias a cada esfera social, institucional ou intelectual. 19

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19 vez, exclui do sujeito dito louco, toda e qualquer possibilidade de pensamento. Ele situa entre Montaigne21 e Descartes uma espécie de linha divisória que tornará impossível a experiência de uma relação de não-exclusão entre razão e desrazão, tal qual no Renascimento. Ao mesmo tempo, Foucault relaciona esse ato da razão que exclui a loucura a uma decisão ética. É por isso que aqui se decidiu iniciar esta investigação por uma tentativa de situar alguns aspectos do que, nos primórdios da filosofia, poderia apresentar-se como princípios do que será, já na contemporaneidade, colocado por Foucault, no âmbito da loucura, como uma contraposição de uma ética clássica, por um lado, e de uma ética trágica, por outro, estando a segunda mais próxima da promoção de uma relação de nãoexclusão entre a razão e a loucura. De acordo com Eribon, o grande problema e a grande novidade da História da loucura, que se apresentam de modo explicitamente contundente em seu primeiro prefácio, estariam na passagem daquilo que inicialmente se propunha como uma estrutura unicamente histórica, que nasceria da história, permaneceria nela durante alguns séculos e então desapareceria, para uma estrutura ontológica. Parece haver, nas entrelinhas do texto foucaulteano, uma verdade da qual ele não abre mão, a saber, que o homem é um ser dividido, sendo o diálogo entre razão e desrazão constitutivo do seu ser:

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Ainda no segundo capítulo da História da loucura, Foucault comenta que, quando em 1580, na Itália, Montaigne encontra Tasso, o poeta enlouquecido, nada lhe assegurava que todo o pensamento fosse ensombrado pelo desatino. Comenta ainda que o mais inquietante é que a história dessa divisão do mundo ocidental se esgote no progresso de um “racionalismo”. Consultar, a propósito dessa discussão, a versão brasileira da História da loucura, p.45-48.

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20 Assim, Foucault, que quis historicizar a experiência contemporânea da loucura, considerando a “doença mental” não como um dado da natureza, mas como o produto de uma série de transformações históricas, reintroduz aqui um fundamento a-histórico, no qual se encontraria a verdade profunda do homem.22

Tendo situado a ordem dos fatos e dos argumentos, a supressão do “Prefácio” de 1961 estaria, para Eribon, relacionada principalmente às diferenças radicais de método e de terminologia existentes entre a arqueologia e a genealogia foucaulteanas, como também à intenção declarada de Foucault de afastar-se de tudo o que poderia apontar para sua adesão ao estruturalismo. Cabe aqui interrogar se abandonar uma terminologia implicaria necessariamente no abandono de uma problemática. De fato, é notável a diminuição das referências feitas ao termo “linguagem” ao longo de sua obra, pelo menos no que se refere ao que foi possível pesquisar em Dits et écrits. O volume I traz 78 referências ao termo; o volume II traz 23; o III, apenas 7, e o IV, 5 referências. O mesmo acontece com o termo “literatura”, que, no I tem 27 referências; no II ,15; no III, 7; e no IV, apenas 2. Quanto ao termo “discurso”, por outro lado, não se observa uma diminuição drástica em seu uso (I-45; II-30;III-44;IV-16). Pode-se dizer que, apesar da problemática da linguagem ter adquirido uma nova roupagem e uma nova forma, ela tenha ocupado um lugar de peso em todo o percurso filosófico foucaulteano. O prefácio de 72 pode ser considerado como um bom exemplo dessa consideração.

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ERIBON. Foucault e seus contemporâneos, p.94.

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21 Foucault escreve, para a reedição de Histoire de la folie, um prefácio curto e bemhumorado, em que curiosamente reafirma a relatividade do sentido e retoma, passados mais de dez anos, o âmago da problemática da linguagem. Ele o faz na forma de um apelo:

Gostaria que um livro, pelo menos da parte de quem o escreveu, nada fosse além das frases de que é feito; que ele não se desdobrasse nesse primeiro simulacro de si mesmo que é um prefácio, e que pretende oferecer sua lei a todos que, no futuro, venham a formar-se a partir dele. Gostaria que esse objeto-evento, quase imperceptível entre tantos outros, se recopiasse, se fragmentasse, se repetisse, se simulasse, se desdobrasse, desaparecesse enfim sem que aquele a quem aconteceu escrevê-lo pudesse alguma vez reivindicar o direito de ser seu senhor, de impor o que queria dizer, ou de dizer o que o livro devia ser.23

A escolha dessas referências para trabalhar a relação entre a loucura e a experiência trágica levou inevitavelmente ao diálogo com outros saberes produzidos sobre esse tema no mesmo período e, particularmente, a uma interlocução com a psicanálise, tida em alta conta pelo Foucault arqueólogo. Quanto ao domínio da genealogia e da hermenêutica do sujeito, ficou decidido aqui, por razões de método, não adentrar em detalhe no domínio de outras démarches foucaulteanas. A permanência no domínio do Foucault arqueólogo possibilitou delimitar com mais precisão o objeto desta dissertação, além de extrair desse percurso o aprofundamento desejado dos problemas por ele colocados.

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22 O argumento do presente texto, por sua vez, será desenvolvido em torno de possíveis conjunções e disjunções entre a experiência trágica e aquela da loucura, no contexto do mundo antigo e do mundo contemporâneo, o que levará, em função das referências foucaulteanas, a uma interlocução com a psicanálise. No primeiro capítulo, parte-se de algumas referências relevantes no que se refere ao estatuto do trágico no mundo antigo, a fim de se construírem critérios para se interrogar sobre a atualidade do trágico e de melhor se situar essa problemática para Michel Foucault. Em meio a esse percurso, localiza-se uma primeira hipótese de trabalho, a saber, que as formas residuais do trágico contemporâneo se atualizariam em Michel Foucault através da experiência da loucura. A hipótese da loucura como experiência trágica em Foucault é o que orienta a discussão fundamental do segundo capítulo. Inicia-se a discussão a partir da explicitação da eleição, por Foucault, de alguns conceitos a partir dos quais abordar o problema. São eles: experiência, linguagem, transgressão e origem. Situados os conceitos principais, parte-se para a investigação de possíveis articulações entre o estatuto do herói trágico e o do louco, caminho através do qual se chega à formulação e discussão de mais duas hipóteses de trabalho, que complementam e se articulam com a primeira. Uma delas é que a experiência da loucura se articularia à problemática trágica enquanto ela se apresenta como uma experiência de linguagem e de transgressão. A outra é que a experiência trágica se constituiria como um invariante no que se refere à abordagem foucaulteana da loucura. É neste momento, e com o objetivo de ampliar o campo desta discussão, que o texto foucaulteano convoca a uma articulação com a abordagem psicanalítica da loucura.

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FOUCAULT.Prefácio, p. VIII.

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23 No terceiro capítulo, amplia-se, a partir das referências ao texto de Foucault, a discussão sobre os conceitos “linguagem” e “transgressão”, em sua articulação com a experiência do trágico e da loucura. Para tanto, parte-se da análise do “Prefácio” de 61 e dos escritos de 62 a 66. Essa análise levou à formulação e discussão de um problema: Foucault elege a literatura, em lugar das nosologias psiquiátricas e do saber científico, como um modo privilegiado de abordagem da loucura enquanto experiência trágica. Essa eleição parece produzir como conseqüência uma estetização do trágico. No quarto e último capítulo, retoma-se a interlocução com a psicanálise, precisamente a partir do problema da estetização do trágico e da loucura. A psicanálise, em sua abordagem à loucura, apresentaria uma alternativa à estetização. Essa discussão permitiu, em primeiro lugar, identificar, no próprio texto foucaulteano, uma alternativa à estetização consoante com a proposta lacaniana. Em segundo lugar, a verificar a propriedade da primeira e da segunda hipóteses de trabalho e de refutar a terceira (invariante). Verifica-se, sim, que as formas residuais do trágico contemporâneo se atualizam para Michel Foucault através da experiência da loucura, e também que a experiência trágica da loucura se constitui enquanto tal a partir dos conceitos de linguagem e transgressão. Não se verifica, por outro lado, a terceira hipótese de trabalho, a saber, a presença do trágico como invariante ao longo de toda a abordagem foucaulteana sobre a loucura. A primazia da matriz trágica se evidencia com toda sua força nas produções dos anos 60, mais precisamente entre 61 e 66. Além disso, tenta-se apontar algumas diretrizes do caminho que deixou de ser percorrido neste trabalho: aquele de possíveis articulações entre o trágico e a loucura como problema histórico, que versaria sobre o campo dos macroacontecimentos, aqueles da

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24 política, da economia, das religiões, assim como para todo um campo de investigação do problema trágico que extrapola o campo da loucura de cada um. Para concluir, propõe-se uma resposta à grande questão que se entremeia em cada linha deste trabalho, a saber, se valeria ou não a pena manter o trágico como modelo para pensar e lidar com problemas da existência individual e coletiva, bem como, do drama humano, em que a loucura aparece, mais ou menos explicitamente, como uma de suas manifestações.

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25 CAPÍTULO 1 O TRÁGICO EM QUESTÃO

Interrogar uma cultura sobre suas experiências limites é questioná-la, nos confins de sua história, sobre um dilaceramento que é como o nascimento mesmo de sua história. Então encontram-se confrontados, em uma tensão sempre prestes a desenlaçar-se, a continuidade temporal de uma análise dialética e o surgimento, às portas do tempo, de uma estrutura trágica.24

1.1. A fonte grega Mais que de origem, termo sempre problemático, tentar-se-á situar aqui alguns antecedentes da tragédia. Para tanto, será acolhida a proposta de Teodoro Assunção25, em sua tese de doutourado, de se fazer uma leitura da Ilíada enquanto tragédia, sustentada e justificada a partir da demonstração das semelhanças e diferenças entre os gêneros épico e trágico, tomando por referência a Poética de Aristóteles. Serão seguidos também os argumentos de Jean-Pierre Vernant, de Pierre Vidal-Naquet26 e de Albin Lesky27, por remeterem os primórdios do trágico aos poemas épicos homéricos. O que para Assunção parece decisivo, para que se possa estabelecer a partir da Poética uma leitura da Ilíada como tragédia, é a consideração da afirmação feita por Aristóteles de que “os elementos contidos na epopéia se encontram na tragédia, mas nem todos os elementos da tragédia se encontram na epopéia.”28 (Poét.V,1449b16-20) Poder-se-

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FOUCAULT. Prefácio, p.142. ASSUNÇÃO. Diomède le prudent: contingence et action héroique dans l’Iliade. 26 VERNANT; VIDAL-NAQUET. Mito e tragédia na Grécia antiga.Trad. Anna Lia A. de Almeida Prado, Maria Conceição M. Cavalcante e Filomena Yoshie Hirata Garcia. 27 LESKY. La tragédia griega. Trad. Juan Godó Costa. 28 ARISTÓTELES. La Poétique.Texto, trad. e notas Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot. 25

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26 ia mesmo interrogar, a partir dessa definição, se o gênero tragédia não abarcaria o gênero épico, ultrapassando-o. Além disso, há elementos que se aproximam, entre ambos os gêneros, no que concerne à composição do enredo, uma vez que se trata, nos dois casos, de uma ênfase dada à “imitação de uma ação”. (Poét.V,1449b 24) Ambos os gêneros, cada um ao seu modo, não enfatizam, por sua vez, os homens em seu caráter mais ou menos exemplar, mas o encadeamento de ações,

... o elemento mais importante é a trama dos fatos, pois a tragédia não é a imitação de homens, mas de ações e de vida, de felicidade (e infelicidade; mas felicidade) ou infelicidade, reside na ação, e a própria finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade.29 (Poét.VI,1450a 15-19)

Tragédia e epopéia aproximam-se também no que concerne ao efeito que produzem, a saber, a depuração do terror e da piedade, ou seja, ambas têm a capacidade de produzir o efeito cathártico. Há outros pontos fundamentais de aproximação entre esses gêneros, tais como a presença da reviravolta da fortuna e a da falta trágica, que serão, entretanto, abordados mais adiante. Lesky, em La tragedia griega, aproxima o épico homérico ao trágico, em função da situação do homem heróico diante da fragilidade que o humano adquire em contraste com a

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ARISTÓTELES. Capítulos I a XII da Poética, p. 31.

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27 onipotência dos deuses. Principalmente porque há elementos na Ilíada que permitem inferir que nela sejam encontrados os primeiros passos em direção à tragédia: o encadeamento dos acontecimentos, das figuras, e os impulsos que as movem, ou seja a colocação em ato da desmedida, não somente através de Aquiles, como também de Pátroclos e de Heitor. Essa ênfase na hybris remete também a Simone Weil, uma vez que a força que retrata poética e apaixonadamente traz esta marca encarnada pelo herói:

O verdadeiro herói, o verdadeiro assunto, o centro da Ilíada é a força. A força que é manejada pelos homens, a força que submete os homens, a força diante da qual a carne dos homens se contrai... A força é aquilo que transforma quem quer que lhe seja submetido em uma coisa... O herói é uma coisa arrastada pela poeira, atrás de um carro.30

— referindo-se aqui ao cadáver desfigurado de Heitor, arrastado por Aquiles. Vernant e Vidal-Naquet, por sua vez, situam o advento da tragédia grega como um momento histórico delimitado e datado com precisão. Segundo esses autores, constitui-se em um gênero literário original, possuidor de características próprias, que instaura no sistema de festas públicas da cidade um novo tipo de espetáculo, traduzindo e expressando aspectos da experiência humana, passados até então despercebidos. Esse acontecimento marca uma etapa na formação do homem grego: a do homem como sujeito responsável.

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WEIL. L’Iliade ou le poème de la force, p.11-42.

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28 As personagens heróicas, além de serem trazidas à cena diante dos olhos dos espectadores, tornam-se objeto de um intenso debate, seja através dos comentários do coro, seja através da oposição de umas às outras, sendo colocadas, portanto, em questão diante do público. O coro não exalta as virtudes exemplares do herói, mas se inquieta e o interroga. De modo diferente ao apresentado pelos representantes do idealismo alemão, esses autores instauram um quadro em que o herói aparece menos como um modelo, que como um problema. A tragédia se constitui em uma espécie de debate entre o passado do mito, das narrativas épicas, das grandes lendas heróicas e o presente das instituições políticas atenienses. O pano de fundo do florescimento e degenerescência da tragédia grega é, segundo Vernant, o pensamento jurídico em pleno trabalho de elaboração, em um momento em que os gregos não têm a idéia de um direito fundado sobre princípios e organizado em um sistema coerente. A tragédia tem por objeto o homem que vive esse debate, que precisa fazer uma escolha decisiva, orientando sua ação em um universo de valores ambíguos e instáveis. Nesse sentido, para esses autores, a tragédia se distanciaria dos mitos de heróis e os questionaria, uma vez que confronta os valores heróicos e as representações religiosas antigas com novos modos de pensar que começam a despontar a partir da inserção do direito no quadro da cidade. A tragédia expressa, portanto, o surgimento, na experiência social, de uma distância intransponível entre as tradições míticas e heróicas e o pensamento jurídico e social. O

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29 sentido trágico da responsabilidade surge, por sua vez, quando a ação humana constitui um objeto de reflexão, de debate, mas ainda não adquiriu um estatuto autônomo. Vernant explicita que a instituição do teatro e da tragédia no século V foi um fenômeno considerável. Até então a cultura era acima de tudo oral. Era o poeta a figura central. Com o teatro, tudo muda. O poeta desaparece. As personagens não têm outro objetivo senão o de revelar a ausência real. O teatro é o universo do fictício. Não é mais, como na poesia, um fictício evocado por meio de uma narrativa indireta. Trata-se de um fictício diretamente encenado. A tragédia cria, portanto, um plano de realidade que é fictício. Corresponde ao momento em que, na filosofia, se estabelece um corte entre o ser e o parecer. Ela surge, nesse momento, para mostrar que o homem é enigmático e problemático: “a imagem do homem heróico, em contato direto com os deuses, agido por eles, subsiste ao lado de outro homem que, quando matou sua mulher, não pôde invocar as maldições ancestrais e é interrogado sobre o porquê de seu ato.”31 Essas duas imagens de homem são absolutamente contraditórias, e os gregos estavam divididos entre elas. Isso porque, naquele tempo, não existia ainda a noção do livre-arbítrio nem da autonomia do homem. O que é problemático é que o ato passa a ser ao mesmo tempo produto de uma decisão, de uma escolha do personagem, do temperamento do agente e de todas as forças que agem através dele. Ainda de acordo com esse autor, quando, no século IV, na Poética, Aristóteles procura estabelecer uma teoria da tragédia, o homem trágico dos séculos VI e V já lhe era estranho e incompreensível, ou seja, para Vernant, a tragédia apaga-se no momento em que a filosofia triunfa.

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1.2. Estatutos do trágico Para se adentrar no campo do trágico, faz-se necessário precisar a que estatuto desse conceito se está a fazer referência, uma vez que, ao longo da história da filosofia, esses temas foram abordados de diversos modos, em diferentes épocas e por vários autores. A presente referência estaria sendo feita ao trágico grego, de Sófocles e Aristóteles? Ao trágico cristão de Pascal e Montaigne? Ou ao trágico sublime e transcendente de Kant, Schiller, Schelling e de Hegel ao modo do idealismo alemão? Em La tragedia griega, Lesky observa que os gregos criaram a tragédia, sem contudo desenvolverem uma teoria do trágico que fosse além da configuração literária, dramática e cênica, sendo esta uma marca do helenismo posterior, que indica também uma perda, a da impressionante grandeza através da qual a concepção do acontecer trágico se mostrava. Lesky retoma a Poética, interrogando-se se seria possível nela encontrar uma concepção do trágico que vá além de uma análise técnica da obra de arte, articulando entre si, a partir dessa questão, alguns pontos fundamentais da análise aristotélica, a saber: o efeito catártico; a reviravolta da fortuna, como núcleo do mito trágico; a indicação do caráter mediano do personagem como sendo o mais indicado para a tragédia; e a falta trágica. Ele ressalta, entretanto, o caráter “amoral” dessas categorias, afirmando que Aristóteles descreve e explica o fenômeno trágico sem julgá-lo; a katharsis, por exemplo, não viria acompanhada de um efeito moral; e a mudança no destino do personagem, sua

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VERNANT. Entre mito e política, p.355.

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31 fortuna ou infortúnio, não estaria sustentada em uma falta moral, mas na incapacidade humana de reconhecer o correto e assim obter uma orientação segura. Resta, quanto ao caráter amoral das categorias aristotélicas, interrogar se Lesky não estaria, tal qual Aristóteles, e diversamente de Hegel, fazendo uma equivalência estrita entre ética e moral. Em sua consideração sobre os estatutos do trágico, Lesky apresenta quatro aspectos que, segundo a sua concepção, o caracterizariam: 1) a mera descrição de uma situação de miséria e desgraça pode comover profundamente, mas o trágico não encontraria aqui seu lugar; este, como já postulara Aristóteles, está relacionado com um acontecer, com a imitação (representação) não de pessoas, senão de ações; 2) o trágico, tanto na obra de arte quanto na vida, suscitaria identificações, por isso interessa, afeta e incumbe; 3) o sujeito do fato trágico estaria voluntariamente envolvido em um conflito, em que a reflexão racional e a apaixonada e desordenada manifestação dos afetos encontram-se separadas por limites precisos e, na maioria das vezes, inconciliáveis; 4) o quarto e último ponto é colocado por Lesky como um problema e acompanhado de uma crítica — seria esse conflito necessariamente marcado por uma antinomia radical, por uma oposição irremediável, cujo desfecho teria que conduzir irremediavelmente à catástrofe, à morte do herói? Ou caberiam na tragédia um happy end, tal qual na Helena, ou ainda no Ion, de Eurípedes, ou mesmo os finais conciliadores, tais como nas trilogias Danaidas e Prometeu, de Ésquilo, ou ainda na Electra e no Filoctetes, de Sófocles? Lesky apresenta ainda uma objeção relevante, a saber, se a catástrofe do herói em Schiller — e talvez se possa estender essa questão a outros eminentes representantes do idealismo alemão — sendo ela subsumida pela idéia de liberdade e transcendência e ainda

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32 caracterizada pelo fato de que o sofrimento do herói encontraria, em uma esfera superior, sua justificação e recompensa, não suprimiria o verdadeiramente trágico. Pode-se crer que pensar e tentar responder a essa questão pressupõe uma decisiva atitude filosófica com relação ao estatuto do trágico. Encontraram-se, para este trabalho, importantes elementos de reflexão na distinção conceitual proposta por Lesky. Entretanto, não se toma aqui o partido por uma solução transcendentalista para a questão, que pressuporia e exigiria uma ordem superior acima de todos os conflitos e sofrimentos humanos, e nem, por outro lado, por uma das soluções niilistas que supõem uma fria resignação ante o absurdo, que, por sua vez, levaria necessariamente à defesa dos finais catastróficos. Tanto uma quanto a outra vertente parecem estar apoiadas na definição do trágico a partir do seu desfecho, ou seja, de uma solução definitiva para o trágico, seja tendo por critério a conciliação e a continuidade da vida, ou a morte e o irremediável. Quanto a esse problema, pode-se dizer que a questão do desfecho perde seu sentido, na medida em que se coloca o acento do trágico não nele, quer aponte para a morte ou para o prosseguimento da vida e a reconciliação, mas no ato de escolha, na situação diante da qual o personagem é colocado e voluntariamente se coloca, e que marca a reviravolta no destino do personagem. O acento colocado no desfecho só teria sentido se o trágico fosse tomado tal qual o senso comum, como um adjetivo que serve para designar acontecimentos fatídicos como a morte ou um grave acidente, e, desse modo, algo digno de terror e piedade, mais por seu caráter irremediável, que por uma oposição radical e sem solução entre duas posições opostas e excludentes entre si. O exemplo antigo paradigmático dessa situação poderia ser o

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33 da Antígona, que se vê diante do impossível de conciliar a lei da cidade com a lei dos deuses. Poder-se-ia ainda fazer uma ressalva quanto ao problema da identificação do propriamente trágico à morte do herói. De maneira paradoxal, o que a morte parece indicar é, justamente, o fim da tensão entre os opostos e também da vida e, portanto, do próprio trágico, que pressupõe e precisa da vida para se configurar. Com relação ainda a esse ponto, a reflexão de George Steiner, em Antígonas, traz uma importante contribuição. Ele desloca o acento trágico da figura de Antígona, de seus atributos heróicos, para marcar que o trágico se delineia a partir da relação de alteridade que os personagens da tragédia travam uns com os outros, nesse caso, por exemplo, seria a relação de alteridade que Antígona encarna para Creonte e Ismênia e vice-versa o que delinearia o propriamente trágico. Nesse modo de conceber os paradoxos do conflito trágico, o ethos humano se evidenciaria não a partir do caráter ou dos atributos do herói, mas a partir de uma relação de alteridade. Para Vernant, por sua vez, a tragédia não é um gênero literário que indica soluções, atitudes, ou, ainda, que delineia uma natureza humana, uma forma do indivíduo. É um gênero fundamentalmente problemático. O homem trágico é um homem duplo e dilacerado. Édipo, o adivinhador de enigmas, quer saber, a qualquer preço. A relação com o conhecimento está relacionada com o século V, com o desenvolvimento da sofística. A paixão pelo conhecimento que ele tem é a do sofista. Mas o conhecimento não é necessariamente trágico. No século IV, ele não é trágico, mas filosófico. O que é trágico é o momento em que o homem é mostrado como um problema. O herói trágico vai até o fim em sua investigação sobre o homem. Ele não

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34 pára. Esse saber que não mede suas conseqüências e não recua diante da ruína nem da própria morte é que é trágico. A tragédia se situa em um espaço entre dois. Seu ponto central se desloca a cada momento de um lado ou do outro. O ponto central não é o homem, são os dois aspectos do homem, e essa passagem que vai de um a outro. O ponto central seria, então, justamente, essa oscilação, essa simultaneidade com que dois pontos opostos e divergentes convivem e se presentificam: “Criatura ambígua, enigmática, desconcertante: ao mesmo tempo agente e agido, culpado e inocente, livre e escravo, destinado por sua inteligência a dominar o universo e incapaz de governar a si mesmo, associado ao melhor e ao pior... maravilhoso e monstruoso.”32 Na Grécia antiga do século V, começa a estabelecer-se o que se pode chamar de responsabilidade: qual seria a parcela de responsabilidade dos deuses na forma como os homens agem? Qual seria a relação entre um homem e o ato que realiza? Essa é a mesma questão que os tribunais colocam. De acordo com Vernant, a fatalidade divina está relacionada com a culpabilidade. Dizer que o homem é culpado, que a culpa é o produto das suas decisões e atos, é dizer que a divindade está dentro dele. “O que chamamos de áté é este poder de loucura, de criminalidade que investe os indivíduos por dentro, que os constitui. Somos feitos disto.”33 O comentário de Vernant e Vidal-Naquet, por sua vez, situa amplamente e com todas as suas conseqüências o registro da responsabilidade inerente ao que se considera como o acontecimento trágico por excelência: a situação de uma decisão que se precipitará

32 33

VERNANT. Entre mito e política, p.396. VERNANT. Entre mito e política, p.366.

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35 em uma ação. Nesse jogo, a ação humana não tem em si força bastante para deixar de lado o poder dos deuses, nem autonomia para conceber-se plenamente fora de seu domínio. Para esse homem, os deuses são incompreensíveis, assim como suas respostas em forma de oráculo, que são tão ambíguas quanto a situação diante da qual seu conselho é solicitado. Nesse contexto, portanto, o homem sempre corre o risco de cair na armadilha de suas próprias decisões, uma vez que, além do cálculo humano, que o leva a deliberar consigo mesmo, ele tem que se haver com as intervenções dos deuses, que o colocam diante do imprevisível e do incalculável. Outro aspecto relevante levantado por esses autores refere-se à multiplicidade de níveis na língua dos trágicos. A mesma palavra pode pertencer a campos semânticos diferentes, conforme pertença ao vocabulário religioso, jurídico ou político. A palavra trágica, portanto, contém em si mesma a equivocidade da língua, e é justamente essa defasagem — o diálogo vivido pelos protagonistas, interpretado pelo coro e recebido pelos espectadores — o que constitui o elemento essencial do efeito trágico. A linguagem trágica é uma linguagem fechada. Os heróis estão encerrados em sua linguagem, eles usam antolhos sem o saber. A tragédia exige que se jogue com a linguagem e com suas ambigüidades:

Os discursos de cada um ao mesmo tempo se opõem e se interpenetram, fazem parte de um sistema único em que, por conseguinte, existem cruzamentos, flutuações, reviravoltas de uma linguagem a outra, que fazem com que cada linguagem adote um

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36 sentido diferente daquele que lhe é dado por quem está falando. Esta é a técnica da tragédia. Aliás, quando falamos, é sempre assim.34

Para Vernant e Vidal-Naquet, o efeito trágico depende e é inerente à língua trágica. O trágico comporta uma ironia, o herói cai na armadilha da própria palavra, que lhe coloca diante da experiência amarga de um sentido que ele obstinava em não reconhecer:

A linguagem se torna transparente para ele, e a mensagem trágica comunicável somente na medida em que o homem descobre a ambigüidade das palavras, dos valores, do próprio homem, na medida em que reconhece o universo como conflitual e em que, abandonando as certezas antigas, abrindo-se a uma visão problemática do mundo, através do espetáculo, ele próprio se torna consciência trágica.35

O que a mensagem trágica comunica, portanto, é que nas palavras trocadas pelos homens existem zonas de opacidade e incomunicabilidade. Observam-se os protagonistas dilacerarem-se e arruinarem-se, cegos que estão, aderidos, fixados a um sentido, tal qual Antígona com a díke dos mortos, em sua impossibilidade de reconhecer o que a limita e contesta. Antígona, que, segundo a interpretação de Vernant, não pôde desligar-se dos seus, da philia familiar, não pôde abrir-se ao outro e acolher Eros na união com Hemón e assim permitir e transmitir a vida. Quanto a possíveis estatutos do trágico e do heróico, ainda, Assunção apresenta, em sua tese, o que ele chama de um modelo alternativo e não aquileano de herói. Para tanto,

34 35

VERNANT. Entre mito e política, p.372. VERNANT. Mito e tragédia na Grécia antiga, p.27.

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37 propõe uma leitura da tragédia que conduza a uma primazia do caráter sobre a ação, ou seja, a ação só interessaria enquanto meio privilegiado de revelação de um caráter e de proposição de um tipo de comportamento heróico. Segundo esse autor, o modo como os limites humanos definidos pelo confronto com os deuses e a relação do guerreiro com o conjunto de seus companheiros de armas são colocados em questão pelo personagem Diomedes, apresentando um modelo ético distinto daquele mais evidente e mais extremo, encarnado por Aquiles. Quanto ao primeiro ponto, por exemplo enquanto em Diomedes, encontra-se uma busca constante de adequação à divindade, o que o obriga a abandonar o combate direto, em Aquiles encontra-se uma ambivalência entre a piedade e a transgressão. Diomedes parece encarnar o exemplo do herói advertido da limitação que faz dele um mortal, e não um deus. A relação com os deuses o reenvia à sua própria finitude, o que figura o caráter contingente, indeterminado e sujeito a mudanças imprevisíveis no percurso de um guerreiro mortal. Isso o leva a fiar-se menos em uma idealidade absoluta de valores, como a coragem, que em uma percepção adequada da situação particular de combate, o que inclui, portanto, a possibilidade de recuar. A marca de Diomedes é, segundo Assunção, a prudência. Ele é o herói que, retornando, preserva sua vida, e que compatibiliza sabedoria e prudência, ao contrário de Aquiles, que, em nome da glória e da excelência de um só, morre ainda jovem. Assunção celebra, em sua conclusão, a glória relativamente modesta do herói prudente, que, ao fim, volta para o lar e celebra discretamente a vida, colocando portanto, em questão, o tipo heróico trágico encarnado por Aquiles.

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38 Quanto a isso, cabe interrogar, ainda, se o herói prudente deixaria de estar submetido ao trágico por ser prudente e por “optar” pela vida. Se também ele não estaria diante do trágico, cada vez que tivesse que fazer uma escolha decisiva, nas situações em que dever e responsabilidade estivessem em questão. Aquiles, por outro lado, parece trazer a marca de uma desmedida, de um herói sujeito a hybris: ele se indispõe com o chefe da armada aqueana por causa de uma mulher que lhe cabia, e, movido por sua cólera contra Agaménon, deixa de cumprir seu dever de guerreiro, ou seja, serve-se de uma virtude pública, a excelência guerreira, em benefício próprio, sem levar em consideração minimamente seus deveres de cidadão ou seus companheiros de armas; cai em erro ao enviar Pátroclo ao encontro de Nestor, que, por sua vez, o enviará ao combate em seu lugar. O individualismo de Aquiles, inconcebíveis no contexto histórico em que vivia, ou, ainda, a marca humana que se sobrepunha à sua ascendência divina, sua vulnerabilidade diante do próprio desejo, a inflexibilidade e a falta do sentido de medida o levam, mais adiante, na narrativa, depois de haver matado Heitor, a desfigurar insaciavelmente seu cadáver. Eis as marcas da hybris de Aquiles, de seu excesso. Assunção situa a reviravolta da fortuna não tanto na morte de Pátroclo em si, mas no sofrimento inconsolável de Aquiles pela morte do seu melhor amigo. O estado de Aquiles aponta para uma mudança na posição do herói diante da comunidade guerreira, pela qual sentirá compaixão, um sentimento de pertencimento à comunidade dos mortais, através da dor pungente da perda, o que o levará a acatar a ordem de Zeus e devolver o cadáver de Heitor a seu pai, além de convidá-lo à sua mesa e assim assegurar a trégua necessária ao cumprimento dos funerais do inimigo morto.

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39 Há ainda um outro aspecto digno de nota trabalhado por Assunção: tomando como referência o comentário de Aristóteles sobre o rei Príamo, em Ética a Nicômaco, a saber:

... numerosas vicissitudes e mudanças acontecem no curso de uma vida, pode acontecer a um homem, o mais próspero, de cair em grandes infortúnios nos tempos de sua velhice, como se conta de Príamo quando experimentou tais vicissitudes aos seus, e quando acabou-se miseravelmente, ninguém vos qualifica de feliz.

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(E.N.1100a 5-10)

Enquanto, para Aristóteles, Príamo é vítima de um “grande acidente” e, portanto, de uma grande infelicidade, não podendo, pois, ser qualificado de feliz, para Aquiles, Príamo ilustra, através da reviravolta do destino, no fim de sua vida, uma mistura de maus e bens, o que ainda seria a melhor opção para os mortais. Segundo a versão de Aquiles, o mal do qual Príamo padece na velhice não representa nada além da parte inevitável de sofrimento que cabe a qualquer mortal, o que, portanto, excluiria do horizonte trágico a possibilidade que constitui o objeto de investigação privilegiado na Ética a Nicômaco, a saber, a Felicidade. O autor faz um instigante contraponto entre a ética aristotélica e o que seria uma ética aquileana, deduzida das entrelinhas do texto da Ilíada. Para Assunção, quando Aristóteles considera a estabilidade como uma das características essenciais da felicidade, ele estaria minimizando a sujeição desta às vicissitudes da fortuna.

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ARISTÓTELES. Éthique à Nicomaque, p. 75.

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40 O que Aristóteles parece excluir da estabilidade do homem prudente é, segundo Assunção, o grão trágico da contingência, que indicaria a distância inalienável que separa o homem, mesmo o mais virtuoso, da Felicidade, sendo este um conceito por demais abrangente, que acabaria por desconsiderar as particularidades da condição humana. Aristóteles parece colocar a todos — Heitor, Peleu, Aquiles, Príamo e Pátroclos — no mesmo “saco”, a saber, na condição de infelizes. Pode-se ainda acrescentar que, além de deixar de fora o grão trágico da contingência, Aristóteles parece deixar de fora outro importante elemento que Aquiles inclui na sua mistura de bens e males, o grão trágico da hybris.

1.3. O personagem e sua ação: uma ética na Poética? Pode-se dizer que a Poética de Aristóteles oferece elementos para uma reflexão rica e abrangente no que concerne à ética, uma vez que esta permite, tal qual se viu anteriormente, dar um passo atrás, para então se investigarem, a partir do texto trágico, os primórdios da formação de uma ética original, anterior à ética filosófica propriamente dita. Poder-se-ia inferir que a Poética amplia o horizonte da reflexão ética, uma vez que seu objeto, a tragédia, coloca em cena uma dimensão que questiona a determinação política e universal do bem de todos, assim como a afirmação de que não haveria ética sem bem, abrindo um espaço para se interrogar sobre o registro da responsabilidade humana e da contingência, incluídas nessa esfera as intempéries do campo dos afetos e suas desmedidas, ou seja, algo equivalente ao que terá sido a hybris para os gregos. O bem e a felicidade, elementos absolutos e necessários ao homem virtuoso tal como são considerados por Aristóteles em Ética a Nicômaco, parecem não apenas

40

41 contingentes, como bastante heterogêneos aos elementos privilegiados por ele no que se refere ao estatuto do trágico na Poética, a saber: a reviravolta da fortuna, a falta trágica e a kátharsis. Mais uma vez, os argumentos construídos por Assunção serão tomados como referência, a fim de se delinear e, mesmo, arriscar

deduzir um ethos

a partir dos

argumentos e conceitos da Poética. É inegável a observação de que também na Poética se encontre a marca aristotélica da racionalidade e da finalidade subsumidas no conceito de Physis. Por isso, o que se denomina, a partir da tese de Assunção, de índices da contingência da Poética se refere, não ao modo particular através do qual Aristóteles pensaria e conceberia a ética, mas ao modo particular através do qual pôde ler e estruturar a trama trágica e seu conteúdo. É certo que, para tanto, se tenha que proceder através de saltos e forçamentos. Mas, ainda assim, de acordo com Assunção, esses índices parecem abrir um pequeno lugar para se contemplar, no campo da ética, o indeterminado, a contingência. O primeiro índice da contingência apontado por esse autor é a reviravolta da fortuna, elemento que aparece indicado por Aristóteles no capítulo VII da Poética como o acontecimento indispensável e central na ação trágica. O segundo índice, intimamente relacionado ao primeiro, é o erro, a falta trágica: “é a situação daquele que sem ser um parâmetro de virtude e de justiça cai no infortúnio, não por causa de seus vícios ou de sua maldade, mas por causa de algum erro.” 37 (Poét. XIII, 1453a, 7-12) Cabe ainda ressaltar, por um lado, o caráter quase sempre indeterminado e incalculável do erro quanto a seus efeitos, e, por outro, que o erro pressuponha uma escolha.

41

42 Vale ressaltar também, nessa passagem, que o personagem trágico não seja um herói glorioso e triunfante, ainda que nobre e digno de alguma reputação. Essa é, segundo Assunção, uma exigência necessária à identificação do espectador com o personagem em questão e, por conseguinte, uma condição para a emergência dos sentimentos de piedade e terror, que se faz possível porque o espectador reconhece e toma para si a passagem ao infortúnio, como uma possibilidade presente também em sua vida. O terceiro índice de contingência consiste no fato de se reconhecer que não se dominam as condições e os resultados de ações e ditos, uma vez que se age, se representa e se fala em um mundo que resiste, sob vários aspectos, a qualquer poder de determinação. Um quarto índice de contingência pode ser acrescentado aos três citados anteriormente, que estaria, por sua vez, intimamente relacionado com os outros três, a saber, a kátharsis. Esse comentário de Vernant permite entender exatamente o ponto em que esses pontos de contingência se articulariam entre si:

Se o herói trágico fosse um salafrário, não haveria efeito trágico. Ele comete erros, não faltas morais mas erros que traduzem o fato de que o homem se encontra, durante toda sua vida, confrontado com situações e forças que não controla e que está forçosamente sujeito ao erro. Que se engana necessariamente. Assim, temos uma coerência na sucessão

37

ARISTOTELES. La Poétique, p.77. ( Tradução nossa).

42

43 dos acontecimentos. O espectador, em vez de sair da representação rompido, destruído, sai dela revigorado: é a kátharsis.38

O espectador da tragédia sai revigorado porque, ao invés de esta fazer com que os sentimentos de terror e piedade sejam simplesmente experimentados, traz, “devido à organização da narrativa, com seu início e seu fim, sua coerência de episódios ligados em um todo e sua unidade formal, uma inteligibilidade que os acontecimentos vividos não comportam.”39 Ou seja, é um fato de representação, através do qual quem assiste tem a oportunidade de ser arrancado, pela ficção, desse mundo de violência do qual se é uma encarnação. O que parece, portanto, fundamental interrogar aqui é o topos ético do efeito catártico. Parece que o fundamental da kátharsis é que ela seja menos algo que opere no nível de uma resposta emocional, de um efeito exorcista, purgativo ou depurativo dos temores e das paixões, que no de um efeito interno à mímesis, à representação. Isso só é possível, na medida em que há, graças à construção da trama, o reconhecimento em si do horror testemunhado, que, por sua vez, produz prazer, por permitir uma aproximação impune ao limiar do mal e do horror, por conduzir ao estabelecimento de relações entre o terror vivido pelo herói e o do espectador, circunscrevendo-o em um campo de representações. A depuração operada pelo efeito catártico dar-se-ia, portanto, através e por causa do trabalho da representação. De acordo com Yves Depelsenaire, a originalidade da Poética aristotélica residiria justamente no fato de ela permitir uma leitura da kátharsis que privilegiaria menos as

38

VERNANT. Entre mito e política, p. 349.

43

44 emoções do espectador, ou ainda uma educação e edificação moral, que a substituição da dor e do desprazer por um prazer. Este seria adquirido, não por uma reação emocional, mas por uma intelecção, por uma elaboração de algo da ordem dos afetos e das paixões que se inscreveria em um campo de representações. Daí seu efeito prazeroso e apaziguador. A partir dos índices de contingência examinados por Assunção em sua tese, poderse-ia inferir que a Poética aristotélica parece indicar um caminho para um tratamento da hybris trágica, ainda que nas tragédias áticas o herói tenha que chegar ao extremo de pagar seu excesso com a própria vida. A apologia ao caminho do meio, proposta por Aristóteles, em Ética a Nicômaco, parece, se transposta ao tempo atual, remeter e recomendar um modo racional de não se haver com o que falta ou com o que excede. O modelo do homem prudente, perfeitamente equilibrado e virtuoso, por sua vez, parece excluir mais que dar um tratamento a essa marca humana, demasiadamente humana, que é a hybris. Uma ética contemporânea, por outro lado, não poderia esquivar-se de incidir sobre a hybris, designada aqui como uma das figuras do que excede, da desmedida. Essa incidência demandaria e produziria um modo de lidar que deveria ir além do aconselhamento ou das receitas de boa conduta, pois implica em um tipo de tensão que ultrapassa o bom senso. Essa tensão poderia ser pensada como um dos elementos centrais do que se propôs anteriormente como o propriamente trágico. Ela remete ao mais além do desfecho da trama, localizando-se nos momentos de decisão-escolha-ação que colocam o personagem trágico diante de si mesmo e tão absolutamente só quanto provavelmente esteve em seu nascimento e estará em sua morte.

39

VERNANT. Entre mito e política, p.383.

44

45 Essa tensão trágica que se configura a partir de posições opostas e irreconciliáveis: a de Antígona, diante do impasse do que fazer com o cadáver do irmão, de agir conforme a lei divina ou a lei da cidade; a de Aquiles, duas vezes confrontado com o impasse de ir ou não ao combate, sendo que o primeiro confronto custou-lhe a vida de seu melhor amigo, e o segundo, a sua própria; ou ainda através do agon de Ismênia e de Diomedes, não menos divididos, ainda que tenham optado pelo recuo e pela cautela, e ainda que suas ações revelem mais uma falta do que um excesso de coragem. A ação gerada por essa tensão pungente implica inelutavelmente uma escolha, colocando o homem de uma vez por todas, e sem garantias, no registro da responsabilidade e da conseqüência.

1.4. Atualidade do trágico Há um consenso por parte dos especialistas de que, ao longo de seus quase dois milênios e meio de existência, o gênero tragédia teve momentos bem circunscritos de presença e ausência. Hans Ulrich Gumbrecht40 observa que as manifestações da tragédia na cultura ocidental emergiram de uma situação política, social, cultural e religiosa específicas, semelhante à que ocorreu em Atenas no quinto século antes de Cristo e se manteve até o declínio da antiga cultura greco-romana. O que caracterizaria a tragédia antiga, segundo Gumbrecht, seria uma tensão que se produziria pelo fato de a ordem objetiva funcionar como limitação à ação do herói trágico, produzindo uma esfera de paradoxos na qual princípios e valores que se excluem

45

46 mutuamente podem estar simultaneamente presentes e ser simultaneamente pertinentes. Tais situações fazem os agentes sentirem-se confusos, pressionados e propensos a cometerem erros. Além disso, o efeito trágico só poderia existir se o herói trágico não tiver a possibilidade de redimir-se por seu erro. Também não será permitido ao herói trágico tornar-se a perfeita incorporação de algum valor positivo, ou seja, ele não poderia aparecer como vítima nem como um salvador ou mártir. E, por fim, não haveria tragédia sem a presença ameaçadora da morte no horizonte. Na cultura cristã medieval, o gênero tragédia praticamente desapareceu, uma vez que o pólo da subjetividade não era desenvolvido e valorizado o bastante para gerar a tensão necessária e através dela produzir paradoxos em possíveis confrontos com a ordem objetiva da teologia cristã. Após o hiato da Idade Média, com a redescoberta da tragédia antiga, da Poética de Aristóteles, no século XV, e dos textos de tragédias gregas e latinas, esse gênero se moveu mais uma vez para o centro da teoria literária, aí permanecendo por muitas gerações, até ser desalojado, no século XX, pelo romance. Foi bastante valorizado, no século XVII, com Shakespeare, Corneille e Racine. É importante notar que também esse século se configura como uma época de transição entre uma visão objetiva do mundo, que se mantinha por meio de poderosas instituições, entre elas a igreja católica, e uma cultura suficientemente desenvolvida da subjetividade. Durante o século XVIII, por causa do surgimento da estética de gênio, foi dada uma atenção especial para a emoção e o culto do indivíduo. De acordo com Glenn Most41, foi Lessing quem sinalizou o beco sem saída do neoclassicismo, no que se refere à teoria da

40

Ver GUMBRECHT. Os lugares da tragédia, p. 9-19.

46

47 tragédia. Foi no período neoclássico que se desenvolveu, a grosso modo, o efeito moral da tragédia, através de preceitos edificadores pronunciados por suas personagens, em que, por exemplo, o malvado era punido e o virtuoso recompensado. Lessing, em contrapartida, com seu cristianismo humanista, localizou os efeitos morais da tragédia, em uma melhoria na sensibilidade moral dos espectadores, obtida através de um refinamento de suas capacidades emocionais e de julgamento. Tomou partido também da valorização da piedade como emoção central da tragédia, desvalorizando a importância do terror. Somente com a teoria do sublime, a emoção do terror (phobos) voltou a ter um lugar central na tragédia. Ainda que Kant não nutrisse especial interesse pela tragédia, foi a partir de sua formulação filosófica do sublime, em Crítica da razão pura, que liberou sua plena utilidade para a mesma. Foi desenvolvendo o que Pseudo-Longino havia começado, colocando o sublime não como expressão de fraqueza, mas de superioridade em relação ao mundo natural, e argumentando, por sua vez, que o verdadeiro lugar do sublime não seria a natureza, mas o espírito humano, que Kant deu um passo decisivo, não somente para a revalorização do terror, como também para a mudança de foco do trágico: do texto para o indivíduo, por enquanto entendido como ser racional. O quebra-cabeça da estetização do trágico tem, por sua vez, em Schiller, uma peça fundamental. Ainda que tenha, em sua Teoria da tragédia, diluído a tensão trágica em nome de uma unidade suprema do universo, ou do sacrifício em prol dos deveres da honra e da humanidade, ainda que tenha encontrado uma solução conciliadora para o trágico na

41

Ver MOST. Da tragédia ao trágico, p. 20-35.

47

48 idéia de liberdade e transcendência, afastando-se definitivamente do trágico grego, foi ele quem articulou as formulações do sublime de Pseudo-Longino e de Kant à teoria da tragédia. Em uma série de ensaios escritos entre o verão de 1790 e o inverno de 1792, Schiller concebeu o trágico de acordo com o modelo do sublime e o gênero da tragédia como um veículo para lhe dar expressão. De acordo com Most, foi Schiller quem formulou pela primeira vez uma visão do trágico como aspecto fundamental da existência humana, indicativo da irremediável incompatibilidade entre o homem e o mundo. Essa idéia tipicamente moderna e intimamente relacionada à secularização e ao desencantamento do mundo seria, por outro lado, uma idéia estranha ao pensamento grego antigo. É esta aplicação do sublime ao gênero específico da tragédia, desdobrada e enriquecida por Schlegel, Schelling e Hegel, transformada por eles e ainda por Schopenhauer, Kierkegaard e Nietzsche, na moderna teoria do trágico, que entra em choque com os cânones transmitidos pela antiga tragédia grega. Mas ainda que esse construto “romântico” do trágico se distancie da matriz grega, este talvez seja o paradigma mais influente, no mundo contemporâneo, de acesso ao gênero tragédia. Para Most, ainda, o fato de o termo “trágico” ter-se liberado de sua ligação com um gênero literário específico, já na virada do século XIX, não é acidental. Aquele foi um momento de transição entre uma teologia positiva e um cientificismo positivista, o que gerou como conseqüência uma crise de valores, e por que não, uma crise com relação ao sentido que o mundo tinha até então. A vida parecia trágica para aqueles que mantinham a expectativa de que o mundo deveria ter um sentido, e que este deveria ser dado por Deus,

48

49 uma vez que não havia mais a certeza inabalável de um Deus que garantisse o sentido à vida. O século XIX, que segundo Gumbrecht fora uma era “tragicofílica”, desembocou no uso prolífero com o qual se utilizam, na linguagem cotidiana da atualidade, os termos tragédia e trágico. Qual seria então a relação entre “tragédia” e “trágico”? Seria certamente insuficiente a resposta simples, e mesmo simplista, de que são um substantivo e um adjetivo que se correspondem. De acordo com Most, a tragédia, no seu sentido literal, é o gênero que floresceu na Grécia antiga, sobretudo em Atenas, no século V a. C., em seguida em algumas outras tradições literárias amplamente influenciadas pelo modelo grego, principalmente na Roma antiga, na Renascença européia e na Alemanha, na virada do século XIX. Apesar da problemática existente entre os especialistas sobre quais seriam as verdadeiras tragédias, assim como sobre a alternância dos períodos em que estas se produziram, este seria o gênero literário que tem atraído a atenção dos teóricos da literatura e dos filósofos pelo mais longo período na cultura ocidental. Há, entretanto, mais além da reflexão sobre a tragédia como um gênero literário específico, uma tendência muito difundida no mundo contemporâneo de definir alguns eventos como “trágicos”, de modo que esse adjetivo parece designar características permanentes e universais da experiência humana. Segundo Most, quando se fala ou se pensa na tragédia, hoje em dia, parece difícil dissociar a idéia de trágico, enquanto adjetivo que designaria algo catastrófico, dos critérios formais do tipo literário tragédia. Isso aponta para o fato de que, nos tempos atuais, de

49

50 modo diferente do estatuto que esse termo tinha na antigüidade, o gênero específico da tragédia parece vir inevitavelmente associado a um determinado ethos. Entretanto, esse ethos trágico seria uma construção moderna, cujos laços com o antigo gênero grego tragédia seriam bastante tênues. Tem-se ciência de que, na Grécia antiga, o tragikon seria muito mais aplicado ao que hoje se chama de literatura do que à vida. Não era corrente referir-se, por exemplo, a um acontecimento triste como sendo tragikon. Esse termo designaria, por sua vez, “algo ou alguém que excede, ou especialmente quer exceder, as normas humanas comuns aplicadas a todos os outros.” 42 Designaria, portanto, menos as angústias metafísicas sobre o lugar do homem em um universo ininteligível que as tensões políticas entre o indivíduo e a comunidade, associadas à democratização rápida e controversa de Atenas. Outro uso contemporâneo bastante difundido do termo trágico seria aquele que o designaria como “uma categoria metafísica desenvolvida a fim de descrever a condição humana”43 dentro de uma estrutura imutável. Most parece não ver com bons olhos essa transposição direta da literatura para a vida, uma vez que, na filosofia antiga, parece não ter havido nada correspondente à noção filosófica moderna do trágico como o que designaria uma dimensão fundamental da experiência humana. Havia, ao invés disso, teorias da tragédia como um gênero específico, a exemplo da Poética de Aristóteles. Além dos motivos teóricos, argumenta que essa transposição ilustraria a maneira pela qual elementos da tradição clássica foram interpretados, ou melhor, mal interpretados, a fim de fornecer instrumentos para a autoconceituação da modernidade,

50

51 “fornecendo também um notável exemplo da tendência dos leitores de usar, e mal-usar, gêneros para entender, e mal-entender, não apenas os seus livros, mas também suas vidas.”44 Poder-se-ia, entretanto, interrogar se a retirada de um termo de seu contexto “original” não seria parte do processo de criação da própria cultura; e, ainda, se criar, sendo sempre recriar, não colocaria em xeque a atitude de defender o caráter “original” de um termo. Quanto à vida humana, não seria ela, por sua própria natureza e complexidade, sempre semi ou mal entendida? Por outro lado, parece interessante e enriquecedora a possibilidade de ampliar as conseqüências e reflexões de um gênero literário para o campo da ética e da experiência humanas, principalmente se se vive em uma época em que o referido tema se atualiza e convida à discussão. Optou-se aqui por seguir os passos de Foucault, para quem o filósofo é alguém que pensa as questões de seu tempo e é livre para ler o antigo a partir do atual. Propôs-se, como demonstrado anteriormente, apontar para uma ética subjacente à Poética de Aristóteles, ainda que esta não tenha sido a intenção do autor quando escreveu a obra, ou ainda que isso não fizesse sentido na época em que a obra foi escrita. Daí a pertinência da tentativa de inferir uma ética, seja do conteúdo da tragédia, seja do que possa designar-se como “o trágico”. De acordo com Most, o próprio Aristóteles já havia humanizado a tragédia, “aplicando os instrumentos de suas doutrinas éticas ao que ele viu como seu núcleo, ações largamente malsucedidas por agentes humanos falíveis.”45 Também seus sucessores filosóficos, como, por exemplo, Sêneca e Teofrasto, radicalizaram

42

MOST. Da tragédia ao trágico, p..23. MOST. Da tragédia ao trágico, p.24. 44 MOST. Da tragédia ao trágico, p.35. 43

51

52 esse enfoque, concentrando-se menos na centralidade do enredo que na cena individual. Toefrasto definiu a tragédia como heroikes tukhes peristasis, “uma crise na fortuna heróica”, e os filósofos gregos tardios parecem ter considerado o episódio trágico como um momento individual crucial de decisão humana e como ponto central da tragédia. Ainda quanto à atualidade da tragédia e do trágico, Vernant acrescenta a esse debate pontos importantes: na tragédia grega o indivíduo não existe como interioridade, portanto, uma mentalidade que concebesse o ato humano como totalmente autônomo seria incompatível com a tragédia. A noção fortemente marcada, depois de Kant, de que o homem se define por sua boa vontade, sua capacidade de escolher, sua liberdade tornaria o trágico difícil de conceber. Para o pensamento trágico o homem se define como enigma, da mesma forma como se define para o pensamento filosófico como essência ou como natureza. Tem-se aí um paradoxo, uma vez que se definir como enigma seria não se definir. Além disso, não seria correta a afirmação de que existe o trágico, por exemplo, na sociedade ateniense. O trágico só existe na tragédia — “a tragédia seria então o gênero literário que criaria o trágico: quando a tragédia funciona, então podemos dizer que existe um homem trágico.”46 Por outro lado, haveria períodos da história que fazem ecoar com mais força essa consciência trágica, que a Atenas do século V expressou no palco de seu teatro. A atualidade seria um bom exemplo disso. O fim das ideologias, propício ao surgimento de formas extremas de barbárie, somado a perigos advindos do progresso do desenvolvimento técnico, abriria uma via para o retorno do sentimento trágico da existência:

45

MOST. Da tragédia ao trágico, p.30.

52

53

... a experiência está aí para nos convencermos de que é vão ter a esperança de planejar o real, pretender antecipar o movimento da história para melhor dirigir seu curso, e que pode ser perigoso fixar, em virtude de uma decisão voluntária ou de um pretenso conhecimento científico, seus fins últimos.47

Vernant adverte, por fim, que é preciso não perder de vista o modo particular como os gregos pensam o dentro e o fora, como representam sua própria interioridade. A organização de seu campo semântico supõe um recorte do real e uma classificação das coisas, de um modo diferente do que se está acostumado. Os sentimentos e as disposições do espírito, por exemplo, não estariam apenas dissimulados nas entranhas: eles são o estado dessas entranhas. Físico e psíquico, para o grego antigo, são feitos do mesmo tecido, talhados do mesmo material que o mundo exterior:

... esta vulnerabilidade fundamental do ser humano, corpo e mente confundidos, explica os sofrimentos da doença para os médicos, os distúrbios e as desgraças acarretadas pela invasão pelas paixões para os trágicos... podemos dizer, a grosso modo, que para os homens do século V o mundo que nos cerca, com as transformações incessantes que comporta, aparece como perigoso: a maioria dos males que nos

46 47

VERNANT. Entre mito e política, p. 364. VERNANT. Entre mito e política, p.396.

53

54 assaltam vem de fora. Sofremos modificações, transformações acarretados pelos movimentos externos.48

É interessante pensar que essa extrema vulnerabilidade aos males que invadem e assaltam de fora, própria ao homem grego do século V, conste nos manuais de psiquiatria e apareça aos olhos do clínico contemporâneo como uma das características da loucura. Para o louco, tal como reconhecido na atualidade, não há recursos simbólicos suficientes para distinguir o que é fruto do próprio pensamento e estado de emoções e o que vem do pensamento e do campo afetivo do outro.

Vernant acrescenta ainda que

... a consciência de uma ameaça, animada, não humana, inscrita no próprio ser do mundo exterior e pronta para nos penetrar, é abertamente mostrada como espetáculo pela tragédia na figura do personagem invadido por todos os lados por emoções, presentes nele ao mesmo tempo na forma de animais selvagens e de potências demoníacas.49

Seria interessante pensar, a partir desse fragmento, que seu conteúdo em nada se distinguiria do que se poderia esperar de um louco em pleno delírio.

48 49

VERNANT. Entre mito e política, p.401. VERNANT. Entre mito e política, p.402.

54

55 O que, para o homem grego do século V, parecia lugar comum, o atual chama de loucura. As razões e desrazões mescladas de paixão e desespero encontradas nas tragédias gregas em muito se aproximam da loucura de cada dia, passada ao ato pelo dito louco. Haveria então uma diferença significativa no que se refere ao ato do herói trágico e ao ato do dito louco? Entre o conteúdo da tragédia grega e aquele dos prontuários dos hospitais psiquiátricos e dos manicômios judiciários?

1.5. O trágico para Michel Foucault A primeira referência importante considerada aqui é uma não-referência, ou seja, uma referência que falta: o trágico não se encontra no índice de noções e termos da edição francesa do Dits et écrits50 . Pergunta-se, de início, o que justificaria tal ausência, quando lá estão presentes termos de menor impacto e relevância na obra foucaulteana, tais como “incorporal”51, que aparece apenas três vezes no livro II, ou ainda “problemática”52, que aparece apenas uma vez no livro I e uma no livro II? Será que o trágico não mereceria um lugar na obra de Foucault? O fato é que o interesse de Foucault pelo trágico não parece um interesse menor, a começar por ser Nietzsche um de seus “mestres” e principais interlocutores, ao lado de Freud, Marx, Hegel, Sartre, Blanchot, Kant e Platão, respectivamente53.

50

Ver FOUCAULT. Index des notions, t. IV, p.863-880. FOUCAULT. Index des notions, t. IV, p.869. 52 FOUCAULT. Index des notions, t. IV, p.875. 53 Ver o índice de nome de pessoas, FOUCAULT. Index des noms de personnes, t. IV, p.841-854. Tal afirmação se baseia na contagem do número de vezes que Foucault cita os respectivos pensadores: Nietzsche79; Freud-70; Marx-64; Hegel e Sartre-40; Blanchot-37; Kant-36; Platão-32 vezes. 51

55

56 Antes mesmo no debate aberto em torno da experiência trágica da loucura, em Folie et déraison: histoire de la folie à l’âge classique, já se encontra, em 1954, o trágico como problema, colocado a propósito da significação trágica do sonho, e deste como indicador do destino enquanto problema trágico54. O sonho, de modo semelhante à loucura, em Folie et déraison, desvelaria “o momento originário através do qual a existência, em sua irredutível solitude, se projeta sobre um mundo que se constitui no lugar de sua história”55, ou ainda como “portador das mais profundas significações humanas”, e como “contradição na qual se poderia ler a cifra da existência”.56 Contradição esta que “é manifesta no conteúdo do sonho, quando este é desdobrado e ofertado à interpretação discursiva.”57 Esse escrito atesta, já no início das suas elaborações teóricas, uma valorização de oposições e contradições, o que parece uma das lentes através da qual Foucault interpreta a realidade. A problemática trágica aparece, entretanto, nesses primeiros escritos, matizada de questões ontológicas e estéticas. É o que se pode inferir a partir de uma nota de rodapé em que Foucault comenta: “Na medida em que a expressão trágica situa-se sobre essa direção vertical da existência, ela tem um enraizamento ontológico que lhe dá um privilégio absoluto sobre os outros modos de expressão: esses últimos são muito mais modulações antropológicas.”58 Nesse momento, Foucault estaria ocupado com a busca de algo como “o

54

Ver FOUCAULT. Introdução (in Binswanger), p.65-121. FOUCAULT. Introdução (in Binswanger), p.91. (Grifo nosso) 56 FOUCAULT. Introdução (in Binswanger), p.94. 57 FOUCAULT. Introdução (in Binswanger), p.95. 58 FOUCAULT. Introdução (in Binswanger), p.111. Os outros modos da expressão trágica aos quais se refere seriam o épico e o lírico. 55

56

57 movimento primeiro da existência”59, ou ainda com uma “constituição originária do mundo”60, realizando o movimento contrário do que faz posteriormente, doze anos mais tarde, em As palavras e as coisas.61 Quanto à estetização do trágico, nesse escrito, ela se inscreve a partir da crença em uma verdade absoluta do sonho: “...nós não retraçamos senão esta linha que religa ao sonho como à sua origem e à sua verdade.”62 Essa tendência se mantém, no que se refere à loucura, no “Prefácio” de 1961, em que Foucault afirma “tratar de ir ao encontro desse grau zero da história da loucura, no qual ela é experiência indiferenciada, experiência ainda não partilhada da própria partilha”63, e, ainda, quando o que buscaria em Folie et déraison seria a verdade oculta da loucura, encontrando nesta a verdade da razão. A partir disso, que se pode chamar de um desdobramento do trágico, poder-se-ia afirmar que Foucault irá se distanciar da inspiração nietzscheana, que o moveu até a História da loucura. Nessa obra, pode-se vislumbrar os ecos de O nascimento da tragédia, onde Nietzsche teria buscado a todo custo restabelecer a dignidade do estatuto de uma hybris grega. Nietzsche referencia o trágico na recusa e esquecimento da tragédia pela história e acusa a modernidade de ter sido uma civilização que se deixou embrutecer e racionalizar ao extremo. Roberto Machado64, chega mesmo a estabelecer uma homologia estrutural entre O nascimento da tragédia e a História da loucura, uma vez que, segundo ele, de modo

59

FOUCAULT. Introdução (in Binswanger), p.118. FOUCAULT. Introdução (in Binswanger), p.118, 119. 61 Nessa obra, ele afirma construir o movimento que vai da ontologia à antropologia. 62 FOUCAULT. Introdução (in Binswanger), p.119. 63 FOUCAULT. Prefácio (Folie et déraison), p.140. 60

57

58 homólogo a Neitzsche, crítico da modernidade por sua racionalidade frívola e limitada, em O nascimento da tragédia, Foucault constrói sua História da loucura como uma crítica ao estreito vínculo entre a racionalidade moderna “e um longo processo de dominação, que, ao tornar a loucura objeto da ciência, a destituiu de seus antigos poderes.”65 Entretanto, apesar de Foucault tomar de Nietzsche a idéia de uma experiência trágica da loucura, mantendo-se fiel a essa concepção nietszcheana do trágico, ele parece, ao longo de seu percurso, perceber o impossível de tal empreitada e do beco sem saída que implicaria a busca estrita de uma verdade última da loucura. Essa busca encontrara seu sentido em uma espécie de ontologização, que pretenderia denunciar uma verdade escondida — aquela da loucura — supostamente encoberta pelas malhas da racionalidade moderna. A ciência e a técnica teriam sido as responsáveis pela destituição de um mundo mítico no qual seria permitido sonhar, onde não haveria a “divisão trágica do mundo feliz do desejo”66, e onde, por fim, a experiência da loucura seria permitida. Se Foucault vai além de seu mestre, talvez seja porque essa crítica de Nietzsche ao homem de seu tempo, apático e amordaçado pelo conformismo, irá levá-lo a estabelecer uma medida utópica de homem que parece estar bem próxima do heroísmo socráticoplatônico que ele tão decididamente criticou. Daí o salto necessário: a loucura passaria a ser concebida então, por um lado, como um fenômeno historicamente construído, e, por outro, como um fenômeno sensível à

64

Ver MACHADO. Foucault, a filosofia e a literatura, p.15-52. MACHADO. Foucault, a filosofia e a literatura, p.24. 66 FOUCAULT. Prefácio (Folie et déraison), p.143. 65

58

59 linguagem e aos discursos. Isso implicaria em dizer que ela não teria uma verdade ou um sentido absolutos. Se se quiser, entretanto, através de um forçamento e de um exercício interpretativo, deduzir dos escritos de Foucault uma verdade da loucura, poder-se-ia dizer que essa verdade seria o trágico. A loucura se constituiria enquanto uma experiência trágica, qualquer que seja a época em que ela se tenha configurado, qualquer que seja a racionalidade que lhe tenha dado sentido, por colocar o homem diante dos seus impossíveis, de contradições irreconciliáveis e da desmedida de seus afetos:

Sob a consciência crítica da loucura e suas formas filosóficas e científicas, morais ou médicas, uma abafada consciência trágica não deixou de ficar em vigília. Foi ela que as últimas palavras de Nietzsche e as últimas visões de Van Gogh despertaram. É sem dúvida ela que Freud, no ponto mais extremo de sua trajetória, começou a pressentir: são seus grandes dilaceramentos que ele quis simbolizar através da luta mitológica entre a libido e a pulsão de morte.67

Já no “Prefácio” de 1961, encontra-se a indicação de duas vertentes a partir das quais o trágico e a loucura se articulariam, ainda que Foucault não tenha extraído na História da loucura todas as conseqüências dessa articulação. Isso porque ainda parecia estar por demais interessado na busca de uma origem e de uma verdade escondida com

67

FOUCAULT. História da loucura, p.29.

59

60 relação à loucura. As duas vertentes seriam: a loucura enquanto uma experiência de transgressão e enquanto uma experiência de linguagem. O modo como Foucault concebe o trágico vai-se, por sua vez, tornando mais complexo ao longo de sua trajetória e desgarrando de qualquer vestígio de uma resolução dialética para as dicotomias e oposições aí presentes. É o que se observa em “Prefácio à transgressão”, texto de 1963, e ainda em “O pensamento do exterior”, de 1966. Através de um diálogo constante com o mundo grego e seus heróis, como também com a obra de Sade, Blanchot e Bataille, e a partir do que nomeou de experiência de transgressão, Foucault faz uma releitura do trágico, trazendo importantes elementos para se pensar essa experiência na contemporaneidade. O que a experiência de transgressão traz de suplemento é que, a partir dela, o espaço da linguagem não se deixa capturar ou definir por regras simples de alternância, de oposição ou de contrastes temáticos. Em “O pensamento do exterior”, a partir de Blanchot, o próprio espaço da linguagem é concebido enquanto uma experiência. Essa experiência é pensada a partir de uma categoria diferente e mais complexa que a dialética. A linguagem aqui não faz um uso dialético da negação, uma vez que

... negar dialeticamente é fazer entrar o que se nega na interioridade inquieta do espírito. Negar seu próprio discurso, como o faz Blanchot, é fazê-lo incessantemente passar para fora de si mesmo, despojá-lo a

60

61 cada instante não apenas daquilo que ele acaba de dizer, mas do poder de enunciá-lo.68

A lógica que rege essa experiência poderia resumir-se do seguinte modo:

Nenhuma reflexão, mas esquecimento; nenhuma contradição, mas a contestação que apaga; nenhuma reconciliação, mas o repisamento; nenhum espírito na conquista laboriosa de sua unidade, mas a erosão infinita do exterior; nenhuma verdade se iluminando, enfim, mas o jorro e a miséria de uma linguagem que desde sempre já começou.69

A partir de Hölderlin, Mallarmé, Artaud e Roussel, Foucault pensa a loucura como uma experiência, em que o que estaria em jogo é o sentido, ou melhor, a falta de sentido. Uma experiência que não se adequaria ao código do qual ela faz parte, ao mesmo tempo em que o compromete e o subverte, incidindo na própria estrutura da língua, e que não se deixaria capturar inteiramente na univocidade de uma definição, seja ela histórica, literária, filosófica ou científica. A loucura, portanto, tal qual Foucault a constrói em seus escritos, não parece dada a soluções metafísicas, simplistas ou sacrificiais. Daí a sua crítica à extrema instrumentalização e simplificação operadas pela psiquiatrização e psicologização desta pelos saberes contemporâneos. Parece haver algo na loucura que escapa às malhas do controle do saber-poder objetivizante, que se furta à simplificação científica, sendo este

68

FOUCAULT. O pensamento do exterior, p.224.

61

62 algo que escapa justamente o que nela denunciaria e se ofereceria a uma dimensão trágica. O trágico e sua desmedida adviriam, então, como uma alternativa ao papel preponderante e excludente da razão.

69

FOUCAULT. O pensamento do exterior, p. 224-225.

62

63 CAPÍTULO 2 A LOUCURA ENQUANTO EXPERIÊNCIA TRÁGICA EM MICHEL FOUCAULT

Sem dúvida, essa é uma região incômoda. Para percorrê-la é preciso renunciar ao conforto das verdades terminais, e nunca se deixar guiar por aquilo que podemos saber da loucura. Nenhum dos conceitos da psicopatologia deverá, inclusive e sobretudo no jogo implícito das retrospecções, exercer o papel de organizador.70

2.1. A experiência enquanto conceito organizador Nos escritos de Foucault, assim como em suas declarações sobre a loucura, ela é encontrada em associação ao termo “experiência”. Do mesmo modo, quando fala do trágico, refere-se a uma “experiência” trágica da loucura. Essa associação se dá, em primeiro lugar, porque a idéia de experiência ocupa um lugar central na trajetória foucaulteana; em segundo, porque caracterizar o trágico da loucura como uma experiência é diferente de simplesmente afirmar que a loucura é trágica. O estatuto da experiência apresenta, em Foucault, um caráter desontologizante. Ele aponta também para o caráter transitório e mutante de tudo o que se refere ao humano, uma vez que viver uma experiência, esteja ela associada à escrita, à loucura, à sexualidade ou à morte, implica sair dela transformado. De acordo com Miguel Morey, trata-se de “um objeto eminente, continuamente presente ao longo de toda sua trajetória, e autêntico centro de interesse a partir do qual os temas do saber, do poder ou da subjetividade não são nada mais que diversificações.”71

70 71

FOUCAULT. Prefácio (Folie et déraison), p.140. MOREY. Para uma política de la experiencia, p.17.

63

64 De fato, no índice de referências de Dits et écrits, consta que Foucault utilizou o termo “experiência”, em suas conferências e artigos, entre 1954 e 1988, 162 vezes (número maior que o da ocorrência do termo linguagem, ao qual fez 103 referências). Dessas, 58 se concentram no período de 1954 a 1969, 44, entre 1970 e 1979, e 60, entre 1980 e 1988. Apesar de se observar que o termo aparece mais no dito último Foucault, nota-se que, diferentemente do que acontece com o termo “linguagem”, as referências ao conceito “experiência” são constantes e se mantêm durante todo o seu percurso. Morey constata a relevância desse conceito através de uma pesquisa nos prólogos das principais obras de Foucault. No prólogo de 1962, de Histoire de la folie, ele trata tanto a loucura quanto o trágico como experiências-limites do mundo ocidental. Afirma também que não se trata, nessa obra, de fazer uma história do conhecimento, “mas dos movimentos rudimentares de uma experiência. História não da psiquiatria, mas da própria loucura, em sua vivacidade antes de toda captura pelo saber”, e acrescenta,

... portanto, será preciso estirar a orelha, debruçar-se sobre esse rosnar do mundo, tratar de aperceber tantas imagens que jamais foram poesia, tantos fantasmas que jamais alcançaram as cores da vigília. Mas, sem dúvida, eis aí uma tarefa duplamente impossível, já que ela nos obrigaria a reconstituir a poeira dessas dores concretas, dessas palavras insensatas que nada amarra ao tempo.72

72

FOUCAULT. Prefácio (Folie et déraison), p.145.

64

65 Em Naissance de la clinique, fala de experiência clínica e de experiência da doença. Também no prólogo de Les mots et les choses o termo aparece referido à cultura ocidental. Em Histoire de la sexualité, o projeto é o de traçar uma história da sexualidade como experiência, “... se entendemos por experiência a correlação, em uma cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade”73. Segundo Morey, seus escritos só fazem confirmar a hipótese da noção de experiência como um eixo organizador do pensamento foucaulteano, o que permitiria fazer uma releitura de sua obra como uma contribuição a uma política da experiência. Foucault não fala, portanto, tão-somente de pensamento, escrita, literatura, loucura. Há que se agregar antes de cada uma dessas categorias a idéia de experiência. É nesse sentido que será feita aqui uma investigação sobre articulação entre a loucura e o trágico, como parte do que seria uma política da experiência tal qual ela se delineia em Michel Foucault. É também sob a égide da idéia de experiência, enquanto categoria privilegiada por Foucault em sua análise da loucura, que será articulada a experiência do louco àquela do herói trágico. Foucault retoma o surrealismo, esvaziando-o de toda e qualquer profundidade. Isso significa que a experiência da loucura não obedeceria às leis de uma lógica binária, ou a uma metafísica dualista. Para o louco foucaulteano, não existiria a possibilidade de pensamentos e afetos que se contradizem se excluírem mutuamente, nem de se harmonizarem em uma dialética.

73

FOUCAULT. O uso dos prazeres, p.10.

65

66 Em “Um nadador entre duas palavras” Foucault explica que, apesar de anunciado por Goethe, Nietzsche e Mallarmé, é a Breton que ele deve a descoberta de um espaço da experiência, que não coincide exatamente com o da filosofia, da literatura nem com o da arte: “estamos hoje em uma era em que a experiência — e o pensamento que é inseparável dela — se desenvolve com uma extraordinária riqueza, ao mesmo tempo em uma unidade e em uma dispersão que apagam as fronteiras das províncias outrora estabelecidas.”74 É nesse espaço, que se constitui sob a égide do novo e que apaga as velhas rubricas nas quais a cultura se classificava, que Foucault situa, nesse momento da sua trajetória, os domínios da etnologia, da história da arte, da história das religiões e da psicanálise. A novidade trazida por Breton consiste em fazer comunicar plenamente duas figuras por muito tempo estranhas: escrever e saber. Como na psicanálise, Breton admite o saber na linguagem, na escrita, na expressão. Escrever é saber, não ao modo alemão, para quem a literatura é saber quando ela é um trabalho de interiorização e de memória. Para Breton, a escrita se torna saber na medida em que ela é um meio de impelir o homem em direção aos seus limites, de acuá-lo até o intransponível, de colocá-lo o mais perto possível daquilo que está mais longe dele. Daí seu interesse pelo inconsciente, pelo sonho e pela loucura. Quando explica a diferença entre a literatura de Breton e aquela do romantismo alemão, Foucault se serve de uma metáfora que explicita com toda força a tensão presente no que se poderia nomear de atitude trágica: “mas o sonho dos românticos alemães é a noite iluminada pela luz da vigília, enquanto o sonho, para Breton, é o indestrutível núcleo da noite colocado no coração do dia.”75

74 75

FOUCAULT. Um nadador entre duas palavras, p.246. FOUCAULT. Um nadador entre duas palavras, p.244.

66

67 A escrita tornada experiência em Breton sela aquilo que já se perfila em Ecce homo, de Mallarmé, e contribui para modificar o estatuto da escrita. Até o fim do século XIX, a linguagem e a escrita eram instrumentos transparentes através dos quais o mundo poderia ser refletido. A experiência inaugurada por Mallarmé e Breton extrai da escrita uma ética que não vem mais do que se tem para dizer, das idéias que são expressas, mas do próprio ato de escrever. É assim que Foucault se pergunta, no “Prefácio” de 1961, “em direção a qual região iríamos nós, que não é nem a história do conhecimento nem a história simplesmente, que não é comandada nem pela topologia da verdade, nem pelo encadeamento racional das causas, os quais só têm valor e sentido mais além da divisão?”76

2.2. O herói trágico e o louco Daí a pertinência da aproximação entre as figuras do herói trágico e do louco. Quanto ao pensamento, ambos apontam para uma experiência que não se estrutura a partir de uma lógica dualista. No campo dos afetos, tanto a experiência do herói trágico quanto a do louco são marcadas pelo arrebatamento e pela desmedida, pelo que há de excessivo e transborda em sua sensibilidade, pelo que no mundo grego poderia ser reconhecido como sendo a hybris trágica:

Os gregos se relacionavam com alguma coisa que chamavam de υβριζ. Essa relação não era apenas de condenação; a existência de Trasímaco, ou a de Cacicles, basta para mostrá-lo, ainda que seu

76

FOUCAULT. Prefácio, p.142.

67

68 discurso nos seja transmitido, já envolto na dialética tranqüilizadora de Sócrates. Mas o Logos grego não tinha contrário.77

A figura do louco apresenta-se, desde as primeiras páginas de sua história, tecida de contradições. Na Idade Média e no Renascimento, a loucura aparece associada tanto às figuras da morte, do nada, da peste, do desatino, da deriva e do castigo, quanto às do saber, da verdade última, do fascínio, da liberdade e da felicidade. É a presença simultânea de elementos que se contradizem entre si que permite suspeitar que Foucault, mesmo na Idade Média e no Renascimento, momento em que a figura do louco aparece matizada pela aura misteriosa e maravilhosa do vidente, do artista, do criador ou do arauto da verdade, não chegaria a idealizar e estetizar o trágico da loucura. Ele parece não perder de vista em nenhum momento a dimensão de dor, sofrimento, fragmentação e divisão insuperáveis que o problema da loucura apresenta. Quanto a esse ponto, parece oportuno aproximar Foucault e Georges Lukàcs. Eis uma de suas definições da tragédia, retomada por Lucien Goldmann, em Le Dieu caché: “poderíamos definir a tragédia como um universo de questões agonizantes para as quais o homem não tem resposta.”78 O agonizante, para Lukàcs, Goldmann, e parece que também para Foucault, é que tudo e nada, presença e ausência, sim e não, sentido e não-sentido apresentam-se ao homem ao mesmo tempo: “o mundo e o homem são feitos de oposições radicais, de forças

77 78

FOUCAULT. Prefácio, p. 141. GOLDMAN. Le Dieu caché, p.52.

68

69 antagônicas que se opõem sem poderem se excluir ou se unir, de elementos complementares que não formam um todo.”79 Além disso, de modo análogo ao que Goldmann demonstra em sua obra Le Dieu caché, parece haver, pelo menos no que concerne aos primeiros escritos de Foucault sobre a loucura, um grande espectador da tragédia que lhe dá o tom. Também a perspectiva foucaulteana parece trazer as marcas do que Goldmann destaca na Metafísica da tragédia, de Georg Lukàcs: “A tragédia é um jogo... um jogo onde Deus é o espectador. Ele não é nada mais que um espectador, e jamais sua palavra ou seus atos se misturam às palavras e gestos dos atores.”80 Em Foucault, esse espectador onipresente em sua ausência parece metamorfosear-se tal qual um camaleão. Ele é o Deus que arbitra sobre o sagrado e o profano na Idade Média; o Estado, sob os auspícios dos Hospitais Gerais e do saber médico, que arbitram sobre a razão e a desrazão na Idade Clássica; o saber-poder psiquiátrico, que, sob os auspícios da ciência e da tecnologia nascentes, arbitra sobre o normal e o patológico na Idade Moderna. É, entretanto, no exercício de pensar o futuro, empreendido por Foucault, em “A Loucura, a ausência da obra”, que a articulação entre a loucura e a experiência trágica parece deslindar-se com toda a sua eloqüência. Foucault se põe a pensar de que modo se dará, em um futuro não muito distante, a inclusão, na língua, da palavra dos excluídos; em como o que se experimenta hoje, sob as modalidades do limite, da estranheza e do insuportável, alcançará a serenidade do positivo:

79

GOLDMAN. Le Dieu caché, p.69.

69

70 ... o suporte técnico dessa mutação, qual será? A possibilidade da medicina de dominar a doença mental como uma outra afecção orgânica? O controle farmacológico preciso de todos os sintomas psíquicos? Ou uma definição bastante rigorosa dos desvios de comportamento, para que a sociedade tenha tempo disponível de prever, para cada um deles, o modo de neutralização que lhe convém?81

Foucault constata que a doença mental se tornou menos inconveniente para a cultura contemporânea que a loucura, com seus excessos e enigmas. Mas parece que, “por razões que a própria razão desconhece”, não é tão fácil silenciar de uma vez por todas o que não tem medida, o que não tem governo, o que não tem juízo: “uma vez posto para fora de circuito o patológico, a sombria pertença do homem à loucura será a memória sem idade de um mal apagado em sua forma de doença, mas obstinando-se como desgraça”82 — transgressão, maldição, ruína e devastação, a Áte grega parece ter encontrado novos nomes para seguir seu inevitável curso. Do mesmo modo, é convocando a experiência grega que Foucault faz uma analogia entre o que foi a hybris para os gregos e o que seria a loucura para o homem de seu tempo: “... os gregos não estavam afastados da υβριζ porque a condenavam, eles estavam, antes, no afastamento desta desmesura, no coração desse lugar longínquo onde eles a mantinham.”83

80

GOLDMAN. Le Dieu caché, p.10. FOUCAULT. A loucura, a ausência da obra, p.191. 82 FOUCAULT. A loucura, a ausência da obra, p.191. 83 FOUCAULT. A loucura, a ausência da obra, p.192. 81

70

71 A loucura terá, no exercício premonitório de Foucault, o estatuto de um enigma, tal qual o oráculo de Delfos foi para Édipo, que foi buscar uma verdade, uma palavra essencial, um signo, no risco que o fazia tremer, mas do qual não conseguia desviar os olhos. Para Foucault, a loucura não irá desaparecer, assim como não desapareceram as referências e as marcas das gregas tragédias, “o que morre em nós... é o homo dialectus — o ser da partida, do retorno e do tempo... esse homem foi o sujeito soberano e o servil objeto de todos os discursos sobre o homem que foram pronunciados desde longa data e, singularmente, sobre o homem alienado.”84 O que da loucura estaria com os dias contados seria o modo como ela foi tomada pelo saber psiquiátrico, viva, permanecendo, por sua vez, “a forma geral de transgressão, de que a loucura foi, durante séculos, a visível face. Nem que esta transgressão não esteja prestes a produzir, no exato momento em que nos perguntamos o que é a loucura, uma experiência nova.”85

2.3. Por que articular experiência da loucura e experiência trágica? A concepção da loucura como uma experiência trágica serve de esteio à crítica feita por Foucault a uma psicologia objetivista e determinista, assim como à ciência positiva, como parâmetros universais para se pensar a loucura. A psicologia ter-se-ia apropriado do homem, não como sujeito moral, mas como objeto positivo sobre o qual se enuncia uma verdade positiva. A presunção da psicologia positivista teria sido a de, tomando emprestado os parâmetros e leis das ciências naturais, transpô-las grosseiramente para o

84 85

FOUCAULT. A loucura, a ausência da obra, p.191, 192. FOUCAULT. A loucura, a ausência da obra, p.193.

71

72 campo da experiência humana, e, a partir daí, autorizar-se a enunciar sua verdade, necessária, orgânica e natural. Na História da loucura, e mais precisamente, no capítulo “Do bom uso da liberdade”, Foucault explicita de que modo o estatuto da loucura, construído social e politicamente, veio a se tornar uma verdade natural. Como é que o artefato loucura se tornou natureza. Como o internamento, antes justificado como espaço de exclusão da escória da sociedade, se transformou em espaço de cura. A internação, que era fundamento, motor e mantenedor da exclusão, se tornou uma conseqüência da natureza da loucura. Em suma, a maneira através da qual se aliena, reaparece como natureza da alienação. O que Foucault denuncia não é tanto a positividade da psicologia, “mas o esquecimento arrogante da experiência histórica através da qual o projeto antropológico pôde ter sentido.”86 Pegando carona com a psiquiatria positivista e ignorando as condições sociopolíticas de emergência da loucura, a psicologia justificaria, através de sua pretensão de neutralidade e de objetividade serena, o pretenso determinismo orgânico da loucura. Para Foucault, a loucura, tanto como fenômeno psicológico, quanto como essência positiva, se constitui enquanto uma formação histórica de sentido. Em O não do pai, explicita sua hostilidade ao psicologismo cientificista e à interpretação psicológica de textos literários, através de uma crítica mordaz:

A gravitação segundo a lei da maior vulgaridade possível à qual está submetida, em sua maior parte, a população dos psicólogos, conduziua, há muitos anos, ao estudo das “frustrações”, no qual o jejum

86

GROSS. Foucault y la locura, p.67.

72

73 involuntário

dos

ratos

serve

de

modelo

epistemológico

indefinidamente fecundo.87

Em seu intuito de demonstrar a relatividade das verdades sobre a loucura, transmitidas através das ciências positivas e do que ele chama, no “Prefácio” de 1961, de comodidade das verdades terminais ou do monólogo da razão sobre a loucura, Foucault entra no universo da loucura sem buscar subsídios nas nosologias psiquiátricas, ou no campo dos saberes psicológicos: “É que, além de qualquer referência a uma ‘verdade’ psiquiátrica, era preciso deixar falar, por eles próprios, essas palavras, esses textos que vêm de um debaixo da linguagem, e que não eram feitos para dar acesso à palavra”, e, ainda: “no mais, foi preciso manter-se em uma espécie de relatividade sem apelo, não buscar saída em nenhum golpe de violência psicológico que teria virado as cartas e denunciado a verdade desconhecida.”88 Ao invés das verdades psicológicas e psiquiátricas, propõe outros parâmetros através dos quais lançar um olhar e construir um saber sobre a loucura. É nessa busca que a experiência trágica, via literatura, tem seu lugar. Foucault utiliza-se do próprio texto dos arquivos, suas linhas e entrelinhas, sua linguagem, privilegiando também a literatura antiga, moderna e contemporânea, portadora do espírito, das marcas do trágico. Nela irá cotejar seu método de trabalho. Afirma que, por regra e por método, reteve apenas uma: “eu retirava das coisas a ilusão que elas produzem para preservar-se de nós e lhes deixava a

87 88

FOUCAULT. O não do pai, p.179. FOUCAULT. O não do pai, p.147.

73

74 parte que elas nos concedem.”89 É na literatura que vai encontrar uma definição de verdade que lhe sirva não só de guia e inspiração, mas como regra e método. O que parece interpelar Foucault, o fôlego que parece sustentar a História da loucura, do início ao fim, encontra-se no mutismo e na pobreza constituintes da loucura transformada em doença mental. Esvaziada de enigmas e de paixões, embrutecida, confinada e isolada, a loucura na modernidade é puro horror e tédio:

... no meio do mundo sereno da doença mental, o homem moderno não se comunica mais com o louco; há de um lado o homem da razão que delega

para

a

loucura

o

médico,

não

autorizando,

assim,

relacionamento senão através da universalidade abstrata da doença; há, do outro lado, o homem de loucura que não se comunica com o outro senão pelo intermediário de uma razão igualmente abstrata, que é ordem, coação física e moral, pressão anônima do grupo, exigência de conformidade.90

É contra essa ordem das coisas que Foucault propõe recuperar, mais além das positividades científicas, a loucura enquanto experiência trágica:

estamos neste ponto, nesta dobra do tempo na qual um certo controle técnico da doença recobre mais do que designa o movimento que fecha sobre si a experiência da loucura. Mas é esta dobra justamente o que nos permite desdobrar o que durante séculos permaneceu implicado: a

89

FOUCAULT. O não do pai, p.148.

74

75 doença mental e a loucura — duas configurações diferentes, que foram juntadas e confundidas a partir do século XVII, e que se desenlaçam agora sob nossos olhos, ou melhor, em nossa linguagem.91

O que parece decisivo, e por onde Foucault justifica a propriedade da literatura como fonte de dados para a sua investigação sobre a loucura e sua história, é a presença da contradição sem esperanças de superação, da fusão dolorosa dos contrários, da expressão de uma experiência-limite em determinado tipo de literatura. É essa categoria que as obras de Diderot, Sade, Nerval, Hölderlin, Mallarmé, Roussel, Artaud, entre outros, permitem resgatar. A presença simultânea dos contrários se apresenta de diferentes modos, de acordo com o universo simbólico de cada época. De acordo com Gross, a desrazão renascentista modula a contradição em uma dimensão cósmica, em que real e imaginário se misturam; a desrazão clássica a modula em uma dimensão ontológica, no nível do ser ou não ser, em que o paradoxo da loucura consiste em manifestar o nada, o não ser; a desrazão moderna se dá em uma dimensão antropológica, que se inscreve a partir das oposições sujeito x objeto, sentido x sem-sentido. Essas seriam, portanto, para Foucault, as grandes estruturas da desrazão. O modo de exclusão próprio de cada época, seus arquivos, assim como as fontes literárias ou pictóricas constituem o que Foucault chama de experiência fundamental de uma época. A possibilidade de uma experiência, por sua vez, só se sustentaria pelo

90 91

FOUCAULT. O não do pai, p.141. FOUCAULT. A loucura, a ausência da obra, p.193.

75

76 entrelaçamento dessas entidades históricas concretas, não sendo possível, portanto, isolar a loucura em sua pureza original, desgarrada dos modos e das linguagens que se utilizam para apreendê-la.92 A loucura, que pôde liberar-se do confisco da razão, nesse espaço posto a descoberto pela literatura, inicialmente com o surrealismo, enquanto experiência da morte; depois com Kafka, como experiência do pensamento impensável; com Bataille, como experiência da repetição; e com Blanchot, como experiência da finitude. Foucault propõe que se relativizem as verdades transmitidas pelas ciências positivas da loucura, em nome do que ele entende como uma experiência primordial desta. De acordo com Eribon, haveria para Foucault uma experiência trágica fundamental, “antes de qualquer divisão, antes de qualquer exclusão, e que reside no fato de que o próprio homem está dividido e que o diálogo entre razão e desrazão é constitutivo do seu ser”93. É dentro desse contexto, que Foucault utiliza, diversas vezes, em seu “Prefácio” de 1961, o termo estrutura. A “divisão trágica do mundo feliz do desejo”, e em seu esteio, a divisão entre o mundo da razão e aquele da loucura, são aí definidas por ele como as “estruturas imóveis do trágico”94 a partir das quais a história se faz. Ainda segundo Eribon, haveria no vocabulário de Foucault, pelo menos dois tipos de estruturas: uma estrutura trágica, imóvel, lugar originário a partir do qual a história é contada, lugar das experiências-limites, das escolhas, das descontinuidades implicada nessa categoria; e estruturas que são conjuntos históricos nos quais, “em um momento dado, em uma época dada, se organizam, nos discursos, nas práticas, nas sensibilidades, as

92 Esse conjunto de modos e linguagens, dos quais a literatura faz parte, é que pode ser entendido como possíveis mediações, que em cada época, permitiriam uma aproximação ao universo particular da loucura. 93 ERIBON. Foucault e seus contemporâneos, p. 93.

76

77 modalidades históricas da exclusão”95. Esses conjuntos históricos, por sua vez, apreendidos pelo estudo estrutural, seriam apenas variações contingentes, através da história, de uma estrutura original e fundamental, que é a da “divisão”. Eribon explicita de que modo Foucault busca uma articulação entre análise estrutural e análise histórica. Ele tenta delinear as “formas estruturadas de experiência” que caracterizam as diferentes épocas, para mostrar o que as distingue umas das outras. Eribon agraga:

“uma história estrutural em que as estruturas se encadeiam umas nas outras, em um devir destacado de toda teleologia, sem progresso em direção a uma verdade, mas no jogo contingente das reorganizações, das reestruturações produzidas pelos acontecimentos políticos, jurídicos e principalmente econômicos”96

É pois, contra o reducionismo da categoria de doença mental, que atribui à loucura também o estatuto de experiência primordial, ou experiência originária. É preciso esclarecer, todavia, no que consiste, para Foucault, e no contexto dessa obra, a afirmação de um ser originário da loucura.

94

FOUCAULT. Prefácio, p. 143. ERIBON. Foucault e seus contemporâneos, p.93. 96 ERIBON. Foucault e seus contemporâneos, p.91. 95

77

78

2.4. O problema da origem Foucault concebe o estatuto do termo origem como “o último traço que caracteriza, ao mesmo tempo, o modo de ser do homem e a reflexão que a ele se dirige.”97 Isso quer dizer que o homem se percebe ligado a uma historicidade já feita. Ele não lhe é contemporâneo, pois só descobre seu próprio começo sobre o fundo de uma vida que começara bem antes dele. É assim que, na Idade Moderna, a origem do pensamento deixa de ter como referência a linearidade do mundo das representações. Não é mais a origem enquanto começo de todas as coisas que dá lugar à historicidade, e sim a historicidade que, na sua própria trama, inscreve a necessidade de uma origem que lhe seria ao mesmo tempo interna e estranha. A origem seria, portanto, para Foucault, a maneira como todo e qualquer homem se articularia com o já começado do trabalho da vida e da linguagem. Ela é sempre o que vale para cada um como origem, devendo ser procurada

nessa dobra onde o homem trabalha com toda a ingenuidade um mundo laborado há milênios, vive, no frescor de sua existência única, recente e precária, uma vida que se entranha até as primeiras formações orgânicas, compõe em frases ainda não ditas (mesmo que gerações as tenham repetido), palavras mais velhas que toda memória.98

97 98

FOUCAULT. As palavras e as coisas, p.453. FOUCAULT. As palavras e as coisas, p.456.

78

79 Nessa perspectiva, não é o nascimento que inaugura o originário, nem os aspectos puramente biológicos e naturais da vida. A origem se desenha a partir da historicidade do homem, sendo delineada a partir de inúmeras mediações que, em sua própria história, o trabalho, a vida e a linguagem permitem engendrar:

... o originário no homem, é aquilo que, desde o início, o articula com outra coisa que não ele próprio; é aquilo que introduz na sua experiência conteúdos e formas mais antigas do que ele e que ele não domina;

é

aquilo

que,

ligando-o

a

cronologias

múltiplas,

entrecruzadas, freqüentemente irredutíveis umas às outras, o dispersa através do tempo e o expõe em meio à duração das coisas.99

Não existiria então uma primeira manhã da história a partir da qual se acumularam todas as aquisições da humanidade. Esse modo de conceber a origem se diferencia amplamente do modo como ela era concebida no pensamento clássico. Reencontrar a origem, no século XVIII, era recolocar-se o mais perto possível da pura e simples reduplicação da representação. O estatuto do tempo ditava a forma de uma sucessão linear. Cabia à representação a tarefa de dominar o tempo. A imagem representada permitia “retomar o tempo integralmente, reapreender o que fora concedido à sucessão e construir um saber tão verdadeiro quanto o de um entendimento eterno.”100 A experiência moderna, ao contrário, se encontra marcada por uma transitoriedade e por uma assimetria fundamentais. É desse modo que o pensamento moderno descobre o que

99

FOUCAULT. As palavras e as coisas, p. 457. FOUCAULT. As palavras e as coisas, p. 462.

100

79

80 Foucault chama de recuo da origem. É por isso que ele traz a marca da repetição, da grande preocupação com o retorno. É o parece ter obstinado tanto Hegel e Marx, em sua busca pela realização das plenitudes acabadas, quanto Hölderlin, Nietzsche e Heidegger, em que o retorno se dá através do seu extremo recuo, até o ponto de tocar, sob as figuras radicais da brecha e do abismo, no vazio da origem. O pensamento moderno descobre, desse modo, que o homem não é contemporâneo do que o faz ser, daquilo a partir do qual ele é, e que esse tempo a partir do qual o tempo pode ser dado à experiência é diferente daquele que vigorava na filosofia da representação. O que o homem moderno descobre em sua interrogação pela origem é a sua própria finitude. O que parece estar em primeiro plano, portanto, quando Foucault, através de sua pesquisa nos arquivos e na literatura, afirma o estatuto trágico da loucura, assim como a relevância do conceito de experiência e de um certo modo de pensar a origem no que concerne ao universo da loucura, em detrimento dos quadros nosológicos engendrados pela ciência psiquiátrica, é uma tentativa de pensar seu objeto mais além do que havia proposto, até então, a filosofia da representação e as ciências ditas humanas. 2.5. Foucault e a psicanálise É dentro da perspectiva de uma crítica à psiquiatrização e à psicologização da loucura que Foucault faz, em “O não do pai” (1962), “A loucura, a ausência da obra” (1964) e em As palavras e as coisas (1966), seu elogio à psicanálise, ainda que suas críticas a ela sejam bastante explícitas em muitas passagens de sua obra. É inegável, por outro lado, que a psicanálise seja, principalmente através de Freud e Lacan, uma importante interlocutora, como se observa ao longo de sua trajetória intelectual.

80

81 Ele faz 70 referências a Freud em Dits et écrits, ficando atrás apenas de Nietzsche, a quem Foucault faz 79 referências. Quanto a Lacan, faz a ele 21 referências. Pode-se falar de um diálogo permeado de críticas e de elogios e marcado por uma presença digna de nota. Sua referência é crítica em História da loucura e Nascimento da clínica; é elogiosa em As palavras e as coisas, volta a ser crítica em Arqueologia do saber e em História da sexualidade: a vontade de saber. Faz um elogio a Freud em “A loucura, a ausência da obra”, e outros dois a Lacan em “O não do pai” e em “Lacan, o libertador da psicanálise”, texto de 1981, para então suspender seu juízo acerca do mesmo em “Entrevista com Michel Foucault”, texto de 1984 e seu último pronunciamento explícito e publicado acerca da psicanálise ou de seus fundadores. Suas principais críticas parecem girar em torno de um mesmo problema, a saber, ao fato de, a partir da segunda metade dos anos 60, passar a considerá-la menos uma prática transgressiva, que uma técnica fundada na confissão, sendo enquanto tal uma técnica de controle, um exercício do poder. Essa crítica não parece dirigir-se à psicanálise em seu corpo teórico, mas a ela enquanto prática, uma vez que a considera um dispositivo de saberpoder característico das sociedades disciplinares. Em A vontade de saber, primeiro volume da História da sexualidade, a psicanálise é por ele considerada como herdeira da psiquiatria clássica, uma vez que articula, em sua prática, a confissão ao exame. Aquele que ouve e interroga, não apenas teria o poder de produzir o alívio da culpa, mas, ainda, de produzir verdades. A obtenção da confissão e seus efeitos seriam, segundo Foucault, recodificados na forma de operações terapêuticas, o que implicaria que o domínio, nesse caso, do sexo, não mais estivesse colocado

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82 exclusivamente sob o registro da culpa e do pecado, do excesso e da transgressão, mas sob o regime do normal e do patológico. Em O poder psiquiátrico, curso de 1973/74, Foucault critica a psicanálise por considerá-la uma forma de “despsiquiatrização” conservadora do poder, já que tentaria, no seu modo de ver, tornar adequados a produção de verdade e o poder médico, ou seja, sua produção de verdade se faria por causa e a serviço desse poder, estando ela menos interessada no cuidado com a loucura que na produção de um saber sobre ela. Alega ainda que ela se origina e se nutre desse momento em que a loucura deixara de ser percebida como uma das formas do erro ou da ilusão, em que fazia parte das quimeras do mundo e em que convivia lado a lado com a razão. No início da Idade Clássica, os lugares terapêuticos não estavam atrelados ao poder médico. Nada tinham a ver com os hospitais ou consultórios privados. Os lugares terapêuticos eram a natureza, que tinha em si mesma o poder de dissipar o erro e de fazer desaparecer as quimeras, e o teatro, que tinha a capacidade de produzir para o louco a comédia da sua própria loucura, algo análogo à katharsis dos gregos. A crítica se sustenta também sobre o fato de que a psicanálise só tenha sido fundada a partir do momento em que a loucura é percebida e classificada em relação a uma conduta regular e normal, em que passa a ser tomada menos como uma perturbação do julgamento, ao modo da desrazão na Idade Clássica, que como uma perturbação da conduta. Como a psiquiatria, a psicanálise se constituiria a partir de uma relação de saber-poder que fundaria, em contrapartida, os direitos desse poder. Contra a psicanálise, Foucault faz o elogio da antipsiquiatria, por considerar que somente através dela se poderia travar uma luta com, dentro e contra a instituição

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83 psiquiátrica, dando ao indivíduo a tarefa e o direito de levar a cabo a sua loucura, “numa experiência que poderia ter a contribuição de outros, mas nunca em nome de um poder que lhe seria conferido por sua razão ou por sua normalidade.”101 À antipsiquiatria cabia a tarefa de separar as condutas, os sofrimentos e os desejos do estatuto patológico que lhes havia sido conferido, liberando o louco de um diagnóstico e de uma sintomatologia que não tinham simplesmente valor de classificação, mas de decisão e de decreto, assim como de invalidar a transformação da loucura na doença mental. Agrega ainda que a desmedicalização da loucura seria o carro-chefe desse questionamento primordial do poder na prática antipsiquiátrica, sendo aí que se mediria a oposição entre ela, de um lado, e a psicanálise, junto com a psicofarmacologia, do outro. Quanto a tais críticas à psicanálise enquanto prática, caberia interrogar se a escuta que a psicanálise oferece à loucura se restringiria a um dispositivo disciplinar; se a psicanálise enquanto prática não entraria em consonância com o estatuto dado por Foucault ao conceito de experiência; e se o que estaria em jogo nessa experiência não seria muito mais da ordem de uma ética do que de um puro exercício de saber de si, ou seja, um exercício do poder. Além do que, o exercício do poder parece comportar na experiência analítica algo inusitado, a saber: sua própria renúncia. Parece também que a proposta da psicanálise enquanto prática se inscreveria muito mais do lado do não-saber, da douta ignorância, que de qualquer utilidade ou usufruto que o desejo de saber possa ter. A análise pessoal, em um primeiro momento, gira em torno de uma busca, aquela de reduzir o sofrimento e a angústia provocados pelo excesso do sintoma. Nessa busca, o saber só tem sentido enquanto ele é, em si, tratamento.

101

FOUCAULT. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982), p.56.

83

84 Quanto à questão da desmedicalização, este sempre foi, desde o início, o horizonte com o qual a psicanálise, que é o tratamento da palavra e pela palavra, trabalhou. Por outro lado, o psicanalista, na contemporaneidade, não pode deixar de se haver com a complexidade dessa questão, que parece exigir que se vá mais além de uma simples proibição ou de um vendar os olhos, fazendo de conta que se poderia, no mundo de hoje, viver e clinicar como se o medicamento não tivesse jamais existido. É o que adverte Ram Mandil, quando pontua que tratar dessa questão contrapondo o campo da palavra ao campo do medicamento “seria não perceber todas as sutilezas que estão em jogo na circulação contemporânea das pílulas que, bem sabemos, não se faz sem as palavras.”102 O fato é que é de pouca ajuda lamentar a transformação e mesmo a degradação que a loucura sofreu ao longo dos séculos e sonhar com o paraíso perdido da época em que razão e desrazão podiam dialogar e até namorar. Mais vale encontrar dispositivos, dentro da própria cultura tal como ela é atualmente, que favoreçam esse diálogo e que permitam e reconheçam como parte de si a circulação delirante do louco, sua geografia particular, que lhe ofereçam um lugar mais digno que o da exclusão e o da impugnação. É nesse compromisso que Foucault e a psicanálise parecem confluir. É, por sua vez, o intuito de chegar ao que há de mais fundamental e propriamente foucaulteano no que concerne à loucura enquanto experiência, o que convoca ao diálogo entre Foucault e a psicanálise. De acordo com Foucault, em As palavras e as coisas, a psicanálise teria produzido, a partir do postulado do inconsciente e da pontuação da linguagem como exterioridade do sujeito, um dispositivo capaz de desconstruir o sujeito cartesiano e de pensar e proceder a

102

MANDIL et al. Apresentação, p. 8.

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85 um mais além da filosofia da representação. Isso porque, ao contrário das ciências humanas, “a psicanálise avança na direção desta região fundamental onde se travam as relações entre a representação e a finitude.”103 É mesmo o fato de a psicanálise trabalhar no sentido de chegar ao limite do representável o que interessa a Foucault e por onde ele avança na sua investigação sobre a loucura:

... quando esta linguagem se mostra em estado nu, mas se furta ao mesmo tempo para fora de toda significação como se fosse um grande sistema despótico e vazio, quando o Desejo reina em estado selvagem, como se o rigor de sua regra tivesse nivelado toda oposição, quando a Morte domina toda função psicológica e se mantém acima dela como sua norma única e devastadora — então reconhecemos a loucura em sua forma presente, a loucura tal como se dá na experiência moderna, com sua verdade e sua alteridade.104

Esse estado de loucura que os limites do representável desvela aponta para o que é perigosamente o mais próximo,

... como se subitamente se perfilasse, em relevo, o recôncavo mesmo de nossa existência; a finitude, a partir da qual nós somos, pensamos e sabemos, está subitamente diante de nós, existência a um tempo real e

103 104

FOUCAULT. As palavras e as coisas, p.518. FOUCAULT. As palavras e as coisas, p.520.

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86 impossível, pensamento que não podemos pensar, objeto para nosso saber mas que a ele se furta sempre.105

Nesse momento de sua trajetória, Foucault também enfatiza a dimensão de experiência a que a psicanálise se propõe:

... ela não pode desenvolver-se como puro conhecimento especulativo ou teoria geral do homem. Não pode atravessar o campo inteiro da representação, tentar contornar suas fronteiras, na forma de uma ciência empírica construída a partir de observações cuidadosas; essa travessia só pode ser feita no interior de uma prática em que não é apenas o conhecimento que se tem do homem que está empenhado, mas o próprio homem.106

Faz seu elogio à psicanálise, por entender que ela, enquanto experiência de linguagem que é, se empenha em descobrir, nos confins da representação, as figuras concretas da finitude, por dissolver o homem enquanto conceito, livre da intenção, e, mesmo, da ilusão de torná-lo melhor, mais puro ou mais adequado. É, pois, passando pela psicanálise, que Foucault conduzirá, em As palavras e as coisas, ao estatuto da linguagem enquanto experiência. Por um caminho longo e imprevisto, se é conduzido a esse lugar que Nietzsche e Mallarmé haviam indicado, quando um deles pergunta: quem fala? E o outro responde: a própria Palavra. O que ele encontra a partir dessa resposta

105 106

FOUCAULT. As palavras e as coisas, p.520. FOUCAULT. As palavras e as coisas, p.521.

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... é que o homem é finito, e que, alcançando o ápice de toda palavra possível, não é ao coração de si mesmo que ele chega, mas às margens do que o limita: nesta região onde ronda a morte, onde o pensamento se extingue, onde a promessa da origem recua indefinidamente.107

As palavras de Foucault ressoam com o que está em jogo no coração das psicoses, tal como ela é concebida pela psicanálise. Essa consonância se faz notar no que Jacques Allain Miller nomeou, partindo do texto de Lacan, de clínica universal do delírio. Esse modo de conceber a clínica propõe uma inversão: ao invés de se considerar a psicose em termos de déficit, crendo-se que, em relação aos neuróticos, falta-lhes algo, propõe-se a pergunta sobre o que falta ao neurótico para ser psicótico. Parte-se do princípio de que desde que fale, nenhum sujeito esteja livre do delírio: “Chamo de delírio uma montagem de linguagem que não tem correlato de realidade... uma montagem de linguagem construída sobre um vazio. E digo: todo mundo delira. Essa é a perspeciva que chamo de delírio generalizado”108. Para Miller, não seria equivocado afirmar que todo mundo seria louco, se louco é aquele que delira. Ainda, nessa perspectiva, não existe na linguagem uma correlação biunívoca entre as palavras e as coisas. A palavra se articula à palavra. Basta substituir a função de representação pela de articulação para se terem efeitos de delírio. Além de permitir falar do que não existe, a linguagem faz com que o fato de falar de algo o torne ficção.

107 108

FOUCAULT. As palavras e as coisas, p.531. MILLER. A psicose no texto de Lacan, p. 95.

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88 Ao mesmo tempo em que introduz essa perspectiva do delírio generalizado, faz a ressalva de que esta não é de modo algum a única perspectiva sob a qual se pode considerar a linguagem e, portanto, a loucura. Entretanto, ela é interessante, e mesmo desejável, por não ser uma perspectiva estigmatizante. Restitui a humanidade do psicótico, uma vez que funda seu estatuto de ser-no-mundo a partir do modo como se apropria da linguagem, estatuto utilizado também para os ditos não-loucos. Na perspectiva da clínica universal do delírio, a linguagem não é concebida como um bom aparelho para referir, ou ainda, para representar. Sua função primordial não seria a de comunicar, expressar, descrever ou informar. Seu uso fundamental visaria à construção de uma prótese para a falha que estaria na própria raiz da linguagem. Nessa perspectiva, tanto a psicose quanto a literatura e mesmo a lógica poderiam ser colocadas sob a rubrica do delírio, uma vez que se referem a objetos que não têm um correlato de realidade. Tanto os ditos loucos como os não-loucos estariam sujeitos a essa falha, um diferindo do outro apenas no modo de lidar com ela. De acordo com Miller, “o segredo da clínica universal do delírio é que a referência é sempre vazia. Se existe verdade, ela não é a adequação da palavra e da coisa, ela é interna ao dizer, isto é, à articulação.”109 A constituição do simbólico como uma ordem que se configura a partir do vazio da referência é o que se observa desde Freud, quando ele passa da sedução sexual à sedução fantasmática, do fato à fantasia; da busca por exatidão e correspondência na realidade à escansão da verdade subjetiva; do inconsciente como saber referencial ao inconsciente como saber textual.

109

MILLER. “Clínica irônica”, p.33.

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89 A própria regra fundamental da experiência analítica, que é a associação livre, funda-se sobre o estatuto dado à linguagem em psicanálise. Quando se diz ao paciente que diga tudo o que lhe passar pela cabeça, que não omita nada, não se está pedindo que se confesse, não se trata, por parte de quem escuta, como suspeitara Foucault, em História da sexualidade 1: a vontade de saber, de fazer uso de um dom de absolvição ou de uma curiosidade bisbilhoteira. O que se pede é que se junte um significante ao outro, sem a preocupação com a referência, operação própria da ontologia formal. É a articulação significante que gira em torno da idéia de uma referência vazia, negativa, que possibilita que da linguagem possa extrair-se uma referência nova, que não estava lá antes do exercício significante. O esquizofrênico, por outro lado, seria aquele para quem o simbólico é real. Ele estaria todo o tempo e sem dialética possível em um mais além, ou em um mais aquém da representação. Um sujeito que não evitaria, não se defenderia do real através do registro simbólico. Para ele, a palavra não representa, não atravessa, não designa a coisa; ela é a coisa. O ponto central, entretanto, sobre o qual gira essa perspectiva não somente clínica, como também ética e política, é o modo como se concebe, em primeiro lugar, a linguagem, e, em segundo, a sua relação com a loucura. Foucault assimila a loucura à “ausência de obra”, não por colocá-la no rol dos déficits, que enquanto tais acabariam afetando a criação, mas por designar a loucura como “a forma vazia de onde vem essa obra”.110

110

FOUCAULT. La folie, l’absence d’oeuvre, p.419.

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90 Um outro caminho possível seria considerar, de acordo com Sérgio Laia, esse vazio constitutivo da obra, como um correlato do furo no simbólico, que, segundo Lacan, fundaria a experiência psicótica: a forclusão do Nome-do-Pai do campo da linguagem. Por fim, além de Freud e Lacan, também Foucault articula a experiência da loucura à da linguagem, na medida em que, para ele, a loucura se manifestaria a partir, e mesmo, por causa da própria insuficiência da linguagem e do insuportável dessa insuficiência.

2.6. Do estatuto da loucura: o trágico como invariante? Diversamente do que se poderia considerar como uma historicização “clássica” do modo como o trágico se articularia à experiência da loucura em Foucault, busca-se privilegiar um modo não-linear de leitura, a fim de se extraírem das entrelinhas, das nervuras do seu texto, as nuances e todo o alcance dessa articulação. Encontra-se, em alguns autores, o aspecto trágico da loucura em Foucault associado e circunscrito apenas à Idade Média, momento em que prevaleceria uma hospitalidade com a loucura, que, por sua vez, estaria relacionada aos “grandes poderes trágicos do mundo”.111 Uma leitura rápida dos primeiros capítulos da História da loucura também conduziria a considerar que o problema trágico da loucura estaria circunscrito à época de Bosch, Breugel e da pintura do século XV. Ele só sobreviveria, portanto, no “silêncio das imagens”, “no espaço da pura visão” em que “a loucura desenvolve seus poderes”112, enquanto durasse o tempo em que a loucura pudesse ser percebida como “experiência cósmica”113

111

FOUCAULT. História da loucura, p.23. FOUCAULT. História da loucura, p.27. 113 FOUCAULT. História da loucura, p.26. 112

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91 Problema ultrapassado com Erasmo, Brant e por toda a tradição humanista, uma vez que, com eles, a loucura não mais estaria ligada ao mundo e às suas formas subterrâneas, não mais seria uma manifestação cósmica, mas diria respeito “ao homem, a suas fraquezas, seus sonhos e suas ilusões”, passando a se inscrever desde então como um “sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo.”114 Nesse momento, a loucura, tornada “experiência crítica”115, subordinaria a experiência trágica do homem no mundo a um saber que já privilegiaria a verdade e a moral. Foucault chega a considerar que essa divisão entre uma experiência cósmica, subsidiada pelo elemento trágico, e uma experiência crítica já estaria selada no tempo, ainda que, na vida real, essa oposição não tenha sido tão nítida e tão visível. Problema definitivamente enterrado na época clássica, que, com Descartes, inaugura o tempo em que a loucura, reduzida ao silêncio, deixaria de ser percebida como erro para se converter em impossibilidade do pensamento. Problema substituído pela objetivização das ciências na modernidade, pelos nós da alienação, pela patologização da loucura e sua transformação em doença mental. A loucura deixa de ser percebida como uma experiência cósmica, ou como uma experiência interior, para se tornar uma doença biologicamente condicionada, incurável até que a ciência lhe descubra o remédio, ou a substância neutralizadora. Entretanto é a nervura do texto foucaulteano que permite inferir que o trágico se inscreve nos vários momentos e perpassa as diversas epistemes ao longo da história da loucura, quer apareça explicitado, quer encoberto e disfarçado, tal qual a experiência da loucura na Idade Clássica. Foucault adverte que não se trata de um desaparecimeto: “a

114

FOUCAULT. História da loucura, p.24.

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92 consciência crítica da loucura viu-se cada vez mais posta sob uma luz mais forte, enquanto penetravam progressivamente na penumbra suas figuras trágicas”, e ainda “obscuramente, essa experiência trágica subsiste nas noites do pensamento e dos sonhos, e aquilo que se teve no século XVI foi não uma destruição radical mas apenas uma ocultação.”116 O que Freud e Artaud atestam em suas obras é que, sob a consciência crítica da loucura, sob suas formas filosóficas ou científicas, morais ou médicas, uma consciência trágica permaneceu oculta, em estado de vigília. Foucault retoma, no “Prefácio” de 61, o Nietzsche de O nascimento da tragédia: “a estrutura trágica a partir da qual se faz a história do mundo ocidental não é outra coisa senão a recusa, o esquecimento, a recaída silenciosa da tragédia.”117 Essa observação faz pensar que uma ocultação que se dá em função de um esquecimento ou recusa de modo algum significaria um desaparecimento. O trágico parece figurar aqui tal qual a imagem de Fênix, renascida das cinzas em todo o seu fulgor. O que parece servir de esteio para esse modo trágico de inscrição, para essa atitude diante da loucura, é justamente sua inspiração não-dualista e não-dialética. Poder-se-ia interrogar, portanto, se a experiência trágica, inscrita de diferentes modos ao longo de suas reflexões sobre a loucura, delineada a partir de diferentes pontos de vista, que variam de acordo com a episteme vigente, não se apresentaria como um invariante no que se refere ao estatuto da loucura na obra de Michel Foucault. É interessante verificar como ele introduz, ainda no “Prefácio” de 61, da História da loucura, a problemática trágica: “O estudo que se lerá não seria senão o primeiro, e o mais

115

FOUCAULT. História da loucura, p.26. FOUCAULT. História da loucura, p.28. 117 FOUCAULT. Prefácio (Folie et déraison), p.142. 116

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93 fácil, sem dúvida, dessa longa investigação, que, sob a luz da grande pesquisa nietzscheana, gostaria de confrontar as dialéticas da história com as estruturas imóveis do trágico.”118 O trágico aparece ora como um peso pesado, uma estrutura imóvel que perfura e atravessa o tecido volante e dinâmico da história, ora sob a forma de uma pegada na areia, rastro do que permaneceria da loucura na história das epistemes.

118

FOUCAULT. Prefácio (Folie et déraison), p.143.

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94 CAPÍTULO 3 A EXPERIÊNCIA TRÁGICA DA LOUCURA: LINGUAGEM E TRANSGRESSÃO

Foi preciso não falar de loucura a não ser em relação ao “outro giro” que permite aos homens não serem loucos, e esse outro giro não pôde ser descrito, por sua vez, senão na vivacidade primitiva que o engaja, no que tange à loucura, em um debate indefinido. Uma linguagem sem apoio era, portanto, necessária... uma linguagem que retomando-se sem cessar, devia ir, com um movimento contínuo, até o fundo.119

3.1. A experiência de transgressão Ao invés de endossar uma linguagem que torna razão e loucura excludentes entre si, ou que só se interessa pela loucura na medida em que se reduz a sua complexidade a fim de objetivá-la, enquanto patologia, Foucault utiliza criticamente um outro tipo de linguagem, que ele caracteriza como transgressiva, deduzida dos criadores trágicos: de Nietzsche e dos escritores que introduziram, na França, um tipo de pensamento herdado e fundado a partir da filosofia nietzscheana — Bataille e Blanchot. Quando Foucault emprega o termo transgressão, emprestado de Bataille e de Blanchot, ele se refere a uma experiência de pensamento, experiência-limite e de ultrapassagem de limite, realizada no campo da linguagem literária. Esta o permite ir além da dialética, transpondo a oposição entre exterioridade e interioridade, sujeito e objeto, eu e mundo, normal e patológico. Foucault eleva a transgressão a uma categoria do pensamento: “talvez um dia ela pareça tão decisiva para nossa cultura, tão oculta em seu solo quanto o fora outrora, para o

119

FOUCAULT. Prefácio (Folie et déraison), p.147.

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95 pensamento dialético, a experiência da contradição.”120 A contradição estaria para a dialética como a experiência do limite estaria para a transgressão — “a transgressão é um gesto relativo ao limite.”121 De acordo com Foucault, o limite e a transgressão devem um ao outro o seu ser: “... terá o limite uma existência verdadeira fora do gesto que gloriosamente o atravessa e o nega?”122 Entretanto, o inesperado da relação entre limite e transgressão é que eles não funcionam como um simples par de oposições. A transgressão não estaria para o limite “como o negro está para o branco, o proibido para o permitido, o exterior para o interior, o excluído para o espaço protegido da morada. Ela está mais ligada a ele por uma relação em espiral que nenhuma simples infração pode extinguir.”123 É justamente nesse ponto, onde Foucault aponta para um mais além da dialética, que cabe a interrogação sobre o estatuto da experiência de transgressão. Ele aponta, a partir do pensamento crítico, um caminho que, passando por Kant, Nietzsche e Blanchot, inaugura, na filosofia contemporânea, a possibilidade de uma afirmação não-positiva, o que em Blanchot se explica através do princípio de contestação. Esse princípio não diz respeito a uma negação generalizada, que conduziria a um tipo de niilismo, e sim de uma afirmação que não afirma nada. A contestação seria o gesto que reconduziria as existências e os valores aos seus limites, “contestar é ir ao núcleo vazio no qual o ser atinge seu limite e no qual o limite define o ser.”124

120

FOUCAULT. Prefácio à transgressão, p.32. FOUCAULT. Prefácio à transgressão, p.32. 122 FOUCAULT. Prefácio à transgressão, p.32. 123 FOUCAULT. Prefácio à transgressão, p.33. 124 FOUCAULT. Prefácio à transgressão, p.34. 121

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96 Quanto ao retorno a Kant, este inaugura o novo para a filosofia ocidental, no momento em que articula o discurso metafísico e a reflexão sobre os limites da razão. De acordo com Foucault, este não cessou de apontar para o que há de mais matinal no pensamento grego, não para se resgatar uma experiência perdida, mas para produzir uma reaproximação das possibilidades de uma linguagem não-dialética. A transgressão enquanto princípio, portanto, não opõe nada a nada, não faz nada deslizar no jogo da ironia, não procura abalar a solidez dos fundamentos. Ela não é violência em um mundo partilhado; nem triunfa sobre os limites que apaga, ao modo de uma dialética. Nada é negativo na transgressão. Ela afirma o ser limitado, ao mesmo tempo em que nada é positivo nessa afirmação, uma vez que nenhum conteúdo pode prendê-la, e nenhum limite, retê-la. Foucault conclui que talvez ela não passe da afirmação da divisão, não enquanto corte, ou separação, mas enquanto ela pode designar o ser da diferença.

3.2. A experiência de transgressão é relativa ao campo da linguagem A experiência de transgressão presente na literatura moderna como tentativa de ultrapassar as fronteiras entre razão e loucura, a partir do que seria uma experiência trágica do mundo e do homem, se dirige, em Foucault, fundamentalmente, ao campo da linguagem, enquanto veículo da verdade e do sentido e lugar fundador da exclusão da loucura pela razão. Ao se retomar o trágico enquanto experiência, é de fundamental importância ressaltar a importância do lugar que a noção de excesso, de desmedida, de algo equivalente ao que foi a hybris para os gregos, ocupa no comentário foucaulteano.

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97 Então, quando se resgata o trágico, faz-se referência mais ao que nele se inscreveria do campo do excesso e da paixão, que do campo da moral. Pode-se sugerir também, por outro lado, e de modo diferente de alguns estudiosos que opõem o momento trágico ao momento transgressivo em Foucault, como se um ultrapassasse e inviabilizasse o outro, que a experiência de transgressão funcionaria muito mais como uma atualização da experiência trágica, uma complexificação da mesma. Parece que o trágico, a loucura e a transgressão caminham juntos desde tempos imemoriais, entretanto, na antigüidade, através das tragédias gregas, o transgressivo e o excessivo pareciam inscrever-se no nível do ser, enquanto que, na contemporaneidade, se inscrevem no nível da linguagem. A articulação entre loucura e literatura só é possível porque a loucura, tal como Foucault a entende, é concebida como um fenômeno de linguagem. Entretanto, essa linguagem porta uma particularidade, uma vez que, em seu espaço, se encadeiam a ordem da razão e a dos prazeres, em que “os sujeitos se situam no movimento dos discursos e na constelação dos corpos”.125 Linguagem que mantém em si a tensão de universos heterogêneos e irredutíveis um ao outro e que só se tornou acessível ao filósofo, a partir do momento em que ele descobre que

... não habita a totalidade de sua linguagem como um deus secreto e todo-falante; ele descobre que tem, ao seu lado, uma linguagem que fala e da qual ele não é dono; uma linguagem que se esforça, que fracassa e se cala e que ele não pode mais mover... Descobre,

125

FOUCAULT. Prefácio à transgressão, p.36.

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98 sobretudo, que no próprio momento de falar ele não está alojado no interior de sua linguagem da mesma maneira.126

O que se evidencia aqui é a derrocada da subjetividade filosófica, considerada por Foucault como uma das estruturas fundamentais do pensamento contemporâneo. O que se abre fundamentalmente dessa experiência é “a possibilidade do filósofo louco”127, encontrado não no exterior de sua linguagem, por um acidente vindo de fora, ou por um exercício imaginário, mas nela mesma, no núcleo de suas possibilidades. Em História da loucura, a propósito do delírio clássico, Foucault chega a afirmar que a linguagem seria a estrutura primeira e última da loucura. Em Blanchot, e na interpretação que se possa fazer de Bataille a partir dele, a experiência trágica também se apresentaria, na literatura moderna, como uma experiência de linguagem. Com isso, não se quer negar a primazia dos efeitos enlouquecedores que possíveis patologias degenerativas, como o Mal de Alzheimer, só para citar um exemplo ou lesões cerebrais causadas por acidentes vasculares e traumatismos crânio-encefálicos possam ter. Entretanto, as seqüelas psíquicas deixadas por esse tipo de patologia encontram-se muito mais próximas de um estado demencial que de um quadro de loucura propriamente dita. Com isso, deseja-se dizer, por um lado, que nem todas as manifestações da loucura têm como base um déficit; e, por outro, que há algumas delas que apresentam um quadro deficitário, advindo de uma patologia degenerativa, de um quadro orgânico, ou mesmo tóxico, de base.

126

FOUCAULT. Prefácio à transgressão, p.38.

98

99 A expressão da loucura nos quadros demenciais dificilmente trará uma marca de genialidade, ou mesmo abrirá as portas para um processo criativo. Portanto, para haver precisão quanto ao universo a que Foucault se refere quando articula loucura, experiência trágica, transgressão e literatura, que parece ser o das loucuras não deficitárias, seria preciso considerar aqui esse universo da loucura que se manifesta por outras vias que não o embotamento das funções nervosas, causado por algum tipo de patologia ou acidente. Feita essa ressalva, pode-se continuar a investigar como é que linguagem e transgressão se tornam as referências principais a partir das quais Foucault constrói o seu entendimento sobre a loucura enquanto experiência trágica.

3.3. A loucura enquanto experiência de transgressão e a experiência literária Apesar do termo transgressão não estar explicitamente colocado na História da loucura, essa idéia se apresenta claramente desde o seu primeiro prefácio e vai tomando corpo e sendo elaborada ao longo dos escritos posteriores, até o momento em que seu interesse pela literatura enquanto instrumento transgressivo parece declinar. Os escritos de Foucault, de maior impacto e paixão, sobre esse tema, foram produzidos entre 1962 e 1966. Partindo do princípio de que faz parte da cultura instituir limites e de que excluir e proibir são uma de suas manifestações, Foucault encontra na experiência literária e em sua linguagem uma possibilidade de ultrapassagem, de transgressão e flexibilização dos limites construídos pela cultura. É nesse ponto que loucura e literatura se articulam, como manifestações desse jogo do limite e da transgressão, e como formas de linguagem. A

127

FOUCAULT. Prefácio à transgressão, p.40.

99

100 abertura da literatura em direção à loucura implicaria uma transgressão das fronteiras estabelecidas pelo classicismo entre razão e loucura. De acordo com Machado, ao mesmo tempo em que fora objeto de exclusão social e objetivação teórica, passando a ser interpretada pelos parâmetros adversos da cultura, a loucura pôde expressar-se em sua própria linguagem através da obra de criadores trágicos como Goya, Nietzsche, Van Gogh, Nerval, Hölderlin, Artaud, para os quais a verdadeira experiência artística ou literária passaria por um certo enlouquecimento, ou seja, pelo risco da loucura. Esses criadores, que dão voz, forma e cor à loucura, colocariam em questão a rotulação feita pelo saber racional da loucura como desqualificação. Considerar a loucura enquanto uma experiência de linguagem e de transgressão, como também enquanto uma experiência trágica, se constituiria em uma alternativa para a definição médica da loucura enquanto doença. Em “A loucura, a ausência da obra”, Foucault demonstra de que modo a loucura se desloca do campo dos interditos da ação, das faltas de linguagem (que contra o código da língua pronunciaria palavras sem significação), das palavras blasfematórias (que pronunciariam a palavra sagrada em vão), para uma outra forma de linguagem excluída;

ela consiste em submeter uma palavra, aparentemente conforme o código reconhecido, a um outro código cuja chave é dada nesta palavra mesma; de tal forma que esta é desdobrada no interior de si: ela diz o que ela diz, mas ela acrescenta um excedente mudo que enuncia silenciosamente o que ela o diz e o código segundo o qual ela

100

101 diz... não é em seu sentido, não em sua matéria verbal, mas em seu jogo é que uma tal palavra é transgressiva.128

Foucault percebe a reforma de Pinel como apenas um arremate visível da repressão da loucura como palavra. Segundo ele, somente com Freud e com a psicanálise a experiência loucura deixa de ser falta de linguagem, blasfêmia proferida ou significação intolerável:

deve-se, portanto, tomar a obra de Freud por aquilo que ela é; ela não descobre que a loucura está presa numa rede de significações comuns com a linguagem cotidiana, autorizando assim a falar dela com a banalidade cotidiana do vocabulário psicológico. Ela desloca a experiência européia da loucura para situá-la nessa região perigosa sempre transgressiva... que é a das linguagens implicando-se nelas próprias, quer dizer, enunciando em seu enunciado a língua na qual elas o enunciam.129

O que Freud realizou de absolutamente novo foi, segundo Foucault, conceber e demonstrar através de sua obra o estatuto da loucura como uma “prodigiosa reserva de sentido”130; como uma figura que retém e suspende o sentido, “a loucura abre uma reserva

128

FOUCAULT. A loucura, a ausência da obra, p.194. FOUCAULT. A loucura, a ausência da obra, p.195. 130 FOUCAULT. A loucura, a ausência da obra, p.196. 129

101

102 lacunar que designa e faz ver esse oco no qual língua e palavra implicam-se, formam-se uma a partir da outra e não dizem outra coisa senão sua relação muda.”131 É dentro desse contexto que Foucault agrega que “será preciso, um dia, fazer essa justiça a Freud”132, por ter ele esvaziado da loucura o Logos desarrazoado, por ter remontado as palavras até sua fonte, região branca da auto-implicação onde nada é dito.

3.4. A linguagem, entre a loucura, e a obra Quanto à questão da loucura implicar a ausência da obra, sua absoluta ruptura, incompatibilidade e impossibilidade, parece que essa oposição está colocada por Foucault nesses termos somente em um primeiro momento de sua investigação. Mais precisamente em História da loucura. Em seus escritos posteriores, o que passa para primeiro plano são as possíveis relações entre obra de linguagem e a loucura. Uma primeira articulação se faz, nesse texto, pelo viés segundo o qual também a literatura, depois de Mallarmé, se torna uma palavra que inscreve em si própria seu princípio de deciframento e detém o poder de modificar os valores e as significações da língua à qual pertence. Foucault fala de uma estranha vizinhança entre loucura e literatura, uma vez que ambas designam a forma vazia de onde a obra vem, o lugar onde ela não cessa de estar ausente. Elas se articulam porque em ambas o que está em jogo é uma espécie de autoimplicação, que tem a ver com o duplo e com o vazio que se escava nele: “nesse sentido, o

131 132

FOUCAULT. A loucura, a ausência da obra, p.196. FOUCAULT. A loucura, a ausência da obra, p.196.

102

103 ser da literatura, tal como ele se produz depois de Mallarmé, chegando até nós, ganha a região na qual se faz, a partir de Freud, a experiência da loucura.”133 Desse modo, Foucault constrói um lugar mais digno, e mesmo mais interessante que o da patologia, para a loucura. Longe da medicina, perto do lirismo e da linguagem literária, onde o ser de quase loucura do artista louco, ou do louco artista, não é um ser doente. Parece também que só se poderia falar de uma exclusão e de uma incompatibilidade absoluta entre obra e loucura apenas nos momentos compreendidos por um surto psicótico, ou então nos casos de cronificação, de um embotamento causado por impregnação medicamentosa. O fato da loucura e da obra se constituírem da mesma matéria, ou seja, de se expressarem como linguagem, aponta mais no sentido de uma possível relação, que de uma não-relação. Seria possível afirmar até mesmo que a obra poderia funcionar como um exercício, e mesmo um mecanismo capaz de circunscrever, de dar um destino à hybris trágica da loucura, diferente do surto ou da degeneração. A linguagem estaria, melhor dizendo, entre a loucura e a obra. É, portanto, a concepção foucaulteana da loucura como linguagem que transgride as leis da razão, que subverte a concepção de obra como obra da razão, que aproxima de uma vez por todas loucura e obra. A obra tecida com os fios da loucura seria a obra realizada a partir de uma negatividade, de uma falta, do próprio vazio, parêntese, abismo, buraco sem fundo de uma ausência fundamental de linguagem. É disso que Foucault fala quando designa, a propósito da obra de Artaud, a obra como o escarpamento sobre o abismo da ausência de obra. A obra em questão se deduz a partir de um desmoronamento da

133

FOUCAULT. A loucura, a ausência da obra, p.197.

103

104 linguagem, ela se constitui nesse e desse esforço desesperado de não ser tragado por esse vazio, da afirmação desse movimento que nasce de uma impossibilidade.

3.5. Loucura, literatura e experiência trágica Apesar de criar um espaço de relação entre loucura e literatura, Foucault não as confunde. Enquanto a loucura se constitui a partir de um total desmoronamento da linguagem, a literatura seria a tentativa de construir esse desmoronamento. O artista da palavra daria conta de construir esse desmoronamento, de fazer algo com ele, enquanto que o não-artista, o simplesmente louco, seria tragado pela avalanche da falência da linguagem e da ordem simbólica. Poder-se-ia avançar nessa distinção entre o louco e o poeta, escritor, artista da palavra, ainda que uma coisa não exclua a outra, com a ajuda da psicanálise. Enquanto que no campo da literatura se trata do campo da transgressão, de uma ruptura parcial, portanto, de um campo que se refere e se remete a um limite presente, positivado, estabelecido pela cultura e reconhecido pelo sujeito, o campo da loucura aponta para uma ruptura total, em que não haveria nem mesmo a presença do limite como referência. É a essa ausência no campo do limite e da lei simbólica que Lacan, em seu seminário sobre as psicoses, designa como forclusão do Nome-do-Pai. Esse termo indica que algo, no campo da linguagem e do registro simbólico, fica do lado de fora, não tem registro. Outro exercício proposto por Foucault no que concerne ao estatuto da loucura é o de pensar o que parece constituir-se enquanto uma oposição, não a partir de um critério de exclusão, mas de inclusão. Isso significa que, ao invés do normal excluir o patológico; o

104

105 sentido excluir o não-sentido; a razão excluir a loucura; o patológico seria condição do normal; o não-sentido, do sentido; a loucura, da razão, e vice-versa. Então, afirmar que a loucura é a ausência de obra, nessa perspectiva, implicaria em afirmar que a loucura designaria a forma vazia de onde a obra deriva. A loucura, assim como a literatura, enquanto experiência trágica de desmoronamento, ruína, falência, seriam capazes de subverter, transgredir os códigos instituídos da língua, e, dobrando-se sobre si mesmas, inventar seu próprio código. Seria interessante interrogar se o que estaria em jogo em “A loucura, a ausência da obra”, sob os auspícios dessa linguagem que se auto-implica e detém seu próprio código lingüístico, dessa linguagem vazia que não quer dizer nada, cuja racionalidade definitivamente não funciona como parâmetro, seria, de fato, uma experiência trágica. O mesmo poder-se-ia indagar sobre a função da repetição, da linguagem enquanto murmúrio, jorro, desperdício, desmedida, em “A linguagem ao infinito”. Foucault conta que a obra de Sade e os romances de terror introduzem na obra de linguagem um desequilíbrio essencial:

... eles a lançam na necessidade de estar sempre em excesso e em falta. Em excesso, porque a linguagem não pode mais evitar de aí se multiplicar por si mesma — como atingida por uma doença interna de proliferação; ela está sempre em relação a si mesma mais além do limite... ela é excessiva e de tão pouca densidade que está destinada a se prolongar ao infinito sem adquirir jamais o peso que a imobilizaria... Infinito atual da miragem que constitui, em sua

105

106 vacuidade, a espessura da obra — esta ausência no interior da obra de onde esta, paradoxalmente, se ergue.134

Trágica não no sentido moral, mas da tensa manutenção simultânea de elementos heterogêneos e por vezes opostos, tais como, por exemplo, a palavra e o gozo, a razão e a desrazão. Também a experiência de transgressão irá, nesse contexto, mais além do campo da norma social, mesmo porque ela só teria sentido em função da norma, incidindo no próprio campo da matéria que faz a norma, ou seja, no campo da língua. Mas se chega a um certo ponto em que as transgressões no campo da norma e no campo da línguagem se tocam, como, por exemplo, em Sade, uma vez que o mero fato de falar mantém a generalidade contra a qual ele se rebela. A escrita e a fala servem apenas à repetição das cenas, movimento que por si mesmo vai rompendo a ordem clássica do discurso. De acordo com Tomás Abraham, sem o obstáculo, não há energia. Faz-se necessária a presença da norma e da Lei para que o transgressivo tenha lugar:

o transgressor é o contrário de alguém que se lembra de tudo, é um esquecido. A transgressão se efetua na não lembrança dos atos prévios. Carece de triunfos. A escrita de Sade se repete em suas descrições do mesmo modo que se repetem os atos transgressores... é a repetição de um gesto único que não pertence a nenhum código.135

134

FOUCAULT. A linguagem ao infinito, p.57. (Grifo nosso, com o objetivo de marcar que excesso e falta não se excluem necessariamente).

106

107 Mas, paradoxalmente, aquele que contra uma ordem estabelecida quer fundar uma nova ordem encontrará sempre o acolhimento silencioso e complacente da lei, que acolhe em si a possibilidade de ser transgredida. A presença da lei é sua dissimulação, ela “é essa sombra em direção à qual necessariamente se adianta cada gesto na medida em que ela é a própria sombra do gesto que prossegue.”136 A herança trágica a que se faz referência, portanto, estaria muito mais próxima da loucura que da sabedoria ou da moral. Entretanto,

o pertencimento da loucura à obra não deve ser confundido com o imaginário banal que faz de todo artista um louco ou, de toda obra, um delírio — a loucura não vem fornecer o sentido, não vem explicar, justificar nem o que é criado, nem o contexto de onde a criação parece derivar.137

Para Sérgio Laia, o parentesco entre loucura e literatura em Foucault trava-se na medida em que, no mundo moderno, a criação passa a abarcar uma exigência do novo, do inaudito, do ímpar. Isso traz para a obra uma dificuldade de circular no universo das convenções e dos sentidos já estabelecidos. O estatuto da obra aqui evidenciaria ausência, enigma, furo, uma deriva incessante que não deixa de evocar o que se passa na loucura. No mesmo momento, em se tratando da loucura, a criação torna-se o ato pelo qual a loucura poderá seguir seu curso para além dos limites fixados pela égide da doença mental: “graças a uma forma, a um modo, a um ritmo de apresentação da linguagem, o domínio da

135

ABRAHAM. Los senderos de Foucault, p. 39.

107

108 loucura é, nesse viés, a sua extensão, o seu desdobramento no espaço da obra que pode ser criada tanto por um louco, quanto como uma espécie de reverberação do que se impõe na loucura.”138 Foi assim que, em Van Gogh, Nietzsche, Hölderlin, Artaud e Roussel, as forças corrosivas da loucura não conseguiram inviabilizar seu trabalho de criação. Poder-se-ia pensar que a modernidade abre uma janela no espaço literário que comporta o pertencimento da loucura à obra. Foucault explicita, através de seus exemplos, de que modo, nesse período, se desatam os laços da literatura com a origem, o antigo, a analogia, a identidade e com a memória concebida como retorno a uma inscrição primordial. Como a literatura passa a atrair e ser atraída pelo vazio ao qual as palavras concernem. Loucura e literatura, portanto,

não são equivalentes na horizontalidade de uma equação lúgubre (que suporte

os

movimentos

tirânicos

de

englobamento

pelas

psicopatologias autoritárias ou pelas estéticas facilistas). Loucura e literatura se ajustam verticalmente à experiência soberana de uma linguagem sem origem.139

3.6. A experiência de transgressão em Bataille De acordo com Roberto Machado, o limite, a finitude e seus correlatos, que são os temas que concentram a atenção de Foucault quando ele escreve seu Prefácio à transgressão, versam sobre a problemática da morte, podendo-se acrescentar, sobre os

136

FOUCAULT. Prefácio `a transgressão, p.231. LAIA. Os escritos fora de si: Joyce, Lacan e a loucura, p.33. 138 LAIA. Os escritos fora de si: Joyce, Lacan e a loucura, p.33. 139 GROSS. Foucault y la locura, p.94. 137

108

109 efeitos enlouquecedores que a vivência de uma antecipação da experiência da morte poderia causar. É a morte que inspira a interpretação dada por Foucault ao conceito de transgressão na obra de Bataille, para quem limite e transgressão formam um par. Trata-se de termos interdependentes e complementares. Eles coexistem, de modo que nem a transgressão nega ou suprime definitivamente o limite, nem o que move o sujeito a transgredir, exceder e ultrapassar os limites pode ser totalmente extinto. O interdito, para Bataille, não é imposto de fora. Pode-se afirmar que ele funciona de modo semelhante ao que Freud designou sob a égide do super-eu. É por isso que transgredir produz angústia. Por outro lado, todo interdito existe para ser violado. É isso que o dito popular “proibição é tentação” parece designar. A transgressão, por sua vez, seria uma licença relativa, uma desordem organizada, e, mesmo, regularizada. Por isso, não se pode afirmar que basta haver transgressão para se estar diante da loucura. Transgredir, nesses termos, poderia até produzir um certo enlouquecimento, mas jamais se pode afirmar que este seja, em si mesmo, “A loucura”. Para Bataille, o jogo do limite e da transgressão se remete e se refere às relações entre o sagrado e o profano, pensados por ele a partir dos conceitos de continuidade e descontinuidade, e, de acordo com Machado, inspirados também nos conceitos nietzscheanos de apolíneo e dionisíaco: o mundo profano, como aquele dos interditos, das proibições, o mundo utilitário do trabalho; e o sagrado, como continuidade dada na ultrapassagem dos limites, o mundo improdutivo das festas, que consomem e dilapidam os recursos acumulados pelo trabalho. O sacrifício como ápice da festa demonstra que o acesso ao sagrado se daria pela violência de uma infração, pela violação de um interdito.

109

110 Para Bataille, a transgressão nada tem a ver com a liberdade primeira da vida animal, ela dá acesso ao além de um limite instituído, preservando esse limite. Ela excede, sem destruir, um mundo profano do qual ela seria menos um complemento que um suplemento. Os conceitos de limite e transgressão são também utilizados por Bataille para pensar o erotismo como ápice, exuberância da vida. A vitória do domínio da transgressão sobre o interdito relaciona a volúpia e o prazer à transgressão. Para ele, além do erotismo dos corpos, há aquele do coração e o do religioso, sendo que o sentido fundamental do erotismo é religioso. Sua principal referência é o da orgia dionisíaca, considerada por ele um culto erótico e trágico. Dionísio seria o Deus da transgressão religiosa, do êxtase, do excesso e da loucura. O cristianismo, por outro lado, em sua valorização do trabalho em detrimento do gozo, da absolutização do interdito e rejeição da impureza, seria uma inversão dos valores da religiosidade primitiva. Para Foucault, o problema da transgressão assim como o da emergência da sexualidade em nossa cultura estão subordinados ao tema nietzscheano da morte de Deus e ao vazio ontológico que esta deixou nos limites do pensamento ocidental. Articulam-se também a “uma forma de pensamento em que a interrogação sobre o limite substitui a busca da totalidade, e em que o gesto da transgressão toma o lugar do movimento das contradições.”140 Entretanto, parece que até mesmo a emergência da sexualidade em nossa cultura se apresentaria como um problema secundário àquele da linguagem, uma vez que a sexualidade só é decisiva na medida em que passa pela palavra, que é falada, absorvida pelo universo da linguagem, desnaturalizada por ele.

110

111 Ainda segundo Machado, foi baseado na análise e no elogio que Bataille faz a Sade por causa da intrínseca ligação entre transgressão e literatura em sua obra, como também por levar, através da literatura, o erotismo ao limite do impossível, que Foucault constrói sua interpretação, articulando a sexualidade e o erotismo, na modernidade, à morte de Deus e à experiência da linguagem. Desse modo, é possível desvincular a definição de transgressão de uma experiência moral. Se Deus está morto e não há mais referenciais religiosos ou humanos a serem negados, ela torna-se profanação sem objeto, profanação vazia. A transgressão seria, então, em Foucault, uma experiência que leva o limite ao extremo, ao máximo possível, afirmando o ser limitado, sem estabelecer oposições de valor, sem categorizar em termos de negativo e positivo. A experiência de linguagem em Bataille, apresenta-se sob a forma de um desmoronamento, de um desfalecimento do sujeito falante diante da tentativa de dizer o impossível de ser dito. Eis aí o ponto de encontro entre a experiência de linguagem batailleana e a experiência da loucura. Esta é desdialetizante, uma vez que, no lugar em que se esperava o sujeito, idêntico a si mesmo, o que se encontra é um vazio “onde existe em dispersão, combinando-se ou excluindo-se, uma multiplicidade de sujeitos falantes ou de sujeitos fraturados.”141 É essa linguagem não-dialética do limite, que só se desdobra na transgressão daquele que fala, o que se poderia designar, mais uma vez, como uma experiência trágica da linguagem, pelo que ela comporta de falha, de falta, de insuficiência.

140

FOUCAULT. Prefácio à transgressão,p. 45.

111

112 3.7. Hölderlin: onde termina a obra, onde começa a loucura? Em “O não do pai”, texto de 1962 (escrito um ano depois do “Prefácio”), Foucault tece um apaixonante comentário sobre o estudo de Laplanche, Hölderlin e a questão do pai. Ele trabalha, entre outras questões, aquela do processo de exaustão, de perdição da linguagem. Foucault situa esse momento, historicamente, entre o final do século XVIII e o início do XIX, como sendo a época em que, no campo da filosofia e da literatura, se pode presenciar o desvanecimento dos princípios universais aos quais a linguagem deveria adequar-se. O artista, que ao longo da história ocidental fora identificado ao herói, passa a ser identificado ao louco, uma vez que a sua “loucura” o identifica com sua obra, tornando-o estranho aos outros. É assim que nasce uma “psicologia do artista”, sempre assediada pela loucura, mesmo quando a obra nada tem a ver como o tema do patológico. De acordo com Foucault, a dimensão do psicológico, a psicologização da obra de arte, seria na cultura o avesso das percepções épicas. Esse artigo parece atravessado do início ao fim pela doutrina lacaniana das psicoses, principalmente aquela do seminário de 1955-56 sobre o mesmo tema. A questão fundamental que o interroga, mais além da severa crítica dirigida aos psiquiatras que forneceram, sobre a loucura de Hölderlin, “modelos repetidos e inúteis”, é o “velho problema: onde termina a obra, onde começa a loucura?”142 Ao que acrescenta:

141 142

MACHADO. Foucault, a filosofia e a literatura, p.67. FOUCAULT. O não do pai, p.172.

112

113 em vez de ver no acontecimento patológico o crepúsculo no qual a obra desmorona-se realizando sua verdade secreta, é preciso seguir esse movimento pelo qual a obra se abre pouco a pouco sobre um espaço no qual ser esquizofrênico toma seu volume, revelando, assim, no extremo limite, o que nenhuma linguagem, forma do sorvedouro em que se precipita, teria podido dizer.143

Na leitura feita por Foucault, a partir de Laplanche e Lacan, a obra de Hölderlin funcionaria para ele, não como algo que injeta sentido e significado onde não há, mas como um “ponto de fixação”. A redação definitiva do Hyperion, por exemplo, cumpriria essa função, na medida em que, através dela,

é afastada a ameaça sombria da ausência e do vazio. A linguagem avança agora contra esse espaço que, ao abrir-se, a chamava e a tornava possível; ela tenta fechá-lo cobrindo-o com belas imagens da presença imediata. A obra, então, torna-se medida daquilo que ela não é, nesse duplo sentido de que ela percorre toda sua superfície e o limita opondo-se a ele.144

No caso da loucura de Hölderlin,

na felicidade da obra, na borda de sua linguagem, surge, para reduzi-la ao silêncio e concluí-la, esse limite que era ela própria contra tudo o

143

FOUCAULT. O não do pai, p.172.

113

114 que não fosse ela. A forma do equilíbrio torna-se esse penhasco abrupto no qual a obra encontra um termo que só consegue concluí-la subtraindo-a a ela própria.145

Para Foucault, é necessário que todo discurso que tente atingir a obra em seu âmago seja uma interrogação das relações entre a loucura e a obra, na medida em que os temas do lirismo e os da psicose, assim como as estruturas de ambas as experiências, lhe parecem isomorfas. Aqui cabe uma ressalva: acredita-se que esse isomorfismo possa dar-se de um modo muito menos problemático quando se trata da relação entre lirismo e loucura, de um modo geral, que entre lirismo e psicose. Nem toda psicose apresenta-se carregada de lirismo, ao passo que a loucura, enquanto experiência lírica, poderia tomar parte em qualquer estrutura clínica — na neurose obsessiva, em sua paixão pelos rituais, na histeria, em seus amores de quase loucura, nas perversões, como tão bem ilustram alguns personagens dos filmes O matador, Tudo sobre minha mãe, ou Fale com ela, do madrilenho Pedro Almodóvar. De todo modo, pode-se dizer que certamente a obra entra no cálculo da loucura, ora como um dispositivo que dá um tratamento, que dá um destino à hybris, à desmedida, ao desarranjo libidinal próprio às situações de enlouquecimento; ora como um sinal, um aviso quando esse dispositivo fracassa, quando a desmedida do que está em jogo na loucura submerge, arrasta, tal qual um furacão, as tentativas de circunscrição empreendidas através da obra.

144 145

FOUCAULT. O não do pai, p.178. FOUCAULT. O não do pai, p.178,179.

114

115 Outra ressalva importante é que aqui se utiliza o termo “tratamento”, no sentido de “dar um destino”, pois não se trata, no que se refere à loucura, de considerar a questão de uma cura ou de uma desaparição, tal qual preconiza a psiquiatria, que a toma como uma doença. Desse modo, o que Foucault, inspirado em Lacan, recorta das relações entre a loucura e a obra em Hölderlin aponta, em um primeiro momento, para as

formas da ausência, da lacuna, do afastamento que, na psicose, concernem, sobretudo, à imagem do Pai, e às armas da virilidade. Nesse “não” do Pai, não se trata de ver uma orfandade real ou mítica, nem o rastro de um apagamento relativo ao caráter do genitor.146

Foucault explicita, por sua vez, que essa ausência não deve ser tomada no nível da realidade, mas naquele no qual estão ligados o que se diz e aquele que o diz. Não é em termos alimentares ou funcionais que se deve pensar uma lacuna fundamental na posição paterna. Isso significa que o Pai é aquele que limita a relação da mãe para com a criança, cuja fantasia de devoração é sua primeira forma angustiada. “Não reintrojetarás seu produto” é uma das formas de enunciação da Lei paterna, que permite à criança o acesso à experiência da linguagem. É interessante notar que, nesse artigo, Foucault parece estar atento, como será visto a seguir, à existência da noção de “forclusão do Nome do Pai ”, tal como ela foi concebida

146

FOUCAULT. O não do pai, p.179.

115

116 e utilizada por Lacan na clínica das psicoses, o que levaria até mesmo a repensar a relação da loucura com a transgressão:

... poder dizer que ele falta, que é odiado, rejeitado ou introjetado, que sua imagem passa por transmutações simbólicas, supõe que ele não está, para começar, “foracluído”, como diz Lacan, e que em seu lugar não se abre uma hiância absoluta. Essa ausência do Pai, manifestada pela psicose ao precipitar-se nela, não incide sobre o registro das percepções ou das imagens, mas sobre o dos significantes. O “não” através do qual se abre essa hiância não indica que o nome do pai permaneceu sem titular real, mas que o pai jamais alcançou a nominação, e que este lugar do significante pelo qual o pai se nomeia e pelo qual, segundo a Lei, ele nomeia permaneceu vazio. É na direção desse “não” que infalivelmente se dirige a linha reta da psicose quando, arrojando-se para o abismo de seu sentido, ela faz surgir sob as formas do delírio ou do fantasma, e no desastre do significante, a ausência devastadora do pai.147

A partir desse comentário, duas conseqüências poderiam ser deduzidas: 1) loucura e psicose não deveriam ser tomadas como termos equivalentes. Poder-se-ia considerar a experiência de transgressão como fundadora, quando se está no campo mais geral da experiência da loucura, o que seria problemático afirmar quanto ao campo específico das psicoses, caracterizado pela forclusão do Nome do pai. 2) poder-se-ia conceber a loucura

147

FOUCAULT. O não do pai, p.180.

116

117 enquanto experiência de transgressão, considerando a linguagem de um modo genérico, tendo como parâmetro determinada época ou cultura, ou, ainda, uma episteme anterior, como, por exemplo: a experiência da linguagem literária na modernidade como uma experiência de transgressão em relação à linguagem retórica. Não se deveria, entretanto, fazer o mesmo no nível do que, em psicanálise, se reconhece como o campo do sujeito psicótico, já que seria impossível transgredir uma lei, quando ela não está de antemão colocada. No campo das psicoses, portanto, a loucura é postulada não como uma experiência de transgressão, mas como furo, ausência de um elemento que, no campo da linguagem, ordenaria uma série de significações, uma narrativa e mesmo o que chamamos de realidade. Esse elemento que falta, impossibilita a operação primária da fundação do sentido e da lei simbólica e, portanto, a chance de que algo da ordem da transgressão possa inscrever-se. Desse modo, isso que em Hölderlin se inscreve como ausência do Pai é também o que inscreve sua linguagem na direção de uma fenda, de um vazio no campo do significante, “seu lirismo em direção ao delírio, sua obra em direção à ausência da obra”.148 Ao mesmo tempo em que Foucault demonstra a distância entre loucura e obra, ele aponta sua possível proximidade, mas

a continuidade do sentido entre a obra e a loucura só é possível a partir do enigma do mesmo, que deixa aparecer o absoluto da ruptura. A abolição da obra na loucura, esse vazio no qual a palavra poética é

148

FOUCAULT. O não do pai, p.181.

117

118 atraída como se na direção do seu desastre, é o que autoriza entre elas o texto de uma linguagem que lhes seria comum.149

É, portanto, desse precário equilíbrio, em que o desastre da palavra serve à matéria da obra, e não ao desencadeamento de um surto psicótico, que depende a continuidade entre a loucura e a obra.

3.8. A experiência da loucura e a da linguagem Em “A linguagem ao infinito”, texto de 1963, ao lado de trabalhos posteriores, como, por exemplo, em “Linguagem e literatura”, de 1964, e As palavras e as coisas, de 1966, Foucault tentará construir uma “ontologia formal da literatura” cuja finalidade seria investigar o “ser da linguagem” literária, que seria definido, por sua vez, a partir do modo como o homem estabelece sua relação com a morte, uma vez que esta designaria, em última instância, o vazio a partir do qual e contra o qual se fala. Essa possibilidade é concebida por Foucault a partir de uma análise das formas de repetição da linguagem e do inventário de suas leis de funcionamento e transformação. Os dois grandes períodos através dos quais Foucault classifica a linguagem na história da humanidade expressariam, segundo Machado, duas maneiras de lidar com a morte. O primeiro período vai do aparecimento dos deuses homéricos até o seu afastamento em Hölderlin. A linguagem servia aí como anteparo frente ao perigo da morte, através da promessa de imortalidade. O espaço da linguagem é definido, nesse momento, pela retórica,

149

FOUCAULT. O não do pai, p.182.

118

119 e seu paradigma se encontra fora dos livros, no Livro Eterno, através da palavra de Deus, “... toda linguagem humana, quando queria ser uma obra, devia simplesmente retraduzi-la, retranscrevê-la, repeti-la, restituí-la.”150 O que se produz nesse período é chamado por Foucault de obra de linguagem, que é algo distinto do que ele entende por literatura. A literatura, por sua vez, surge no horizonte da língua, quando essa linguagem milenar se cala, ao menos parcialmente, para o mundo ocidental. A partir do século XIX, “quando aparece uma linguagem que retoma e consome em sua fulguração outra linguagem diferente, fazendo nascer uma figura obscura mas dominadora na qual atuam a morte, o espelho e o duplo, o ondeado ao infinito das palavras.”151 Ao invés da palavra primeira, volta-se a atenção para o infinito do murmúrio. A retórica, que repetia para criaturas finitas a palavra do Infinito, dá lugar à repetição, sendo seu espaço substituído pelo volume do livro e pela Biblioteca, espaço de sustentação das linguagens fragmentárias. Foucault chega a afirmar que “só há repetições, rigorosamente falando, na ordem da linguagem”152, e acrescenta que a literatura ocidental teve seu início com Homero, com sua Odisséia. Nela, já se utiliza a estrutura de repetição, ainda que esta se dê no interior de si mesma. A repetição já funcionaria, desde então, como uma propriedade fundamental da linguagem literária, tal qual uma balança através da qual vida e morte se remetem uma à outra e se colocam em questão. Como um desdobramento em que cada palavra é animada e arruinada, preenchida e esvaziada pela possibilidade de que haja uma outra.

150

FOUCAULT. Linguagem e literatura, p.153. FOUCAULT. A linguagem ao infinito, p. 57. 152 FOUCAULT. Linguagem e literatura, p.159. 151

119

120 Mas, em Linguagem e literatura, Foucault diferencia o estatuto da repetição que se faz notar da antigüidade até o classicismo daquele que se anuncia na modernidade, através de uma comparação entre a repetição, na Odisséia, de Homero, e a repetição tal como ela se dá na escrita de James Joyce. Em Homero, a repetição diz respeito ao conteúdo do livro, resultando em novos episódios, ao passo que, em Joyce, quando ele repete a Odisséia, o que ele faz é literatura, uma vez que é a própria linguagem que se repete, se desdobra e se reduplica, fazendo-se espelho de si própria. O livro, por sua vez, só vem adquirir status na literatura quatro séculos depois de sua invenção técnica, material. O Livro, de Mallarmé, é considerado por Foucault como o primeiro livro de literatura. A própria literatura “nasce” a partir do acontecimento Livro:

a linguagem renuncia à sua tarefa milenar — a de recolher o que não se deve esquecer — no momento em que a linguagem descobre que está ligada pela transgressão e pela morte ao fragmento de espaço tão fácil de manipular, mas tão árduo de pensar, que é o livro.153

O segundo período, portanto, advém a partir da morte dos deuses. Não podendo mais repetir a palavra infinita, ela repete a si mesma:

A literatura — que não deve ser compreendida nem como a linguagem do homem nem como a palavra de Deus, nem como a linguagem da natureza, nem como a linguagem do coração ou do silêncio — é uma

153

FOUCAULT. A linguagem ao infinito, p.173.

120

121 linguagem transgressiva, mortal, repetitiva, reduplicada: a linguagem do próprio livro.154

Pode-se pensar também na aproximação entre literatura e loucura, na medida em que, no que se conveciona chamar de uma estética da linguagem em Foucault, o problema da realidade não está posto. Nesse momento de sua trajetória, Foucault parece acreditar que a linguagem seja tudo. A linguagem literária seria auto-referente e não expressaria uma realidade preexistente, porque apenas ela formaria o sistema da existência. Não remeteria a um sujeito ou a um objeto, elidindo a ambos, substituindo o homem, criado pela filosofia, por um espaço fundamentalmente vazio, através do qual ela se propaga, repetindo-se e reduplicando-se indefinidamente. Quando Foucault designa a literatura moderna como auto-referente, não o faz por acreditar que ela se tenha interiorizado ao extremo; ao contrário, trata-se aí, paradoxalmente, de uma passagem para fora:

... a linguagem escapa ao modo de ser do discurso — ou seja, à dinastia da representação... o “sujeito” da literatura (o que fala nela e aquele sobre o qual ela fala) não seria tanto a linguagem em sua positividade quanto o vazio em que ela encontra seu espaço quando se enuncia na nudez do “eu falo”.155

154 155

FOUCAULT. A linguagem ao infinito, p.154. FOUCAULT. O pensamento do exterior, p.221.

121

122 No espaço da ficção, e por que não no da loucura, o “eu falo” não obedece nem funciona em sincronia com o “eu penso”, como já acontecera um dia na filosofia, quando se tratava de pensar a verdade. O “eu penso” conduzia à certeza indubitável do eu e de sua existência; o “eu falo”, por sua vez, recua, dispersa, apaga essa existência, deixando aparecer apenas um lugar vazio. Se o pensamento do pensamento conduz à mais pura interioridade, a fala da fala leva a esse exterior em que o sujeito que fala desaparece. O fictício para Foucault, a partir de Blanchot, não estaria nas coisas, nem nos homens, mas na impossível verossimilhança do que está entre eles — “a ficção consiste, portanto, não em mostrar o invisível, mas em mostrar o quanto é invisível a invisibilidade do visível.”156 Ele formaria “um discurso que aparece sem conclusão e sem imagem, sem verdade e sem teatro, sem prova, sem máscara, sem afirmação, livre de qualquer centro, apátrida.”157 No espaço da ficção, escuta-se não tanto o que se pronunciou nele, mas o vazio que circula entre as palavras, o murmúrio que não cessa de desfazê-lo, discurso sobre o não-discurso de qualquer linguagem. Em “O pensamento do exterior”, de 1966, além de elidir o sujeito, a experiência da linguagem elide também a interioridade, a alma, a consciência, a reflexão, a dialética, o tempo e a memória, explicitando, segundo Machado, através de sua reduplicação, a diferenciação, a fratura, o apagamento, a anulação. Foucault chama de pensamento do exterior, portanto, a isso que se constitui enquanto alteridade em relação à interioridade da reflexão filosófica e à positividade do

122

123 saber. É “... pensamento que é legitimamente Ser e Palavra. Discurso, portanto, mesmo se ele é, além de qualquer linguagem, silêncio, além de qualquer ser, nada.”158 Pensamento que se desdobra e redobra em linguagem que mantém e se sustenta do paradoxo, da continuidade da tensão de universos heterogêneos que são levados a compartilhar um mesmo espaço — o da língua. Nesse espaço onde reina uma espécie de tensão trágica,

...a origem tem a transparência do que não tem fim, a morte abre infinitamente para a repetição do começo. E o que é a linguagem (não o que ela quer dizer, não a forma pela qual o diz), o que ela é em seu ser é essa voz tão fina, esse recuo tão imperceptível, essa fraqueza no coração e em torno de qualquer coisa, de qualquer rosto, que banha com uma mesma claridade neutra — dia e noite ao mesmo tempo — o esforço tardio da origem, a erosão matinal da morte.159

Foucault localiza o surgimento, e porque não o insurgimento, do pensamento do exterior, paradoxalmente, na época de Kant e Hegel, no momento em que a interiorização da lei da história e do mundo nunca havia sido tão requisitada pela consciência ocidental. Esta categoria de pensamento se perfila, por exemplo, no monólogo repetitivo através do qual Sade desvela a nudez de seu desejo e a insistência obstinada de seu gozo. É o

156

FOUCAULT. O pensamento do exterior, p.225. FOUCAULT. O pensamento do exterior, p.226. 158 FOUCAULT. O pensamento do exterior, p.222. 159 FOUCAULT. O pensamento do exterior, p.242. 157

123

124 “pensamento do autômato”, esvaziado de interioridade, “na dependência tão somente das forças que do exterior o compõem.”160 Atualiza-se, na segunda metade do século XIX, com Nietzsche, quando anuncia que toda metafísica ocidental estaria ligada não apenas à sua gramática, mas àqueles que, sustentando o discurso, detêm o direito à fala. Com Mallarmé, através do movimento pelo qual desaparece aquele que fala. Com Artaud, quando a linguagem discursiva é levada a se soltar na violência do corpo e do grito, e quando o pensamento, deixando a interioridade da consciência, se torna energia material, sofrimento da carne, dilaceramento do sujeito. Com Bataille, quando o pensamento abandona o discurso da contradição e se torna limite, subjetividade rompida, contradição. Com Klossowsky, através da experiência do duplo, da exterioridade dos simulacros, da multiplicação teatral e demente do Eu. A escrita de Blanchot, por sua vez, é considerada por Foucault como a própria encarnação, na modernidade, do pensamento do exterior:

... ele é de preferência para nós, esse pensamento mesmo — a presença real, absolutamente longínqua, cintilante, invisível, o destino necessário, a lei inevitável, o vigor calmo, infinito, avaliado por esse mesmo pensamento.161

160

GARCIA. É viável uma abordagem clínica no Cersam?, p.126. Célio Garcia propõe esta categoria de pensamento, tal como ela foi trabalhada por Foucault, como uma chave para se chegar a uma abordagem positiva da loucura, até então definida a partir de um critério negativo. 161 FOUCAULT. O pensamento do exterior, p.224.

124

125 Essa linguagem de exterioridade não é falada por ninguém. O sujeito nela se perfila enquanto uma dobra gramatical. O pensamento do exterior seria, então, em Blanchot, aquele que se constitui e se mantém no exterior da subjetividade. O ser da linguagem aparece justamente nessa fenda onde desaparece o sujeito: a abertura para uma linguagem da qual o sujeito está excluído, a revelação de uma incompatibilidade talvez irremediável entre a aparição da linguagem em seu ser e a consciência de si em sua identidade são hoje uma experiência que se anuncia em pontos bastante diferentes da cultura: no simples gesto de escrever como nas tentativas para formalizar a linguagem, no estudo dos mitos e na psicanálise, na busca desse Logos que constitui uma espécie de lugar de nascimento de toda a razão ocidental.162

Pensar a literatura como experiência anônima e autônoma da linguagem e, enquanto tal, como uma experiência trágica, significaria, portanto, ultrapassar as oposições entre interioridade e exterioridade, entre sujeito e objeto, pela própria obra enquanto experiência. Essa ultrapassagem, e, mesmo, essa derrocada de limites e de fronteiras, acontece também na loucura, com a diferença de que, na loucura, isso acontece de uma maneira totalmente desorganizada, insustentável, e, na maioria dos casos, sem retorno e sem produto. Com isso, deseja-se dizer que o parentesco entre a loucura e o gênio parece bem mais raro que aquele entre a loucura e o desastre.

125

126

CAPÍTULO 4 A LOUCURA EM QUESTÃO

Talvez, um dia, não saibamos mais muito bem o que pode ter sido a loucura... mas uma coisa permanecerá: a relação do homem com seus fantasmas, com seu impossível, com sua dor sem corpo, com sua carcaça da noite.163

162

FOUCAULT. O pensamento do exterior, p.222.

126

127 4.1. A carne da loucura Nesta quarta e última etapa desta investigação, optou-se por permanecer no campo aberto pelo Foucault arqueólogo, ao invés de se tentar responder a possíveis questões relacionadas à experiência da loucura no âmbito da genealogia e do que se convenciona chamar de hermenêutica do sujeito em Foucault. Essa escolha se deu basicamente por três razões: 1) a loucura concebida através do recorte linguagem/literatura não é um objeto privilegiado por Foucault nas démarches posteriores; 2) tentar construir, por analogia, o modo como Foucault trataria a loucura a partir de outros objetos privilegiados nessas démarches, tais como as instituições penais ou a sexualidade, exigiria um salto por demais arriscado; 3) por razões de método, a fim de delimitar com mais precisão o objeto deste trabalho e extrair desse percurso uma maior amplitude e aprofundamento das questões e das conseqüências. O silêncio de Foucault, no que concerne à loucura concebida pelo viés da literatura, a partir do final dos anos 60, parece articular-se a uma severa crítica dirigida ao estruturalismo. Também nesse momento de sua trajetória, ele recusa sistematicamente qualquer aproximação ao estruturalismo e às “análises de estilo estruturalista”.164 É provável que a substituição do primeiro prefácio da História da loucura, assim como a eliminação, na segunda edição do Nascimento da clínica, das expressões que o apresentavam como um adepto do movimento estruturalista estejam relacionadas a essa distância que Foucault decide tomar tanto do estruturalismo, quanto do privilégio concedido à linguagem literária.

163 164

FOUCAULT. A loucura, a ausência da obra, p.190- 191. FOUCAULT. Qu’est-ce qu’un auteur?, p.816.

127

128 A primazia (antes dada à linguagem, definida no âmbito dos signos, do significado e do significante) é concedida ao discurso, considerado no âmbito de práticas que formam sistematicamente os objetos dos quais se fala. O que também parece estar subjacente a essa crítica são o risco e as conseqüências limitantes da aplicação de seus princípios para além do campo que lhe é específico, a saber, o da língua. Os problemas da aplicação do método estruturalista, fora do âmbito em que fora criado, foi objeto de uma autocrítica por Foucault, e também, curiosamente, na mesma época, por Lacan, cada um dentro dos seus respectivos campos de atuação. Para Jacques-Allain Miller, a aplicação do estruturalismo ao campo das ciências humanas, e mais especificamente à psicanálise, consistiu em um apelo feito à lógica para resolver o problema da condição humana, na ilusão de que se poderia substituir o estatuto trágico desse problema pela pura lógica matemática. Essa autocrítica que marca a trajetória desses dois pensadores caminha na direção das implicações extraídas de uma concepção da loucura sustentada apenas no princípio de invariância da linguagem, que acarretaria um certo esvaziamento, empobrecimento e mesmo simplificação do problema da loucura, que, subtraída do campo da carne, do corpo e dos afetos, beiraria a uma abstração. Tentou-se demonstrar, nesta investigação, as variações e os caminhos através dos quais a tríade trágédia-loucura-literatura se foi construindo ao longo da trajetória foucaulteana. Essa construção, bem afinada com o tempo atual, serve-se do que um numeroso grupo de pesquisadores165 denomina de “formas residuais do trágico”; de seus

165 Quanto a esse ponto, vale conferir os resumos do VIII Congresso Internacional Abralic 2002, o simpósio Formas e mediações do trágico moderno, p.148-157, organizado pelos professores Roberto Vecchi, da Universidade de Bolonha, Ettore Finazzi-Agró, da Universidade de Roma.

128

129 restos, cacos, rastros, do que resiste ao tempo e ao espaço, uma vez que é impossível reviver o trágico, em matéria e espírito, tal como ele terá sido em sua origem grega. O caminho percorrido por Foucault em sua tríade, tal como é possível verificar nos capítulos anteriores, inicia-se através da delimitação de um primeiro elemento residual do trágico: aquele dos opostos inegociáveis, insuperáveis, que o obriga a vislumbrar os limites do pensamento e da representação; esse vislumbre leva-o inevitavelmente a um segundo elemento residual, que é dado não apenas pelo vislumbrar desses limites, mas por seu afrontamento, pela própria vivência da experiência da ausência de sentido, do non-sense que habita o coração da linguagem; o terceiro elemento residual consiste na própria linguagem, em sua dimensão labiríntica, propícia ao infinito de sentidos que desemboca em seu avesso, signos do que Foucault tentou nomear através das rubricas “pensamento do exterior”, “ausência da obra” e “linguagem ao infinito”. Não foram poucas vezes, entretanto, as que Foucault foi acusado de promover, por causa do privilégio dado à articulação com a linguagem e com um determinado tipo de literatura, concebida sob a égide do núcleo opaco e irrepresentável do trágico, uma estetização da experiência da loucura. A questão da estetização, seus limiares e nuances, não é simples de elucidar. Tendo em conta o desaparecimento da tragédia como gênero literário, os mais diversos sentidos que esse termo assume e suas numerosas alianças na contemporaneidade, Roberto Mulinacci propõe uma saída para esse problema pela via da distinção entre as categorias de pensamento e representação: “se pensar o trágico significa aceitar a dialética irresolúvel do pensamento, representar o trágico é, pelo contrário, uma maneira de fugir a seu impasse,

129

130 tornando-o um objeto pensável.”166 O risco da estetização somente poderá ser afrontado pela via dos limites do pensamento colocados por um problema, experiência ou objeto que traga em si a marca do impensável. O que parece restar da loucura, tal como se pode ler nas entrelinhas do Foucault arqueólogo, mas além de sua apreensão pelos automatismos de uma linguagem concebida de modo independente do corpo que a produz e habita, de sua apreensão particular por um sujeito, de sua estetização ou patologização, é, de fato, sua dimensão trágica. Por outro lado, preservar o trágico enquanto experiência é também uma maneira de exigir-lhe uma encarnação. Então, um dos modos possíveis de não cair na armadilha da abstração e da estetização da loucura pode ser o de tentar circunscrever sua encarnação. Quando se fala da loucura enquanto uma experiência, não se trata da loucura em geral, mas dela tal como ela se apresenta para alguém. Com isso, o modo como Foucault equaciona, na primeira metade dos anos 60, o problema das palavras e das coisas, da linguagem e da realidade, da não necessária relação entre elas, não poderia ser transposto tal e qual para o âmbito das relações entre o campo das palavras e dos afetos, dos gozos, do pathos, dos corpos, da carne, ou seja, das palavras e da hybris. Em Raymond Roussel, Foucault apresenta, em toda sua radicalidade, as conseqüências do que ele chama de “falha ontológica da linguagem”, dessa máquina de produzir a repetição, ao ponto de escavar um vazio onde o ser submerge. As palavras se

166

MULINACCI. O trágico em busca da tragédia: os paradoxos da modernidade (também) brasileira, p.151.

130

131 precipitam aí, em uma tentativa desesperada e fracassada de capturar as coisas. Esse vazio que a linguagem produz no interior de si própria se projetaria para o campo das coisas. A soberania da linguagem lhe é conferida por sua autonomia, por ela não ter uma relação necessária com o mundo exterior. Em Raymond Roussel, Foucault chega mesmo a afirmar que não há sistema comum à existência e à linguagem, por ser esta que forma o sistema da existência. O problema da falha da linguagem, que a impede de ser a representação exata e total do que ela representa, revelando sua ambigüidade fundamental, é bastante antigo na filosofia, como se pôde ver já no primeiro capítulo desta dissertação, através dos comentários de Vernant e Naquet a propósito da língua dos trágicos. O que parece fundamental em Foucault é que ele tenha concedido a essa ambigüidade um estatuto ontológico. O ser puro e intransitivo da linguagem literária, que traz as marcas do vazio, da exterioridade, da repetição e do simulacro, onde tudo é ficção e delírio, tem, desde então, seu lugar no campo dos saberes. Mas a questão é saber se resta algo da loucura mais além do modo como o problema está aí colocado. É saber se há, e onde está, a carne, o pathos, o gozo da loucura. Se a linguagem é autônoma, se não tem nenhuma relação necessária com a realidade, o que se diria de sua relação com o corpo, com os afetos? O fato de a linguagem habitar um corpo não parece sem efeitos. Talvez o percurso feito por Lacan, que também abraçou o estruturalismo no início de seu ensino, servindo-se de seus princípios em suas investigações e produções no campo das psicoses, possa lançar alguma luz sobre essa questão. Ele sustenta que o campo da palavra, sob a forma mais geral da linguagem e da escrita, e o campo dos corpos,

131

132 considerando também aquele das pulsões e dos gozos, são campos que se imbricam, se interferem mutuamente, se transformam e se deformam na presença do outro, sem jamais formarem um todo homogêneo e harmônico e nem se tornarem uma coisa só.

4.2. Nos confins do sentido: o real Em “A ex-sistência”167, Jacques Alain-Miller retoma o último ensino de Lacan, situando com precisão onde está o problema da teoria significante, construída no início dos anos 60, a partir de uma inversão da lingüística de Saussurre. É nesse período que Lacan constrói a premissa de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Essa estruturação se dá não em função dos seus significados, mas de seus significantes. O problema é que o funcionamento do sistema significante não comporta nada que lhe seja exterior. Ele conduz, assim, à negação do real, por considerar que só há artifício, construção. A conseqüência disso é a negação da referência. Segundo Miller, a apreensão da linguagem nas redes do sistema significante que se consumou nos tempos do estruturalismo conduziu diretamente a todas as aberrações da teoria literária subsidiadas pelo princípio de que a linguagem só teria que se haver com ela própria, momento em que se chamava de literatura ao uso intransitivo da linguagem desenlaçada de qualquer referência. Lacan tenta, no que se convenciona chamar de seu último ensino, restabelecer o real através do que ele chama de ex-sistência. O real se apresenta como excluído do sentido, como o que ex-siste ao sentido. Em relação à causalidade, a ex-sistência é, como tal,

167

MILLER. A ex-sistência. Opção Lacaniana, n. 33, p.8-21.

132

133 constituída extra-causas. Ela realiza-se quando se atravessou a ordem das causas, do que faz sentido:

O que é uma psicanálise na história da metafísica? Uma psicanálise põe o falasser à prova do sentido. Ela põe o que para ele faz sentido à prova do enunciado. Ela põe à prova um ser que só deve esse ser ao sentido. Ela o põe à prova do sentido que se segue à cadeia significante. E a questão é a de saber se, dessa prova, ele acede a um real, quer dizer, se ele acede a uma posição que ex-siste ao sentido.168

De modo diferente ao que postulara Lacan no início de seu ensino, e também Foucault nos seus escritos da primeira metade dos anos 60, o que se deduz dos últimos seminários de Lacan é que os limites do sentido e da representação não conduziriam necessariamente a uma queda no vazio, no nada, em uma espécie de abismo ou vacuidade. De seus confins se extrai, se deduz, se precipita uma positividade, uma consistência, nomeada, nesse contexto, de real. Também para Lacan não se encontra, entre as palavras e as coisas, a correspondência e a paz que, por exemplo, o lógico Willard Van Orman Quine é capaz de construir em Word and object. Esse desencontro, na teoria lacaniana, produz conseqüências, como poderá ser visto, nos campos dos corpos e dos objetos corporais. Para Lacan, seguindo o caminho apontado por Hegel, a palavra é o assassinato da coisa, sendo a criação, a ficção, uma herdeira desse acontecimento.

168

MILLER. A ex-sistência, Opção Lacaniana, n. 33, p.14.

133

134 De acordo com Lacan, no que concerne à loucura, mais especificamente às psicoses, o uso da linguagem não serve à comunicação, à informação, à expressão ou à descrição. Um exemplo disso pode ser deduzido da clínica da passagem ao ato. No caso Aimée, Lacan demonstra que ela apunhala seu semelhante, na realidade, por não conseguir atingi-lo através da linguagem. Na clínica das psicoses, o delírio e sua construção servem de anteparo a essa falha, a esse descompasso fundamental entre a linguagem e a coisa, e o uso da linguagem serve à construção desse anteparo, ou, mesmo, a algo análogo a uma prótese que dê conta, ainda que parcialmente, dessa falha. É possível identificar, no ensino de Lacan, dois momentos distintos no que concerne à sua teoria sobre o estatuto da linguagem. No primeiro momento, marcado por um primeiro retorno a Freud, encontram-se as noções fundamentais de palavra, linguagem e letra, todas referidas ao conceito de estrutura. As conseqüências teóricas desse retorno são construídas, em detalhe, nos escritos “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”169, de 1953, e “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”170, de 1957. Ele busca elementos na teoria lingüística de Saussure, na dialética hegeliana e no inconsciente freudiano para compor seu sistema. A palavra se apresenta na dimensão das perguntas e respostas ao Outro, ou seja, em uma dialética do reconhecimento; a letra aparece como significante localizado, e a linguagem, como produtora de efeitos de sentido, através de dois modos fundamentais: da metáfora e da metonímia.

169 170

LACAN. Escritos, p.238-324. LACAN. Escritos, p.496-536.

134

135 Em “Instância da letra”, Lacan articula a escritura à leitura, ambas tomadas sob a égide da decifração, uma vez que há um significado a ser reencontrado, lido, interpretado, deixando suposta a existência de uma estrutura de linguagem. A relação entre significante e significado não é de verso/reverso, ficando claro que quanto mais significância, menos semântica, mais o significante funciona como uma letra, separada do seu valor de significação, donde se obtêm os efeitos poéticos de um texto. Um exemplo dessa operação pode-se encontrar nos diversos rascunhos de Mallarmé, em que ele procede ocultando progressivamente o significado, fazendo a significância irradiar sob a égide do enigma. A letra apresenta-se sob a forma do significante despojado de seu valor de significação, localizado na materialidade que se apresenta, por exemplo, pelo conjunto dos caracteres de uma impressora, funcionando, portanto, como o que presentifica a separação, o descolamento entre significante e significado. Lacan demonstrou o funcionamento da letra e da escritura a partir do sonho, evidenciando que a imagem onírica é trabalhada por Freud pelo seu valor significante, despojada de sua significação, que ela não vale como um signo figurado, mas como uma letra a ser decifrada, cujo sentido está encoberto, como uma língua perdida a ser reconstituída. O segundo momento do ensino de Lacan começa a constituir-se quando ele localiza, na linguagem, algo que vai mais além da intenção de significação, mais além do sentido como efeito princeps das operações de linguagem. Esse momento é marcado por um segundo retorno a Freud, privilegiando a sua teoria das pulsões. Não mais a vertente estrutural, mas a vertente econômica da teoria freudiana. A conseqüência fundamental dessa virada, dessa torsão, é situar o campo das pulsões, da vontade de gozo, e, portanto, do que

135

136 ficou localizado, nos capítulos anteriores, como o campo da hybris, como uma variação, e mesmo como uma conseqüência da estrutura do diálogo. Isso quer dizer que a fala e o gozo formam uma dupla inseparável, que falar, com suas variações, é também gozar. À palavra, linguagem e letra, correspondem, respectivamente, as noções de apparola, lalíngua e lituraterra, que, ao invés de se referirem ao conceito de estrutura, se referem ao que Lacan chama de aparelho. Com lalíngua, Lacan quer designar a dimensão eminentemente diacrônica da linguagem, os mal-entendidos, equívocos, neologismos e criações lingüísticas de cada um em seu cotidiano. A invenção de cada um com seu código, sua língua, na comunidade em que habita. O fenômeno essencial aqui não é o sentido, mas o gozo. O motor do ser falante não seria, nesse campo, uma vontade de significação, mas uma vontade de gozo. Apparola estaria a serviço das pulsões, assim como a palavra está a serviço do diálogo. A partir de seu encontro com os limites da significação, Lacan propõe uma abordagem da realidade que traz consigo a marca do inconsciente, não com as ferramentas da estrutura e do sentido, mas com aquelas dos aparelhos de gozo. Isso porque, como já foi dito anteriormente, o que ele encontra nos confins do símbolo e do sentido não é a pura negatividade do nada inabordável, mas o real. Para tanto, ele abandona a idéia de que o fundamental da linguagem humana seja o desejo de reconhecimento, ou o desejo de comunicar, mas algo subsiste no uso que se faz da linguagem. Esse algo é uma vontade de gozo.

136

137 Quanto ao estatuto do gozo, também este sofre uma transformação no ensino de Lacan. Em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”171, texto de 1960, o gozo se articula ao tema da interdição e da culpa, sob a modalidade do gozo fálico em suas diferentes maneiras de submissão à castração. Os tratamentos do gozo fálico, por sua vez, aparecem sempre marcados pelo caráter dramático da castração, seja nas neuroses nossas de cada dia, em que o sujeito acredita que o Outro demanda sua castração como uma lei, seja nas soluções coletivas pactuadas pelas novas religiões e seitas, que funcionam como uma luta pelo narcisismo das causas perdidas. A partir dos anos 70, mais especificamente, a partir do seu Seminário 20, as figuras terríveis da castração, e mesmo as românticas, já não estão presentes. O gozo é mais inútil que terrível. Desse modo, o que levou Lacan a isolar o sujeito em seu gozo inútil e autoerótico por excelência é correlativo à exigência da presença, e mesmo da primazia do discurso, como elemento central e aglutinador do ser falante. Uma mesma lógica leva Lacan a desarticular a relação significante-significado, romper com o caráter arbitrário do signo, proclamar sua contingência em lalíngua, tomar por princípio o “não há diálogo”: a solidão do gozo e a solidão semântica se correspondem uma à outra. Desse modo, para que seja possível fazer uma leitura do inconsciente, é necessária a presença do discurso e do laço social. O ponto de chegada desse longo percurso chega a ser surpreendente. Lacan resgata o laço social e o discurso, afirmando que somente através de um laço social típico é possível ler, interpretar e colocar limites ao “não há diálogo” próprio ao funcionamento do inconsciente tomado sob a égide dos aparelhos de gozo. Quanto a esse ponto, Miller

171

LACAN. Escritos, p.807-842.

137

138 acrescenta, bem ao modo aristotélico, que a linguagem significa algo graças a uma rotina. Um equivalente ao velho ditado “o hábito faz o monge”. Sem a presença do laço social, portanto, não é possível nem sequer ler, codificar o “não há diálogo”. Deduz-se, então, que seriam os discursos, e não as leis da metáfora e da metonímia, que garantiriam a rotina através da qual a linguagem aloja o sentido. Em “O escrito na palavra”172, Miller constrói, a partir de Lacan, um pequeno exemplo explicando o funcionamento do que Lacan chama de lalíngua. Ele toma o exemplo com o qual Michel Leiris inicia sua obra A regra do jogo, narrando a experiência de uma criança que brinca com pequenos soldados. Um soldadinho cai, mas não se quebra. Ele diz: “tamanho foi o meu contentamento”, expressando-o assim: “Flismente!”. Nesse tempo, ele ainda não lia nem escrevia. Corrigem-no: “é felizmente que se diz”. Mas para o pequeno Michel, quando algo dava certo, sempre se dizia “Flismente!”. Então, ele descreve, minuciosamente, como apenas o “flismente”, e não o felizmente, é capaz de expressar a alegria, o júbilo, a jaculação, próprias a esses momentos em que algo da ordem do gozo encontrou um significante adequado. Assim ele conclui: “Eis o que mostrou em quê a linguagem articulada, tecido aracnóide das minhas relações com os outros, me ultrapassa, crescendo por todo lado as antenas misteriosas.”173 O que Leiris oferece com seu exemplo é a descrição de um modo de o ser falante apropriar-se e de ser apropriado pela linguagem, anterior ao alfabeto, em que acontecem vínculos que não são da ordem lexical, com inferências, assonâncias e recortes singulares. Uma pessoa alfabetizada pode ter esse tipo de experiência com as línguas que não sabe falar ou ler. É isso que Lacan chama lalíngua. É essa operação leirissiana de evocação de um

138

139 mundo povoado pelo efeito desses nomes que só existem a partir do mal-entendido. É esse campo da linguagem sujeito ao equívoco e, mesmo, definível pelos equívocos que permite. A linguagem animal, por exemplo, não é uma linguagem sujeita ao equívoco. A abelha diria sempre felizmente e jamais “flismente”. Se a linguagem, tomada no nível do código que as abelhas usam entre si, serve estritamente à comunicação, alíngua serve a algo mais. É isso o que, segundo Lacan, a experiência do inconsciente mostra. Esse algo mais se expressa também através do comentário de Leiris sobre seu equívoco, de que foi uma pura jaculação. A finalidade de que se trata aqui é a de gozo. Esse é, portanto, o modo como a linguagem percorre um caminho que vai da estetização, da estrutura, à encarnação em Lacan. O elemento-chave desse percurso é o gozo. Quando Lacan enfatiza e valoriza, em “Função e campo da palavra e da linguagem”, o que ele chama de ressonâncias da palavra, já traçando uma primeira distinção entre a função de comunicação e algo de outra ordem, que, nesse texto, é justamente a de evocação, enfatizando a função poética da linguagem e os efeitos que ultrapassam a comunicação como informação unívoca de uma referência, ainda assim se está no domínio da comunicação. A função poética da linguagem é um modo de comunicação, ainda que seja indireta e sirva para evocar, e não para informar. A ressonância é a propriedade que permite da palavra escutar o que ela não diz. É uma propriedade metonímica da palavra. Permite uma comunicação por via indireta. Isso é diferente do que mostra Michel Leiris com seu exemplo, em que a palavra não funciona no campo das perguntas e respostas, no campo das

172

MILLER. Opção lacaniana, n.16, p.94-102.

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140 questões, mas no campo de um gozo. É assim que Lacan define, no Seminário 20, a linguagem como um aparelho de gozo. Essa definição se contrapõe a todas as possibilidades de proposição de uma linguagem sem sujeito, de uma plena autonomia da linguagem.

4.3. As palavras e os corpos Para se adentrar um pouco mais na questão de possíveis relações entre a linguagem e o corpo, seria interessante retomar a referência Elementos de biologia lacaniana, de Jacques-Alain Miller. A trajetória de Lacan, como já foi visto, se inicia com a elaboração da teoria significante, que se deduz do campo da lógica, da matemática. A referência ao corpo, nesse momento, se dá a partir de uma negativização, na medida em que o significante tem um efeito mortífero sobre o corpo, ele o desnaturaliza, o culturaliza, o recorta, dividindo-o em partes, nomeando essas partes, projetando sobre cada uma um ideal de funcionamento. O corpo comporta a incorporação de um elemento incorporal, que é o significante e a ordem simbólica. Entretanto, esta não é a única possibilidade de relação entre o corpo e o significante. A possibilidade de uma outra modalidade de relação irá ocupar um lugar cada vez mais central em sua reflexão. A biologia lacaniana se fundamenta no campo de um saber fazer com o gozo que talvez seja o único saber psicanalítico sustentável sobre o corpo vivo. Ela se faz a partir de

173

MILLER. O escrito na palavra, Opção lacaniana, n.16, p.98.

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141 três elementos básicos e indispensáveis: o corpo, a linguagem e o gozo. De acordo com Miller, o que se sabe sobre o corpo é que ele goza. Não se pode dizer o mesmo do sistema significante. Esse sistema não goza, ele funciona. Poder-se-ia dizer que a linguagem é a condição do inconsciente, assim como o corpo vivo é a condição do gozo. Além de se valer de um saber sobre o corpo, ela se vale do saber que há no corpo. É isso que permite, por exemplo, que, na física, seja possível atribuir fórmulas matemáticas ao funcionamento dos corpos. Esses corpos “inanimados” não precisam conhecer as fórmulas para funcionar de acordo com elas. Com relação ao funcionamento dos corpos animados, eles sabem o que precisam fazer para garantir a vida. Em O problema das regulações do organismo e na sociedade, de 1955, Canguilhem importou da mecânica a noção de regulação, tida por ele como um fato biológico por excelência. Claude Bernard, por sua vez, bem antes dele, em Introdução ao estudo da medicina experimental, texto de 1865, desenvolveu a noção de meio interior, que, nos organismos superiores, protege o corpo contra as variações do meio e que por isso pode ter uma certa independência em relação a ele. Outro conceito importante é aquele de homeostase, que consiste na manutenção de um equilíbrio interno através de processos complexos. É a partir desse princípio que Walter Cannon, em A sabedoria do corpo, sustenta sua tese científica de que o corpo sabe o que tem de fazer para sobreviver. É possível fazer uma leitura do Princípio do Prazer freudiano a partir da noção de homeostase, como uma lei de regulação. Ele seria o mecanismo que garantiria que as

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142 tensões sejam mantidas em um baixo limiar, um princípio homeostático quanto à regulação do gozo. Entretanto, para a psicanálise, o saber no corpo não dá conta de todos os elementos do campo da vida. Há a linguagem, e, com ela, o inconsciente. Ela se distingue por isso do saber da ciência, que tem como finalidade última e absoluta a sobrevivência das espécies em seus respectivos meios. O saber inconsciente, por sua vez, não se produz a partir da conformidade com o ambiente e nem mesmo a serviço da vida, impreterivelmente. Sua introdução no ambiente provoca uma desordem, uma perturbação, na medida em que, na biologia freudiana, o saber inconsciente está associado à pulsão de morte, ele vai além das fronteiras da vida, podendo desempenhar até mesmo uma função contrária à sobrevivência do organismo. Esse saber também está relacionado ao Princípio do Prazer, entretanto, se este funciona sozinho e o homem se abandona a ele, passa a viver fora da realidade, terminando por confinar-se no gozo auto-erótico e caminhando, paradoxalmente, na direção da morte. Para que o Princípio do Prazer funcione como lei reguladora, ele precisa funcionar junto com o Princípio de Realidade. Essa seria, para a biologia freudiana, a diferença fundamental entre o homem e os outros animais. No mundo animal, não existe uma fissura, uma ruptura entre esses dois princípios. Eles são uma coisa só e têm como finalidade a sobrevivência. No mundo humano, o Princípio do Prazer é também um princípio de gozo e enquanto tal engendra a inadequação do corpo vivo humano ao seu ambiente. Ele comporta esse excesso, esse a mais que os gregos não paravam de repetir em suas tragédias, através das figuras da hybris, desregulando a perfeita harmonia entre o homem, seu meio e seus semelhantes.

142

143 A linguagem, por sua vez, ao invés das mãos ou das unhas, é o principal aparelho de apreensão do homem. Ela perturba a adequação entre o organismo e seu ambiente, como se a presença de mais um órgão desequilibrasse o conjunto harmônico do mundo animal. A linguagem é tida como mais um órgão, ainda que imaterial, além do físico e do mental. Ainda que pareça paradoxal, o mental não é propriamente o campo de atuação da psicanálise. Ele não é um campo diferencial entre a humanidade e a animalidade. Basta haver um aparelho sensorial para que se esteja no campo do mental. Os animais se servem do mental para se adaptarem ao seu ambiente. A visão, o tato, a memória, o pensamento são funções vitais para a adaptação ao ambiente. O órgão a mais, portanto, que diferencia, ao mesmo tempo em que desarmoniza o ser humano com relação ao seu ambiente, incluindo aí seu semelhante, é a linguagem. Um exemplo do mundo animal, citado por Lacan, da diferença que existe entre o saber no corpo, harmônico à sobrevivência apaziguada no meio, e o saber inconsciente, é o da experiência clássica em psicologia experimental do rato no labirinto. Quando o rato aprende o caminho que o levará a uma placa de metal e que, pressionando essa placa, recebe ao mesmo tempo o alimento, ele adquire um saber de que não necessita para a sua sobrevivência, a não ser no meio artificial que é o laboratório e que é também o mundo maluco do cientista. No fundo, o que ele aprende e o que o faz repetir o mesmo circuito mais além de sua fome é ser reconhecido pelo experimentador. É assim que se arruína no rato o princípio do prazer, levando-o a descobrir algo da ordem do gozo. O animal irracional, em seu meio natural, não se desvia do que tem que fazer. Não sente saudade, tédio ou angústia, a não ser quando se aproxima dos humanos e da sua linguagem.

143

144

4.4. Da loucura: entre estetização e encarnação Poder-se-ia indagar se, quando Foucault se afasta da literatura, acusando-a de pactuar com os mecanismos do saber-poder, de perder sua força transgressiva, e também quando, anos mais tarde, passa a valorizar os discursos marginais, tal como se observa em “A vida dos homens infames”, escrito de 1977, deslocando a análise do campo do poder para os modos de subjetivação, para uma genealogia do homem de desejo e para os modos de relação consigo, não estaria buscando, em última análise, um contraponto para a estetização da loucura, pela via da subjetivação. Esses modos de subjetivação evocados por Foucault se desenvolvem na história através de diferentes práticas, atravessando da Antigüidade tardia à era primitiva cristã. É nesse contexto que o “cuidado de si”, epimeleia heauton, nas suas mais variadas formas, surge como valor soberano a ser seguido. Em O cuidado de si

174

, Foucault demonstra, através de um estudo detalhado de

numerosos registros escritos do período greco-romano, que essa época foi marcada por uma cultura de si, em que as técnicas da vida (technè tou bioù) se ancoravam na relação a si a partir de si: “é esse tema do cuidado de si, consagrado por Sócrates, que a filosofia ulterior retomou, e que ela acabou situando no cerne dessa ‘arte da existência’ que ela pretende ser.”175 É como se o grande ensinamento socrático — “conhece-te a ti mesmo” — ecoasse por todos os tempos gregos e encontrasse sua total aplicação na Antigüidade tardia. É desse modo que esse tema vai além do contexto em que se originou, desligando-se de suas significações filosóficas primeiras, adquirindo progressivamente dimensões de uma

144

145 verdadeira “cultura de si”. Essa expressão vem indicar que o princípio do cuidado de si adquiriu um alcance bastante geral:

... o preceito segundo o qual convém ocupar-se consigo mesmo é em todo caso um imperativo que circula entre numerosas doutrinas diferentes; ele também tomou a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou formas de viver; desenvolveu-se em procedimentos, em práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas; ele consistiu assim em uma prática social, dando lugar a relações interindividuais, a trocas e comunicações e até mesmo a instituições; ele proporcionou, enfim, um certo modo de conhecimento e a elaboração de um saber.176

Entretanto, o que esse estudo deixa claro é que, em Foucault, o problema da subjetivação se coloca a partir e através de uma “estética da existência”177 e do que ele nomeou sob esta rubrica de “artes da existência”, que são práticas refletidas e voluntárias pelas quais os homens não somente se fixam regras de conduta, mas também buscam se transformar, se modificar em seu ser singular, e fazer de sua vida uma obra que porte certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo.178

174

Vale a pena consultar o capítulo “A cultura de si”, em História da sexualidae 3: o cuidado de si. FOUCAULT. História da sexualidade 3: o cuidado de si , p. 50. 176 FOUCAULT. História da sexualidade 3: o cuidado de si , p. 50. 177 Ver FOUCAULT. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres, p.9-16. 178 FOUCAULT. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres, p. 15. 175

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146 O que essas estéticas da existência propõem, através das mais variadas técnicas de si, é uma estilização cada vez mais completa da existência em todas as suas ações éticas. O objetivo de Foucault, quando propõe, a partir do modelo grego do cuidado e da prática de si, uma análise do homem de desejo, é o de explicar através de que paradoxos e dificuldades foi levado a “substituir uma história dos sistemas de moral, feita a partir das interdições, por uma história das problematizações éticas, feitas a partir das práticas de si.”179 Em “Sexualidade e solidão”, conferência de 1981, Foucault toma o exemplo do paganismo e do cristianismo primitivo como práticas em que os indivíduos se constituem como sujeito moral a partir de técnicas que os levam a realizar, por si próprios, transformações em seus corpos, pensamentos e condutas. Em Foucault, a filosofia e a literatura, Roberto Machado chama a atenção para o reaparecimento de uma ênfase dada à linguagem em seus estudos, o que não significa, de modo algum, um retorno ao passado. Essa ênfase ganha uma nova forma, e mesmo uma nova vida, uma vez que ela se dá sob a égide de uma relação entre a escrita e o cuidado de si. A escrita ocupa agora um lugar diferente do que tinha nos anos 60, que consiste no interesse voltado para o papel do eu na cultura filosófica de si, durante o período histórico em que a moral foi dominada pela injunção do cuidado de si. Quanto a esse ponto, em L’écriture de soi, Foucault distingue a presença de três tipos de “escrita de si” que cumprem a função de interferir, transformar, e mesmo de melhorar a relação consigo mesmo: os hypomnemata, ou cadernos individuais de notas, que consistem no registro de coisas lidas e ouvidas que servem de matéria-prima para exercícios

146

147 de pensamento e funcionam como um modo de estabelecer uma relação consigo a mais adequada possível; a correspondência, que funciona como um modo de manifestar a si mesmo e aos outros uma narrativa escrita de si, na vida cotidiana, avaliando o que se passa no corpo e na alma a partir das regras de uma técnica de vida; e o caderno íntimo, em que se trata da narrativa de experiências interiores da época cristã, tais como a anotação monástica das experiências espirituais, que, em uma tentativa de expulsar do interior da alma tudo o que seja contrário à salvação, funciona como um contínuo processo de purificação. Mas ainda que esse esforço de injunção de um sujeito desejante seja nítido em seus últimos trabalhos, cabe ainda uma questão. Quando, em O cuidado de si, Foucault radicaliza a importância exemplar do que poderá ter sido a experiência greco-romana de uma estética da existência, fundada na possibilidade de fazer de sua vida uma obra de arte, no sentido que o governo da própria vida teria como objetivo alcançar a mais bela forma possível, será que ele não perderia a chance de ir, em seu percurso filosófico, mais além da estética? Para ir além da estética, não seria preciso tatear, e mesmo formalizar, os limites do Belo? A questão que permanece é aquela dos limites e das possibilidades das relações entre a ética e a estética. Se a estética daria conta de abarcar em todo o seu alcance e conseqüências os problemas colocados por uma ética que leve em conta o real, na medida em que aí se dá o encontro com o campo dos limites da representação. Quanto a esse ponto, seria interessante pensar os limites e problemas da analogia entre a vida e a obra de arte e levar até o limite a antiga questão que hoje é ditado popular: será que a arte imita a vida? Ou a arte só daria conta de imitar a própria arte? O que está em

179

FOUCAULT. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres, p.16.

147

148 jogo nessa pequena questão é justamente o limiar de representabilidade/irrepresentabilidade do real da vida, do que da vida convoca o irrepresentável. Parece haver uma ínfima lacuna, tão ínfima quanto intransponível, entre uma obra de arte, seja um filme, poema, conto, desenho ou fotografia e, por exemplo, a experiência de nascer, ou mesmo, a de ver alguém nascendo; entre a representação da morte e o morrer. Algo como a distância entre os escritos e as imagens sobre a guerra e do ter de fato adentrado os campos de batalha, de ter combatido. Por maior que seja o poder de comoção de uma imagem ou escrito, por mais que toque o coração, que arranque lágrimas e suspiros, que provoque nós na garganta, ou que desencadeie reflexões, parece impossível transpor a ínfima lacuna que separa as representações da vida ou do real, de sua experiência. Mas, e quanto ao enlouquecer? Será que uma simples analogia daria conta da questão? Será que as aproximações possibilitadas pela arte dariam conta da experiência real da loucura? Seria possível, por exemplo, através da arte, entrar e sair da loucura, do mesmo modo como se entra e sai de uma crise? O enlouquecer, na língua portuguesa, permite uma pequena injunção, que, ao menos nesse universo semântico, poderia levar a crer que comporta algum grau de flexibilidade, e até mesmo de reversibilidade, ou, quem sabe, de “tratabilidade”: a língua não permite a reversibilidade do viver em desviver, ou do morrer em desmorrer; por outro lado, soaria menos estranho, ainda que em um arroubo poético, enlouquecer e desenlouquecer. Talvez os limiares da loucura não sejam tão inflexíveis como aqueles da vida e da morte, ainda que o trajeto feito, nesta dissertação, conduza de fato à afirmação dessa ínfima, mas intransponível lacuna, entre a representação e o real, guardadas as devidas proporções, quer se aplique ao campo da vida, da morte, ou da loucura.

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149 É justamente a presença dessa lacuna e o modo como cada um se apropria dela que vai incidir, e mesmo determinar, para Lacan, e talvez também para o Foucault dos anos 6166, o estatuto trágico da experiência não só da loucura, como da própria existência. Não se quer negar com isso o que já foi afirmado anteriormente sobre o valor terapêutico e de elaboração que a construção do objeto de arte possa ter, como recurso de linguagem e à linguagem, no tratamento dos excessos e desmedidas, assim como das lacunas simbólicas próprias à loucura, mesmo aquelas inscritas sob a égide das psicoses. Por fim, ainda que Foucault lance mão, em O cuidado de si, dos antigos e da filosofia helenística, sob os auspícios da idéia de elaborar a vida como uma obra de arte, esse recurso parece ocupar aí o lugar de um ideal que talvez ele desejasse naquele momento de sua existência, mais que tudo, ter realizado: bom seria se possível fosse, ao modo das proposições de Sêneca, Plutarco, Epicteto, Epicuro, Diógenes Laercius, Cícero e Marco Aurélio, proceder a uma prática de si que se revelasse perfeito cuidado e domínio de si, técnicas capazes de expulsar tudo o que é do campo do excesso, da desmedida e da falta, que perturbam a perfeita harmonia do homem consigo mesmo e com o mundo. Em sua vida, entretanto, assim como no modo como põe em questão o problema da loucura como patologia, ou da beleza que poderia ter a loucura tomada como pura abstração, da loucura de pura poesia do gênio do artista, Foucault dá indícios para afirmar que sim, que vai, em seu percurso, dolorosamente mais além do Belo, do perfeito, do previsível, do sistematizável, do calculável, do provável, do totalizável. Talvez na sua obra, através do seu estilo, de sua capacidade de ser, de tempos em tempos, outro para si mesmo, e de traduzir essa experiência através de sua obra, ele tenha

149

150 conseguido realizar o que certa vez dissera aos estudantes americanos180, que gostaria de escrever livros-bomba que fossem úteis apenas no momento em que estivessem sendo lidos ou escritos, para, então, desaparecerem logo em seguida.

4.5. Uma alternativa à estetização da experiência trágica da loucura: o fora-da-lei lacaniano e a transgressão foucaulteana A psicose, vista como loucura pelo senso comum, define-se, no ensino de Lacan, como um ponto de exceção à regra fálica, que, enquanto tal, se sustenta a partir da linguagem. Na psicose, a lógica fálica, assim como o exercício de proporção que ela possibilita ao campo dos afetos e dos gozos, falha na tentativa de organizar a existência do sujeito. É por isso que o louco sofre toda sorte de invasões provenientes de elementos do mundo que lhe cerca: vozes que o ordenam coisas absurdas e sem sentido, olhares que o perseguem, objetos pontiagudos que cortam e perfuram o corpo etc. É isso também o que faz com que a psicose (e o mundo do psicótico) se apresente para a suposta normalidade como fora-da-lei. Em relação a que lei a loucura se apresentaria como estando do lado de fora, como exceção? À lei fálica, à lei moral organizadora das relações humanas e sociais. Também a uma lei que se apresente como universal, válida para todos. O louco encarna, portanto, esse ponto de exceção à regra fálica, ao universo simbólico, ao mundo do sentido. É justamente nesse ponto que a transgressão foucaulteana parece confluir com o fora-da-lei lacaniano. Para Lacan, o fora-da-lei da loucura se apresenta como um ponto de

180

FOUCAULT. Dialogue sur le pouvoir, p.476.

150

151 exceção à regra fálica. Isso é colocado de uma maneira tão radical, que é esse ponto de exceção o que confirma a regra. Para Foucault, em confluência com a hipótese lacaniana, e tal como foi observado no Capítulo 3 desta dissertação, a transgressão é concebida como um ponto de impossibilidade, como uma experiência que leva o limite ao extremo, que força e mesmo que rompe com as leis do universo simbólico, do mundo do sentido. Por outro lado, enquanto, para Foucault, a exceção e o fora-da-lei designados pela experiência de transgressão aparecem colocados como um problema universal, para Lacan, esta se particulariza através da experiência de cada um. Parece que é nesse momento, localizado na obra foucaulteana posteriormente à escrita da História da loucura, concluída em 1960, e anterior à Arqueologia do saber, de 1969, que se poderia atribuir à loucura o estatuto de uma experiência trágica. É também nesse momento de sua trajetória que ele trava, no que se refere ao problema da loucura, um diálogo profícuo com a psicanálise. O trágico da loucura, todavia, não parece apresentar-se, tal como fora interrogado no segundo capítulo desta dissertação, como um invariante ao longo de toda a trajetória foucaulteana. Antes mesmo das suas produções dos anos 70, e talvez a partir de 68, ano que, em função dos acontecimentos políticos na França e do total engajamento de Foucault, marcou profundamente seu percurso filosófico, a matriz trágica parece ir perdendo gradualmente sua força já em sua genealogia, até dar lugar, através da hermenêutica do sujeito, das práticas de si e de uma cultura de si, a uma solução estética: a uma Estética da Existência.

151

152 A problemática trágica se apresenta, sim, com inegável clareza e de forma contundente, nesse intervalo em que a loucura é entendida, em confluência com a psicanálise de Jacques Lacan, como esse confronto com os limites do universo simbólico, esse forçamento em direção à transgressão da lei fálica, ao campo do sentido, e dos efeitos desse forçamento no campo dos afetos, causa de paixões, excessos e demedida. É, portanto, o encontro com os limites do universo simbólico que, de acordo com Vernant, está colocado para o homem como um problema desde os gregos, através da queda do herói na armadilha da palavra, de sua opacidade e incomunicabilidade, percorridos ao longo do primeiro capítulo desta dissertação, o que caracterizaria plenamente o estatuto trágico da experiência da loucura tal como ela é concebida por Foucault e pela psicanálise de Jacques Lacan. O trágico apresenta-se também mais além do problema da loucura, na forma do enigma, da ambigüidade, do dilaceramento, do problema sem solução, que consiste na impossibilidade de o universo simbólico, o campo do sentido, abarcar todo o campo da experiência humana.

4.6. Um outro caminho: o trágico como problema histórico As preocupações de Foucault enquanto filósofo e pensador da cultura, e mesmo aquelas de Freud e de Lacan, acabam por conduzir, através do legado de suas obras, a outros campos de investigação além da esfera particular de cada caso. As aproximações entre o trágico e a loucura se fazem notar, no mundo contemporâneo, cada vez mais explicitamente, através de sua atuação, não mais nos palcos, ou na cena familiar, mas na cena pública.

152

153 Ivan Domingues propõe, em O fio e a trama181, uma instigante reflexão sobre essa questão. O problema trágico apresentar-se-ia, em sua dimensão histórica, através do problema paradoxal, da contradição fundamental e irreconciliável entre a liberdade e a necessidade:

Por um lado, a afirmação, numa escala jamais vista, da liberdade, ao longo de toda a modernidade, época em que a história cindese com a natureza, depois de ter-se separado da divindade... Por outro, a afirmação idêntica e também numa escala jamais vista de uma necessidade cega a governar o curso da história, qual o destino antigo, quando as forças históricas nascidas do livre comércio dos homens ganham autonomia, se voltam contra eles e os levam de roldão, espalhando por toda parte a dor, a morte e o sofrimento.182

De acordo com Domingues, a afirmação da liberdade, que, no mundo contemporâneo, se faz notar através da realização da semente prometeica plantada por Descartes e Bacon, arautos do ideal de dominação da natureza através da técnica, levou a uma profunda subversão dos valores, atividades e mentalidades, em uma extensão capaz de virar o planeta ao avesso. Como marcos históricos dessa afirmação ilimitada e irrestrita da liberdade, ele cita a reforma protestante, o ideal iluminista, a expansão do capitalismo, a revolução francesa.

181

Consultar, a esse propósito, DOMINGUES. O fio e a trama, p.95-168.

153

154 Há, por outro lado, os autores que chamam a atenção para a presença de uma necessidade cega a governar a história, invocando uma potência do destino para explicar as catástrofes que de tempos em tempos avassala o mundo humano. Domingues inclui nesse grupo autores e homens públicos, como Marx, que denuncia no capitalismo um modo de produção em que o trabalho morto se sobrepõe ao vivo; Nietzsche, que percebe a existência como uma luta sem fim entre o indivíduo e o Estado; Freud, que, em O Mal-Estar na Cultura, se contrapõe ao prometeísmo moderno, advertindo sobre a impossibilidade de o homem domesticar totalmente as forças da natureza e do psiquismo; Napoleão, através de sua afirmação de que a política é a verdadeira tragédia moderna; ou ainda Aragon, que, ao se referir à tragédia moderna, alude ao destino como um grande volante incontrolável, que gira às cegas. Cabe evocar, ainda, os enlouquecimentos coletivos gerados por uma espécie de loucura da razão. É como se um determinado tipo de razão, razão autocentrada e autoreferente, ou ainda um ideal levados coletivamente ao seu extremo produzissem o avesso da razão, um certo tipo de insanidade, de loucura. Como exemplos desse fenômeno na história, pode-se apontar o nazismo, ou, ainda, os diversos tipos de fundamentalismo religioso. Domingues se propõe a pensar esse aspecto do problema trágico como problema histórico, através do caminho percorrido, ao longo da história da filosofia, pelos estóicos, por Santo Agostinho, Espinosa, Hegel, Kant, Marx. Esses pensadores, cada um ao seu modo, ainda que tenham acabado por sacrificar um pólo em detrimento de outro, tentaram pensar a liberdade no horizonte da necessidade e vice-versa. Domingues propõe não só que

182

DOMINGUES. O fio e a trama, p.163.

154

155 a necessidade seja colocada no horizonte da liberdade, mas também que se inclua nessa série a contingência:

Como o nexo da necessidade e da contingência, também o vínculo entre a liberdade e a necessidade se instauraria por deriva, e seria da ordem dos fatos... Um nexo que não tem nada de inelutável ou de inexorável, é verdade, mas que, não obstante, é dotado de um poder estruturador capaz de inscrever uma nova ordem e um novo mundo no real — a ordem da história e o mundo da cultura — o qual só será desfeito no dia em que não houver mais homens e a aventura da existência tiver chegado ao fim. Nesta ocasião o destino, desta feita completamente dissociado da liberdade, deverá recolher-se por completo na natureza, onde terminará por desaparecer, sem ter mais sobre quem exercer seu poder absoluto de vida e de morte.183

CONCLUSÃO

155

156 Partindo de uma reflexão sobre a experiência trágica e de possíveis articulações com a experiência da loucura, esta dissertação levou a interrogar, em última instância, sobre a relevância da manutenção do trágico como perspectiva para pensar e lidar com os problemas da existência individual e coletiva, do drama humano, em que a loucura aparece, mais ou menos explicitamente, como um problema-limite, na medida em que convoca a experiência dos problemas sem resposta e a razão em sua insuficiência. Experiência-limite tanto no que dela se apresenta como incurável, quanto intratável. Seria a loucura uma doença? Ou um sobressair-se da desrazão sobre o que se apresentaria, a cada dobra dos tempos, como razoável? Ou, ainda, a falta de mediação simbólica convocada por um problema sem solução, ou para uma situação vivida para a qual falta toda e qualquer palavra, que retornaria no real sob a forma de um certo enlouquecimento? Durante muitos séculos, e, ainda que em escala infinitamente menor, hoje, tratar “a doença da loucura” implica matar o doente. Melhor dizendo, tratar a loucura como doença implica o aniquilamento do sujeito. Trata-se a loucura ao preço de uma morte subjetiva, através dos dispositivos do confinamento, da sedação, da perda do direito à cidadania. A psicanálise, de sua parte, enfatiza o que da loucura se apresenta como uma experiência singular, considerando todo o sofrimento que esse modo de vida comporta, propondo uma solução ética como tratamento: aprender a lidar com ela, com isso que nela se apresenta como intratável. É justamente a partir de uma falência da linguagem da razão, em sua confluência com as margens da loucura, que se é convidado por Foucault e pela psicanálise a conceber a loucura como um mais além de uma experiência estética.

183

DOMINGUES. O fio e a trama, p.167, 168.

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157 Ao se caminhar em direção a um campo que muitas vezes extrapola a experiência de cada um, depara-se com um ponto em que se encontram loucura e razão; com a loucura da razão. Nesse limiar, o excesso de razão recairia sobre o campo da loucura, assim como momentos de extrema lucidez poderiam conduzir a um enlouquecimento, à perda dos limites da razão. No primeiro caso, tem-se o exemplo do nazismo, que, em nome da razão, da pureza de uma raça, produziu a loucura de um dos movimentos mais sangrentos, segregacionistas e atrozes de que já se teve notícia. No segundo, o efeito que podem produzir os confrontos acidentais e inesperados com a morte. Quando a guerra, a política ou a morte são citadas como possíveis exemplos da experiência trágica, o são não pela tristeza dos fatos, mas por serem campos que colocam problemas extremos e sem solução, que se interpõem na vida de uma pessoa e, mesmo, no destino de milhares delas, de uma civilização inteira. Seguindo os rastros apontados por Foucault, poder-se-ia concluir que o problema da razão e da desrazão se constituiria como um problema trágico por excelência. É mesmo essa a questão filosófica que inaugura, para Foucault, a problemática da loucura, anterior ao advento da ciência e da patologização da mesma. À medida que esta investigação caminha, percebe-se o quanto esse problema, por mais antigo que seja, se mostra atual, através dos paradoxos colocados pela cena contemporânea, em que o trágico sai do palco teatral e se apresenta, com toda a sua contundência, nas cenas da vida: na cena familiar, em que os filhos matam os pais, e isso é tratado com uma certa banalidade pela mídia; nos paradoxos da economia mundial, em que se tem, de um lado da cena, a opulência e o capricho da técnica, e do outro, a miséria e a fome; nos paradoxos gerados pela ciência a serviço da vida: no mesmo momento em que a

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158 biologia surge como a grande solução para os problemas da vida humana, através da manipulação genética, da clonagem de animais e de seres humanos, da produção de alimentos transgênicos, do diagnóstico precoce, das pesquisas da cura de doenças degenerativas a partir de células de embriões humanos, do boom dos medicamentos, a Organização Mundial de Saúde faz um alerta à população mundial — com status de uma epidemia, a depressão será o Mal do século XXI, antecipando também que ela será a segunda causa de incapacidade e de redução na expectativa de vida. A transformação dos conflitos étnicos, ideológicos e religiosos do mundo contemporâneo em guerras sangrentas parece estar intimamente relacionada com a perda da dimensão conflitual e paradoxal dos problemas da existência humana. Ao invés de o conflito e o paradoxo serem considerados como parte da vida, são percebidos como uma ameaça ao bem-estar. Nossa idéia é que o trágico se aproxima da loucura, tocando-a até, sempre e toda vez que a cena trágica deixa os palcos e adentra a cena pública, seja ela familiar, política ou econômica. A inspiração prometeica, enquanto matriz da produção e da aplicação indiscriminada e impensada dos produtos da ciência e da técnica, parece tender a uma redução, que pode beirar, em algumas comunidades, à rejeição do simbólico, da linguagem e do sujeito, através da objetificação extrema da vida e do vivente. É justamente essa tendência, seja ela realizada individual ou coletivamente, uma das variáveis produtoras de um certo enlouquecimento, não no sentido patologizante do termo, mas no ponto em que ela produziria uma forclusão, em um primeiro momento, do campo da linguagem e da representação, e então do sujeito em sua divisão, e por fim da própria categoria do dilema e do paradoxo na cultura.

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159 Como já havia advertido Freud, e, depois dele, Lacan, aquilo que é recalcado, rejeitado, forcluído do simbólico, retorna no real. Poder-se-ia mesmo acrescentar, levando em consideração o cenário sociopolítico contemporâneo, catastroficamente. A cena sai do palco, do campo da linguagem, e aparece com toda violência no campo da vida. O recalque do problema, o fazer-de-conta que ele não existe, a tentativa de denegálo a todo custo, ou mesmo a tentativa de extirpá-lo em nome dos milagres da ciência e da técnica, não parece, portanto, uma boa maneira de lidar com ele. Manter o trágico como perspectiva significa, pois, manter a dignidade daquilo que há de desrazão no coração da razão, de seus limites, daquilo que se apresenta como sem solução e que exige decisão, assunção de uma responsabilidade e a humildade necessária ao reconhecimento da unilateralidade de todo e qualquer ponto de vista, daquilo que se apresenta com toda a força de um problema ético dos mais complexos, daquilo para o qual não há o absolutamente certo ou o absolutamente e de uma vez por todas errado, daquilo para o qual não se pode atribuir um único sentido, ou daquilo para o qual não há palavras.

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