A exposição do implícito nas representações sociais

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A exposição do implícito nas representações sociais Tarso B. Mazzotti - Universidade Estácio de Sá, PPG Educação, Rio de Janeiro, RJ.

VI SERS e I SIERS Salvador, 2016 - Mesa Redonda: Ancoragem e metáforas da prática cotidiana, dia 7/10/2016.

Resumo A palavra socialmente situada, como é o caso da representação social, se ancora ou se sustenta em implícitos, os quais dificilmente podem ser identificados pelas técnicas estatísticas da frequência de palavras. No entanto, os implícitos podem ser identificados quando se considera as figuras de pensamento, como a metáfora e a metonímia, bem como os enganos argumentativos ou falácias, em uso em situações polêmicas. A identificação dos implícitos é realizada por meio de técnicas da retórica e da lógica, que aqui são expostas por meio de algumas análises realizadas pelo autor. O controle da pertinência das análises decorre tanto do domínio das técnicas analíticas quanto pelo reconhecimento da representação exposta na análise por seus defensores e opositores.

Os pesquisadores que têm por horizonte conceitual a teoria das representações sociais deparam com um problema-chave: o implícito. Esses pesquisadores buscam expor o implícito por meio das mais diversas técnicas, mas resta a sensação de que não se logrou mostrar a ancoragem ou sustentação das representações sociais. Essa frustração pode ser ilustrada, de maneira muito sumária, pelos debates acerca de uma das pesquisas conduzida pela Profa. Alda Judith AlvesMazzotti (1996; 1997), na qual foram entrevistados educadores sociais, pais e seus filhos adolescentes, seguranças de edifícios e policiais para identificar a representação social de “meninos de rua”. A técnica de pesquisa foi precisa, as informações valiosas, mas não se lograva encontrar o significado de “meninos de rua” compartilhado pelos grupos antagônicos. Sabe-se que o antagonismo requer o reconhecimento de algum significado compartilhado, por isso era preciso responder seguinte pergunta: em que se sustenta ou ancora a oposição entre o grupo “educadores sociais” e o grupo “pais, seus filhos, seguranças e policiais”? A resposta decorreu da identificação da metáfora que sustenta os argumentos dos dois grupos: os meninos de rua são como reis da rua. Para os educadores sociais os “meninos de rua” são reis legítimos, enquanto para os demais são “falsos reis”. O que se encontrava em disputa? A rua, o espaço público, o direito de circulação das pessoas, o território social (Mazzotti, 2002). De fato, as figuras de pensamento, especialmente as metáforas e metonímias, coordenam e VI SERS E I SIERS 2016 MESA REDONDA

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condensam significados, que permanecem implícitas nos discursos tal como ocorre com as fábulas e outras narrativas, mas nem são identificáveis pelas técnicas estatísticas nem por meio de mineração de dados. Consideremos a fábula “A cigarra e a formiga” cujo objetivo explícito é afirmar que a previdência e a poupança permitem viver muito bem no inverno da vida: a velhice. Qual é o seu foro da comparação? O modo de vida humano transposto aos dois insetos, portanto uma metáfora, que retorna ao humano para dizer o preferível ou os valores socialmente sustentados. A identificação do foro da comparação expõe a noção de ‘trabalho’, do qual se exclui as artes não produtoras de bens materiais, o que é próprio de uma época de escassez generalizada na qual a fábula nasceu: o século VI a. C. Por isso, em outro momento, alguém pode alterar fábula da seguinte maneira: no inverno a cigarra foi pedir asilo à formiga, esta abriu as suas portas dizendo: “Claro que pode ficar comigo, pois o seu canto nos alegrou durante o árduo trabalho”. O canto, agora, é reconhecido como trabalho produtivo. A dissociação entre o trabalho que produz bens materiais e o que produz bens espirituais dissolve-se, há apenas ‘trabalho’. Mas essa dissociação de ‘trabalho’ não existe em muitas culturas em que o canto é parte das atividades produtivas, nessas sociedades a fábula “A cigarra e a formiga” não é funcional, pois o implícito não é reconhecível: o canto como atividade improdutiva. Em outro registro a dissociação da noção de ‘trabalho’ tem por foro a vagabundagem, operando slogan o “quem não trabalha não merece comer”, uma das bandeiras dos movimentos dos trabalhadores do século XIX e começos do XX. Esta linha de argumentação ou tópica foi operada por Karl Marx quando caracterizou o proletariado moderno em oposição ao romano. Marx afirma que proletariado romano foi constituído por “homens livres destituídos de tudo, salvo da sua força de trabalho” porém “não se tornaram trabalhadores assalariados, mas vagabundos preguiçosos os mais abjeto do que os que vieram a ser os poor whites dos países meridionais dos Estados Unidos” (Marx, 1968, p. 1.555). Por que abjeto? Por viveram de “pão e circo”, das esmolas do Estado, dos roubos e prostituição. Não é preciso muito para identificar a cigarra como símbolo com dessa classe social, o lumpemproletariado. As fábulas e outras formas literárias são perfeitamente apreendidas pelos auditórios para os quais foram produzidas e instituem o simbólico, o qual parece ocultar os significados.

O simbólico não oculta, revela. O simbólico não é a expressão do oculto que eventualmente seria desvelado pela hermenêutica. O simbólico é perfeitamente compreensível pelos que o sustenta, ainda que obscuro aos demais. A fábula “A cigarra e a formiga” pode ser objeto de múltiplas interpretações, mas todas têm por referente o que se diz do

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modo de vida humano. Mais amplamente, o figurativo não é um procedimento aquém ou além do humano, algo misterioso, ao contrário, é próprio da comunicação, da negociação das diferenças que permitem a vida em comum. Como o objetivo deste escrito é indicar alguns meios para apreender o figurativo ou os esquemas de pensamento que coordenam e condensam discursos para identificar as representações sociais, que são coordenadas pelo “para que serve” (Moscovici, 2004, p. 69), então sumario o gênero retórico epidítico, no qual o orador afirma e reafirma desejável e que é anterior aos demais gêneros da retórica (Kennedy, 1998, p. 20-27). O gênero epidítico recorre ao fundo comum dos argumentos centrados no desejável ou nos valores para reafirmar a unidade social. Neste gênero o discurso flui por meio de provérbios, fábulas, narrativas ou histórias que recordam o heroico, o monstruoso, o valioso ou não para o grupo, classe, cultura. Entranhase nos demais gêneros retóricos de tal maneira que muitas vezes se decide acerca das ações sem que seja necessário explicitar o que se considera preferível. Se o desejável é viver do trabalho, então as decisões que conduzam ao estado de dependência econômica só podem ser admitidas como transitórias, o que se apreenda nas múltiplas interpretações da fábula “A cigarra e a formiga”. Na situação em que se louva e censura condutas, no epidítico, o auditório aprecia o discurso por reafirmar o valioso para ele. Os livros de autoajuda, por exemplo, inscrevem-se no gênero epidítico, logo não há razões para os analisar como uma exposição de algum conhecimento filosófico, por exemplo, nem mesmo acusar seus autores de serem plagiários. Por isso, para apreender os procedimentos utilizados pelos atores sociais é preciso ter algum conhecimento da situação de enunciação e recepção, pois não há orador/autor sem um auditório que o sustente, o qual reconhece o seu orador e os seus adversários. Ao identificar os oradores apoiados por um auditório se apreende o que este considera correto, verossímil, adequado, não sendo necessário investigar o que cada membro diz acerca do assunto em debate. Geralmente as variações são ajustes que não afetam o seu núcleo argumentativo, mas fornecem os argumentos que expressam as atitudes dos oradores e de seus auditórios. Na fábula “A cigarra e a formiga” os seus múltiplos significados têm o mesmo referente: o trabalho humano e as suas variações expressam tomadas de posição vinculadas ao que se considera desejável. Para uns o desejável é a obediência estrita às regras como “quem não trabalha, não come”; para outros, é preciso cuidar, ser misericordioso para com os que não tendo trabalhado forneceram o prazer e a alegria; outros, ainda, afirmam que a misericórdia é necessária nos casos em que a situação impede o trabalho. A adesão a esta ou aquela narrativa permite identificar o preferível para os auditórios ou os seus valores, por isso o auditório pode ser descrito pelo orador que ele sustenta segundas as variações do núcleo argumentativo. Como o orador fala contra outros, então o caminho mais seguro procura verificar os de seus adversários; afinal os

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adversários sabem por que não apoiam tais ou quais argumentos e suas variações.

Identificando figuras ou esquemas argumentativos. Se os atores sociais falam uns contra os outros, então é preciso identificar os seus opositores. Este procedimento é necessário tanto para mais bem apreender os argumentos centrais das partes da disputa quanto para explicitar os significados das figuras ou esquemas mobilizados pelos oradores e admitidos por seus auditores. Ilustrarei este procedimento retomando uma análise que fiz das disputas a respeito de uma política no âmbito da educação escolar (Mazzotti, 2002). Em 1998 a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação (ANPEd) se opôs ao Decreto-lei 2.208/97 afirmando que este desconsidera “o fato de que um currículo integrado, composto organizadamente de conteúdos gerais e técnicos seria mais adequado à formação de um trabalhador com a flexibilidade necessária para o enfrentamento do novo mundo produtivo” (ANPEd, 1988, p. 24). Os representantes da Associação argumentavam contra “currículo fragmentado” instituído pelo Decreto-lei 2.208/97, o qual estabelecera a certificação das aprendizagens técnicas. Não importa, aqui, expor o debate por inteiro, pois apenas pretendo indicar o esquema argumentativo que coordena e condensa os significados de ambas posições. Pelo lado do governo da época a escolarização técnica pode ser realizada em qualquer instituição devidamente credenciada, não necessariamente as escolares, ou exames de certificação. Para eles a escola não é um endereço, para utilizar uma metáfora produzida por Valnir Chagas nos anos 1970 em seus pareceres a respeito do ensino supletivo. A ANPEd afirmava o inverso: apenas um currículo orgânico, integrado, realizável em escolas pode ser admitido. De um lado, a metáfora de a escola ser como um organismo; de outro, o esquema de módulos de certificação realizados segundo as necessidades e interesses dos estudantes em lugares certificados e, mesmo, sem esta condicionante e verifável por meio de exames de certificação. O documento da ANPEd é esclarecedor ao dizer que o Decreto-lei 2.208/97 espera que “ (…) através de conteúdos dispersos, ministrados em diferentes estabelecimentos, que o aluno, individualmente, efetue a desejada integração [dos conteúdos gerais e técnicos]”, o que significa “confiar uma tarefa de alta complexidade pedagógica apenas a uma dinâmica espontânea e altamente imprevisível do aprendiz” (ANPEd, 1998, p. 24; eu grifei). Pelo que nega se apreende o que afirma: apenas a escola organizada e em um lugar (endereço) permite que o aprendiz alcance o desejável. A metáfora que condensa e organiza o discurso da ANPEd em oposição ao do Decreto-lei 2.208/97 é a de percurso escolar determinado e determinável; enquanto o De-

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creto opera a metonímia piquenique, em que a qualificação emerge das relações de aprendizagem. Disse que o discurso da ANPEd se organiza em torno de uma metáfora, enquanto o do Decreto-lei em torno de uma metonímia: piquenique. Piquenique é uma relação social relativamente improvisada cujo resultado, no geral, é razoável; o que o documento da ANPEd expressa ao dizer que o Decreto-lei 2.208/97 institui uma “dinâmica espontânea e altamente imprevisível do aprendiz”. Qual a relevância desta distinção? O foro da comparação condiciona os significados transferidos. Se o foro da comparação é de gênero ou espécie diverso do tema, como a noção de “orgânico” utilizado pelos autores do documento da ANPEd, então o tema é tratado como se fosse um animal ou uma planta. Na ilustração que venho utilizando, a “escolarização” é afirmada como um “sistema orgânico/organizado” como se fosse um “ser vivo”, que mantém um equilíbrio estático/saudável caso apresente as qualidades instituídas pelo autor/ orador; as situações não previstas são consideradas similares às enfermidades. Não é preciso, aqui, prosseguir o exame dessa metáfora, uma vez que os seus significados são facilmente identificáveis. De outro lado, caso se trate de uma metonímia, então se procura descrever as características de uma relação. A metonímia piquenique se refere às situações humanas em que o resultado emerge das relações, portanto não podem ser perfeitamente preditas, apenas se pode estabelecer objetivos relativamente explícitos. Neste caso a regulação pelas metas implica constantes reajustes, adotando a atitude pragmática; enquanto a posição determinista adota a atitude lógica, o que será exposto a seguir. Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, § 47) apresentam três tipos de atitudes ou tomadas de posição diante de uma incompatibilidade: a lógica, a pragmática e a diplomática. A atitude lógica se caracteriza por procurar resolver todos os problemas de antemão; a pragmática, pelo ajuste das condutas às circunstâncias; a diplomática, por evitar uma tomada de posição esperando que as coisas se resolvam por si. Por exemplo, tomada de posição organizada em torno da metáfora percurso escolar determinado e determinável expressa a atitude lógica; a atitude pragmática contenta-se em estabelecer os procedimentos no decorrer das ações, as quais são postas segundo seus objetivos, por isso os autores operam com base a metonímia que denominei piquenique. A atitude diplomática, ainda no âmbito escolar, aparece quando surge uma reforma que os professores não consideram adequada ou própria e adiam ao máximo a sua execução, esperando que não seja implementada ou se esgote por qualquer alguma razão. Essas atitudes procuram resolver uma incompatibilidade entre o que se diz ser característico de uma situação e o que de fato ocorre; certamente essas atitudes são incompatíveis entre si. A primeira aparece como teórica, a qual é censurada quando se diz que “na prática a teoria é outra”; a atitude pragmática é pejorativamente tratada como empírica ou sem sustentação conceitual pelos defendem posições sustentadas na atitude lógica; enquanto a diplomática é considerada negativamente, mas admissível em certas circunstâncias (veja os exemplos em VI SERS E I SIERS 2016 MESA REDONDA

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Perelman e Olbrechts-Tyteca, 1996, § 47). A análise retórica busca saber quais são as razões que os atores sociais têm para censurarem os que apresentam qualquer uma dessas atitudes para expor os argumentos que procuram instituir o que se diz ser real e o desejável. Em suma, a identificação das figuras de pensamento metáfora e metonímia permite apreender as tomadas de posições quando apreendemos o foro da comparação que as institui, bem como explicitar as razões das disputas sem fim ou litígios. Isto porque as atitudes dos atores sociais sustentam as escolhas das figuras de pensamento, as quais são ao mesmo tempo a fonte dos argumentos acerca do real e a expressão das atitudes dos membros de um grupo social. A seguir exponho o caráter da metáfora e da metonímia na categorização e classificação das coisas do mundo, mostrando que são opostas e complementares.

Metáfora e metonímia, esquemas elementares da categorização e classificação das coisas do mundo. Não parece preciso muito para afirmar que o recurso ao metafórico é um momento do processo de apreensão de algo pouco conhecido ou para modificar os significados do conhecido. O tema, o que se quer significar ou resinificar, é comparado com um foro diverso em gênero ou espécie para transportar os significados do foro para o tema. A escolha do foro e os significados transferidos mostra o que se deseja instituir por meio do discurso. Por exemplo, a metáfora “mão invisível” tanto pode ter por foro a Providência Divina quanto o mercado de bens. Neste último caso, se diz que as trocas realizadas sem qualquer regulação além da confiança entre vendedores e compradores produz o mercado. Será que “a mão invisível do mercado” é uma metáfora? Não parece, uma vez que é uma expressão figurativa que procura expor e explicar as relações sociais de compra e venda regulada pela confiança. A “mão invisível” é metafórica, mas a comparação tem por foro as relações sociais não reguladas por alguma ação externa, por isso é uma metonímia. Neste caso há uma metonímia embutida na metáfora “mão invisível”, as relações sociais autorreguladas, tal como na metonímia piquenique, das quais emergem uma ordem não inteiramente previsível. Pode-se afirmar que a metáfora e a metonímia opõem-se e se complementam. Nas palavras de Patrick Tort (1989, p. 12): A relação metonímia/metáfora não é de simples relação de oposição ou de diferença externa. Cada um destes esquemas encerra em si o seu oposto como componente ou ligação interna. Assim, há “metonímico” em toda metáfora e “metafórico” em toda metonímia. O predomínio de um ou outro esquema em um discurso permite apreender o tipo de classificação ou categorização das coisas instituída pelo autor do discurVI SERS E I SIERS 2016 MESA REDONDA

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so. Predomínio, mas não exclusividade, ainda que haja discurso exclusivamente metafórico ou metonímico. Cabe ao analista verificar se é assim e apreender as razões ou da exclusividade ou do predomínio na palavra socialmente situada. O discurso acerca da escolarização sustentado na metonímia piquenique é mais descritivo do que o metafórico, pois opera uma comparação entre o trabalho intelectual e material requerendo que se o replique, em escala, na situação escolar, como propõe o escolanovismo. Ainda assim esta metonímia pode estar inscrita em uma filosofia da história, em que se afirma certa sucessão de estágios culturais pelos quais as crianças devem passar, como se encontra nas teorias da recapitulação. Egan (2002) faz um balanço dessas teorias para apresentar a sua, a qual ele procura sustentar na de Vygotsky e Lúria, para organizar o currículo escolar por meio dos instrumentos intelectuais constituídos ao longo da história. Essa proposta se sustenta em uma narrativa acerca do desenvolvimento cultural, selecionando os elementos considerados os mais valiosos para a formação da pessoa, que se sustenta na metáfora ‘seta do tempo’ cuja culminância é o atual conjunto dos instrumentos para o pensamento. Egan combina a metáfora percurso cultural, em que se teria constituído os ‘instrumentos intelectuais’ e a imitação desses instrumentos pelo educando em conformidade com o seu estádio psicológico, o qual seria similar aos passos da cultura. Aqui não está em questão a pertinência da proposta de Egan, apenas a utilizo para ilustrar da tese de Tort (1989): há metonímia na metáfora e metáfora na metonímia nos processos de categorização das coisas do mundo. Uma das tarefas do analista é determinar o predomínio ou a exclusividade da metáfora ou da metonímia, bem como a coexistência instabilizadora de ambas em um discurso de categorização ou classificação. Recordo que categorizar é diferenciar as noções sem supor alguma hierarquia, a qual é própria da classificação. A classificação pode recorrer à dissociação de uma noção em dois termos, em que o primeiro é afirmado pelo que falta para ser o segundo que apresenta as qualidades consideradas completas e superiores; logo, a que permite dizer o que falta no primeiro. Além disso, caso se opere com uma metáfora que suponha algum percurso, então a dissociação pode propor etapas entre o termo 1 e o termo 2. A noção de passagem do termo 1 ao termo 2 geralmente tem por o foro “o desenvolvimento da pessoa”: passa-se da infância à vida adulta. Este esquema metafórico, objeto de controvérsias, encontra-se, por exemplo, em Hegel (ver Mazzotti, 2008, cap. 3), bem como entre os defensores do evolucionismo de Haeckhel (Gould, 1977). Em suma, a metáfora e a metonímia procuram responder a pergunta “o que é X?”, estabelecendo as suas qualidades ou predicados pelo transporte dos significados do foro ao tema. O foro escolhido determina as qualidades a serem afirmadas e excluídas, as quais podem ser dispostas em uma ordem hierárquica. Se hierárquica, então o orador recorre à dissociação do que é dito ser próprio do sujeito da frase, afirmando um conjunto de qualidades consideradas superiores,

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entre as quais pode haver etapas entre o termo 1 e o 2, que institui um percurso. A comparação entre noções de mesma espécie ou mesmo gênero tende a ser descritiva, afirmando o real por meio de relações similares ou conexas. Logo, tendem a aparecer como a explicação mais confiável. Não é este o ideal das ciências? Certamente, mas Max Black (1972), por exemplo, afirma que os modelos das ciências são metáforas. Em diversos momentos apoiei-me nessa interpretação, agora me parece que o modelo, tal como se apresenta nas ciências, é predominantemente metonímico, o qual é predominantemente descritivo. Afinal tanto a metáfora quanto a metonímia está no lugar da coisa categorizada ou classificada, o que pode ser mostrado por meio da análise das disputas no âmbito das ciências, o que não farei aqui por não ser pertinente ao tema. Como identificar as metáforas e metonímias? Nos manuais de gramática da linguística aprendemos que há marcadores linguageiros das metáforas e metonímias, o que será exposto a seguir para mostrar as suas limitações.

Marcadores linguageiros das figuras de pensamento. Os marcadores linguageiros das metáforas e metonímias são conhecidos, mas nem sempre estão explícitos nos discursos. Por certo os autores no documento da ANPEd não disseram que o currículo instituído pelo Decreto-lei 2.208/97 seria como um piquenique. Nesse discurso não há marcador linguageiro identificável, mas estão presentes oposições metafóricas como orgânico e inorgânico, disperso e concentrado, que são o inverso dos elementos da metáfora ‘percurso determinado’. Para o analista essas noções sustentam implícitos, por isso é preciso restaurar as figuras de pensamento envolvidas para apreender as razões das divergências. Pode-se dizer que os marcadores usuais das figuras de pensamento são limitados, mesmo assim é preciso os considerar. Os marcadores linguageiros das figuras de pensamento são expressões que as introduzem sob as formas “como se fosse”, “parece com”, “é semelhante a”, “pode-se dizer que se trata de”, “em outras palavras”, “dizendo de outra maneira” e assemelhadas. No entanto, há procedimentos discursivos que alteram os significados propostos em uma teoria para os assimilar e acomodar nas convicções de um grupo, constituindo um esquema diverso da sua fonte. Isto pode ser ilustrado pela assimilação da metáfora seleção natural produzida por Charles Darwin. Darwin comparou a seleção de animais e plantas realizada por agricultores e criadores de animais com o aparecimento de novas espécies em um habitat. Assim, a seleção natural é similar à produzida intencionalmente pelos homens, salvo por um aspecto: não é intencional. Porém na divulgação da teoria proposta por Darwin a seleção natural é apresentada como uma ação da natureza, ‘a natureza faz’, o que reintroduz a intencionalidade. Não se tem um marcador linguageiro para VI SERS E I SIERS 2016 MESA REDONDA

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apreender essa alteração. Por isso é preciso conhecer a forma argumentativa inicial para saber se houve uma mudança em seus significados. Pode-se, então, perguntar porque se introduziu essa alteração e, por essa via, apreender os esquemas argumentativos tanto do discurso de inicial quanto do modificado (ver, a respeito, Mazzotti, 2014). Se os marcadores linguageiros são insuficientes para identificar as figuras de pensamento, como o fazer? As ilustrações anteriores mostram que as figuras argumentativas são expostas pelos adversários em um debate, pois estes sabem porque não admitem os argumentos uns dos outros. Ao analista cabe identificar os discursos antagônicos explicitando os esquemas ou figuras que não são admitidas pelos envolvidos na polêmica. O principal obstáculo para esta análise é a adesão do analista a uma das posições fazendo com que a sua exposição se torne uma justificação de uma delas. Por isso é preciso que a análise seja regulada por um valor: a verdade. Não se trata de uma verdade para aquém ou além da nossa condição humana. É a verdade que decorre da verificabilidade do exposto. Para isto é preciso que os meios utilizados pelos analistas fiquem à disposição de quem queira rever o realizado para confirmar ou não o apresentado. Essa análise requer a exposição dos argumentos apreendidos por meio das habituais técnicas capituladas na lógica, as quais permitem identificar os erros argumentativos, bem como as da retórica, que permitem apreender as razões de um discurso ser persuasivo para certos auditórios. Em seguida mostrarei que os enganos lógicos ou falácias, quando identificados, também permitem expor o implícito no discurso.

Falácias, meios para apreender o implícito nos discursos. Os enganos argumentativos ou falácias se sustentam em argumentos implícitos, os quais o orador e o seu auditório consideram “dados”, ou seja, não discutíveis. Os enganos argumentativos ou lógicos, não os distingo aqui, permitem apreender o foro da comparação do modelo ou metáfora utilizada pelo orador. As ilustrações anteriores permitem mostrar o que acabo de dizer. Recordemos a censura da ANPEd à proposta do Decreto-lei 2.208/97. Mostrei que a Anped defendeu a sua posição se sustentando na metáfora percurso escolar determinado e determinável. Por certo uma metáfora não é uma falácia, ela apenas fornece os significados para as premissas, para os argumentos, estes sim podem ser falaciosos. Ao argumentar que só é possível uma educação escolar que siga passos determinados, sem saltos, pode ser considerada, por seus adversários, uma a falácia: petição de princípio ou raciocínio circular. Por quê? Por afirmar na conclusão o que se encontra na premissa maior: “a educação escolar é perfeitamente determinável e determinada”, que é a premissa maior desse argumento. Assume-se, por isso se trata de um implícito, que todos conVI SERS E I SIERS 2016 MESA REDONDA

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cordam com o afirmado; logo, não é preciso demonstrar, tal como se faz ao utilizar o silogismo retórico ou entimema. Certamente o silogismo retórico não é falacioso por si, tal como não o são as demais figuras do silogismo. Para o que interessa aqui, a admissão de uma petição de princípio viabiliza a identificação do implícito que autoriza a admissão de um raciocínio circular. O que caracteriza o silogismo retórico ou entimema? O entimema é um tipo de silogismo que se caracteriza por não estabelecer as causas ou as razoes do que enunciou na premissa maior. O exemplo clássico é: “se tem leite, então deu à luz”. Aqui “leite” é signo de ter dado à luz, mas não explica como o leite é produzido (Wolff, 1995). Certamente não é uma falácia, apenas não permite compreender as causas da lactação, o que pode ser determinado por outra técnica argumentativa, a dialética. Não cabe aqui explorar essa passagem do entimema ao demonstrativo para o que sugiro, por exemplo, a leitura de Wolff (1995) ou Mazzotti (2008 a; 2008 b; 2004). Como já foi dito, a petição de princípio e outras falácias podem ocorrer sob qualquer forma de silogismo e é um índice da presença de argumentos implícitos, os quais são denunciados por seus adversários. Na ilustração que venho utilizando, os propositores do Decreto-lei 2.208/97 simplesmente afirmaram as suas posições dizendo que os estudantes desenvolvem suas habilidades técnicas em qualquer situação em que as exercitem (o aprende-se a fazer, fazendo, que é o slogan dessa posição). Por isso, dizem, cabe ao Estado credenciar os técnicos por meio de exames não necessariamente vinculados a este ou aquele modo de aquisição dos conhecimentos. Eles teriam cometido a falácia petição de princípio? Para os seus adversários, sim. Mais uma vez, ao identificar a falácia petição de princípio apreende-se os a priori do orador e do auditório. Quais são os implícitos? A metáfora percurso escolar determinado, no discurso da ANPEd; a metonímia piquenique ou percursos escolares indeterminados, no caso do Decreto-lei 2.208/97. A petição de princípio não é um engano formal (Perelman e Olbrechts-Tyteca, § 28, 1996), como seria o caso de uma falácia que opere a figura modus tollens (modo de tirar), a qual me parece mais interessante, pois esse esquema é utilizado para eliminar hipóteses ou premissas menores (hipóteses) para ficar com a que mais bem explica o proposto na maior. Um exemplo usual permite apreender essa forma de indução: Premissa maior: quando chove o solo fica molhado; Premissa menor: o solo está molhado; Então, choveu. Não é preciso muito para saber que há algo de errado neste raciocínio, pois o solo pode estar molhado por outras razões. Ilustrarei a falácia do modus tollens pelo discurso acerca do aquecimento global produzido pelos homens (Mazzotti, 2013). O implícito é que os homens são capazes de alterar o clima da Terra e VI SERS E I SIERS 2016 MESA REDONDA

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não há outra hipótese. Os que apresentam outras hipóteses são descartados por epítetos tais como céticos, vendidos para as petroleiras etc., utilizando esquema argumentativo contra a pessoa para desqualificar os argumentos dos opositores. Porém os que não concordam que o dito aquecimento global seja produzido pelos homens não discordam da realidade das mudanças climáticas, uma vez que o clima muda sempre, mas quanto à sua direção — aquecimento ou arrefecimento — e, mais importante, não concordam com as causas, pois para eles a energia solar comanda o clima no planeta. Não cabe, aqui, explorar essa polêmica, mas ressaltar que as divergências expõem o foro da comparação. Os defensores do aquecimento global antrópico julgam que somente a atividade humana, fundamentalmente a capitalista, produz a mudança climática; logo, é preciso outro modo de produção. Por que o discurso do aquecimento global antrópico é uma falácia do modus tollens? Por desconsiderar outras hipóteses que também explicariam o eventual aquecimento global. No âmbito desse discurso não se pode admitir outras hipóteses, pois estas destruiriam a afirmação inicial e, o mais importante, o que os seus defensores desejam: a instituição de um modo de vida que eles consideram ideal e que se sustenta na metáfora de o planeta ser como um organismo vivo (Mazzotti, 1997). O engano argumentativo ou falácia decorre da desobediência da regra do modus tollens: eliminar as hipóteses concorrentes para reter a que mais bem explica o fenômeno. No caso em pauta, as premissas admitidas pelos defensores do aquecimento global produzido pelos homens se sustenta na metáfora orgânica predominante nesse discurso, o que explica a admissão de uma falácia pelos oradores e seus seguidores.

Sumariando. Para saber em que se sustenta ou ancora um argumento é preciso identificar a figura de pensamento que fornece os significados das suas premissas. Acrescentei que a partir dos enganos argumentativos se pode identificar as figuras de pensamento que fornecem os significados das proposições dos silogismos, ou seja, os implícitos admitidos pelos auditórios e os seus oradores. Como os argumentos são sempre contra outros, então é necessário identificar os opositores para mais bem apreender o que se diz acerca de algo. As figuras ou esquemas de pensamento que permitem estabelecer os significados de argumentos têm por operador a comparação. Compara-se o que se quer significar ou resinificar, o tema, com algo diverso ou não em gênero ou espécie, o foro da comparação. Caso a comparação tenha por foro algo diverso em gênero ou espécie, obtém-se uma metáfora; se a comparação se faz entre noções de mesmo gênero ou espécie, obtém-se a uma metonímia. Além destas duas figuras há outros procedimentos envolvidos no discurso que buscam dizer ‘o que é real’, como a dissociação de noções. A dissociação é ap-

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resentada pelo orador e admitida pelo auditório quando ambos compartilham os mesmos implícitos. Um exemplo usual é a dissociação da noção ‘pensamento’, em que se diz que o senso comum é inferior ao senso crítico, porque o primeiro é pré-lógico, por exemplo. Na análise é preciso considerar que as figuras que coordenam e condensam os discursos situados nem sempre são exclusivas, ou seja, ou metáfora ou metonímia, mas predominantes. Por isso é preciso identificar qual figura predomina, o que se faz pelo exame do papel da outra no âmbito do discurso, que é o implícito a ser exposto para completar a tarefa analítica. Nessa tarefa é necessário apreender o que os adversários dizem acerca dos argumentos postos em uma situação, pois eles expõem as razões que têm para não admitirem os argumentos de seus adversários, o que permite controlar a análise, verificar se ela expressa a verdade dos discursos examinados. Outro controle da veracidade da análise é exercido pelos leitores da exposição analítica que utilizem os mesmos instrumentos do analista. Sugiro que análises da palavra situada, como é o caso das representações sociais, recorram aos esquemas argumentativos capitulados na retorica e na lógica, cujos resultados serão potencialmente intersubjetiva ou objetiva. Isto porque esses resultados são verificáveis pelos que dominam os mesmos instrumentos analíticos; além disso, potencialmente os próprios enunciadores e seus adversários se reconhecerão nas exposições das análises caso delas tomem conhecimento.

Referências. ALVES-MAZZOTTI, A. J. Representações sociais dos educadores sociais sobre meninos de rua. Revista brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, 77, 187, p. 497- 524, 1996. ALVES-MAZZOTTI, A. J. Representações sociais de meninos de rua. Educação e Realidade, 22, 1, 183-207, 1997. EGAN, K. A mente educada: os males da educação e a ineficiência educacional das escolas. Rio de Janeiro: Bertrand, 2002. GOULD, Stephen Jay. Ontogeny and Philogeny. Cambridge (Massachusetts), London (England): The Belknap Press of Harvard University Press, 1977. MAZZOTTI, Tarso B. Ensino dos conceitos científicos ou de suas representações sociais? CHAMON, Edna M. Q. O.; GUARESCHI, Pedrinho A.; CAMPOS, Pedro Humberto F. (Organizadores). Textos e debates em representação social. Porto Alegre: Abrapso, 2014, p. 199-233. MAZZOTTI, Tarso B. Educação ou doutrinação ambiental? Análise retórica dos discursos de ambientalistas latino-americanos. Marília (SP): Editora Poïesis. 2013. MAZZOTTI, Tarso B. Doutrinas pedagógicas, máquinas produtoras de litígios. Marília (SP): Poïesis Editora, 2008.

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