A exposição no cinema de ficção científica

May 29, 2017 | Autor: Cristiano Canguçu | Categoria: Science Fiction, Cinema, Narrative Theory
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XIX Estudos de Cinema e Audiovisual Socine – Anais de Textos completos – São Paulo: Socine, 2016. Organizadores: Afrânio Mendes Catani, Antonio Carlos Amancio da Silva, Alessandra Soares Brandão, Mauricio Reinaldo Gonçalves, Gilberto Alexandre Sobrinho.

734 p.

ISBN: 978-85-63552-18-1

1.Cinema. 2. Cinema brasileiro. 3. Cinema latino-americano. 4. Documentário. 5. Teoria (Cinema). 7. Produção (Cinema). 8. Audiovisual. I Título.

CDD: 302.2

A exposição no cinema de ficção científica1 Exposition in Science Fiction films 2

Cristiano Figueira Canguçu (Mestre – UESB) Resumo: Em teoria literária, “exposição” é o processo pelo qual narrativas ficcionais apresentam suas premissas e regras de verossimilhança ao seu leitor. Comparam-se, neste paper, algumas das principais técnicas de exposição em filmes de ficção científica. Palavras-chave: Teoria da Narrativa, Exposição, Mídia Audiovisual, Ficção Científica, Mundos Possíveis. Abstract: In literary theory, "Exposition" is the process by which narrative fiction presents its story premises and rules of verisimilitude to the reader. In this paper, some of the key expositionary techniques in science fiction films are compared. Keywords: Narrative Theory, Exposition, Audiovisual Media, Science Fiction, Possible Worlds.

Desde a década de 1970, a filosofia da literatura tem definido como ficcionais aquelas narrativas que estabelecem um universo de referência próprio, um mundo hipotético no qual se passariam os acontecimentos descritos no texto narrativo (RYAN, 2012). Sendo assim, a afirmação “Sherlock Holmes é um detetive que reside em Baker Street, Londres”, embora falsa em nosso próprio mundo, seria verdadeira no mundo possível em que se passam as histórias deste personagem. Tais narrativas não precisam criar, a partir do nada, todas as informações, regras, entes e acontecimentos desses mundos, visto que elas operam por adição e por contraste ao nosso conhecimento de nosso próprio mundo, i.e., à nossa enciclopédia (ECO, 1983): entendemos as histórias escritas por Conan Doyle porque já sabemos o que é um detetive, que Londres é uma grande cidade na Inglaterra e que esse país, que na Era Vitoriana as pessoas andavam de carruagens, etc. Como subgêneros ficcionais, as histórias de fantasia e de ficção científica funcionam sob o

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Trabalho apresentado no XIX Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na sessão: Seminário Temático Gêneros Cinematográficos: História, Teoria e Análise de Filmes. 2 Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor assistente na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), nas áreas de teorias do cinema, linguagem do audiovisual e análise fílmica. E-mail: [email protected]

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mesmo princípio, embora noutro grau: no que se chama de “mundos estruturalmente possíveis” (ECO, 1989), não são adicionados apenas os personagens e acontecimentos fictícios, mas são estabelecidas diferenças de regras em relação ao nosso mundo (TODOROV, 2003): a magia existe e é visível e poderosa, embora seus praticantes o façam em segredo (Harry Potter); ou a viagem no tempo é possível e praticada, o que cria consequências variadas (Doctor Who); ou a engenharia genética dos cidadãos torna-se uma realidade corriqueira, o que transforma a sociedade (Gattaca); ou a população humana entra em contato com uma inteligência alienígena maior que a nossa própria, e portanto incompreensível (2001, uma odisseia no espaço). Como toda narrativa ficcional, as histórias de ficção científica precisam apresentar ao seu destinatário são seus entes e acontecimentos prévios, bem como (em seu caso específico) suas regras próprias e distinções em relação à enciclopédia do destinatário: a esta função ou tipo textual (AUMÜLLER, 2014) se dá o nome de “exposição”. Neste paper, examinamos algumas das principais técnicas empregadas para tal fim por narrativas audiovisuais desse gênero, comparando diferentes maneiras de expor mundos estruturalmente possíveis ao espectador.

Exposição: forma e estilo Para compreender a exposição como função narrativa, cabe revisar alguns parâmetros de teoria narrativa sistematizados pelos formalistas russos. Comecemos pela afirmação, aparentemente óbvia, de que “toda história tem início, meio e fim”. Este aparente truísmo diz respeito, contudo, a dois aspectos de toda narrativa: a Fábula, ou a cronologia mentalmente reconstruída da história que foi contada, que passa de uma situação inicial a um conjunto de peripécias e um desfecho; e a Trama, ou o arranjo concreto dos eventos narrativos tais como foram reordenados no meio de expressão pelo qual a história foi transmitida. Embora teóricos como Gustav Freytag não tenham distinguido tais parâmetros, dramaturgos e escritos sabem, pelo menos desde Sófocles, que o início e o fim do relato não se confundem com o início e o fim dos acontecimentos e que o rearranjo dos segundos pelo primeiro podem transformar radicalmente as impressões que o público tem a respeito daquilo que é relatado. Assim, a exposição pode ser arranjada em diferentes momentos da história, pressupondo reações diferenciadas do destinatário, afetando as hipóteses do público sobre a história (STERNBERG, 1978). A exposição é classificada sob dois atributos: a ordem – inicial versus

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postergada – e a concentração – concentrada versus distribuída, sendo que toda exposição distribuída é, em parte, postergada. Assim sendo, muitas vezes ela se concentra nos momentos iniciais das narrativas, explicando com clareza o contexto inicial daquele mundo possível (ex: Metropolis, Guerra nas Estrelas) e ajudando o espectador a formular apostas sobre as suas consequências (suspense); outras narrativas postergam a exposição para o meio ou o fim (Matrix; Cidade das Sombras), induzindo a produção de hipóteses sobre as próprias premissas da história (curiosidade); e há ainda a possibilidade de distribuir a exposição em vários momentos narrativos (Alphaville, O homem duplo), de modo ao espectador precisar continuamente revisar as suas intuições sobre causas e consequências. Os parâmetros acima discutidos dizem respeito à forma (Bordwell, 1985), mas pouco se examinou o estilo cinematográfico: recursos plásticos/audiovisuais para a apresentação da estória (BORDWELL, 1985). No caso das narrativas audiovisuais, tal função tem sido tradicionalmente cumprida por um conjunto diversificado de técnicas: letreiro, narração em voz over, diálogos, a miseen-scène (cenografia, figurino), flashback, música ou mídias do universo ficcional (telejornais, anúncios publicitários, livros de história, hologramas, etc.) (MOURA, 2011). Tal diversidade de técnicas, muitas das quais desenvolvidas como respostas à acusação de “teatro filmado” frequente nos primeiros anos do cinema, resultam numa considerável variedade plástica na ficção científica audiovisual.

Técnicas expositivas verbais e não-verbais Embora o cinema e as séries televisivas sejam tratados como “meios visuais”, alguns dos seus recursos expositivos mais importantes são verbais, herdados da literatura, do teatro e da narração oral. Na era muda do cinema, letreiros e intertítulos eram as principais técnicas empregadas para estabelecer exposições preliminares e concentradas, estabelecendo as premissas ficcionais rapidamente, como em Aelita, a rainha de Marte (Yakov Protazanov, 1924) e Metropolis (Fritz Lang, 1927). Embora menos importante no cinema sonoro, tal recurso foi resgatado em Star Wars (George Lucas, 1977) e na versão do diretor de Blade Runner: o caçador de androides (1992), em ambos os casos com o fim de resumir a situação inicial da história. A centralidade dos letreiros foi substituída na era sonora pela narração em voz over, ilustrada por imagens (não raro redundantes) daquilo que está sendo dito. Tal narração é, em geral, atribuída

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ao relato ou pensamento de um personagem da narrativa, o que a torna mais subjetiva que a narração por letreiros, caracterizando assim o personagem-narrador e ressaltando o seu ponto de vista a respeito dos acontecimentos relatados. Assim como na exposição por escrito, a narração over é também costumeiramente empregada na exposição preliminar e concentrada, como em Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971), Gattaca (Andrew Niccol, 1997) e na primeira versão de Blade Runner (1982). Por se considerar tais técnicas como relativamente artificiais, muitos cineastas preferem contar com os diálogos entre personagens para cumprir a função de expor as premissas da história e do mundo ficcional na qual ela se passa. Alguns diálogos se mostram carregados de exposição, normalmente em momentos-chave de revelação, demonstrando disparidade de conhecimento entre os personagens, de modo que um deles assume tom professoral: cumprem tal papel o Dr. Rotwang, em Metropolis; Obi-Wan Kenobi, em Guerra nas estrelas; o Dr. Emmett Brown, na trilogia De volta para o futuro (Robert Zemeckis, 1985, 1989, 1990), Morfeu e o Oráculo, na trilogia Matrix (1999, 2003). Tais diálogos, são, muitas vezes complementados por recursos visuais, como será visto mais adiante. Outra forma de exposição via diálogos se dá quando tal função é gradualmente distribuída, em passant, nas falas de diversos personagens, costurando com conversas a respeito de outros assuntos. A possibilidade gradual de exposição dialógica é frequentemente complementar aos momentos de exposição concentrada, mas em algumas obras audiovisuais ela é a única ou principal fonte (verbal) de premissas narrativas: são assim Akira (Stanley Kubrick, 1968), THX 1138 (George Lucas, 1971), Akira (Katsuhiro Otomo, 1988) e Mad Max: estrada da fúria (George Miller, 2015). Além das técnicas orais e escritas, o audiovisual costumeiramente utiliza recursos nãoverbais para explicar ou caracterizar o mundo estruturalmente possível da ficção científica. O emprego da mise-en-scène (cenografia, figurinos), bem como o uso de filtros, ou de colorização digital, para tais fins é tão presente nas obras desse gênero que seria difícil identificar exceções. As diferenças nos trajes entre o “mundo real” e o “mundo simulado” em Matrix, os restos de civilizações decadentes ou destruídas em Mad Max: estrada da fúria e em Blade Runner, o vestuário e arquitetura impecavelmente limpos em Gattaca, a disparidade entre a cidade favelizada e a estação espacial idílica em Elysium (Neill Blomkamp, 2013) e mesmo a mise-en-scène “retrô” de Alphaville (Jean-Luc Godard, 1965) ajudam a qualificar o mundo possível e, muitas vezes, distribuir a exposição sem que

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seja preciso dizer tudo. Alguns recursos cênicos, porém, podem ser empregados para exposições mais concentradas, como o quadro-branco em De volta para o futuro 2 (Robert Zemeckis, 1989), as estátuas e templos usadas em metáforas visuais em Metropolis, e telas de computador como a de Alien, o oitavo passageiro (Ridley Scott, 1979). Outra possibilidade, recorrentemente explorada no cinema e nas séries de ficção científica para construir momentos concentrados de exposição, são as reencenações de acontecimentos passados ou presentes, seja por meio de flashbacks, como em Akira e em “1984” (Michael Radford, 1984), ou – o que é bastante típico deste gênero – através de meios diegéticos endereçados a um “público” amplo, como os telejornais de Robocop, o policial do futuro (Paul Verhoeven, 1987), as propagandas em Minority Report, a nova lei (Steven Spielberg, 2002), o informativo do “Paraíso do 3

Prazer de Biff Tannen” em De volta para o futuro 2 e vídeos educativos como o do parque dos dinossauros em Jurassic Park (Steven Spielberg, 1993). Uma alternativa é o uso de meios diegéticos endereçadas a um personagem específico, como os hologramas de Guerra nas Estrelas, as videochamadas de 2001, uma odisseia no espaço e as simulações de treinamento em Matrix.

Considerações finais O que se pode aprender com esta variedade de recursos expositivos no cinema de ficção científica? Em uma pesquisa ainda em desenvolvimento, foi possível perceber que a escolha e o emprego de tais técnicas se relacionam com os modos narrativos (BORDWELL, 1985) que regem cada filme, isto é, as diferentes normas de construção e de compreensão narrativa que podem estar em vigor. Dois modos sugeridos por Bordwell são particularmente relevantes no corpus aqui discutido: aquele por ele denominado “narração cinematográfica clássica”, caracterizada por personagens com objetivos claros e personalidade definida; pela possibilidade inequívoca de reconstruir toda a história que se passou, após o seu término e por uma quantidade maior de redundância (SULEIMAN, 1983); e o modo narrativo intitulado “narração de arte”, ou “narração moderna”, caracterizada pela maior ambiguidade e indeterminação na narrativa e na obra como um todo (ECO, 1968), lacunas e/ou contradições internas, bem como predominância do autoral sobre o verossímil. Sob este parâmetro, técnicas com exposição mais concentradas (preliminares ou 3

Agradeço a Ricardo Tsutomu Matsuzawa pela sugestão.

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postergadas) têm se mostrado mais recorrentes nos filmes com narrações clássicas, os quais dispõem de letreiros, voz over, diálogos fortemente expositivos, meios de comunicação diegéticos, flashbacks e/ou reencenações demoradas, como mecanismos para estabelecer claramente para o espectador qual a natureza do mundo ficcional relatado. Assim o são filmes como Metropolis, Guerra nas Estrelas, De volta para o futuro e Matrix. Filmes de ficção científica com narrações mais ambíguas (“modernas”, ou “de arte”), por sua vez, têm se mostrado mais avessos a este tipo de recurso, deixando a maior parte da função expositiva para técnicas que auxiliares na narração clássica: a mise-en-scène e a distribuição gradual da exposição nos vários diálogos da obra. Em filmes como 2001: uma odisseia no espaço, Akira e Mad Max: Estrada da Fúria, os cenários, os figurinos e as alusões en passant nas falas dos personagens não são técnicas que complementam outros recursos mais expositivos, mas praticamente os substituem – cabendo ao espectador juntar as peças oferecidas e interpretá-las.

Referências AUMÜLLER, Matthias. Text-Types. In: HÜHN, PETER ET AL (Org.). . The Living Handbook of Narratology. Hamburg: Hamburg University, 2014. . Disponível em: . BORDWELL, David. Narration in the Fiction Film. Madison: University of Winsconsin, 1985. ECO, Umberto. Lector in fabula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos. São Paulo: Perspectiva, 1983. ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 1968. ECO, Umberto. Os mundos da ficção científica. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. MOURA, Gabriel. Exposition. Elements of Cinema. Los Angeles: [s.n.], 2011. . Disponível em: . RYAN, Marie-Laure. Possible-Worlds Theory. In: HÜHN, PETER ET AL (Org.). . The Living Handbook of Narratology. Hamburg: Hamburg University, 2012. . Disponível em: . STERNBERG, Meir. Expositional Modes and Temporal Ordering in Fiction. Baltimore: Johns Hopkins University, 1978. SULEIMAN, Susan Rubin. Authoritarian Fictions: The Ideological Novel as a Literary Genre. New York: Columbia University, 1983.

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TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2003.

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