A expressão religiosa e a construção do saber nos alvores da modernidade

July 6, 2017 | Autor: Crescêncio Ferreira | Categoria: Renaissance Studies, Reformation History, Modernity, Individualism, Modernidad, História Da Imprensa
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Temas de Cultura e Religião - Idade Moderna. E-FÓLIO A. A expressão religiosa e a construção do saber nos alvores da modernidade

“O my most beloved Spouse, Jesus Christ, most holy lover of my soul, Ruler of this whole Creation, who shall give me the wings of true liberty, that I may flee to Thee and find rest?”(Thomas Kempis)1

A Imitação de Cristo, escrita cerca de 1430, terá sido “a obra mais lida do século XV”2. Traduzia a devoção pessoal característica da época na Europa, uma religiosidade popular centrada no indivíduo, sucedânea da Devotio moderna e predecessora da Reforma. Este individualismo religioso conduziria ao sentimento de culpa pessoal, impulsionador do aumento das confissões e do aparecimento de pregadores messiânicos3. A imprensa, por sua vez, agiria como catalisador destas tendências, ao mesmo tempo que permitia a difusão rápida, e sem ajudas, do saber. * A Devotio moderna foi um movimento espiritual iniciado por Groote e popularizado pelos Irmãos da Vida Comum, nos finais do século XIV, que muito contribuiria para uma expressão religiosa de devoção popular individualista4. Esta corrente promovia a meditação e o isolamento, pondo de certo modo em cheque o papel do clero como intermediador divino e atribuindo “uma nova importância” aos laicos “na vida da Igreja”5. Mas a devoção popular também se manifestava nas ruas, através dos “desfiles de flagelantes, vias-sacras coletivas, procissões de todos os tipos”6. Tempos difíceis, aqueles. A Peste Negra, a Guerra dos Cem Anos, o Grande Cisma, eventos marcantes para gerações dos Trezentos e Quatrocentos, somados à queda de Constantinopla às mãos dos Otomanos em 1453, assim como às frequentes incursões turcas em terras da Europa, eram sinais evidentes para muitos do iminente Apocalipse, da segunda vinda do Messias7. Grassavam os pregadores do fim dos tempos, como o famoso padre italiano Savonarola, enquanto o clero vendia indulgências a troco da salvação das almas do fogo eterno.

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KEMPIS, Thomas, BENHAM, Rev. William (trad.) - Imitation of Christ, Livro III, cap. XXI. [em linha] [consult. 23 Abr. 2015]. Disponível na Internet: 2 DELUMEAU, Jean – A Civilização do Renascimento. Lisboa: Edições 70, 1984, p.131 3 Idem, p.133,134 4 JONES, Lindsay (ed.) – Retreats of spiritual renewal. In Encyclopedia of Religion, second edition. Michigan: Thomson Gale, 2005, p.7770-7773 5 DELUMEAU, Jean, cit.2, p.129 6 Idem, p.126 7 POPKIN, R. – Savonarola and Cardinal Ximines. In KOTTMAN, Karl (ed.) - Millenarianism and Messianism in Early Modern European Culture, Vol. II. California: Kluwer Academic Pub!ishers, 2001, p.15

Crescêncio Ferreira, aluno nº 1000692, turma TA, ano letivo 2014-2015

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E foram precisamente as indulgências que despoletaram a Reforma. Quando Lutero afixou as suas 95 teses contra a venda de indulgências, mal sabia ele que estava literalmente a mudar o mapa político-religioso da Europa, a eliminar de vez a homogeneidade católica do continente. Daí em diante, o protestantismo dominaria no norte e o catolicismo no sul. Luteranos, calvinistas, zuinglianos, anglicanos, anabatistas seriam os protagonistas de novos confrontos numa Europa doravante dividida pela fé. Se Lutero e Calvino “se mantiveram fiéis à interpretação agostiniana” do fim do mundo, outros movimentos mais radicais pretenderam impor o milénio pela força, como a revolta dos “camponeses” liderados por Muntzer, em 1525, e os anabatistas de Munster, em 1534-1535, que aguardavam a vinda do Messias nesta cidade, que seria assim a Nova Jerusalém.8 No mundo católico, a Contra-Reforma atacaria as heresias, criaria a Inquisição, os Jesuítas, o Índex. O Concílio de Trento sistematizaria o pensamento ortodoxo da Igreja, repudiando oficialmente o protestantismo.9 E qual foi o papel da imprensa na construção do novo saber? Com a invenção da prensa móvel por Gutenberg em 1439, a transmissão da informação escrita acelerou. Agora, os estudantes podiam até aprender sozinhos em casa, pela leitura dos livros, e não ter de aguardar pelas revelações do mestre nas universidades, havia prensas nos mosteiros e nas universidades, os editores e tradutores não tinham mãos a medir10. O advento da imprensa foi um dos agentes de mudança nos alvores da modernidade, alterando as redes de comunicação e os métodos de pesquisa e armazenamento de informação nos meios instruídos da Europa.11 A literatura de devoção popular também sofreu uma considerável promoção por este meio, em particular nos meios laicos mais letrados12, assim como a produção de exemplares da Bíblia disparou, nas suas versões em latim ou traduções. Desde a invenção da imprensa até 1520 terão sido publicadas cento e cinquenta e seis edições completas da Bíblia em latim, surgindo também resumos para os leigos, como a Bíblia

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DELUMEAU, Jean – O Apocalipse revisitado. In GOULD, Stephen et.al. - O Fim dos Tempos. Lisboa: Terramar, 1999, p.94-97 9 LINDER, Robert - The Reformation Era. London: Greenwood Press, 2008, p.114-118 10 EISENSTEIN, Elizabeth – The printing revolution in early modern Europe, second edition. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p.38, 294 11 Idem, p. XVIII 12 MCGRATH, Alister – The Intellectual Origins of the European Reformation, second edition. Oxford: Blackwell Publishing, 2004, p.14

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dos Pobres.13 “Em 1500 havia 73 prensas em Itália, 51 na Alemanha, 39 na França, 24 em Espanha, 15 nos Países Baixos e 8 na Suíça”.14 Mas a imprensa levantou um sério problema às autoridades seculares e religiosas, habituadas a controlar o conhecimento que era disseminado pela população, tendo levado algum tempo até que a censura se adaptasse à nova velocidade de propagação da informação15. Na 4ª sessão do Concílio de Trento seria assumida publicamente essa censura: “e que a ninguém seja permitido imprimir ou fazer imprimir qualquer livro sobre assuntos sagrados sem o nome do autor, nem vendê-los ou retê-los consigo, se não forem primeiro examinados e aprovados pelo Ordinário.”16 Quanto às novas expressões religiosas, estas receberiam a imprensa como uma bênção celestial. Para Lutero, era “um sinal especial da graça de Deus”, porque lhe permitia a produção em massa de textos e sermões bíblicos, bem como de pequenos folhetos normalmente de oito páginas, de fácil transporte e que eram, assim, muito utilizados no proselitismo17. Quando comparamos o sucesso da Reforma com o falhanço de movimentos heréticos anteriores, como os Hussitas e os Valdenses, um dos fatores diferenciadores que salta à vista é que “Lutero tinha a imprensa”18… * Se a imprensa foi ou não um “subproduto do espírito da Renascença”, como alguma erudição atualmente põe em causa19, se mesmo o modelo do individualismo renascentista proposto por Burckhardt no século XIX é hoje também questionado20, o facto é que ambos contribuíram significativamente para a construção duma nova atitude religiosa. Nos alvores da modernidade, a imprensa contribuiu para o aumento da literacia, da educação, do desenvolvimento de novas ideias religiosas. O individualismo religioso, ao focar-se mais no indivíduo que no coletivo, permitiu àquele, para além 13

DELUMEAU, Jean, cit.2, p.136 JOHNSON, Paul – A History of Christianity. New York: Touchstone, 1985, p.219, minha tradução 15 JOHNSON, Paul, cit.14, p.220 16 MONTFORT [em linha] [consult. 24 Abr. 2015] - Concílio Ecuménico de Trento. Disponível na Internet: 17 JARED, Rubin - The Printing Press, Reformation, and Legitimization [em linha]. Chapman University [consult. 22 Abril 2015], p.6. Disponível na Internet: 18 JARED, Rubin, cit.17, p.11 19 Veja-se, por exemplo, EISENSTEIN, Elizabeth – The printing press as an agent for change. Cambridge: Cambridge University Press, 1979, p.178 20 MARTIN, John - Myths of Renaissance Individualism. New York: Palgrave MacMillan, 2004, p.4-6. O autor sustenta que o Indivíduo da Renascença tinha pouco de agente autónomo e livre, e que o conceito de ego moderno, à luz do qual analisamos o passado, é diferente do daquela época. 14

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dum misticismo inicial, o aprofundar do raciocínio, da meditação, do conhecimento que levaria o Indivíduo a libertar-se das amarras da tradição e ir mais além. A Europa e o mundo estavam mais ricos culturalmente, pois a Reforma traria consequências a nível global, por exemplo, no desenvolvimento das ideias calvinistas nos Estados Unidos, e o apego do Indivíduo à procura da resposta para as questões das origens – quem sou, donde venho, para onde vou – também promoveria o racionalismo e a ciência. A dúvida passou a ser essencial para o progresso, pois não há evolução do saber sem a interrogação livre de preconceitos. O mundo nunca mais seria o mesmo…

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Bibliografia     



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DELUMEAU, Jean – A Civilização do Renascimento. Lisboa: Edições 70, 1984. DELUMEAU, Jean – O Apocalipse revisitado. In GOULD, Stephen et.al. - O Fim dos Tempos. Lisboa: Terramar, 1999, p.59-112. EISENSTEIN, Elizabeth – The printing press as an agent for change. Cambridge: Cambridge University Press, 1979. EISENSTEIN, Elizabeth – The printing revolution in early modern Europe, second edition. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. KEMPIS, Thomas, BENHAM, Rev. William (trad.) - Imitation of Christ, Livro III, cap. XXI. [em linha] [consult. 23 Abr. 2015]. Disponível na Internet: JARED, Rubin - The Printing Press, Reformation, and Legitimization [em linha]. Chapman University [consult. 22 Abril 2015]. Disponível na Internet: JONES, Lindsay (ed.) – Retreats of spiritual renewal. In Encyclopedia of Religion, second edition. Michigan: Thomson Gale, 2005, p.7770-7773. JOHNSON, Paul – A History of Christianity. New York: Touchstone, 1985. LINDER, Robert - The Reformation Era. London: Greenwood Press, 2008. MARTIN, John - Myths of Renaissance Individualism. New York: Palgrave MacMillan, 2004. MCGRATH, Alister – The Intellectual Origins of the European Reformation, second edition. Oxford: Blackwell Publishing, 2004. MONTFORT [em linha] [consult. 24 Abr. 2015]. Concílio Ecuménico de Trento. Disponível na Internet:

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