\"A expulsão dos acadianos do Canadá Atlântico em 1755: elementos de perseguição e intolerância religiosa.\"

May 26, 2017 | Autor: André Sena Sena | Categoria: History of Canada, History of Atlantic Canada, Acadians, Acadiens,
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Resumo da apresentação oral de "A expulsão dos acadianos do Canadá Atlântico em 1755: elementos de perseguição e intolerância religiosa." no VI Encontro do GT Nacional História das Religiões e das Religiosidades ANPUH: História das Religiões, Literatura, Conceitos, Identidades.

Os Acadianos são o resultando direto de um projeto de ocupação do Canadá Atlântico a partir do século XVII. Em 1604, 80 homens franceses liderados por Samuel de Champlain reivindicam esta região do Atlântico Norte para a Coroa Francesa. Conhecida primordialmente como Nouvelle France (Nova França) o Canadá Atlântico iria posteriormente dando lugar a uma nova territorialidade nomeada Acadie (Acádia), o que hoje corresponde às províncias da Nova Escócia, Novo Brunswick, Ilha do Príncipe Eduardo e partes do que atualmente chama-se Quebec; há ainda uma pequena parte localizada no Maine, nos Estados Unidos. Curiosamente a construção de uma civilização acadiana foi sempre atravessada pela dialética entre tolerância e intolerância religiosa, em virtude do processo de crescimento e desenvolvimento da Nova França no Canadá, dos desdobramentos da relação do elemento francês-acadiano com os Povos Originais Canadenses e finalmente de sua relação com os ingleses, especialmente a partir de 1713. A chegada dos franceses ao Canadá apresentava razões diferentes de ser. A melhor maneira de percebermos isso talvez seja nos apartarmos de uma visão essencialmente materialista da História, distanciando-nos da teoria do pretexto único da ocupação, colonização e especialmente do prosseguimento na esfera atlântica da exploração da especiaria pesqueira do bacalhau (que nós historiadores muitas vezes ignoramos em termos de potencial econômico e geopolítico no Atlântico Norte. Não que isto não seja um traço determinante e essencial, mas definitivamente pode ser equalizado com uma série de outras motivações que tornam a História do Canadá um terreno tão inexplorado por historiadores brasileiros como parece ainda ser o país em termos de topografia e natureza, ainda nos dias de hoje.

Para além daquilo que Nelson Werneck Sodré definiu como a Empresa Colonial, o fervor religioso atravessou a fundação da Nova França e posteriormente também constituiu um dos dínamos da civilização acadiana. Curiosamente a França Equinocial, no que hoje corresponde ao estado do Maranhão no Brasil, estabeleceu-se por aqueles mesmos tempos, precisamente no ano de 1612; curiosamente, apesar de sua curta duração, o projeto igualmente expressava uma imensa inclinação missionária e religiosa. Os estudos da historiadora Andrea Daher na obra O Brasil Francês. As singularidades da França Equinocial, 1612-1615 deixam isso claro, e tornaramse para o historiador brasileiro ou brasilianista uma fonte extraordinária de pesquisa em uma possível perspectiva de História Comparada com o Canadá Francês e com os Acadianos; há entretanto a diferença de que a civilização acadiana existe até hoje dentro da multiculturalidade canadense, com autonomia cultural e representações políticas relativamente consistentes, como data nacional, bandeira própria e universidades que se dedicam ao seu estudo como o Centro de Estudos Acadianos Anselme Chiasson (um religioso) na Universidade de Moncton, uma das cidades acadianas mais florescentes atualmente. O elemento autóctone desempenha um papel importantíssimo nessa história de tolerância e intolerância religiosa dos Acadianos; especialmente uma das mais importantes First Nations (termo usado no Canadá para designar os diferentes povos originais do país, preferido ao termo “indígenas”) das Províncias Atlânticas, também conhecidas como Les Maritimes. Me refiro ao Povo Mi’kmaq, que venho estudando juntamente com a civilização acadiana faz algum tempo. Os Mi’kmaq são um dos mais expressivos povos do Canadá original. Sua história e cultura está definitivamente ligada a Nova França e a fundação da Acádia que a modificou para sempre. Curiosamente a relação destes indígenas com o catolicismo francês do século XVII foi imediata e em alguma medida supreendente. Os jesuítas que chegam ao Rio Saint John em 1605, acompanhantes de Samuel de Champlain surpreenderam-se, por exemplo, com a familiaridade mística que os Mi’kmaq alegavam já possuir com o símbolo mais visível do catolicismo: a cruz. Ao ver a cruz no peito dos Jesuítas, os Mi’kmaq que auxiliaram aqueles 80 franceses a suportar o rigoroso inverno de 1604/1605 olham-na com certa

reverência. O espanto dos jesuítas tem uma reposta: Mi’kmaqs relatam aos padres terem sido visitados décadas antes por uma senhora que prometeu-lhes ajudar no caso de cura de uma enfermidade de uma das princesas da tribo. A senhora, de longos vestidos e cabelos os teria aconselhado a pegar gravetos e montá-los de maneira cruciforme, colocando-os no peito da menina doente e esperar pela cura, que viria em seguida. O que foi para os Mi’kmaq uma visita de uma deusa sem nome, que curou a infanta, para os jesuítas foi claramente uma das provas de uma visita mariana ao Novo Mundo. O Sachemi dos Mik’maq conhecido pelo nome de Membertú batizou-se poucos meses depois do primeiro contato com os jesuítas, adotando o nome de Henri Membertou fazendo o mesmo sua esposa, com o de Marie Membertou, ambos prenomes do Rei e Rainha da França, Henri IV e Marie de Médicis. A conversão dos Mi’kmaq ao catolicismo (que ainda hoje marca muito os atuais Mik’maq, que são em sua maioria católicos praticantes) ajudou a forjar o sentido religioso e missionário do que mais tarde, na virada do século XVII para o XVIII já seria propriamente a Acádia e os Acadianos, menos franceses ainda que francófonos e muito próximo de seus correligionários indígenas, o que provocou em certa medida alguns casamentos mistos e igualmente uma rede de alianças políticas e militares só possível exatamente pela adjascência religiosa entre os dois “povos”. O Tratado de Utrecht de 1713 alterará este quadro, na medida em que uma de suas consequências mais importantes foi a eclosão, em 1755, de uma das maiores diásporas do continente americano: a expulsão dos acadianos da Acádia, na direção de regiões como o Caribe, o Sul dos Estados Unidos e a Europa. A diáspora acadiana é conhecida na historiografia sobre o tema e também no senso comum dos acadianos de hoje como Le Grand Derangement (o grande desconforto) na medida em que um cruel e sangrento processo de desterritorialização e perseguição será posto em operação pelo ingleses na segunda metade do século XVIII. O início desse processo se dá pela transferência da Acádia para a soberania britânica a partir do Tratado de Utrecht, que resolvia questões diplomáticas importantes como a Guerra de Sucessão Espanhola e contenciosos entre Inglaterra e França.

A reação à esta troca de donos da Acádia se fez sentir quase que imediatamente e se deu primeiramente, e supreendentemente, entre os Mi’kmaq que sentiram, primeiro que os acadianos o cheiro do perigo da bota britânica sobre o Canadá Atlântico. Além disso a inserção dos Mi’kmaq na esfera cultural e religiosa do catolicismo francês desde o século XVII provocou entre estes (política e militarmente muito mais organizados do que normalmente imaginamos naquela região) um estranhamento imediato a um certo establishment religioso Anglicano. Esse estranhamento transferiu-se igualmente aos acadianos, que viam no Anglicanismo a imagem que o mundo católico no século XVII e XVIII universalisara: a fé dos ingleses tratava-se de um sistema religioso exógeno à Santa Sé, oriundo de uma rebeldia tipicamente britânica contra o Vigário de Cristo e portanto um desaconselho em si mesmo. Fiéis ao catolicismo romano, Mi’kmaqs e Acadianos vão resistir o quanto puderem a jurar fidelidade a George II e, como que em um jogo de oposição de espelhos passarão a ser vistos pela Monarquia Britânica e pelos colonos que ela passava a enviar a cidades com Halifax e Annapolis Real por exemplo (ambas acadianas) como papistas, vaticanistas ou simplesmente como hereges católicos, selvagens e acadianos que reivindicavam uma identidade religiosa ligada a uma igreja já superada pelo mundo protestante. Não resta dúvida de que neste jogo de percepção do outro marcado pela intolerância religiosa não há ganhadores e a história do Canadá Atlântico pode ser um intrigante estudo de caso a demonstrar e comprovar este argumento. Especialmente porque no caso da Acádia a percepção da religião do outro foi atravessada pela idéia da dominação e subjugação (era assim que viam os acadianos o anglicanismo britânico) e da resistência indesejada e fanática (era assim que os britânicos viam os acadianos). O resultado desta dialética sem sínteses no final foi a morte, a perseguição e um ressentimento histórico que perdura ainda hoje nos descendentes dos acadianos que moram nas províncias marítimas do Canadá. Naturalmente já superamos epistemologicamente - graças a movimentos como os Annales e a Nova História - a idéia do pragmatismo da História, de uma história capaz de nos ensinar algo. Mas em alguma medida podemos olhar para o

estudo dos acadianos como um certo alerta, especialmente em momentos recentes, tão retrógrados, do quão perigoso um processo de intolerância religiosa pode nos levar, especialmente se revestida das armaduras do poder e do Estado.

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Nome dado ao Príncipe ou Chefe dos Mi’kmaq,

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