A FALÁCIA DA ARTE PARA A VIDA

July 3, 2017 | Autor: Rafael Guarato | Categoria: Arte Contemporanea, Filosofia Da Arte, Filosofia da Arte Contemporânea
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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201

A FALÁCIA DA ARTE PARA A VIDA RAFAEL GUARATO (UFG)

RESUMO O norte da discussão aqui proposta é motivado pela inquietação diante bifurcação em que a conduta acadêmica se encontra no campo da história da arte, fabricando convicções que solapam outras existentes, relegando-as a algo próximo ao descrédito. Tendo esse panorama como norteador de reflexões, a presente comunicação pleiteia partir de discussões teóricas acerca das interfaces entre história e arte, com o intuito de compartilhar reflexões acerca de usos de concepções filosóficas no fazer artístico em dança. Contudo, não se trata somente de explanar contribuições desses pensadores para a criação, mas sim, de perceber como tais perspectivas podem ser apropriadas para justificativa de fazeres que se apresentam muito aquém do prometido. PALAVRAS-CHAVE: Arte, Filosofia, História, Vida.

THE FALLACY OF ART FOR LIFE ABSTRACT The north of the discussion proposed here is motivated by unease before bifurcation into the academic conduct within the field of art history, manufacturing beliefs that undermine other existing, relegating them to something close to disbelief. Having this picture as a guide reflections, this Communication pleads from theoretical discussions about the interfaces between art and history, in order to share thoughts about the uses of reflections on philosophical uses in making artistic dance. However, it is not only the contributions of these thinkers to explain the creation, but rather to understand how these perspectives may be appropriate for justification from doing that arise far from promised. KEYWORDS: Art, Philosophy, History, Life.

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 Não foi o confronto de opiniões que tornou a história tão violenta, mas o conflito de fé nas opiniões, ou seja, das convicções. Friedrich Nietzsche

O pensamento que subsidia esse texto não se faz corrente entre grande parte dos historiadores, preocupados com as implicações ontológicas e epistemológicas decorrentes das escolhas conceituais a serem, por eles, referenciadas, o ofício os tornam, raramente, capazes de se lançarem para fora das fronteiras definidas no percurso de seus trabalhos. Trata-se aqui, de reflexões com vistas a suprir, preencher, anseios teórico-metodológico iminentes ao processo de pesquisa tendo a dança como objeto; não apenas a seleção de algo pronto, mas de construção de um suporte referencial que propicie uma pesquisa em sua especificidade. Nos estudos históricos aprendemos a assumir a diferença inerente aos seres humanos, mas não somos, ou não estamos, preparados para enfrentar a necessidade da diferença conceitual. Dada a pluralidade das relações humanas, este ensaio parte do pressuposto de que toda investigação ao pretender “falar” acerca das relações humanas deveria, minimamente, esforçarse em perceber seus limiares, necessitando de embasamentos outros àqueles amplamente disponíveis e (re)produzido em nossa realidade acadêmica. Assumir que nenhuma teoria consegue responder às complexidades das relações humanas se tornou moeda corrente na boca de estudantes e professores no campo da história e das artes. Todavia, há prevalência de uma dupla atitude teórica frente o aparecimento de algo “novo”. Se numa esquina, encontramos os que optam em aderir aos referenciais “frescos”, abandonando grande parte de autores até aquele momento tidos como subsídio; noutra encruzilhada vislumbramos aqueles que se apegam a fortalezas conceituais capazes de sustentar debates que já nascem premeditados. O norte da discussão aqui proposta é motivado pela inquietação diante essa medíocre bifurcação em que a conduta acadêmica se encontra, fabricando convicções que solapam outras existentes, relegando-as a algo próximo ao descrédito. Distante de avaliar e posicionar entre uma e outra http://portalanda.org.br/index.php/anais

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 corrente teórica, o intuito é perceber os usos que se fazem destas, torna-as, muitas vezes, muito aquém de seu potencial como conhecimento para o campo da arte. Nesse sentido, não há novidade em trocar Panofsky por Deleuze para analisar obras de arte, ao fazê-lo, estamos efetuando um procedimento maniqueísta, de eleição do que agora / novo / bom em rejeição ao ruim / velho / ultrapassado. É nesse sentido que devemos perceber como a concepção filosófica de Deleuze pode ser castradora, pois fornece possibilidades a uma espécie de paralisia conceitual travestida de novidade. Paradoxalmente, recorro à proposta deleuzeana de feitura do corpo sem órgãos, noção que remonta à teoria teatral de Antonin Artaud, em que os valores, juízos, significados são postos em nossos corpos pela cultura, transformando-se em órgãos que nos compõem. É contra esses órgãos significantes, subjetivados que o processo de fabricação do corpo sem órgãos lida. Tal concepção, a meu ver, guarda íntimos laços com a proposta de Friedrich Nietzsche (2005) e sua filosofia intempestiva no texto Sobre a utilidade e os inconvenientes da história para a vida presente na obra Escritos sobre História, acerca do excesso de história, que forja verdadeiras “camisas de força”, à vida do ser humano como tal, à sua animalidade, tornando a história em pleno século XIX, algo inútil para a vida, levando o filósofo a sugerir a legitimidade de atitudes a-históricas, a exemplo do esquecimento, como necessárias à plenitude e complexidade do ser humano. As “linhas de fuga”, o “rizoma”, o processo de desfazer os “rostos”, o “fora”, que fundamentam a filosofia do devir recente, atuam como possibilidade de abandono à cultura histórica que propunha Nietzsche. A filosofia do Novo, da virtualidade como norte para a ação humana criativa tornaram Deleuze e Guattari verdadeiros jovens, no sentido nitzscheano do termo, uma existência jovial, intensa. Em alguns momentos do texto, me referirei à filosofia do Devir mencionando somente Gilles Deleuze, por compreender que tal premissa ontológica se encontra presente em seus escritos antes de sua parceria com Félix Guattari (em obras como Lógica dos sentidos e Diferença e repetição), apesar da metáfora em questão, o corpo sem órgãos se encontrar numa obra em coautoria intitulada “Mil Platôs”. No entanto, os frutos dessa jovialidade é http://portalanda.org.br/index.php/anais

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 ambígua, impossibilitando tratá-la como boa ou ruim, remédio ou veneno (dirnos-ia Ricoeur). Esse paradoxo permeia não apenas o campo conceitual, ele provém da própria existência humana, uma vez que os corpos e suas necessidades não são passíveis de categorização rígida, a não ser que assim o queiramos. Para Deleuze e Guattari (e arrisco a inserir Nietzsche), a jovialidade é remédio, necessária à criação; bem como, para artistas, militantes políticos, pesquisadores, ser rizomático, é pertinente. No entanto, para a dona de casa, o Zé da padaria o que significa romper com os rostos? Não seria então uma proposta segmentária, excludente, que alija, novamente, as pessoas comuns dos processos criativos, junto com elas os populares, o povo, as massas, o vulgo, as classes subalternas, seja lá a definição conceitual que agrade ao leitor (para usar a bifurcação)? Se assim ocorre, podemos afirmar: não é a filosofia em si que é excludente, mas a própria existência humana, que fragmenta, segrega, distribui seres humanos em domésticos e aqueles que oscilam entre a animalidade. Teremos como fugir dessa condição sufocadora de uma realidade opressora e submeter nossas reflexões a modos de vida conflitantes, onde as tensões são permanentes? Seria viável voltar a falar em classes, ideologia, dominação? Creio que não, necessariamente. O que se trata é de compreender, como muitos já o propuseram, que em e nas relações humanas, existem pessoas cujos interesses, para além do grupo em que vive, são diversos. A taxonomia na prática histórica desses interesses em grupos, ou práticas específicas, dependerá das relações humanas com as quais o aventureiro pesquisador se defrontará, e nunca, da teoria a ser adotada como pressuposto apriorístico. Na prática artística, a arte como entorpecente serve a determinadas pessoas em seus processos de criação, exigindo à investigação certa especificidade para compreender as contribuições dessas fugas. Porém, ela também pode ser de ordem mais geral, buscando perceber não apenas as somatórias e possibilidades de vida e existência para determinado individuo, ela pode retornar, se assim quiser o pesquisador, e ser posta em relação com condições

existenciais

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nas

quais

participam,

pois,

toda

fuga,

toda

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 desterritorialização retorna à realidade,

uma realidade em que vivem,

respiram, comem, sofrem, outros homens. Analisar os processos de fugas por eles mesmos, autojustificáveis, ao que parece, tem contribuído para ofuscar as relações entre humanos ao invés de investigá-las. Em outras palavras, não devemos negligenciar as interferências dessas fugas em seus retornos às significações, pois ela significará, independente das assignificâncias pleiteadas por seu corpo sem órgãos. Trata-se dos efeitos, pois não possuem causas palpáveis, mas um complexo conjunto de relações que produzem efeitos, por isso não implica falar em "consequências" como o fez ao tratar do tema o filósofo esloveno Slavoj Žižek (2008). De todo modo, como negar ou discordar daqueles “espíritos livres”, de criações em arte que esquivam da sufocante história e da própria sociedade em que produz? Como negar à criação contemporânea em artes, as características do corpo sem órgãos deleuzeano? Elas são capazes de suspender os estratos, assignificar, não-subjetivar. Não estão em busca do corpo sem órgãos (como propôs Deleuze), são os próprios corpos ausentes, ou carentes, de órgãos. Contudo, assim como a experiência humana masoquista, viciada, apaixonada, subtraem os estratos; existem outras experiências que, por outras vias também o fazem. A intensidade na vida do homem comum (não-pesquisador; não-artista) ao assistir jogos de futebol, onde muitas significações são subtraídas; a intensidade dos olhares entre jogadores de Poker, impossíveis de serem subjetivados; a libido da masturbação; as novelas para as donas de casa também produzem fluxos de intensidade, que nos inviabiliza forjar opiniões unanimes acerca dos significados dos personagens para o espectador, como nos mostrou Jesús Martin-Barbero (2003). Todas essas experiências são intensas e em fluxo. Então, por que Deleuze e Guattari são convincentes, citados e referenciados para tratar de criação, arte? Creio que, de algum modo, experimentamos, ou alguns experimentam, o corpo sem órgãos. Contudo, não de forma única, e esse é o ponto. Sua ocorrência está vinculada, paradoxalmente, a condições de significância, é a partir desta condição que o experimentamos. Não se trata de impregnar de rosto aquilo que “utopicamente” http://portalanda.org.br/index.php/anais

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 se chama de linha de fuga em artes, mas antes, de perceber que a fuga se faz em relação a algo, parte desse algo; logo, é esse algo que fomenta o corpo sem órgão; estão relacionados, não há exclusão aqui, mas compreensão de realidade e possibilidade de escape. O mote da questão, a meu ver, numa concepção em que, assumir o ato de criação como processo que se pauta, ou deveria se pautar exclusivamente em intensidades, temos que tratá-lo como ato particular, a nível de indivíduo, ao mesmo tempo em que impossibilita o outro de permeá-la. Não é um retorno ao Eu, mas também não é o encontro do Outro. O problema é que, as pessoas (vulgarmente tratadas com o codinome público) se reconhecem a partir de definições entre o Eu X Outro, relação que o ato criativo, o corpo sem órgão se isenta em sua ocorrência. Do mesmo modo, exclui a investigação histórica, que necessita de certo subsídio (por meio de rastros, documentos, indícios, vestígios, testemunhos, sobrevivências, evidências) para ser confeccionada, mesmo

que

imaginária.

Impossibilitado de

acessar

o inacessível,

o

assignificante, tal discurso possibilita extremar concepções em que grande parte dos seres humanos se encontra alijados, como ocorre na arte contemporânea – ainda bifurcando. Ao eleger a intensidade dos desejos como força motriz para a confecção do corpo sem órgão, Deleuze e Guattari elege certo grupo, capaz de produzir uma fuga direcionada para criar sem se perder nessa fuga, os pesquisadores. Ou seja, eles mesmos e seus pares, tornando fantasioso o processo para grande parte dos seres humanos. (Nesse momento, não cobiça a perspectiva da distinção salientada por Bourdieu?) Alterando a angulação, realizando uma paralaxe, o discurso do devir não é tão criativo e vanguardista como se pretende, pois, em seu cerne, ao ser posto em ação, permanece embutido de “arborescências”, de “paredes brancas” e “buracos negros”. Mesmo possuindo uma densidade intelectual inegável, inovadora ao desprover a racionalidade e sua sociedade como único suporte, o efeito produzido é maligno ao ser posto (algo que os autores do Corpo Sem Órgão não pregavam) como dualismo excludente à racionalidade, levando o sensível a uma condição de prestígio nunca antes gozado. Nesse ínterim, a questão central a ser pensada não é se http://portalanda.org.br/index.php/anais

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 nos pautamos por sensibilidades ou racionalidade, mas sim, quem define qual sensibilidade é digna de ser reconhecida como criação? Quem confere às ações humanas sua definição? Atrevo-me a declarar que de modo algum são aqueles que as vivem (bifurquei para não perder a oportunidade). Outra questão complementar, remete ao caráter segmentário da filosofia do Devir, ao propor algo universal a uma realidade desigual, ao ser posta em funcionamento, atua como paradigma que legitima os feitos artísticos como dignos de poucos. A sagaz percepção de Artaud de que a cultura nos prende a questões que, às vezes, não pertencem às nossas vidas, via representação e signos, fabricando novos órgãos que passam a compor o corpo (ARTAUD, 1964: 12), fornece subsídio convincente para denunciar a formação histórica e cultural como opressora, que impregna nossas vidas de significações em forma de órgãos, que Deleuze propôs desvencilhar ao sugerir o processo de criação do corpo sem órgãos. Em Artaud, livrar o corpo dos automatismos somente é possível se nos livrarmos dos órgãos, são eles que bloqueiam os fluxos. A luta de Deleuze e Guattari se encontra no combate pelos sistemas de subjetivação como a religião, o poder médico, as regras impostas aos corpos, hierarquias, a grandes estruturas de subjetivação. É um pensamento permeado pela crença, corrente na década de 1970, numa espécie de domínio e controle efetuado ora por meios econômicos, simbólicos; ora por técnicas e saberes. Todavia, ao nos determos apenas ao estudo das intensidades na fabricação dos corpos sem órgãos é negligenciar estudos recentes que levam em conta as pessoas e seu potencial de driblar os “organismos”. Aqui se estende uma ampla bibliografia que se dedica a perceber, grosso modo, os processos de recepção, apropriação, mediação, astúcias por quais passam produtos, símbolos, crenças, costumes; gerando usos, práticas, representações que inviabilizam tratar os seres humanos e suas histórias somente por um viés. Tal concepção, guardadas suas especificidades, perpassa os Estudos Culturais ingleses com pensadores da envergadura de Raymond Williams, Edward Palmer Thompson, Richard Hoggart, Stuart Hall, http://portalanda.org.br/index.php/anais

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 John Edward Christopher Hill; a micro-história italiana com os trabalhos de Giovanni Levi, Carlo Ginzburg, Carlo Poni; os franceses dedicados á cultura popular: Michel de Certeau, Roger Chartier e Jacques Revel; e os intelectuais atuantes na América Latina e Estados Unidos como: Jesús Martín-Barbero, Néstor Garcia Canclini, Igor Kopytof e Arjun Appadurai. Diga-se, todos eles, passíveis de serem imersos em nossa bifurcação, limitando, em muito, suas contribuições. Tal como trabalhar com significados sólidos não explica ações intensas como o sadomasoquismo, também não explicam, em sua totalidade, os fenômenos de massa e o consumo. As ações humanas em relação ultrapassam, em muito, nossos arcabouços conceituais disponíveis. Essa é uma condição sine qua non que se encontra alijada na teoria do Devir do corpo sem órgãos (e nem poderíamos dela exigir tal absurdo). Este se encontra, ou melhor, encontramo-lo em estado de intensidades, como a condição da paixão, onde não há o Eu e o Outro, apenas intensidades imanentes. São elas, as intensidades, que preenche o corpo sem órgãos. Contudo, algo nos escapa: quem, e quais os critérios são responsáveis por definir as intensidades? Pois as fazemos em nossas pesquisas. A mãe que fica estupefata de raiva quando interrompem sua

apreciação

do programa

preferido,

onde

todas as

significações estão suspensas. Sua criação não se prende aos significados transmitidos pela “telona”, naquele instante, sua existência flui, participa de outras existências, ela cria realidades, possibilidades, anseios, negando e afirmando suas possibilidades significativas e subjetivas. O que a distancia do filósofo, artista, pesquisador, é justamente por conhecer menos possibilidades significativas e subjetivas. Deste ponto de vista, porque sua fuga não é valida? Quem define o que é um corpo sem órgãos em arte? Eu, o outro, a crítica em arte, nós acadêmicos? Sua própria definição reforça os estratos, sufoca, exclui. Vejamos: o texto de Deleuze e Guattari, apensar de ter sido confeccionado em virtualidades (para acompanhar sua filosofia), se encontra redigido numa língua, traduzível, é acessível, repleto de significados e, não menos, de subjetivações, mas, mesmo assim, recheado de criações. Via de regra, as práticas do corpo sem órgãos são privativas, nem todas se arriscam à http://portalanda.org.br/index.php/anais

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 exposição pública, talvez pela rejeição à que seriam submetidas. Mas, nas artes, elas afloram, frases de densidade semântica como “Nada de significante, não interprete nunca!” (DELEUZE; GUATTARI, 1996: 22), se tornaram palavras de ordem, onde, de fato, acredita-se fabricar para si, e somente para si, um corpo sem órgãos. Mas, o que faz as intensidades de uns serem mais criativas que de outros? Em artes, disseminou-se uma crença em condições que nos inviabiliza encontrá-la, a criação, pois cairíamos na significação.

Ela está fadada à

individuação. Quando compreendo a própria lógica de criação, ela deixa de sêlo. Assim, a criação, se reserva ao momento de sua ocorrência. No entanto, nunca presenciaremos a criação, sequer temos garantia de sua ocorrência. Por esse viés, um bom manipulador de atualizações deleuzeanos (pensando em Panofsky e Bourdieu) não nos convenceria que sua produção é efeito de uma criação? Deste modo, será possível revisar aquela bifurcação em nossas pesquisas? Peço que acompanhem um tosco exemplo: tomando a filosofia do Devir como fuga às significações e subjetivações, imaginemos por um momento um presidiário cavando um buraco, fugindo de certa realidade em busca de determinada liberdade. O que os adeptos da filosofia da virtualidade tomam como digno de investigação em história, resume-se a essa fuga. Contudo, pouco se sabe onde vai dar o buraco; de qual prisão estamos falando; qual a liberdade almejada; sequer sabemos sobre o sujeito que a vivencia ou como a vivencia, uma vez que, a fuga se faz em relação algo, ela é sempre localizada, não existe fuga / fora em sua plenitude. Tais fatores são questões ausentes nas discussões em arte recente, ela sugere que todos estamos, ou devemos estar para ela se justificar, presos a padrões de significação estanques.Bifurcando, não seria uma nova busca pelo progresso travestido de Novo, uma perpetuação da busca pelo que a modernidade sempre pretendeu? Se a resposta for afirmativa, por outras vias, Deleuze e Guattari seriam tão modernos quanto Hegel, buscam algo “positivo”. Mas, o que seria esse positivo, para quem? São respostas que permanecem sombrias, abrindo brechas para uma realidade em

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 que a arte contemporânea se encontra no topo da cadeia alimentar na estética recente no Brasil, com seus textos, festivais, exposições e editais. Deste modo, reconhecer as virtualidades em arte, seja lá o que isso signifique, ou não, é um passo muito curto para investigação das relações entre humanos, grosso modo, lidamos com as atualizações: a violência, a exclusão, o racismo, o sexo, apenas existem enquanto atualizações. Numa analogia simplória (novamente tosca), quando notamos a presença de um inseto, como o mosquito, ao pousar sobre a tela de uma televisor ou computador, notamos que ele não se espanta com a dita realidade forjada (diferente da virtualidade), pois ela não toca toda natureza, ou aquilo que significa. O inseto responde à ação real, concreta, quando, movemos nosso braço em sua direção, o bicho alça voo, em outras palavras, ele responde aos órgãos. Não alcançamos a virtualidade, lidamos apenas com as atualizações, com o virtual atualizado, reagimos frente aquilo que nos toca, incomoda, agrada. Engana-se aqueles que pensam alcançar a virtualidade do pesquisado. É cômodo, seguro e ingênuo explicar as mudanças somente pelo devir, ele responderia a tudo, ao passo que produz uma nova concepção do “agora” por ele mesmo, deixando de lado os efeitos dessas mudanças (é aqui que o outro lado da bifurcação ataca). Assumir o devir nessa perspectiva, é abrir mão de sua própria ocorrência, sua atualização, da fabricação de ações humanas que afetam outros humanos e seus efeitos, pois eles existirão. O virtual, desejo, intensidade, como oposto à significação e subjetivação adquirem sentido apenas em relações humanas. Tornar a vivencia daquelas instâncias como essências, é limitar nossa compreensão. Finda por gerar representações de modos de sentir e existir, tornando a filosofia do Devir, paradoxalmente, rica em significados. A proposta deleuzeana da criação, do animal, da fuga, se aproxima da busca nitzscheana pelo “espírito livre”, ancorado numa forma de organização da vida humana a muito extinta da arte ocidental, a tragédia na Grécia Arcaica. O potencial de instabilidade, incerteza que permeava toda a vida do homem grego arcaico, um princípio criador da arte e do mundo, de seus deuses, suas relações humanas. O processo de http://portalanda.org.br/index.php/anais

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 fornecer realidade à ficção criou o olimpo e a tragédia grega. Hoje, lidamos com relações humanas onde não apenas o espectador comum, permeado por sua racionalidade, se torna distante dessa concepção de criação; os próprios artistas fragmentam suas vidas, compartimenta o momento da criação, restrita a arte, dos demais momentos de sua vida. Ela, a arte, muitas vezes, sequer sai da porta de ensaio / estúdio / ateliê. As relações amorosas, políticas, econômicas, intelectuais estão à mercê de instituições, da moral, das contas a serem pagas, tornando a arte algo distante do restante da vida e recheada por órgãos. Serão as intensidades assim tão controláveis? O artista a usa quando quer, em lugar e horário específico? Será ela tão subjetivada? A arte dionisíaca atuava apresentada em Origem da tragédia: proveniente do espírito da música, como meio de quebrar a individualidade ao produzir intensidades ausentes de sujeito definido (NIETZSCHE, 2005: 54-55). Em nossos dias, presenciamos algo oposto, é o artista, em toda sua individualidade, com sua formação particular que, subjetivada, define como sujeito que, utopicamente, manipula os significados para suprimi-los. É um exercício intelectual, que busca romper com uma racionalidade instituída, ou melhor, é ser racional para quebrar certos galhos da racionalidade. Dubiamente, temos antes uma experimentação do conhecimento para gerar o instinto, o altruísmo, tipicamente socrático, reina nos usos artísticos pelos adeptos da filosofia do virtual. Se essa linha de perspectiva está coerente, o artista de hoje, produzindo com ímpetos animalísticos, dionisíacos, seus procedimentos

guardam,

ambiguamente, proximidade com aquele “demônio” que nasce com o teatro de Eurípedes, o “socratismo estético” (NIETZSCHE, 2005: 73), no qual o artista se encontra num esfera superior ao espectador e à multidão; ao passo que este deve realizar sua contemplação quieta, onde o belo é sempre passível de explicação. Quando o artista rompe com esse funcionamento, ancorado em preceitos intempestivos, ele não consegue alterar a relação com o publico tal como deseja, findando por excluir o espectador da obra, fragmentando a vida entre aqueles que conseguem fruir com a obra e os que não. Vivemos um http://portalanda.org.br/index.php/anais

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 tempo de dissonância entre uma arte que busca se pautar por impulsos ancorados num modo de produzir arte da antiguidade arcaica grega com um publico midiático, que desdenha e alija o dionisíaco, nega a valia de causas sem efeitos e dos efeitos desvinculados de suas causas. O Exercício aqui é de releitura da distinção realizada por Nietzsche acerca do teatro trágico arcaico de Ésquilo e Sófocles, dionisíaco, incerto, criativo; do teatro de Eurípedes, tido pelo filósofo como organizado, racional, socrático, fixo, verdadeiro. Tal oposição na Grécia faz referencia tanto ao artista quanto a seu público, ou seja, o teatro dionisíaco era apresentado a um observador que percebia e vivia sua vida de maneira intensa, incerta e criativa; ao passo que o teatro de Eurípedes fala a uma Grécia racional, filosófica, significativa, que busca o belo, a verdade, o justo. Frente as incursões filosóficas de Deleuze e seus usos na arte, temos uma cena contemporânea onde a produção se aproxima daquela definição trágica dionisíaca e um espectador formado por uma moralidade significativa, que busca direitos fixos, verdades e justiça comum a todos, herdeira de uma formação judaico-cristã, ocidental, comunga da recente noção de direitos humanos, crente no poder médico, jurídico, político em vigor. A filosofia do Devir propõe, como recurso esquizofrênico de Deleuze, o patológico, o subversivo às regras socialmente estabelecidas, o uso do sofrimento como parte do jogo estético e do mundo que habitamos, legitimando as incertezas, possuem âncora na concepção dionisíaca de teatro e vida antiga trabalhado por Nietzsche. Contudo, remontar a esse panorama em tempos correntes de forma intempestiva, onde o sofrimento e o patológico é algo que deve ser evitado, se torna falacioso, pois, inclusive os artistas o evitam, para além de sua apresentação “artística”. A resistência às concepções tratadas neste texto pelos apegados a suas certezas, mesmo as advindas de teorias que se apresentam rizomáticas, é um exemplo do quanto evitamos o sofrimento, as incertezas. O primeiro passo é assumir não apenas uma concepção filosófica como mais sensível que outra, mas reconhecer nossa

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 incapacidade humana na contemporaneidade, de criar algo para a vida de forma abrangente, de sermos livres plenamente. Quem define essa liberdade? Eu? Deleuze? A crítica? Será livre o pesquisador que cumpre exigências da Capes de Bolsa Produtividade, que possui carga horária fixa de disciplinas a serem ministradas, número de orientandos mínimos, artigos e textos a serem publicados? Será livre o individuo que cria em sua arte, mas que mantém uma relação sexual monogâmica? É livre o artista que deve premeditar seus gastos numa planilha de orçamento, prestar contas, surpreender a cada ano, biênio ou triênio as expectativas de um publico sedento por novidade? Somos livres em relação a que? Se formos responder a essas questões, notaremos que burlamos, dubiamente, com situações diversas que inviabilizam tratar as relações humanas em nossas pesquisas de maneira bifurcada, recorrendo e circunscrevendo-nos em apenas uma corrente teórica. Se negarmos as significações e subjetivações a um nível em que tudo é opressivo, limitado, castrador, estaremos com tal postura, executando uma castração. Como em Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres é lançada a provocação: “...se todos somos enganados, por isso mesmo não somos também enganadores?” (NIETZSCHE, 2005: 10). Nosso exercício deve ser uma revisão permanente, investigar não apenas o ocorrido, mas nossas próprias concepções que guiam nossas pesquisas. Um ser livre é aquele que se liberta do “dever”, nesse sentido, toda teoria é opressora, o virtual para o artista se tornou hoje um dever. Em meu ver, os embates intelectuais travados acerca de definições conceituais a serem utilizadas nas pesquisas em história e arte, possuem em seu cerne, uma diferença que não é teórica / erudita, mas sim mesquinhamente política, institucional, egocêntrica e muitas vezes partidária. A negação ou apego na existência da realidade, por exemplo, é subterfúgio conceitual usual para negar a complexidade das relações humanas. Concepções materialistas da história e as pós-qualquercoisa, são aqui compreendidas como suportes teóricos densos, indispensáveis para uma investigação séria acerca das http://portalanda.org.br/index.php/anais

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 relações humanas contemporâneas. Existem e são utilizadas por encontrarem eco na vida humana, não estão “pairando no ar”. Lidamos com questões diferentes o suficiente para existência de material teórico variado, do mesmo modo que, negligenciar uma delas em nossas análises, é deixar de perceber certas relações humanas, é deixar manca a investigação, evitando o sofrimento, a dor, a incerteza e prol de uma esmola de verdade. Caminhando por essa trilha aberta, podemos notar o quanto o ofício de historiador, mesmo se declarando incerto, não está apto à ambiguidade. De Marc Bloch a Paul Ricoeur, o distanciamento do julgamento e da compreensão é um recurso de fabricar conforto. Quando Ginzburg parte do investigador ao invés do delegado, o historiador é separado do ato de julgar, apesar de emitir juízos. Essa postura isenta o pensador de problemas políticos historicamente construídos e de sua contribuição, mesmo não declarada e assumida. É uma “miragem”, a pretensão a um modelo estritamente compreensivo, que se redime a enumerar e compreender as diferenças, pois, o mesmo corpo que escreve, não está distante de sua existência enquanto ser humano, que possui emprego ou não, família, relações sexuais, afetivas muito específicas. Ao mesmo tempo que suponho e milito pela criação, leciono em determinada instituição, seleciono determinadas disciplinas a serem ministradas, escolho minha parceira sexual, em suma, efetuo julgamentos, não estou apto a, de fato, relativizar minhas experiências, por que a faria em minha pesquisa? Acontece que um discurso neutro é, com menos dúvida, mais aceitável. Não se trata aqui de (re)construir classes, ou de fazer sociologia da arte, mas de não negar as diferenças com as quais nos relacionamos e, principalmente, aquelas que negamos validade, ou pelo menos, dignidade artística, intelectual, moral. Sobre esse aspecto nos adverte Nietzche em Humano, demasiado humano: [...] nenhuma experiência relativa a alguém, ainda que ela esteja muito próxima de nós pode ser completa a ponto de termos um direito lógico a uma avaliação total dessa pessoa [ou fenômeno]; todas as avaliações são precipitadas e têm de sê-lo. (...) a consequencia disso tudo seria, talvez, que de modo algum deveríamos julgar; mas se ao menos pudéssemos viver sem avaliar aversão e inclinação! (NIETZSCHE, 2005: 37).

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 Aqui podemos notar o quanto o pensamento denso de Deleuze é ambiguamente fecundo e horrendo. Recorrer a ele é perceber que ser livre é ser injusto, é emitir julgamentos, realizar condenações. A própria arte se define, produz, circula, por meio de julgamentos. A noção de justiça, como a de igualdade, são categorias morais, que busca submeter os homens a uma noção de responsabilidade. Grosso modo, possuir responsabilidade é inviabilizar o ser “livre”, (Ibidem, p. 45) ao passo que o individuo livre, não submetido às responsabilidades, está apto a ser injusto. Nesse sentido, o artista, ao ser livre, criação, mesmo que restritamente a arte, ele gera injustiças, não se trata de ser bom ou ruim (como o marxismo faz, pois lida com a verdade moral, ontológica, da igualdade) mas de ser diferente e de compartilhar outros princípios. Todavia, a questão é perceber que ele é moral e amoral, o artista, oscilando com suas expectativas, se define em relações. É absurdo supor criação o tempo todo, tornando, novamente, irrisória a bifurcação, ao percebermos que os “espíritos livres”, com os quais sonhava Nietzsche, continuam sendo espectros, e as práticas esquizo de Deleuze são tão significativas entre artistas e intelectuais que delas comungam, quanto o são, o rap dos Racionais Mc`s na periferia paulista, o tecno-brega em Belém do Pará, o axé na Bahia e os CTG`s (Centros de Tradições Gaúchas) no Sul do País. Dispomos de relações humanas complexas suficientes para suportarem as contradições teóricas disponíveis para investigações históricas em arte. Supor criações em arte é assumir uma postura em que a maldade está engendrada e completa a vida. Justo e injusto caminham de mãos dadas. No entanto, encontramos artistas e intelectuais, por mais divergentes que sejam, cavalgam suavemente em suas charretes guiadas por um altruísmo. Suas práticas não se assumem como excludentes, defendem a importância da arte para a vida humana, mas se esquecem de mencionar: para vida de quem? Essa negligência é suprida pelo outro lado daquela bifurcação. Mas não nos enganemos, trata-se do mesmo objeto, da arte praticada por seres humanos, “livres” ou não. Por isso a afirmação de que: “Quando não sabemos o mal que faz uma ação, ela não é uma ação maldosa” (Ibidem: 74). http://portalanda.org.br/index.php/anais

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 Ora, novamente, não estamos próximo da concepção de Bourdieu segundo a qual a dominação não aparece como dominação, haja vista que, aqueles que praticam não a fazem por mal, reproduzindo formas de distinção? Outra vez, a já desgastada noção de que a percepção / compreensão das relações humanas oscilam de acordo com o observador. Não apenas como lugar, social, onde o sujeito observador se encontra, mas também com seus preceitos conceituais que o circundam. Por esse viés, Arnold Hauser, Arthur Danto, Antonin Artaud, Erwin Panofsky, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Pierre Bourdieu,

Raymond

Williams,

Maurice

Blanchot,

possuem

a

mesma

importância para o estudo da arte. Negligenciar um deles é negar investigação a uma fatia da história; deixar de ver por outro ângulo, pelos olhos de outras pessoas ou outros grupos que compõem a mesma vida do objeto artístico em investigação. A falácia do devir surge no momento que supomos, em análise histórica, existir qualidade artística em determinada obra ou individuo. Ao fazê-lo, e o fazemos, fabricamos veracidade a julgamentos, negando a falta do erro, do olhar diferente, é bifurcar. É com esse contraste que lidamos na vida humana, e que a mediocridade acadêmica insiste em não reconhecer. Hoje, lidamos com, minimamente, formas de percepção e criação que oscilam entre simbolismo e asignificância. Com produções cada vez mais intensas, com atualizações de virtualizações, mas que, ao mesmo tempo, não se limitam ao estado de criação, elas são expostas, apresentadas, publicadas, postas a olhares simbólicos, inclusive de artistas que não participaram do processo de criação. Pensamos na utilidade da arte a partir da vida, numa concepção mais abrangente que a individuação do devir, os excessos deveriam ser evitados (mas se trata de uma opção a ser feita), pois são eles que, ao invés de servir a vida, deterioram-na. O uso como abuso, seja na criação, que relega as significações, ou do simbolismo que alija o impulso animal, são nocivos à vida. Ambos devem contribuir na formação humana, e não determiná-la. Em outras palavras, o abusar da criação ou do simbolismo com meios de investigação é http://portalanda.org.br/index.php/anais

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 ressuscitar o monstro do determinismo. A arte apenas será útil à vida quando fazer da criatividade o suporte para não reinar as significações como exclusivo procedimento na compreensão e percepção do mundo. A cena recente de arte contemporânea assume as significações na condição de algo indesejado, um inimigo que deve ser combatido, derrotado, digno apenas de ser esquecido. A presente carceragem em que se encontram os artistas e intelectuais que pesquisam arte pelo viés do devir, lidam com uma paradoxal crença numa concepção de arte como algo distinto da cultura, e superior a esta, atitude tipicamente moderna, diga-se de passagem. Tudo que é novo, criativo, recente, recebe sua dignidade e legitimidade únicas de arte pelo homem criativo, tratando todo o resto como igual, e estima com grandiosidade poucas coisas. Hoje é possível ser artista contemporâneo sem amadurecimento das próprias significações, ou da história. Jovens são lançados às urnas eletrônicas, ignorantes do que é uma guerra, um programa político ou a elaboração de uma legislação para uma política cultural. Do mesmo modo que somos bombardeados com novas realidades através de informações vindos de programas midiáticos, jogos eletrônicos, redes sociais; também passamos às instalações, adentramos a salas de espetáculos carentes de qualquer formação. Munidos da filosofia do Devir e do desprendimento das significações (religiosas, políticas, ideológicas, morais), não nos inquietamos mais, ou não como a trinta anos, com algo estranho, não nos impressionamos com quase nada, ao passo que aceitamos quase tudo. Diante essa complexidade que retomo ao pensamento de Nietzsche (com a utopia de “ajeitar” a casa), e alertar que o uso intempestivo abriu uma nova caixa de pandora, onde a prostituição e barganhas conceituais absurdas, podem aparecer camufladas sob o véu de criação. Deleuze não é uma ilusão? Uma utopia na qual é interessante se vincular como meio de justificativa? Trocamos um apela outra estabelecendo um fim, a criação como fim (corpo sem órgãos, linhas de fuga, virtualidade, fora)? Tornando o homem menos valioso do que os meios que lhes asseguram sua existência criativa? Falácia... não pelo processo do devir, mas pelo uso localizado desse, na arte, http://portalanda.org.br/index.php/anais

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 segmentando-a da vida. Lidamos com um descompasso entre arte e o resto da vida (política, economia, família). A arte se vinculou ao novo, à criação, mas não para a vida (sequer a do artista criativo); dando manutenção a ações políticas medonhas, caracteristicamente caudilhas. Ressalto nesse momento, que não pretendo uma igualdade pautada na democracia moderna, mas sim, não negar que as relações são diferentes e desiguais (a militância pela igualdade deixo a cargo de seus crentes). A ilusão, que fornece adeptos possui um olhar de cima. O artista, o estudioso de arte deve descer do pedestal, para não se levar facilmente, como o fez utopicamente Nietzsche e Deleuze. Se o cristianismo se apresentava como um poder significante que sufocava práticas subversivas, hoje encontramos cristãos homossexuais, mulheres casadas e nada submissas. A capacidade de uso humano é maior do que prevê a filosofia do Devir. Nunca existiu sentido fixo, mas formas de vê-lo como fixo. A filosofia do Devir nos modelos de Deleuze e Guattari, para se tornar crível, necessita que a princípio, o interlocutor acredite que existem sentidos fixos, ou pelo menos que esses, via de regra, controlam suas vidas. Se em Origem da tragédia, Nietzsche afirmou que em fins do século XIX o cristianismo com suas verdades absolutas “expatria toda a arte para o reinado da mentira, isto é, nega, maldize e condena.” (NIETZSCHE, 2005, p. 18), nesse início de século XXI é a filosofia do devir que a faz com a cultura, indigna de qualquer criação, fadada à mesmice e ao simbolismo regrado. Qual a utilidade da arte quando produzida e exposta segundo princípios que meia dúzia de pessoas participam? Onde vivem? Trabalham? Qual o dinheiro investido e de onde vem seu financiamento? Sua valorização implica em não valorização de outras produções humanas? São interrogações que muitos dos adeptos à filosofia do devir se esquivam, mas que compõem a complexidade das relações humanas. A oscilação entre estratos e liberdade exigida por Deleuze e Guattari para fabricação do corpo sem órgãos não é posta em prática pelos pesquisadores que deles se utilizam, optando em tratar de rupturas bruscas, que findam por assassinar o próprio corpo sem órgão. http://portalanda.org.br/index.php/anais

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 A falácia consiste não na filosofia do devir, mas nos pesquisadores e artistas que dela fazem uso, tornando a arte algo inútil para vida. Talvez seja necessário recorrer a alguns órgãos para torná-la algo que contribua para compreensão das relações entre os homens.

Quem negará a criatividade

vinda das intensidades de torcer para um time de futebol, onde não há garantia de verdade do resultado, mas é significação por ser verdade a filiação do sujeito com o clube. As coisas ocorrem em simultaneidade. O desejo é intenso não por vir da virtualidade, mas por se chocar com as significações. É nesse encontro que se cria. O desejo se faz nessa encruzilhada. O time perder, é algo intenso, pode gerar atos criativos (violência) por meio da significação. Do mesmo modo, os artistas se reconhecem (para não dizer que se identificam) na filosofia da criação, arte como algo criativo. A incerteza do resultado produz intensidade, mas existe certeza quanto a criação. Investigar os afetos humanos por via das significações, numa perspectiva estritamente materialista é inutilizar a filosofia do Devir. Porém, extremá-la ao seu oposto, finda por inviabilizar ação humana como pura criação, sob a crença em algo que poderíamos chamar de “intensidade por ela mesma”. O problema, insisto, não se localiza na filosofia, mas em seus usuários, tratando-a na condição de convicções, que não estão isentas a situações diversas quando postos em relações econômicas, políticas e culturais com as quais artistas e intelectuais lidam em suas vidas cotidianamente, onde o corpo sem órgãos se encontra preenchido de intensidades e subjetivações, indissociáveis uma da outra. Referênciais ARTAUD, Antonin. Le théâtre et son double. Paris: Éditions Gallimard, 1964. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Como criar para si um corpo sem órgãos. In: ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Tradução de Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Ed. 34, 1996. p.9-29. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.

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NAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Memória e Devires em Linguagem de Dança – Maio/201 NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre História. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro/ São Paulo: EDPUC-RIO/Loyola, 2005. ______. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 ______. Origem da tragédia: proveniente do espírito da música. Tradução de Marcio Pugliesi. São Paulo: Madras, 2005. ŽIŽEK, Slavoj. Órgãos sem corpos: Deleuze e consequências. Tradução de Manuella Assad Gómez. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008.

Rafael Guarato Professor do curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Goiás e doutorando em História Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]

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