A FAMÍLIA BRASILEIRA NO CAPITALISMO TARDIO: INDUSTRIALIZAÇÃO E URBANIZAÇÃO NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX

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A FAMÍLIA BRASILEIRA NO CAPITALISMO TARDIO: INDUSTRIALIZAÇÃO E URBANIZAÇÃO NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX José Roberto Corrêa Such1 RESUMO: O presente artigo pretende abordar o processo de educação da “família tradicional” brasileira a partir da análise do manual de Boas Maneiras lançado na coleção Biblioteca do Lar, em 1963, de autoria de Íside M. Bonini e lançado pela Editora Edigraf. Seu objetivo é analisar as mudanças e permanências na relação entre os componentes da família “ideal” para este manual, contextualizando a fonte com as transformações ocorridas no Brasil entre 1940 e 1970 e a consequente mudança nos papéis desempenhados pela figura do pai, da mãe e dos filhos na família brasileira, buscando sublinhar as conquistas femininas no início do século XX, mas também a posição tradicional do discurso do manual no que concerte ao ideal de mulher restrito ao trinômio esposa/mãe/dona de casa. PALAVRAS-CHAVE: Gênero. Mulher. Família. Século XX.

O objeto do presente artigo é o processo de educação da família “tradicional” brasileira, à luz da coleção de livros Biblioteca do Lar, conjunto de seis tomos que apresentam, além de receitas culinárias, três volumes dedicados às “boas maneiras” – tanto em família quanto em sociedade – bem como orientações gerais à dona de casa, constituindo assim uma espécie de manual para uma família “ideal”. Essa referida coleção foi escrita por Iside M. Bonini e lançada pela Editora Edigraf no início dos anos 60, o que pode nos dar uma ideia de um “retrato ideal” de uma família tradicional justamente em um período de grandes transformações econômicas e sociais no Brasil, mudanças essas relevantes para a transformação do conceito de família no processo histórico brasileiro. Deste modo, pretende-se realizar uma discussão pelo viés da perspectiva de gênero, buscando problematizar os papeis sociais de cada membro da família – pai, mãe e filhos – , o que se esperava de cada um desses sujeitos, seus limites, as relações entre todos nesta configuração de “família nuclear” e suas ações tanto no público quanto no privado. Qual era o perfil da sociedade brasileira no início da década de 1960? João Manuel Cardoso de Mello e Fernando Novais (in SCHWARCZ, 1998) analisam as 1

Especialista em História Cultural pela Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória-PR

mudanças sociais que o intenso processo de industrialização brasileiro e a consequente urbanização acelerada causaram na população brasileira no período entre 1945 e 1964. Observa-se uma sociedade em constante movimento. Se em 1950 a população majoritariamente morava no campo (41 milhões, contra 10 milhões de habitantes nas cidades), nas três décadas seguintes a industrialização brasileira causou um êxodo rural que mobilizou 39 milhões de pessoas para as cidades brasileiras. A vida urbana no Brasil em plena expansão industrial trouxe, em maior ou menor escala, novas oportunidades para os três elementos formadores desta nova sociedade: o imigrante europeu, o migrante rural e o negro após a Abolição. Ainda que essa nova sociedade conservasse um “privatismo patriarcal”, a nova sociabilidade proporcionada pela industrialização e o consequente novo padrão de consumo por ela proporcionado incutiram na sociedade brasileira um conjunto de valores capitalistas, afetando assim também a família: não mais governada pelo passado, pela tradição, mas agora pelo futuro, pela aspiração à ascensão individual na hierarquia de trabalho. Como consequência, a modernidade traz uma nova ética fundada em novos valores morais, e consequentemente uma mobilização pela “moralização” da sociedade. Ganhavam força os valores da nova classe média brasileira. Em que medida essas transformações interferem na configuração da família brasileira? Analisando as mudanças nos arranjos familiares no século XX, Elza Berquó (in SCHWARCZ, 1998) aponta para um período de passagem de uma família hierárquica para uma família mais igualitária, sobretudo entre as camadas urbanas. As sucessivas alterações no Código Civil de 1916 que gradualmente deram maior possibilidade de emancipação às mulheres (estabelecimento da separação sem dissolução de vínculo em 1946, Estatuto da Mulher casada em 1962, regulamentação do divórcio em 1977), bem como o aumento do tempo de escolaridade tanto para homens – mas, sobretudo para as mulheres - alteraram o tamanho da família brasileira: alteração da proporção entre solteiros e casados entre 1940 e 1960 (de 40,8% para 50,6% e de 34% para 57,7%, respectivamente); se a média etária no momento do casamento do homem permaneceu praticamente inalterada (27,6 anos), a da mulher aumentou consideravelmente (de 21,7 em 1940 para 24 anos em 1970); o tamanho médio de uma família entre 1950 e 1970 era de 5 pessoas; e a taxa de fecundidade da mulher brasileira

era de 6,2 filhos entre 1940 e 1960, diminuindo progressivamente desde então, sobretudo devido a fatores como o desenvolvimento dos anticoncepcionais, o crescente aumento da participação das mulheres na sociedade e uma maior preocupação com o planejamento familiar. Em 1970, 57,6% das famílias brasileiras eram compostas pelo núcleo casal + filhos. As mudanças ocorridas na sociedade brasileira no século XX estão intimamente ligadas com as conquistas femininas, a ponto de preocupar a intelectualidade brasileira das primeiras décadas, como nos mostra Durval Muniz Albuquerque Júnior (2003). A oposição entre masculino e feminino permeia todo o debate político da época como representantes de forças antagônicas em choque: o rural e o urbano, o império e a república, a indústria e o comércio, a tradição e a modernidade, o público e o privado. Temia-se o que era considerada uma “feminização” da sociedade, e buscava-se reforçar a velha hierarquização dando ênfase justamente ao ideal tradicional da mulher esposamãe-dona de casa. Sintomas da horizontalização da sociedade, iniciada com a Abolição e a República, e continuada pela industrialização e urbanização que lentamente transformam a sociedade hierarquizada patriarcal em um novo modelo de família, “moderna e higiênica”, onde a vontade individual passa a ser um pouco mais valorizado: surge a moderna família conjugal brasileira, o “lar doce lar”, local de refúgio, aconchego e proteção e “higiene” contra as “agruras e poluição” do “mundo exterior”. A evolução da família no Brasil do século XX está intimamente ligada com a lenta trajetória de conquista do espaço público pelas mulheres, da sociedade patriarcal em que o casamento era indissolúvel, não afetivo, visando apenas a procriação e à manutenção da propriedade em um modelo de casamento endogâmico dentro da estrutura da parentela, a essa nova configuração da família nuclear fundada no amor e no afeto. Assim, historicamente às mulheres sempre foi reservado papel central no privado, na família, tendo estas sempre como o determinante de seus papéis sociais: filha ou esposa. O discurso da “natureza feminina”, formada pelo “instinto maternal”, pela “fragilidade e a dependência” contrapunha-se ao do homem “forte, “racional” e corajoso”. Assim, a essência feminina e o seu fim era a maternidade e o casamento. Por

trás dessa imagem, uma relação de violência que submetia sempre a mulher ao homem, e controlando seus anseios e seu comportamento com antagonismos como “pura” e “casta”, “santa e pecadora” ou “Maria e Eva”, com a mulher sempre devendo cuidar da honra, que pertencia a seu marido, não a ela própria (PINSKY e PEDRO, 2012). Com a modernidade, a industrialização e a urbanização, começa a se formar um novo tipo de sociedade, e logo surge a necessidade de construção de uma nova moral para esta, para determinar o que seria agora considerado “distinto”, “digno” e “civilizado”. E neste contexto a mulher é escolhida para o papel de pedra fundamental deste novo modelo de família, a “mãe dedicada”, “responsável pela formação moral das crianças”, “submissa ao marido”, enfim, a rainha do “lar doce lar”, enquanto ao homem ainda reservava-se o papel de “chefe de família”, o “provedor” desse novo ideal de família burguesa “civilizada”. Esse novo ideal de família fica bem explicito no Código Civil de 1916, que apesar de várias alterações permaneceu vigente no Brasil até o ano de 2002. Neste código, a mulher era considerada “incapaz”, “necessitada de proteção e aprovação masculina”. Ou seja, à mulher não era reservado o direito de trabalhar sem autorização do marido, administrar bens, decidir sobre o futuro dos filhos e era considerada apenas “companheira, consorte e auxiliar” nos encargos, ou seja, hierarquicamente inferior ao marido na relação matrimonial perante a lei (CORTÊS in PINSKY e PEDRO, 2012). Vale ressaltar, porém que essa não era exatamente uma realidade na sociedade brasileira durante as primeiras décadas do século XX. A figura masculina nem sempre estava presente em muitos lares, bem como no início da industrialização a mão de obra feminina era largamente usada nas primeiras fábricas do país, pela força de trabalho feminina ser menos onerosa para os industriais. É somente com o avanço da urbanização, a partir da década de 1940, que começa a crescer entre as elites brasileiras a necessidade de controlar a grande massa de novos trabalhadores urbanos, com sua “pobreza” de moral. Justamente por isso, a legislação brasileira começa a proteger o trabalho feminino a partir desta década, não necessariamente para proteger o direito das mulheres, mas para mascarar uma dominação masculina, uma vez que os direitos trabalhistas agora tornaram as mulheres uma mão de obra mais onerosa para os industriais; e mesmo o discurso da “rainha do lar”, que pretendia fazer da mulher uma

“prestigiada” pelo fato de ter seu sustento garantido pelo marido, escondia o trabalho pesado ao qual estavam submetidas as mulheres brasileiras em seus lares (SCOTT in PINSKI e PEDRO, 2012). Como as mudanças no que é considerado “moral” geralmente nascem nas classes altas, a partir dos anos 20 percebe-se um lento progresso nessas relações familiares. Começa-se a criar uma “Pedagogia do Casamento” (MALUF e MOTT in SEVCENKO, 1998), onde o amor passa a ser mais valorizado (como controle dos impulsos sexuais) dando-se maior importância para o namoro (SCOTT in PINSKI e PEDRO, 2012). E nesse contexto, a educação e a instrução ganham nova importância para a “manutenção” da família. Lentamente a liberdade feminina vai se expandindo, sob forte influência das mudanças socioeconômicas que o Brasil passou a viver no século XX. Ter uma filha ainda era uma “dor de cabeça”, mas as mulheres vão gradualmente conquistando novos espaços com o aumento das oportunidades de trabalho proporcionadas pela industrialização, pela chegada das influências tanto do cinema americano quanto dos modismos franceses, mas, sobretudo pelo aumento da escolarização das mulheres, trazendo às “boas moças de família” novos ideais de beleza, de juventude, de consumo. Em 1942, foi instituído o artigo 315 no Código Civil, que possibilitava a separação nos matrimônios, ainda que sem dissolução de vínculo. Isso trouxe às mulheres brasileiras uma grande marginalização social – a “desquitada” -; porém é o início da liberalização das mulheres e do afrouxamento do poder patriarcal sobre suas vidas. No ano seguinte, 1943, as mulheres conquistam finalmente o direito de trabalhar fora de casa “sem a autorização expressa do marido (SCOTT in PINSKI e PEDRO, 2012). A boa moça dos “anos dourados” (a partir da década de 1950) ainda deve ter “gestos contidos”, “boas maneiras”, ainda deve saber “portar-se em público”; porém, gradualmente vai conquistando uma melhor autonomia no “ir e vir”, no mercado de trabalho. O crescimento dos meios de comunicação brasileiros na década de 50, sobretudo a influência do american way of life, começam lentamente a contrapor-se ao moralismo que anteriormente era quase que monopólio da Igreja Católica. Evidentemente não se trata de um movimento de brusca ruptura: tal liberalização é marcada por mudanças consideráveis, mas também inúmeras continuidades. Tais

mudanças acabaram culminando no “Estatuto da Mulher Casada”, de 1962. Com essa alteração no Código Civil, as mulheres passam a ter legalmente considerada a sua “condição de companheira, consorte, colaboradora dos encargos da família, cumprindolhe velar pela direção material e moral desta” (SCOTT, in PINSKI e PEDRO, 2012, p. 23). A condição ainda é de submissão ao marido; a mulher é apenas uma “colaboradora” de seu marido, mas comparando com a situação das mulheres no Código Civil de 1916, podemos considerar um significativo avanço. O Estatuto da Mulher Casada de 1962 também é pertinente para os propósitos desta pesquisa uma vez que a publicação da “Biblioteca do Lar” data justamente no início da década de 1960, e seu discurso já pode dar indícios desse novo papel atribuído às mulheres brasileiras:

A família deve ser unida, deve cultivar os sentimentos afetivos comuns para que, na falta deles, nenhum de seus membros busque fora de casa o que lhes falta no lar. Os pólos de onde partem e para onde devem convergir todos os liames que prendam a família são os pais. Portanto, tem os pais deveres inalienáveis, dos quais se devem desincumbir com habilidade; desde o amor recíproco entre os esposos, aos cuidados com os filhos e, enfim, a atenção para com todos os que deles dependem. (BONINI, 1963, p. 87)

A historiografia nos mostra como a década de 1960 foi determinante para a conquista de direitos de diversos grupos sociais antes marginalizados, entre os quais as mulheres. Na referida década e na posterior as possibilidades de educação, inclusive universitária, aumentaram para as mulheres, o movimento feminista ganhou novo impulso, o desenvolvimento da pílula anticoncepcional deu às mulheres (e também aos homens) novas possibilidades de controle de natalidade e planejamento familiar. As mulheres intensificam sua luta por maior reconhecimento no mercado de trabalho, ainda que as desigualdades entre os sexos se façam presentes até o dia de hoje. Mas esse processo de emancipação das mulheres da autoridade masculina, que tem início nos anos 1940, culmina finalmente em 1977, quando somente neste ano surge uma lei que regulamentou o divórcio, dando às mulheres a possibilidade de dissolver o vínculo com os maridos e – se quisessem – criar uma nova família. Possibilidade esta que lentamente passa a alterar a configuração da família brasileira.

Após este breve balanço na mudança da legislação em relação às mulheres no século XX – e consequentemente da família, uma vez que a mulher ainda era considerada o “papel central” na família brasileira - e considerando a década de 1960 como um período de grandes mudanças sociais, pretendemos à luz destes fatores analisar essa fonte histórica, um manual de “boas maneiras” desta mesma década, e analisar as mudanças e permanências nessa relação de gênero que se dá dentro de um grupo familiar, e tentar traçar assim os papéis que a cada membro da família era conferido, em um “modelo ideal” de família proposto pela autora. As mulheres brasileiras nos anos 1960 conquistavam novos espaços, mas isso realmente lhes conferia uma libertação do estereótipo de “rainha do lar”?

A administração da casa compete à mulher. O bom andamento administrativo é favor de ordem e de economia ao qual a boa dona de casa deve dedicar algumas horas diariamente. (BONINI, 1963, p. 32)

À mulher é conferida uma maior participação no espaço público, mas acima de tudo ela ainda é a única responsável pelo lar, “refúgio do homem”, o qual por ela deve ser bem cuidado. A sociedade brasileira estava em transformação, uma nova ética capitalista trazida pela industrialização acelerada refletia-se no ambiente privado, mas a desigualdade de papéis ainda estava evidente: o Brasil era industrial e urbano; porém, à dona de casa isso significa, como nos mostra a referida fonte, um novo ideal capitalista para o “ser dona de casa”: há um item no manual que fala sobre o “Taylorismo aplicado aos trabalhos domésticos”, ou seja, ao confinamento da mulher no espaço privado, podemos perceber uma lógica de produção industrial adaptada aos afazeres domésticos diários. O referido manual, claramente dirigido para o público feminino, indica uma nova preocupação estética para as mulheres, o cuidado que estas deveriam ter com a saúde, a higiene, e a estética (orientações como cuidados com a pele, cabelo, corpo, mãos e unhas, etc.). A mulher ideal de nossa fonte já se preocupa mais com sua beleza, ainda que orientada pela manutenção da atenção do marido. Mas será que não houve mudanças na relação marido x mulher, imperceptíveis no cotidiano mas que possam ser indicadas no discurso da fonte?

O marido, o pai de família, tem a obrigação de dar o exemplo do bom comportamento, da serenidade e da equidade. Muitos homens apresentam uma dualidade que os tornam pouco apreciáveis: na rua, nas festas, no clube, mostram-se alegres, divertidos, desenvoltos; logo, porém, que entram em casa, mudam completamente de humor, tornando-se bruscos, agressivos, intolerantes. Cônscios de sua importância como donos da casa e chefes de família acham que tem o direito de descarregar sobre os seus familiares seu humor variável e iracundo. Descarregam sobre a mulher e os filhos toda a cólera acumulada durante o dia por causa de contratempos nos negócios, de desgostos pessoais ou decepções, como se as pobres criaturas tivessem de pagar pelas culpas alheias. Não é de se estranhar que estas um dia se revoltem e demonstrem sentimentos rancorosos. (BONINI, 1963, p.90)

O homem ainda é apresentado como o “provedor da família”, a “cabeça” do lar, responsável pelo sustento material da casa. Mas agora, pelo menos no discurso, é cobrado ao pai de família também um maior afeto, compreensão e carinho; “bom humor no lar”, ser a “diretriz amorosa da casa”. A relação permanece desigual, mas não seriam esses indícios de uma mudança no papel de “ser o homem da casa”? Em todo caso, ainda que se espere do homem um sujeito mais “afetuoso” nesse discurso, o homem ainda deve buscar a sua “rainha do lar” perfeita, modesta, recatada, que saiba ostentar a “joia preciosa de um sorriso”:

Muito mais sensato é o moço que escolhe uma esposa uma analfabeta afetuosa e meiga, capaz de chegar ao sacrifício pelo seu profundo amor, do que aquele que prefere uma jovem de aprimorada cultura, que sabe tocar vários instrumentos, que fala vários idiomas, que pratica vários esportes, que é versada em letras, ciências e artes, mas que desconhece o valor de um cruzeiro e tem uma bola de carne viscosa no lugar onde a analfabeta guarda o coração. (BONINI, 1963, p. 91)

De modo que podemos fazer uma leitura dessa fonte enquanto discurso conservador de uma sociedade brasileira em transformação, cujos ideais da mulher e da família ainda resistem face às transformações que a sociedade experimentava naquele período:

Nunca deve esquecer que nada e ninguém no mundo é capaz de deprimir e fazer desaparecer o entusiasmo de um homem, de paralisar tão completamente suas energias, como a própria esposa. A maior desgraça para um homem é casar com uma mulher egoísta e despótica. A mulher inteligente e educada procura ser a síntese da suavidade; nesta disposição de ânimo ela transforma o lar num autêntico oásis. A serenidade de suas atitudes e palavras

impede conflitos inúteis e sempre aborrecidos, além de granjear para si mesma aquela veneração que tão vem se quadra à mãe, à esposa, à dona de casa. A gentileza, o sorriso, a doçura, são as grandes armas com que a mulher vence todas as batalhas da vida (BONINI, 1963, p. 92)

Outra mudança que podemos destacar, a partir dos anos 1950, é uma lenta mudança no “centro das atenções” da família. Se a “esposa ideal” era, além da boa dona de casa e da boa esposa, ela também deveria ser uma boa mãe; ou seja, lentamente os filhos vão ganhando maior importância dentro desta nova família nuclear brasileira, tornando-se o bebê o novo “reizinho” da casa, desbancando a figura do pai (PINSKY in PINSKI e PEDRO, 2012)

O bebê é o rei da casa. Ele absorve as atenções gerais da família, a qual não regateia mimos, carinhos e cuidados infinitos. Não há duvida de que ele é o centro das atenções, mas, com tantos mimos, não raro se consegue transformar a criança num pequeno tirano avesso a qualquer limitação. Entretanto, não sendo o carinho incompatível com a firmeza, pode-se fazer largo uso dele sem, contudo, perder a autoridade. É fácil, com um beijo, estabelecer os limites justos, mas isso constitui uma verdade ciência. (BONINI, 1963, p.96)

De fato, outra consequência importante da industrialização acelerada e da crescente urbanização brasileira na primeira metade do século XX trouxeram mudanças à família nuclear no que concerne à criação dos filhos. Com a lenta conquista feminina de espaço no mercado de trabalho, as mulheres passam a ter menos filhos, e mais tarde. Com o aumento da oferta de escolarização, esses filhos passam a ficar durante um tempo maior com a família. E com o desenvolvimento de novos métodos anticoncepcionais, aos pais além de decidirem quando teriam seus filhos, podiam agora também planejar melhor sua família. E a educação desses filhos ganha importância. Na Biblioteca do Lar, de Iside M. Bonini, a criação dos filhos tem um grande destaque. Da importância de se evitar o ciúme quando havia mais de uma criança na casa, até o tratamento delas “como crianças, e não como adultos”. No livro fala-se até em “direitos infantis”, alertando aos pais leitores sobre a “justa medida” na educação de seus filhos. O papel da “boa mãe” enquanto principal formadora da criança, mas podemos notar alguns indícios de uma nova distribuição de papéis na educação das crianças no lar:

A infância é a parte mais breve da vida, contudo, é a mais importante, pois, da maneira como for orientada a educação, durante este período, depende toda a vida futura da criança; equilibrada, feliz, ou doentia, desordenada e infeliz. A felicidade dos filhos é produto da inteligência, compreensão e paciência dos pais se estes, em tempo, souberam orientá-los pelo rumo certo. É inegável que é só a família quem forma o coração e o caráter da criança. (BONINI, 1963, p.102)

Uma série de cuidados com a criança é descrita no manual, de higiene ao comportamento, das brincadeiras consideradas “sadias” ao cuidado para não criar crianças mimadas, mas ao mesmo tempo alertas contra severidade excessiva contra as crianças. Até mesmo o cuidado “com os amiguinhos” faz parte das orientações; pois é o “outro” que pode incutir nos filhos certos “vícios”, “desvios de caráter” e até “promiscuidade” de certos “amiguinhos aderentes”, que possuem certas “deficiências”, trazendo o risco da formação de uma “amizade mórbida”:

A maneira correta de comportar-se na escola, também é ensinada pela mãe; os professores cuidam da disciplina geral, mas certos pormenores compete aos pais ensiná-los; (...) Entretanto, a promiscuidade com crianças de todos os tipos, algumas sem vislumbres de delicadeza, contribui para que se formem os maus hábitos, tão difíceis de erradicar quando assimilados. (BONINI, 1963, p. 104)

Com a chegada da adolescência, os velhos padrões voltam a ser reforçados. A menina deve ser educada para ser uma boa dona de casa, acima de qualquer grau de escolarização, afinal era a “natureza feminina”, “o mais belo título se pode atribuir à mulher”. A mãe, “seja qual for sua fortuna e posição social, ela habituará cedo a filha aos afazeres da casa. Não há nisso a menor inferiorização.” (BONINI, 1963, p. 118) O dever paterno na educação familiar é o da formação cultural. É essa formação é, sobretudo, destinada aos filhos homens. É ele quem deve cuidar das “leituras saudáveis” do filho, cuidando para que o lar seja um ambiente de estudos que desvie o filho de “evasões perigosas” e, sobretudo, preparar o filho homem para “assumir o seu lugar” caso seja necessário:

Um rapaz solidamente educado desde pequenino, com uma boa educação moral e religiosa, dificilmente se tornará um “playboy”. Compete sobretudo ao pai ampará-lo nesse período de transição. Assim como desvendar-lhe

inteligentemente os horizontes incognocíveis. É dever sacrossanto do pai realizar o papel alicerçador desse edifício em construção, para que se complemente sua estrutura. Mas, cuidado, nenhuma coerção violenta, nenhum regime nazista conseguirá dar ao filho uma nobre personalidade como o pode fazer a amizade e a camaradagem paterna. O pai deve associar o filho às suas preocupações materiais; é grave erro excluí-lo dos problemas relativos ao progresso e segurança do lar, assim como deixá-lo na ignorância dos seus negócios, das suas atividades, das suas aspirações. O filho deve ser habituado a considerar-se não só o continuador da obra do pai, mas também em condições de poder substituí-lo em qualquer eventualidade, quer na manutenção, quer no apoio, quer na direção da família, se o pai vier a faltar. (BONINI, 1963, p.119)

Convém também apontar para as preocupações expressas pela autora em relação às mudanças que começam a acontecer entre os jovens na década de 1960. Segundo a autora, naqueles dias a juventude vivia em um meio conturbado, pelo “imediatismo utilitarista e amoral”, o “relativismo avassalador e desresgenciado onde tudo é permitido”, o “culto do físico” em vez da “cultura física”, e as “leituras perigosas”, que estavam causando “uma marxização e uma freudização de todas as consciências, explicando pelo econômico e pelo social, unicamente, os fenômenos da vida” (BONINI, 1963, p. 121). A culpa disso, atribuída pela autora, é do cinema, “da literatura socializante” e do esportismo:

A juventude vive nele freneticamente. Começa pelo cinema e pelo esportismo – que se não deve confundir com o esporte – para logo entrar na literatura socializante – romances de tendência, ensaios, estudos, sem contar os livros de pornéia e do sexo” (BONINI, 1963, p. 121-122)

A primeira vista, concluímos que a “família ideal” segundo esse manual de boas maneiras possui permanências e mudanças, avanços e posições retrógradas, influenciadas principalmente pela moralidade católica. Como último exemplo desse posicionamento, vale citar as causas do que a autora chama de “delinquência juvenil”, segundo uma pesquisa de “Harward” (sic). Os delinquentes eram filhos de mães que bebem excessivamente, onde 65% tinham permissão dos pais para agirem como bem entenderem, 60% vivem em lares onde não imperava a harmonia entre o casal, 70% não possuíam no lar nenhuma forma de recreação, 30% vinham de lares onde os pais não se interessavam pelas amizades dos filhos, 80% alegavam excessiva indiferença das mães

(contra 60% dos pais) e 50% viviam em lares desfeitos pelo “desquite”. (BONINI, 1963). Até que ponto esse “modelo ideal” apresenta evoluções na família brasileira? Até que ponto ele reforça estereótipos e relações desiguais de gênero? Minha pesquisa em andamento pretende discutir não apenas a história das mulheres, mas também dos homens, das crianças e adolescentes, em suma, da família. Quais eram os papéis da mãe, do pai, dos filhos e filhas no início da década de 1960, considerada o início de uma revolução comportamental na história, no discurso da construção da “família ideal” nesse manual de boas maneiras?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo – Uma história do gênero masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió: Edições Catavento, 2003. BONINI. Iside M. Boas Maneiras (Em Família) – Casa, Higiene, Beleza e Personalidade. Tomo I. São Paulo: Edigraf, s/d. MALUF, Marina e MOTT, Maria Lucia. Recônditos do mundo feminino. in: SEVCENKO, Nicolau. República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998 (História da Vida Privada no Brasil, volume 3). PINSKY, Carla Bassanezi, PEDRO, Joana Maria. Nova História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2012. SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998 (História da Vida Privada no Brasil – Volume 4).

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