A FAMÍLIA E O FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO NO LEGISLATIVO: AVANÇOS, RETROCESSOS E DESAFIOS EM DIREITOS HUMANOS

May 28, 2017 | Autor: D. Abreu | Categoria: Direitos Humanos, Familia, Direitos Fundamentais e Direitos Humanos, Fundamentalismo
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ANAIS CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E SOCIEDADE DO UNILASALLE GT – CIVIL JUSTICE AND DISPUTE RESOLUTION

CANOAS, 2015

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A FAMÍLIA E O FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO NO LEGISLATIVO: AVANÇOS, RETROCESSOS E DESAFIOS EM DIREITOS HUMANOS

Daniel Albuquerque de Abreu Fernanda Busanello Ferreira Helena Esser dos Reis

RESUMO: O presente artigo tem o objetivo de analisar o fundamentalismo religioso cristão presente na redação e primeiro relatório do Estatuto da Família, Projeto de Lei nº 6.583/2013, proposto e sustentado pela bancada evangélica do Poder Legislativo. Pretende discutir dois pontos fundamentais, quais sejam: a) o conceito de família trazido pelo PL em contraposição com a decisão de vanguarda prolatada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011 (ADPF nº 132-RJ e ADI nº 4.277-DF) que reconheceu a pluralidade das entidades familiares brasileiras; e, b) a (in)existência de relações entre a visão fundamentalista da família singular com as conquistas e avanços dos direitos humanos, em especial nos campos da tolerância, inclusão, subjetividade e do reconhecimento do outro. PALAVRAS-CHAVE: Fundamentalismo; família; exclusão; direitos humanos. 1 INTRODUÇÃO

Em 16 de outubro de 2013, foi apresentado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 6.583, proposto pelo Deputado Anderson Ferreira (PR-PE), que “dispõe sobre o Estatuto da Família e dá outras providências”. Logo no segundo artigo do PL é definida a entidade familiar como sendo “o núcleo social formado entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” [grifos no original]. A redação do artigo deixa claro que a proposta do Deputado autor do projeto pretende excluir uniões como as homoafetivas, anaparentais, em mosaico, eudemonistas26, contrariando a tendência dos Tribunais Superiores27 de ampliar a semântica do termo. De acordo com Dias (2009), as uniões homoafetivas são aquelas entre pessoas do mesmo sexo. As anaparentais são constituídas pela convivência entre pessoas, não necessariamente parentes, dentro de uma estrutura com propósitos semelhantes. As

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No mesmo sentido tem-se o primeiro parecer do PL nº 6.583/2013, de relatoria do Deputado Ronaldo Fonseca (PROS-DF), no qual se sustenta que o constituinte delineou apenas três formatos de entidade familiar, inscritos no artigo 226, §§ 3º e 4º, da Constituição Federal de 198828, e reproduzidos no artigo 2º do PL, conforme citado. Segundo o parecer, os demais arranjos não podem ser enquadrados no conceito de família, não gozando da especial proteção do Estado. Dentre as diversas considerações que o relatório apresenta, uma merece especial destaque, até mesmo por ser a mais fustigada: a união homoafetiva. O relator defende que a introdução na jurisprudência das uniões de pessoas do mesmo sexo pelo Supremo Tribunal Federal – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132-RJ e Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277-DF – foi um equívoco. Na verdade, não apenas um equívoco, mas sim uma usurpação da prerrogativa do Congresso Nacional. Isso porque teriam sido criados direitos pela via judicial que causaram injustiça e discriminação. A “proteção de Deus” invocada na fundamentação do relatório deixa claro que, embora o Deputado relator diga ser laico o Estado brasileiro, estrutura toda a sua argumentação como se o estatuto constitucional tivesse sido fundado sob a famílias mosaico são formadas por uma pluralidade de vínculos reconstituídos por casais dente os quais um ou ambos são egressos de uniões anteriores, trazendo seus filhos para a nova família, e gerando filhos em comum. As uniões eudemonistas têm por característica a busca pela felicidade e realização plena de seus membros, por meio da comunhão de afeto recíproco, consideração e respeito mútuos entre os seus componentes, independente do vínculo biológico. Nota-se que nenhuma delas tem por base o casamento ou a união exclusiva entre homem e mulher. 27 O Supremo Tribunal Federal (STF) se manifestou favorável à adoção conjunta de uma criança ao casal homoafetivo Toni Reis e David Harrad. A decisão monocrática do Recurso Extraordinário (RE nº 846.102), proferida pela Ministra Cármen Lúcia, foi publicada em 17 de março de 2015. Na mesma toada, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve decisão que garantiu, dentro de uma união estável homoafetiva, a adoção unilateral de filha concebida por uma delas por meio de inseminação artificial, para que ambas as companheiras passem a compartilhar a condição de mãe da adotanda. O acórdão do Recurso Especial (REsp nº 1.281.093 - SP), proferido pela Terceira Turma do STJ, e de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, foi publicado em 04 de fevereiro de 2013. 28 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (BRASIL, 1988).

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proteção do divino. Mas não qualquer divino: apenas a divindade cristã ocidental29, aquela cujos valores construíram a sociedade brasileira. Infere-se um discurso fundamentalista cristão do texto do Projeto do Estatuto da Família, cuja aproximação entre uma visão estreita de família (de cunho religioso) com o texto legal é defendida por dois deputados integrantes da bancada evangélica do Congresso Nacional. Mais do que isso, o posicionamento externado por Anderson Ferreira e Ronaldo Fonseca reflete uma cosmovisão30 pautada na tradição e conservadorismo próprios dos fundamentalistas. O PL, tal como proposto, legitima uma única percepção de verdade, inimiga do moderno e do respeito às diferenças (VASCONCELLOS, 2008, p. 15-16; 49). Tal ocorre porque os ideais defendidos pelo discurso fundamentalista cristão parecem não deixar margem para a estruturação de outras famílias, como as homoafetivas. Os fundamentalistas, ancorados na verdade absoluta da Bíblia, defendem que o “homossexualismo” é abominação e pecado31. Já o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento conjunto da ADPF nº 132-RJ e ADI nº 4.277-DF, reconheceu o pluralismo como valor sócio-político Quando o relator afirma que a Constituição Federal foi promulgada “sob a proteção de Deus”, pede sejam respeitados os valores “da maioria absoluta de religiosos e não religiosos e que construiu nossa sociedade brasileira, bem como todo o ocidente” (BRASIL, 2014a). Está claro que quem protege o Estado brasileiro e que o construiu é a divindade cristã, sem que haja espaço para o mesmo respeito às outras formas de expressão religiosas (que, segundo o parecer, não tiveram parte na construção da nossa sociedade). Em sentido semelhante, o juiz federal da 17ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro Eugenio Rosa de Araújo indeferiu pedido de antecipação dos efeitos da tutela de Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal (número de origem 0004747-33.2014.4.02.5101). Alguns dos argumentos do magistrado foram que “cultos afro-brasileiros não constituem religião”; e que as manifestações da umbanda e ao candomblé não contêm traços necessários de uma religião, como um texto base (a exemplo do Corão ou da Bíblia), estrutura hierárquica e um Deus a ser venerado (BRASIL, 2014b). A decisão foi posteriormente reformada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região 30 Conforme será desenvolvido em linhas seguintes, o fundamentalismo impõe uma concepção de mundo antimodernista e apegada à literalidade da Bíblia. Dessa forma, se no livro de Gênesis está escrito que Deus criou homem e mulher para multiplicaremse e encherem a terra, é inadmissível que a modernidade pretenda legitimar outras espécies de família que não a tradicional (BÍBLIA). 31 Muito embora o termo homossexualismo tenha sido substituído há anos por homossexualidade, em razão de o sufixo -ismo portar consigo carga patológica, o vocábulo ainda é utilizado por conservadores, geralmente acompanhado da passagem bíblica de Levítico 18:22: “Com varão não te deitarás, como se fosse mulher: abominação é” (BÍBLIA). 29

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cultural, consagrando o direito subjetivo de constituir família e a inexistência de significado restritivo ao termo família, numa hermenêutica mais atenta e fidedigna à realidade social. Essa perspectiva vai ao encontro dos princípios e declarações de Direitos Humanos, que enaltecem a tolerância, a inclusão, a igualdade e a dignidade de todos os pertencentes à família humana. Parece, então, haver algo de inconciliável entre, de um lado, os pilares fundamentalistas, e, do outro, os objetivos das lutas dos direitos humanos, que transparecem na mencionada decisão do Supremo. O presente artigo se propõe a, primeiramente, analisar o fundamentalismo religioso cristão sob a ótica da tolerância a fim de verificar se e como tal fundamentalismo se faz presente na redação do PL nº 6.583/2013. Num segundo momento, entende-se necessária a discussão do conceito de família a partir da contraposição de duas visões anteriormente apresentadas: aquela singular, proposta pelo Estatuto, e aquela plural e multifacetada, cuja validade jurídica foi atestada pelo Supremo Tribunal Federal. A partir de tal embate, pretende-se chegar ao exame da seguinte questão: existirá proximidade entre o entendimento fundamentalista de família e as conquistas e avanços em Direitos Humanos?

2 TOLERÂNCIA, FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO CRISTÃO E O ESTATUTO DA FAMÍLIA

Soares (Apud VASCONCELLOS, 2008, p. 10) sugere uma íntima relação entre a intolerância e o fundamentalismo religioso: “Combater o fundamentalismo religioso não é ser intolerante. Ser intolerante com os religiosamente intolerantes é apenas salvaguardar um mínimo espaço de cidadania para que as pessoas partilhem suas visões de mundo sem se autodestruírem na empresa”. Contudo, antes de se questionar acerca dessa relação, é importante indagar qual o significado do termo “tolerância” e quais as suas relações com o fundamentalismo cristão.

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2.1. A respeito da tolerância

No século XVII, reinava em Inglaterra e França uma perseguição regada a sangue entre católicos e protestantes. O poder civil oprimia os dissidentes religiosos, impunha-lhes multas, confiscava-lhes bens. Milhares eram condenados ao cárcere, sujeitos a espancamentos, contração de doenças e, muitas vezes, à morte. Naqueles idos, “tolerar então era sofrer, suportar pacientemente um mal necessário, como uma doença ou infecção” (ALMEIDA, 2010, p. 170). A carga negativa, pejorativa do termo era bem clara: a tolerância era exercida quando não se podia impedir algo, ou ainda equivalente a conivência, aceitação ou impunidade frente algo condenável, um erro. O tolerante estava sob a ameaça de ser acusado de indiferença religiosa, mentalidade religiosa, ou mesmo subversão. Ao contrário, o intolerante era um verdadeiro virtuoso, íntegro e firme moralmente, puro de caráter (ALMEIDA, 2010, p. 170). Ao longo do século XVIII, o conceito de tolerância foi se alterando e disseminando atrelado à ideia de virtude pública. Jean-Edme Romilly (17391779), John Locke (1632-1704), Pierre Bayle (1647-1706) e Montesquieu (16891755) foram alguns dos que contribuíram para a transição do conceito: o tolerante, antes leniente em relação ao erro do outro, agora respeita as características dos indivíduos, com base na igualdade e liberdade. Para a compreensão de como o conceito foi tratado no Século das Luzes, será feita uma breve ilustração das linhas desses iluministas. Romilly escreveu o verbete “tolerância” na Encyclopédie editada por Diderot e D´Alembert; e nele reconhece a tolerância como a “virtude de todo ser frágil, destinado a viver com seus semelhantes” (ALMEIDA, 2010, p. 177). O homem, para Romilly, é limitado por seus erros e paixões, de forma que é necessária tolerância para que sejam restabelecidas a ordem e a prosperidade. Ninguém deve ser submetido a opiniões e julgamentos alheios, afinal, a evidência é relativa: “o que é evidente para um é frequentemente obscuro para outro” (ALMEIDA, 2010, p. 178). Romilly defende a separação entre Estado e Igreja, entre magistrado e religioso.

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Locke, em seus escritos acerca do tema, se apega a uma máxima cristã que se contrapõe à intolerância: o indivíduo não deve fazer aos outros o que não gostaria que fizessem consigo (SANTOS, 2006, p. 240). A tolerância está, para o inglês, de acordo com a razão e com o Evangelho. Não merecem tolerância, no entanto, os ateus, pois, na sua visão, eles são incapazes de cumprir o dever político ou respeitar as leis de convivência, ambos ligados estreitamente à crença em Deus. Quando se discute acerca de tolerância, Bayle destaca-se por apresentar argumentos não ligados às Escrituras, mas ancorados na razão e na preocupação com o outro. Todo homem deve obedecer à sua consciência, afastar o preconceito e a superstição. O poder político, para o francês, deve ser forte e assegurar a convivência harmoniosa e pacífica de todo credo – inclusive o dos ateus32 –, mesmo que haja a predominância de um deles (SANTOS, 2006). Também Montesquieu é um dos grandes filósofos que abordou o conceito de tolerância. Tolerar está intimamente ligado à virtude política secularizada, à “aceitação de um mundo cada vez mais plural, múltiplo e diverso, de outro” (SANTOS, 2006, p. 235). Dois são os fatores basilares da tolerância: um no campo pessoal – “abertura à diversidade e à diferença” – e outro no institucional – “a garantia do poder instituído à mesma diferença” (SANTOS, 2006, p. 235). Tolerância, assim, é, ao mesmo tempo, modo do indivíduo viver e expressão do poder político instituído. O conceito foi deslocado do campo moral para o público. Os limites à tolerância, para Montesquieu, são a barbárie, o despotismo e a própria intolerância, pois “apresentam características irracionais, que vão contra a dignidade humana” (SANTOS, 2006, p. 299). Importa alinhavar que, na contemporaneidade, a tolerância não deve ser tratada como “uma condescendência indiferente”, como já foi interpretada, e sim como “um respeito às diferenças dos outros, à liberdade de consciência dos 32

Bayle acredita que a religião não estabelece relação de causalidade com a moral. Da mesma forma, a irreligião não se liga, indiscutivelmente, com a imoralidade. Assim, e em contraposição a Locke, Bayle afirma que os ateus podem ser moralmente virtuosos e obedecer às leis institucionais da sociedade, já que há separação entre a vida moral e a religião. Aliás, o ateu pode ser mais virtuoso que o crente, na medida em que este apenas obedece a determinados preceitos para não ser punido por Deus. Já o ateu, livre desse temor, e longe dos interesses de recompensas após a morte, age de forma desinteresseira e virtuosa (SANTOS, 2006).

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indivíduos, à paz social e à vida política” (SANTOS, 2006, p. 266). Pressupõe coexistência pacífica das mais diversas religiões e da multiplicidade humana no espaço público. Enquanto a tolerância religiosa se pauta no respeito às diferenças e liberdades, o fundamentalismo, pela sua essência, trilha um caminho diferente – e esse é um ponto que merece atenção. A base do fundamentalismo religioso é a adesão a uma verdade. Vasconcellos (2008, p. 15) assevera que próprio conceito do fundamentalismo “poderia ser pensado na relação com a intolerância diante de quem compreende possuir e viver outra percepção dessa verdade”. Mas qual a gênese, os princípios e traços do fundamentalismo religioso, em confronto com o conceito de tolerância?

2.2 A intolerância intrínseca ao fundamentalismo religioso A expressão “fundamentalismo”33 foi cunhada pelo protestantismo nos Estados Unidos no final do século XIX e início do século XX, em oposição à modernidade científica. Embora o termo tenha surgido com os protestantes, também são perceptíveis as características fundamentalistas no catolicismo34, em reação à Reforma Protestante. 33 É importante ressaltar uma divergência na literatura acerca do vocábulo fundamentalismo. Alguns, a exemplo de Ivo Pedro Oro e Jürgen Moltmann, citados por Vasconcellos (2008), acreditam que o fundamentalismo foi criado, estruturado e exerce influências apenas no protestantismo estadunidense, de forma que não se deve ampliar o conceito para outras formas de religiosidade. Em sentido semelhante, a Ação dos Cristãos pela Abolição da Tortura – ACAT (2001) utiliza o termo integrismo para se referir ao fundamentalismo católico. Neste trabalho, entende-se que, embora a gênese do fundamentalismo religioso tenha, sido o protestantismo, há duas marcas importantes que se encontram em outras expressões religiosas: “a defesa da verdade religiosa contra o que é percebido como perigos da Modernidade, traduzidos em historicismo, subjetivismo, socialismo”, e a relação entre religião e política (VASCONCELLOS, 2008, p. 38-40). Isso não quer dizer que as expressões cristã, judaica e islâmica se equivalham, mas apenas que possuem traços comuns. 34 No século XIX, os Papas Gregório XVI e Pio IX insurgiram-se contra o liberalismo e o que entendiam como malefícios da modernidade, marcando distância entre a Igreja Católica e o mundo. As expressões fundamentalistas católicas se dão com maior intensidade no interior da própria instituição eclesial (VASCONCELLOS, 2008, p. 75): o grande temor é o aggiornamento (“atualização”) da Igreja, uma conciliação entre catolicismo e mundo moderno.

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Pelo fato de o tema estar mais afeto ao protestantismo, mesmo que o fundamentalismo esteja presente em todas as religiões, de uma forma ou de outra, com maior ou menor intensidade (GOUVÊA, 2012), este trabalho dará mais enfoque a essa vertente cristã. Os protestantes de corrente liberal do final do século XIX, adeptos de um evangelho social otimista em relação ao modernismo e à cultura, acreditavam que a crença em dogmas e na inerrância da Bíblia deveria ser abandonada, como forma de se abdicar do pretenso domínio exclusivo da verdade35. Eram sensíveis ao estudo crítico das Escrituras: a necessidade de se datar os textos bíblicos, situá-los no tempo e espaço em que foram escritos, identificar seus autores, atentar-se para o equívoco de se interpretar a Bíblia de forma literal. Os estudos críticos, muito em voga no século XIX, “apontavam que certas afirmações bíblicas, tomadas literalmente, seriam simplesmente ‘falsas’. Era preciso, portanto, relevar o aspecto mítico dos textos e destacar seu sentido moral” (VASCONCELLOS, 2008, p. 23). A teologia e, em consequência, a compreensão da Bíblia, mais uma vez sofria impactos do racionalismo e do empirismo. Os conservadores reagiram a esse posicionamento com “horror e impiedade” (VASCONCELLOS, 2008, p. 22 e 24), travando um combate ante o que denominaram de perigo liberal. A partir de 1883, teólogos protestantes britânicos, estadunidenses e canadenses36 se mostraram ativos tanto no combate à crítica superior como na defesa do criacionismo bíblico. Em 189537 foram estabelecidos fundamentos, ou princípios do protestantismo conservador, um marco na afirmação do movimento fundamentalista.

35 Na contramão da cosmovisão fundamentalista, a tolerância implica na “contínua construção de uma identidade coletiva, que não pode jamais pretender ultrapassar sua própria particularidade e por isso não pode pretender ser válida para todo sempre” (BIGNOTTO, 2004, p. 77). 36

Dentre eles Dwight Moody (1837-1899), William Bell Riley (1861-1947) e Lyman Stewart (1840-1923). 37 Mais ou menos na mesma época, em 1907, o Papa Pio X promulgava a Encíclica Pascendi domini gregis (Apascentar o rebanho do Senhor), em razão de seus temores quanto à secularização, intensificando a intransigência do catolicismo (VASCONCELLOS, 2008).

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Um desses princípios é a infalibilidade das Escrituras. Para os fundamentalistas, os textos sagrados foram inspirados por Deus, e cada letra revela a verdade. A Bíblia, norma de fé e de prática, é infalível. Outro fundamento é o da divindade de Jesus Cristo, que foi gerado por uma virgem, Maria, sem que tivesse a participação de um homem na concepção. Jesus, ao ser crucificado, remiu os pecados da humanidade por meio do sacrifício expiatório, mas ressurgiu dos mortos e voltará a reinar após o final dos tempos – uma visão apocalíptica do mundo. De acordo com esses fundamentos protestantes conservadores, a modernidade38 não traz nada senão destruição e o afastamento de Deus, sinais da Grande Tribulação e da segunda vinda do Messias. O espírito e a teologia fundamentalistas foram espalhados para reconquistarem primeiro os Estados Unidos, e logo todo o mundo, e encorajá-los a resgatarem suas matrizes cristãs. “O clima era de preparação para a guerra, não apenas para ‘defender a fé’, mas também para ‘compor uma frente unida e ofensiva’ com vistas a ‘lutar pelos fundamentos da fé’” (VASCONCELLOS, 2008, p. 32). O termo fundamentalista foi então cunhado para designar aquelas pessoas, pastores, presbíteros e professores conservadores americanos de todas as denominações protestantes históricas que, em nome dos “fundamentos, organizaram-se para defender a fé cristã do que entendiam como invasão do liberalismo em seus seminários e igrejas”. (VASCONCELLOS, 2008, p. 32) Vasconcellos (2008, p. 34) explica que, uma das formas que os fundamentalistas protestantes da época encontraram de interferir na identidade da nação estadunidense foi exercer influência39, por vezes agressiva, nos âmbitos social e político em favor de motivações evidentemente religiosas. Não bastava É interessante a observação de Vasconcellos (2008, p. 41): “[...] o fundamentalismo é um filho indesejado da Modernidade, que a contesta e por ela se vê rejeitado”. Essa consideração é sagaz na medida em que exibe um paradoxo: embora o fundamentalismo oponha-se à modernidade, ele apenas foi concebido em razão dela. 39 Vasconcellos (2008) destaca que um dos maiores veículos usados à época para a propagação dos ideais fundamentalistas era os meios de comunicação de massa. Esses meios de evangelização são ainda correntes na atualidade. Diversas estações de rádio e de televisão, a exemplo da Rede Record, TV Canção Nova, Vinha FM e Rádio Catedral FM, são destinadas a um público cristão, e as palavras ali ministradas mantêm ligação estreita com aquelas do início do século XX. 38

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que a verdade pregada se circunscrevesse ao âmbito subjetivo – era preciso que a base religiosa de toda a sociedade fosse recuperada. O movimento fundamentalista dos séculos XX e XXI muito se aproxima do fundador. Gouvêa (2012, p. 35) conceitua o fundamentalismo contemporâneo como “uma forma fanática e neurótica de religiosidade”

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que luta contra “forças

espirituais maléficas”, tais como a ciência moderna, o humanismo, a reflexão crítica, a consciência sócio-política e econômica, a arte, ou qualquer outra ideia que exprima novidade. Entendidas as raízes do termo, convém explorar as convicções fundamentalistas cristãs contemporâneas, a fim de que se possa entender o porquê de Soares e Vasconcellos (2008) haverem traçado um paralelo entre intolerância, fundamentalismo e a defesa de uma única verdade. Uma das características do fundamentalismo do século atual é a rejeição da hermenêutica, ou, como os estadunidenses do século passado e final do retrasado denominavam, a inerrância da Bíblia41. Esse traço leva ao culto da verdade singular42. Pode-se mencionar, como um exemplo desta forma de compreender as Escrituras, o rechaço às teorias modernas que explicam o surgimento da vida, em especial a darwinista, em razão de confrontarem o criacionismo

do

livro

de

Gênesis.

Para

os

fundamentalistas,

qualquer

entendimento da Bíblia, que não o literal, é condenado. As Escrituras são tidas como atemporais, desatreladas de um contexto histórico específico sob a qual foram concebidas e indicam valores de uma sociedade que devem servir de modelo para os dias atuais.

40 Silva, C. (2007, p. 39), muito embora reconheça que “fundamentalismo e fanatismo estão sempre de mãos dadas”, defende que a atitude fundamentalista pode ser inconsciente, e não “um problema de indivíduos com distúrbios afetivos, perturbados e intelectualmente inferiores”. 41

Vasconcellos (2008, p. 44-45) chama a atenção para duas peculiaridades do fundamentalismo católico. A primeira é que a reta compreensão da Bíblia e toda a sua liturgia, dogmática e ética foram postas pelo Concílio Vaticano I (1869-1870), sob o espírito do Concílio de Trento (15451563). A segunda é a “inerrância papal”, talvez mais forte que a da Bíblia.

42

A “verdade singular” varia de acordo com a vertente cristã: os católicos se julgam representantes da “Igreja de Cristo”, e os protestantes acreditam que são os únicos herdeiros do Reino dos Céus.

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A respeito dessa característica fundamentalista é saudável que se faça um paralelo com outra vertente da teologia. Muitos estudiosos contemporâneos das Escrituras entendem a necessidade de uma leitura anti-fundamentalista da Bíblia. Silva, S. (2009) critica a interpretação cristã que se dá ao Torá judeu (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio). Para o estudioso do hebraico, a tradução43 dos textos para o grego e o latim foi marcada por uma helenização dos conceitos judeus, e não uma semitização do mundo greco-romano44. Também existem diversas versões45, por vezes discrepantes, para uma mesma língua ocidental, cada uma afinada com a corrente teológica que sustenta. Outro ponto sério a ser considerado é o fato de que o hebraico arcaico é língua ideográfica, ou seja, composto de sinais que sugerem ideias ao invés de sons (SILVA, S., 2009). Em razão das traduções, ideias contidas no original acabam sendo perdidas, alteradas ou esvaziadas de valores imprescindíveis46. A reverência à verdade única e à visão elevada dos textos sagrados mantém relação de causa-consequência com outra característica fundamentalista: a rejeição do pluralismo e do relativismo. Segundo essa espécie de conservadores, o sujeito não pode interferir na definição das Escrituras, sob pena de se deixar levar pelas suas próprias experiências vividas, e comprometer a verdade objetiva do texto. A multiplicidade de interpretações da doutrina coloca em risco “sua inteireza e consistência” (VASCONCELLOS, 2008, p. 45). A razão humana, portanto, não serve para a interpretação da Bíblia. Admitir leituras plurais 43 A respeito das traduções, Silva, C. (2007, p. 40) aponta que uma das facetas do fundamentalismo é crer que o “mesmo Espírito que ‘ditou’ o quê e como deveria ser escrito garante que também as traduções tenham a mesma autoridade dos originais”. 44

É dizer que, quando o cristianismo, ainda visto como uma seita judaica, se expandiu para o mundo greco-romano, esperava-se que este fosse afetado pelos princípios judaicos que estavam sendo pregados. No entanto, quando os livros foram traduzidos para o grego, e depois para o latim, e por último para as línguas ocidentais, os conceitos semíticos incompreensíveis para os gregos e romanos foram adaptados, helenizados, para que os cristãos pudessem entendê-los, sacrificando-se, assim, grande parte de seu sentido original. Disso resulta que muitos dos trechos bíblicos expressam uma concepção helênica, e não judaica.

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Tomemos por base uma divergência clássica: a Bíblia católica tem 73 livros, a protestante, 66, e a hebraica, apenas 24. Silva, S. (2009) e Pinheiro (2008) chamam a atenção para a inexistência de uma versão padrão dos textos bíblicos, mesmo os rezados num mesmo vernáculo.

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Silva, S. (2009, p. 52) compra a Bíblia a um “grande banquete preparado para o mundo”, mas que só pode ser realmente consumido pelos que, ao menos, entendem o hebraico. “Assim, nós ocidentais, por exemplo, recebendo sua tradução literal e unilateral, podemos dizer que nos restou, deste grande banquete, apenas a sobremesa”.

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seria reconhecer e legitimar posicionamentos relativistas que ameaçam os defendidos como fundamentais. Aqui parece haver uma contradição do próprio sistema fundamentalista, uma vez que mesmo a leitura dita objetiva dos textos não deixa de passar por uma visão humana, ainda que se invoque a presença de Deus como luz dos caminhos a serem trilhados. Parijs (1997, p. 44), quando discute acerca das preferências dos indivíduos, afirma que, ainda que autônomas, elas dependem, “mesmo que muito indiretamente, de fatores ‘causais’. Há preferências pressupostas na escolha de preferências autônomas”. Conclui o filósofo belga que não existe preferência autônoma – na verdade, a própria concepção de autonomia corre o risco de servir de pretexto para “desqualificar arbitrariamente as preferências de certos indivíduos” (PARJS, 1997, p. 45). Partindo-se da premissa de que “nossas preferências afetam nossas crenças e [que] o inverso também é verdadeiro” (MONEY-KYRLE, 1996, p. 284), a doutrina fundamentalista é inevitavelmente afetada pelas preferências de seus idealizadores. Essas preferências, por sua vez, não podem ser desatreladas das vivências e das interpretações bíblicas particulares de cada um deles47. A rejeição do relativismo e do pluralismo parece não se distanciar de um farisaísmo48 velado. Todas essas características fundamentalistas refletem diretamente na militância social e política49, a exemplo das campanhas da luta pela família e da Romilly, acerca da tolerância, já antevia: nossos julgamentos são influenciados e modificados por diversos fatores, como a educação, os preconceitos, os objetos circundantes, e toda sorte de causas desconhecidas, motivo pelo qual razão de ninguém pode ser tomada como regra, e ninguém deve ser submetido a opiniões e julgamentos alheios (ALMEIDA, 2010). Também, em Locke, a tese de que existem ideias inatas é repelida (SANTOS, 2006). 48 Os fariseus eram um grupo de judeus devotos à Torá que surgiu por volta do século II a.C. No Evangelho de Lucas, capítulo 18, Jesus conta a parábola do fariseu e do publicano (cobrador de impostos no Império Romano). De acordo com o texto, o fariseu, cheio de si, exaltava a si mesmo, crendo que era justo, e desprezava os outros (BÍBLIA). O termo farisaísmo, nos dias de hoje, em sentido figurado, significa hipocrisia, fingimento (DICIONÁRIO AULETE DIGITAL). 47

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Dreher (2002, p. 82) afirma que os fundamentalistas cristãos, desde os primórdios, tinham a convicção de que a política deveria ser cristã. No que diz respeito à militância no espaço político, Pinheiro (2008) faz um estudo acerca da presença de protestantes na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988. O mandato político passou a ser visto como algo profético, um chamado de Deus. Vasconcellos (2008, p. 64-68), no mesmo esteio, trata do reingresso do

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defesa da vida. Contudo, um dos desdobramentos da militância é a violência50. Muitas manifestações transpuseram violência verbal e escrita para atingirem a física: incêndio de clínicas de aborto, espancamento e homicídio de homoafetivos, atentados terroristas, crimes sexuais. Exclusão, desrespeito, ódio, perseguição, e demonização do outro são expressões (mas nunca liberdade de expressão!) que estreitam os laços entre a intolerância51 e o fundamentalismo religioso. Nesse sentido, Gouvêa (2012, p. 73-74) não duvida do caráter preponderantemente intolerante do fundamentalismo religioso; pelo contrário: reconhece que a história do cristianismo “é salpicada de momentos da mais bárbara ignorância intolerante, como, por exemplo, as cruzadas medievais, as guerras religiosas na Europa, a condenação das bruxas em Salém, nos Estados Unidos, e mais recentemente no fundamentalismo norte-americano”. Seguir-se-á o trabalho examinando a concepção de família trazida pelo Estatuto da Família para evidenciar como a redação do PL, principalmente do primeiro parecer, deixa marcas de exclusão e antimodernismo. Tal assertiva se faz mais clara ainda após a análise do conceito de famílias plurais e multifacetadas reconhecidas juridicamente pelo Supremo Tribunal Federal.

fundamentalista protestante na cena sociopolítica dos Estados Unidos na década de 1970, citando a agenda política de Jimmy Carter e a campanha eleitoral de Ronald Reagan.

50

Romilly já escrevia que a religião, que deveria unir os homens, tem, ao contrário, tornado-se pretexto para terríveis erros, como as torturas, muito comumente utilizadas em nome da fé (ALMEIDA, 2010). Também Bayle afirmava que a intransigência de uma religião tiraniza as outras, engendra violência e impede a tolerância no espaço comum à multiplicidade religiosa (SANTO, 2006). A maior crítica em relação ao fundamentalismo, portanto, não é o fato de discordar das ciências ou dos movimentos culturais, mas de promover “o combate acirrado e violento contra as forças que ele percebe como suas inimigas, ou inimigas de sua fé” (GOUVÊA, 2012, p. 36). 51 Como afirmado em linhas pretéritas, há um mandamento cristão em Mateus 7:12 – talvez não tão em prática hoje, mas utilizado por Locke nos séculos XVII e XVIII – que se contrapõe à intolerância: “Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas” (BÍBLIA).

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3 ESTATUTO DA FAMÍLIA E SEU REPERTÓRIO DE INTOLERÂNCIA: UMA ANÁLISE

COMPARATIVA

COM

A

JURISPRUDÊNCIA

DO

SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL

É muito comum que, ao se falar de família, se remeta ao amor, afeto, união, tolerância. Gouvêa (2012, p. 73) afirma que esta última é “um dos frutos do amor e, na verdade, nenhum amor é perfeito que não contenha também tolerância para com aquele que é diferente, que age diferentemente, que pensa diferentemente”. Para o teólogo, a tolerância é sinal do amor verdadeiro, do colocar-se no lugar do outro. Por tudo o que até então foi exposto, esses não parecem ser os mesmos valores do Estatuto da Família. O Projeto de Lei, de autoria do Deputado Anderson Ferreira (PR-PE), foi escrito considerando como legítima apenas uma família singular, que tem caráter procriativo: um homem e uma mulher, que se unem por matrimônio ou união estável, ou uma comunidade formada por qualquer do pais e seus descendentes. O fato de a redação se referir sempre à “família”, à “entidade familiar”, demonstra a intenção de se excluir o pluralismo do seu próprio conceito. O primeiro parecer do PL, assinado por Ronaldo Fonseca (PROS-DF), deixa claro que o critério adotado para a restrição da inteligência de família tem relação com sua atitude religiosa52. Salientamos em linhas anteriores que o problema não é a crença religiosa – a Lei Maior de 1988 garante o direito à inviolabilidade de crença –, mas a forma com que é (im)posta. Em apertada síntese, o parecer sustenta que: a) apenas uma forma de arranjo familiar merece especial proteção do Estado, qual seja a descrita no artigo 2º do Estatuto da Família; b) o foco da família é a formação de crianças e apenas as entidades que cumprem esse papel devem usufruir da especial proteção estatal; c) o Constituinte53 delineou apenas três formatos de família, de forma que 52 É fato público que Anderson Ferreira e Ronaldo Fonseca são pastores evangélicos e membros da bancada evangélica da Câmara dos Deputados. 53 Não foi de forma despropositada que o Deputado trouxe à tona o “desejo” do Constituinte. Remetemos o leitor à obra de Pinheiro (2008), que aborda a presença marcante dos evangélicos na Constituinte de 1987-1988 nos debates acerca da

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o reconhecimento de outras configurações padece de inconstitucionalidade; d) foi um equívoco, por parte do Supremo Tribunal Federal, a introdução jurisprudencial dos pares homossexuais no conceito de família por meio da ADPF nº 132-RJ e ADI nº 4.277-DF; e) o Supremo Tribunal Federal usurpou prerrogativa do Congresso Nacional por ter criado lei ao invés de tê-la interpretado; f) as transformações sociais e culturais acerca dos arranjos familiares já foram atendidas pela Constituição Federal e não abarcam as famílias homoafetivas; g) é necessário que se diferencie “família” de “relações de mero afeto”; h) o direito de família implica em obrigações, propriedade, consanguinidade, fidelidade, pensão, geração conjunta de novos cidadãos a partir da união entre homem e mulher; i) as relações de mero afeto, entre elas a homossexual, já é tutelada pelas vias contratual e testamentária; j) o Estado brasileiro foi erigido sob a proteção de Deus: apesar de ser laico, existem valores de uma maioria absoluta de religiosos que balizam a sociedade brasileira, e devem ser respeitados; k) se adotada por um casal homossexual, que é uma estrutura anômala, a criança será privada irremediavelmente do convívio com a figura do pai ou da mãe; l) ainda não se sabe com certeza se o “homossexualismo” é um comportamento normal ou patológico; m) novas figuras da família são como um Cavalo de Troia, e a Igreja Católica faz bem em fechar as portas aos homossexuais. O ideário defendido por Ronaldo Fonseca não desmente a relação complexa que existe entre religiosidade e preconceito (ÁVILA, 2007). O Superior Tribunal Federal54, na contramão do PL – e criticado por este –, proferiu em 2011 decisão que enaltece a proibição de discriminação de pessoas em razão de sua orientação sexual, dá destaque ao direito à busca da felicidade e nega a “proteção da família” e da militância em desfavor do divórcio e dos direitos dos homossexuais.

54

O Governador do Estado do Rio de Janeiro propôs Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 132-RJ) em razão de sistemática negação de direitos, em especial os previdenciários, aos homossexuais por parte de dispositivos da legislação estadual fluminense e decisões proferidas pelo judiciário do Rio de Janeiro. No mérito, o autor postulou a aplicação do regime jurídico da união estável heterossexual às homossexuais, à luz da principiologia constitucional, e não de uma leitura reducionista da Carta da República e do Código Civil. Em sentido semelhante, a Procuradoria-Geral da República propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 4.277-DF) com vistas à declaração da obrigatoriedade de reconhecimento, no Brasil, da união homoafetiva como entidade familiar, e que possuam os mesmos direitos e deverem gozados pelos companheiros heterossexuais.

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existência de significado ortodoxo ou reducionista ao termo “família” pela Constituição Federal. Cumpre destacar aqui que o trabalho não visa a uma releitura da decisão do Supremo, mas ao apontamento do que a Corte interpreta como entidade familiar. O relator, Ministro Ayres Britto, defendeu em seu voto que o magistrado deve aplicar o Direito segundo sua dimensão objetiva e não em atenção às dimensões subjetivas próprias de cada um. Aqui, talvez, se encontre a primeira divergência entre o entendimento do Supremo Tribunal Federal e o Estatuto da Família, antes mesmo que se comece a discutir o próprio conceito de entidade familiar: o Direito não deve ser aplicado de acordo com crenças pessoais ou em obediência a esse ou àquele viés partidário. Ayres Britto critica a postura conservadora, que se incomoda quando as preferências55 alheias não correspondem ao padrão heterossexual. As uniões homoafetivas, que se caracterizam por sua durabilidade, continuidade e anseio de constituição de família,

devem

ser

juridicamente

reconhecidas

como

núcleo

doméstico

socialmente ostensivo. Britto descarta o caráter patrimonial das relações, assim como eventual caracterização de mera sociedade de fato, e evoca a aceitação e experimentação do pluralismo sócio-político-social. O Ministro chega, então, à tentativa conceitual de família. A primeira observação é a de que apenas à família foi dada especial proteção pelo Estado – e esse dado é contumazmente repetido na redação primeiro parecer do PL – em razão de ser a principal estrutura de concreção de direitos fundamentais. Esse fato é uma das justificativas para a dilatação da conceituação jurídica de família e da especial proteção constitucional, independente de procriação. Para o Ministro, nada mais coerente que reconhecer a equiparação das famílias homo e heteroafetivas. Em relação à dualidade homem/mulher constante no artigo 226 da Constituição, explica Britto que se dá em reverência a uma tradição sócio-culturalreligiosa do Ocidente. Mas não só. Também foi propósito evitar hierarquia entre

55 Muito embora Ministros do Supremo tenham usado termos como “preferência” ou “opção”, defende-se aqui a corrente de que não se “prefere” ou se “escolhe” essa ou aquela sexualidade. Seria mais adequado que se referissem a “identidade sexual” ou “orientação sexual” (NUNAN, 2003).

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homem e mulher na medida em que, não raro, a mulher que vive em regime de companheirismo é discriminada. Não se faz referência a uma homo ou heteroafetividade, sob pena de tornar a Constituição ineficaz. O Ministro Luiz Fux também apresentou seu voto. Aduz primeiramente que a verdadeira questão não é se as uniões homoafetivas são amparadas pela Constituição (sabe-se que sim), mas qual o tratamento jurídico a ser dispensado a essas uniões: o mesmo que às heteroafetivas, entre homem e mulher? Afirma que a proteção constitucional da família não se deu com vistas à preservação do modelo

tradicional,

“amesquinhamento”

pois, de

se

direitos

assim

se

fundamentais.

concebesse, Fux

entende

haveria que

um

uniões

homoafetivas se incluem no conceito de família. A ordem moral a ser considerada é que todos são iguais, e devem ser tratados com o mesmo respeito e consideração – a imposição de uma moral pré-estabelecida ou determinada visão de mundo constitui-se em afronta ao indivíduo. A Ministra Cármen Lúcia, quando de seu voto, exarou o entendimento de que a realidade das uniões homoafetivas é componente do quadro social contemporâneo. Reconhece que, contrariamente ao que afirmou Ayres Britto, a referência à dicotomia homem/mulher no § 3º do artigo 226 da Constituição Federal não remete a uma superação da histórica hierarquização dos sexos: as discussões na Assembleia Constituinte de 1987-1988 deixam claro que as razões foram outras56. A referência expressa à dicotomia, no entanto, ao ver de Cármen Lúcia, não impede que a união possa a ser formada por pessoas de mesmo sexo. O voto seguinte foi proferido pelo Ministro Ricardo Lewandowski. Argúi que não há como enquadrar a união homoafetiva nas espécies de família delineadas pela Carta da República, já que essa não era a vontade do Constituinte. Cita trechos que, conforme nos havia avisado Pinheiro (2008), evidenciam os trabalhos da bancada fundamentalista para que a união homoafetiva fosse excluída do conceito de família. Lewandowski, no entanto, sente a necessidade de se reconhecer as uniões de pessoas do mesmo sexo, mas segundo parâmetros de outra entidade familiar, uma quarta espécie, que não as já Remetemos mais uma vez aos estudos de Pinheiro (2008).

56

3681

abarcadas pela Constituição. Segundo o entendimento do Ministro, o rol que apresenta o artigo 226, § 3º, da Lei Maior, é exemplificativo, e não taxativo. Nada impede, assim, que as uniões homoafetivas possam integrá-lo, contanto que sob a roupagem de uma outra entidade familiar (“união homoafetiva estável”) não idêntica à união estável heteroafetiva, mas que se coloca ao lado dela, juntamente com o casamento e as famílias monoparentais. O Ministro Joaquim Barbosa votou em sequência. Indaga se o silêncio da Constituição a respeito da união homoafetiva deve ser interpretado como indiferença e banimento dessa espécie de família. Todavia, chega à conclusão de que o rol de direitos fundamentais não se esgota nos exemplificados no texto constitucional, e, dentre eles, destaca o da vedação de discriminação. Reconhecer as uniões homoafetivas é imperioso, de acordo com Barbosa, não em razão do artigo 226, § 3º, da Carta da República, mas de todos os dispositivos que protegem os direitos fundamentais. O Ministro Gilmar Mendes, em seguida, consignou em seu voto que a ausência

de

regulamentação

normativa

específica

acerca

das

uniões

homoafetivas importa em insegurança jurídica e prejuízo no reconhecimento de direitos dos indivíduos. Após uma exegese no que tange ao direito comparado, afirma que o assunto está afeto ao reconhecimento do direito de minorias, de direitos humanos e fundamentais básicos. Entretanto, uma simples “leitura interpretativa alargada” do artigo 226, § 3º, do texto constitucional importaria em equívoco concernente à devida técnica interpretativa. Mendes não recomenda a singela equiparação irrestrita da união de pessoas do mesmo sexo à de sexos diferentes, em vista do tumulto que poderia ser causado pelos efeitos que a decisão teria em outros tantos ramos jurídicos. Por fim, limita-se ao reconhecimento da existência da união homoafetiva, que deve ter um modelo de aplicação de proteção semelhante à união estável heterossexual. O Ministro Marco Aurélio exarou, em seu voto, que, ao se decidir acerca do impasse, o Supremo Tribunal Federal não transborda os limites da atividade jurisdicional. Marco Aurélio aborda temática de suma importância essencial: a influência da moral no Direito. Em sua visão, razões de cunho moral ou religioso não devem preponderar em todas as esferas, nem mesmo orientar o tratamento

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dispensado a direitos fundamentais pelo Estado, sob pena de ofensa à laicidade estatal e à liberdade religiosa. Segundo seu voto, houve uma reformulação e pluralização do conceito de família, consubstanciada na superação de determinados costumes e convenções sociais. Família deve ser compreendida como construção social. Para o Ministro, é mister que a união homoafetiva seja reconhecida como regime familiar equiparado àquele das uniões estáveis heteroafetivas. O penúltimo votante, Ministro Celso de Mello, iniciou analisando a história da repressão e persecução aos crimes de sodomia em Portugal e colônias. Os homossexuais, aponta, foram perseguidos pelas autoridades seculares e eclesiásticas da época, reflexo da forte influência do Concílio de Trento. Vê no rompimento de paradigmas históricos e culturais forma de se reconhecer o direito à orientação sexual e a legitimidade das uniões homoafetivas como entidade familiar. No entender de Celso de Mello, os princípios que regem a Constituição, dentre eles o afeto, constituem-se um sistema que busca a inclusão, e não a exclusão. O regime democrático, assevera o Ministro, não tolera nem admite opressão da minoria pela maioria. Assim sendo, o § 3º do artigo 226 da Lei Maior não é óbice para o reconhecimento das uniões homoafetivas. Por fim, se manifestou o Ministro Cézar Peluso, então Presidente do Supremo Tribunal Federal, em prol do reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar, uma vez que nenhum dispositivo constitucional assim o veda. O que diferencia, afinal, as duas posições discutidas? O Supremo Tribunal Federal acredita que a concepção de família envolve, ao mesmo tempo, aspectos subjetivos, sociais, culturais e espirituais, e não unicamente biológicos. A família, para os Ministros, não se limita a formalidades cartorárias e civis, nem a liturgias religiosas ou deveres de procriação. Antes, envolve intimidade, carinho, confiança, amor, solidariedade, comunhão, identidade, tolerância57. Essa é uma Ministro Ayres Britto: “Afinal, é no regaço da família que desabrocham com muito mais viço as virtudes subjetivas da tolerância, sacrifício e renúncia, adensadas por um tipo de compreensão que certamente esteve presente na proposição spinozista de que, ‘Nas coisas ditas humanas, não há o que crucificar, ou ridicularizar. Há só o que compreender’”. (BRASIL, 2011)

57

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grande contrariedade entre as visões de família talhadas pelo PL e pela Suprema Corte. Embora o Evangelho pregue o amor abrangente, a misericórdia indistinta de Deus e o diálogo (AÇÃO DOS CRISTÃOS PELA ABOLIÇAO DA TORTURA, 2001), a bancada evangélica fundamentalista adota o entendimento reducionista de família, destituído de vínculos afetivos e de mútua assistência. A família é vista como instituição erigida sob a proteção da propriedade e a procriação, desapegada de valores como empatia, afetividade, propósito de felicidade, Ministro Luiz Fux: “Deveras, os únicos fundamentos para a distinção entre as uniões heterossexuais e as uniões homossexuais, para fins de proteção jurídica sob o signo constitucional da família, são o preconceito e a intolerância, enfaticamente rechaçados pela Constituição [...]. O homossexual, em regra, não pode constituir família por força de duas questões que são abominadas pela nossa Constituição: a intolerância e o preconceito. [...] A pretensão é que se confira juridicidade a essa união homoafetiva para que eles possam sair do segredo, para que possam sair do sigilo, para que possam vencer o ódio e a intolerância em nome da lei”. (BRASIL, 2011) Ministra Cármen Lúcia: “Considerando o quadro social contemporâneo, no qual se tem como dado da realidade uniões homoafetivas, a par do que se põe, no Brasil, reações graves de intolerância quanto a pessoas que, no exercício da liberdade que lhes é constitucionalmente assegurada, fazem tais escolhas, parece-me perfeitamente razoável que se interprete a norma em pauta em consonância com o que dispõe a Constituição em seus princípios magnos. [...] Tanto não pode significar, entretanto, que a união homoafetiva, a dizer,de pessoas do mesmo sexo seja, constitucionalmente, intolerável e intolerada, dando azo a que seja, socialmente, alvo de intolerância, abrigada pelo Estado Democrático de Direito. Esse se concebe sob o pálio de Constituição que firma os seus pilares normativos no princípio da dignidade da pessoa humana, que impõe a tolerância e a convivência harmônica de todos, com integral respeito às livres escolhas das pessoas”. (BRASIL, 2011) Ministro Joaquim Barbosa: “Com efeito, se é certo que num primeiro momento bastava aos reivindicantes que a sociedade lhes demonstrasse um certo grau de tolerância, hoje o discurso mudou e o que se busca é o reconhecimento jurídico das respectivas relações, de modo que o ordenamento jurídico outorgue às relações homoafetivas o mesmo reconhecimento que oferece às relações heteroafetivas”. (BRASIL, 2011) Ministro Celso de Mello: “Isso significa que também os homossexuais têm o direito de receber a igual proteção das leis e do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual. [...] Busca-se, com o acolhimento da postulação deduzida pelo autor, a consecução de um fim revestido de plena legitimidade jurídica, política social, que, longe de dividir pessoas, grupos e instituições, estimula a união de toda a sociedade em torno de um objetivo comum, pois decisões – como esta que ora é proferida pelo Supremo Tribunal Federal – que põem termo a injustas divisões, fundadas em preconceitos inaceitáveis e que não mais resistem ao espírito do tempo, possuem a virtude de congregar aqueles que reverenciam os valores da igualdade, da tolerância e da liberdade”. (BRASIL, 2011) [grifos no original]

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fraternidade, pluralismo – o que, segundo Locke, vai de encontro com o próprio texto bíblico. A união homoafetiva, tão açoitada pelos defensores do Estatuto da Família, encontrou resguardo pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de afronta à dignidade dos indivíduos homossexuais e da democracia. Os Ministros concluíram que não se justifica qualquer interpretação pelo ordenamento jurídico que afronte os direitos humanos. Já os fundamentalistas, parte de uma maioria cristã, fustigam a possibilidade de conquistas emancipatórias aos homoafetivos, uma vez que creem que qualquer relacionamento, que não o legado por Deus, é pecaminoso. Nesse momento, em vista da análise comparativa entre o conceito de família do PL e da Suprema Corte, indaga-se: existem relações entre direitos humanos, conquistas emancipatórias homoafetivas e fundamentalismo religioso? Em nome do respeito aos direitos humanos, pode-se limitar a vontade da maioria?

4. FUNDAMENTALISMO, FAMÍLIA E DIREITOS HUMANOS: AVANÇOS E RETROCESSOS

Os direitos humanos podem ser compreendidos como um processo histórico da afirmação do valor da dignidade da pessoa humana com base na modernidade a partir de restrições à discricionariedade do governante (LAFER, 2006). Relacionam-se com “a abertura da sociedade moderna para o futuro” (LUHMANN Apud NEVES, 2005, p. 6). A partir do século XX, direitos são entendidos “como limites ao próprio legislador: eles tornam-se [...] princípios constitucionais superiores, garantidos frente ao poder legislativo (e não apenas frente a um poder autoritário) por meio de órgãos apropriados para o controle de legitimidade das leis” (MARRAMAO, 2007, p. 5). Não há como se dissociar, como se vê, os direitos humanos da modernidade: A modernidade, que no final do século XVIII inaugura a era das grandes declarações dos direitos humanos, nascidas na esfera ocidental, mas estendidas para o mundo inteiro (a “Declaração” de 1984, na qual nos baseamos e que foi adotada pela ONU, é “universal”), faz parte do nosso patrimônio. Estamos perfeitamente ligados a ela. Com ela, defendemos a liberdade do homem que

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integrismos e fundamentalismos negam. (AÇÃO DOS CRISTÃOS PELA ABOLIÇAO DA TORTURA, 2001, p. 7).

Também o conceito de família se tornou – ou melhor, se reconheceu – mais abrangente a partir da modernidade e do pluralismo, decisivos para a emancipação e reconhecimento das uniões homoafetivas em sua dignidade. O Ministro Gilmar Mendes, na oportunidade de seu voto acerca do reconhecimento de uniões estáveis de pessoas do mesmo sexo, enumerou algumas tentativas de avanço legislativo em relação a essa temática, dentre elas: a) Projeto de Lei nº 1.151/1995, proposto pela Deputada Marta Suplicy (PT-SP) visava assegurar às pessoas do mesmo sexo o reconhecimento de sua união civil, com enfoque na proteção a direitos como o de propriedade, sucessão, equiparação do/a companheiro/a do mesmo sexo a cônjuge; b) Proposta de Emenda à Constituição nº 139/1995, de autoria também da Deputada Marta Suplicy (PT-SP) - objetivava alterar a Constituição para incluir a liberdade de orientação sexual e a vedação explícita ao preconceito; c) Proposta de Emenda à Constituição nº 66/2003, levada a cabo pela Deputada Maria do Rosário (PT-RS) resgatava o teor da PEC nº 139/1995; d) Proposta de Emenda à Constituição nº 70/2003, apresentada pelo Senador Sérgio Cabral (PMDB-RJ) - tratava da alteração do § 3º do artigo 226 da Constituição para o reconhecimento das uniões homoafetivas como unidade familiar. No âmbito internacional, não se pode deixar de mencionar a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 da ONU58, a Declaração de Princípios sobre a Tolerância de 1995 da UNESCO59 e o Pacto de São José da Costa Rica de 196960. Declara que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direito, dotados de razão e consciência, devendo agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades aqui estabelecidos, sem distinção de qualquer espécie (NAÇÕES UNDAS).

58

59

Declara que a tolerância é o sustentáculo de direitos humanos, pluralismo, democracia e do Estado de Direito. Tolerância não se confunde com suportar a injustiça social, imposição de opiniões a outrem, ou mesmo renúncia às convicções de cada um. Pelo contrário, mas sim garantir que cada indivíduo possa escolher livremente as suas convicções e ser aceito pelos demais. Deve-se aceitar o fato de que cada ser humano se caracteriza naturalmente pela diversidade, e tem o direito de viver em paz e de ser tal como é (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA).

60

Os Estados-Partes comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades reconhecidos e a garantir o livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição,

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Existem, é inegável, tentativas de avanço legislativo a respeito do tema, mas o Congresso Nacional não assume uma posição concreta em virtude, principalmente, de uma “maioria” (moral ou lobbysta61?) que não aceita, com base e premissas religiosas, que constituam família os casais do mesmo sexo. Falar de união homoafetiva é, sabemos, falar de modernidade, tolerância e direitos humanos.

Mas

não

é

falar

de

fundamentalismo

religioso

cristão

ou

conservadorismo. A Ação dos Cristãos pela Abolição da Tortura (2001, p. 41-42) conclui que “Para um fundamentalista, a própria noção de direitos humanos é quase ímpia. [...] Liberais, comunistas, homossexuais ou partidários do aborto são vistos como demônios, e ir contra eles e as suas ideias é combater o bom combate”. É incongruente imaginar que fundamentalistas cristãos proponham avanços legislativos em matéria de família e direitos humanos. Em face do que foi dito, conclui-se que a concepção fundamentalista de família vai de encontro com as conquistas e avanços em direitos humanos, na medida em que se mostra exclusivista, antiecumênica, antimoderna e fechada ao diálogo. Os direitos humanos, de outro lado, perfilham o caminho da cidadania, reconhecimento, pluralismo cultural e justiça. Militam em prol da proteção às escolhas privadas e religiosas e em desfavor da discriminação e do preconceito. Os direitos, princípios constitucionais de ordem superior, devem ser garantidos pela soberania nacional e em conformidade com os anseios modernos. Cumpre destacar que, mesmo que a maioria esmagadora da população e do Legislativo se resigne à verdade cristã, tão prejudicada pelas suas variadas traduções (SILVA, S., 2009), ainda assim os direitos humanos e fundamentais sem discriminação alguma por qualquer motivo (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS). 61 O jornal O Globo, por exemplo, referiu-se às bancadas parlamentares religiosas como “lobby religioso” na matéria “Dilma enfrenta lobby religioso para vetar projeto que dá assistência a vítimas de estupro”, conforme . Também o periódico Gazeta do Povo veiculou, em 2013, a matéria intitulada “Eleição de pastor para comissão expõe outro tipo de lobby setorial”, por meio da qual afirma que a eleição do deputado pastor Marco Feliciano (PSC-SP) para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados foi fruto de articulação e influências da bancada evangélica, conforme . Acesso em: 13 abril 2015.

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não poderiam se curvar a credos majoritários desrespeitosos e intolerantes62, sob pena de obstrução da emancipação social das minorias. Citando Habermas (2003, p. 153), o princípio do exercício do poder no Estado de Direito, como é o brasileiro, “parece colocar limites à autodeterminação soberana do povo, pois o ‘poder das leis’ exige que a formação democrática da vontade não se coloque contra os direitos humanos positivados na forma de direitos fundamentais”63. Afinal, como dizia Bayle, o poder político deve garantir a convivência pacífica de todas as crenças, mesmo que haja a predominância de uma delas (SANTOS, 2006). Talvez um dos maiores avanços em direitos humanos no que respeita à família seja o fato de que, a partir da desvinculação da visão ortodoxo-religiosa de família pelo Supremo, a influência religiosa na Constituinte de 1987-1988 perdeu força, sobretudo na sua luta ferrenha contra os homossexuais. A concepção de família, caso observada sob a miopia do fundamentalismo cristão, corre o risco de se tornar um retrocesso em direitos humanos. O primeiro parecer do Estatuto da Família deixa claro que a singularidade ali defendida obsta o gozo de direito fundamentais e da dignidade de parte da população plural que é a brasileira. Por fim, Touraine (1999, p. 190) aponta um caminho para que essas e outras diferenças possam conviver juntas: reconhecermos que “nossa tarefa comum é combinar a ação instrumental e identidade cultural”. Só conseguiremos viver juntos, continua o sociólogo francês, se cada indivíduo, não importa sua orientação sexual, religiosidade, raça, cor, sexo, gênero, idioma, opinião política, Deve-se questionar, nesse momento, se a intolerância deve ser tolerada. Para Romilly, os limites da tolerância são a preservação da sociedade civil (ALMEIDA, 2010). De forma similar, na concepção bayliana, os limites são a compatibilidade com a ordem pública. (ALMEIDA, 2010). Em Montesquieu, não devem ser tolerados a barbárie, o despotismo e a própria intolerância, por afrontarem a dignidade humana (SANTOS, 2006). Já em Locke, não merecem tolerância os ateus, em razão de serem incapazes de cumprir o dever político ou respeitar as leis de convivência (SANTOS, 2006). A esse respeito, Bignotto (2004, p. 62-63) afirma que “Se o par necessário da tolerância é a intolerância, é preciso reconhecer que a fronteira que as separa não está dada para sempre, e que a mudança na linha de separação não é anódina”. Conclui que sempre existe um limite para o tolerável, “e ele determinará de maneira muito direta as ações que julgaremos adequadas sempre que a diferença afirmada de um grupo ou de um indivíduo se manifestar de forma agressiva”. 63 Poder-se-ia aqui aprofundar a discussão para as relações entre direitos humanos e democracia, que não é o alvo deste trabalho.

62

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construir a si mesmo “como sujeito e se obtivermos leis, instituições e formas de organização social cuja finalidade principal seja proteger nossa busca de viver como sujeitos de nossa própria existência”.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Existe uma inegável ligação entre doutrinas fundamentalistas e alguns universos políticos. A Ação dos Cristãos pela Abolição da Tortura (2001, p. 8) bem ressalta que todo movimento religioso procura manifestar-se publicamente, e todos têm esse direito quando se vive num Estado Democrático de Direito. “O problema é que os integristas e os fundamentalistas apresentam-se como detentores da verdade e querem impor suas regras de pensamento e ação a todas as pessoas, a toda a sociedade, para o bem de todos”. Não raro, utilizam do método da violência para conseguirem atingir seus objetivos. No embate pelo reconhecimento de sua união como entidade familiar, os homoafetivos

confrontam

a

verdade

reacionária

e

intolerante

dos

fundamentalistas religiosos, que se fazem representar no Parlamento. O Estatuto da Família é (mais) uma das demonstrações de que se pretende impor (mais) regras de determinadas vertentes religiosas, ainda que majoritárias, a toda a nação, mesmo que tolham direitos fundamentais. A afirmação dos direitos humanos e seus avanços é história de luta que muda de acordo com contextos e circunstâncias, e que “continua na ordem do dia para quem tem a crença no valor da dignidade humana” (LAFER, 2006, p. 14). É avessa à exclusão e à intolerância, pedras de tropeço lançadas pelo Estatuto da Família.

REFERÊNCIAS

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