A farsa da interdisplinaridade

June 23, 2017 | Autor: P. Faria Nunes | Categoria: Education, Science Education, Higher Education, Transdisciplinarity
Share Embed


Descrição do Produto

A FARSA DA INTERDISCIPLINARIDADE Paulo Henrique Faria Nunes Goiânia, O Popular, 13 mai. 2014 Milton Santos (1926-2001), um dos maiores nomes da geografia no Brasil, graduou-se em direito. Antes de se dedicar à compreensão da complicada dinâmica espacial, esse pensador baiano esteve envolvido com o sisudo mundo das leis. Além de muitas outras honrarias e do reconhecimento de sua obra fora de seu país de origem, foi laureado em 1994 com o prêmio Vautrin Lud – uma espécie de Nobel da geografia. Outro brasileiro cuja obra é reconhecida internacionalmente e, muito possivelmente, seja mais estudado fora do que em sua terra natal é o médico pernambucano Josué de Castro (19081973)... no Brasil de hoje, quiçá, um notório anônimo ou – conforme o subtítulo de um livro do jornalista Vandeck Santiago – um “gênio silenciado”. Conquanto graduado em medicina, ele é mais lembrado como cientista social, geógrafo ou diplomata. Importante nome na história da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), seus trabalhos Geografia da fome (1946) e Geopolítica da fome (1951) – parte de uma vasta obra – ainda são importantes referências. Esse nordestino também se notabilizou por ter sido indicado três vezes ao prêmio Nobel: de Medicina (1954) e da Paz (1963 e 1970). Mais recentemente, seu nome voltou à cena no livro-homenagem Destruição em massa: geopolítica da fome, escrito pelo sociólogo suíço Jean Ziegler (Cortez, 2013). Outro médico que tem um papel importante nas ciências humanas é o lusitano Jaime Cortesão (1884-1960). Seus estudos sobre o Tratado de Madrid são leitura obrigatória para todo aquele que se dispõe a estudar em profundidade a formação do território brasileiro. Ministrou cursos sobre a história da cartografia e história da formação territorial do Brasil no Instituto Rio Branco. Historiadores, internacionalistas, geógrafos, politólogos e cientistas sociais ainda hoje reconhecem a relevância de seus estudos. As áreas do conhecimento mencionadas acima também aplaudem outro corpo estranho, o linguista norte-americano Noam Chomsky. Embora originário de outra esfera acadêmica, é bem possível que esse professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) seja lembrado, no futuro, mais por sua produção bibliográfica voltada para a política e as relações internacionais. Muitos livros desse ácido crítico da política externa norte-americana foram traduzidos e publicados no Brasil. O engenheiro mecânico e aeroespacial Michael E. Porter é mais uma figura sui generis no meio acadêmico. Vindo das ciências exatas, fez seu doutorado em economia em Harvard. Professor desta universidade, tornou-se um ícone para a economia e a administração no tocante a questões ligadas à estratégia e competitividade. Todas as personalidades citadas acima têm em comum uma formação que não se limita a uma área específica do conhecimento e certamente qualquer universidade brasileira gostaria de têlas em seu corpo docente. Será mesmo? Infelizmente o bom senso sempre impera nas políticas educacionais. Nos últimos anos, as palavras interdisplinaridade, multidisplinaridade e transdisciplinaridade foram incorporadas ao discurso das instituições de ensino superior. É frequente a realização de atividades e a elaboração de relatórios para demonstrar ao MEC que a formação de nossos estudantes é inter-multi-trans. Entretanto, nota-se um comportamento institucional com tendência à esquizofrenia: a interdisciplinaridade é, ao mesmo tempo, defendida e refutada. É difícil determinar se isso ocorre por culpa do MEC, das instituições educacionais ou dos próprios professores. O engenheiro Michael Porter dificilmente preencheria os requisitos 

Professor e pesquisador na PUC Goiás e na Universidade Salgado de Oliveira.

exigidos em muitos editais para ingresso em universidades públicas no Brasil. E o mesmo vale para todos os grandes cérebros acima. Via de regra, a seleção para docentes privilegia a formação “vertical” (graduação, mestrado e doutorado em uma única área). Nas escolas privadas percebe-se o mesmo problema. Cita-se aqui a PUC Goiás, instituição a qual o autor deste texto é vinculado. Em 2013, vários professores não puderam participar de uma seleção interna porque têm títulos em áreas distintas. Curiosamente, ao ingressar na PUC goiana, a mesma exigência não lhes foi imposta. É difícil imaginar... “professor Milton Santos, lamentamos informar-lhe mas seu currículo o impede de dar aulas no departamento de geografia pois sua graduação é em direito”. Josué de Castro impedido de participar de uma banca avaliadora de uma tese de doutorado em sociologia sobre o Fome Zero, ou Noam Chomsky declarado incapacitado para avaliar uma dissertação de mestrado sobre terrorismo. A interdisciplinaridade é uma farsa? Uma palavra a constar apenas formalmente nos planos de desenvolvimento institucional e nos projetos pedagógicos das universidades brasileiras? Talvez não seja coerente apontar uma conclusão sem fazer uma análise mais acurada da práxis adotada em todo o país, mas o leitor envolvido no meio educacional (professor, pesquisador ou estudante) já deve estar formulando algumas hipóteses ao terminar a leitura deste parágrafo. “Fim” versus “forma”. A política educacional no Brasil fracassa ao atingir os seus propósitos. O objetivo se tornou menos importante do que os requisitos formais definidos por burocratas ou “autoridades intelectuais” que receiam perder seu nicho de poder. E assim la nave va. O MEC pode afirmar orgulhoso que milhões concluíram o ensino médio ou superior mas pesquisas mostram um exército de diplomados analfabetos funcionais. Lamentavelmente, a mesma confusão entre fim e forma é encontrada no recrutamento dos professores. A tão apregoada formação interdisciplinar é, no fim das contas, desestimulada na prática.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.