A fé nos novos sentidos: tributos, religião e linguagem

May 26, 2017 | Autor: Rodolfo Assis | Categoria: Susan Haack, Linguagem Jurídica, Interpretação Jurídica
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Thomas Bustamante, José Adércio Leite Sampaio & Leandro Martins Zanitelli Organização

DIREITOS FUNDAMENTAIS: PROTEÇÃO DOMÉSTICA E INTERNACIONAL

Anais do II Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política Volume 4

Belo Horizonte 2016

DIREITOS FUNDAMENTAIS: PROTEÇÃO DOMÉSTICA E INTERNACIONAL Thomas Bustamante, José Adércio Leite Sampaio, Leandro Martins Zanitelli (Orgs.) Copyright © desta edição [2016] Initia Via Editora Ltda. Rua dos Timbiras, nº 2250 – sl. 103-104, Lourdes Belo Horizonte, MG - CEP 30140-061 www.initiavia.com Editora-Chefe: Isolda Lins Ribeiro Revisão: autores Diagramação e capa: Brenda Batista Imagem da Capa: Colunas do STF e escultura “A Justiça”, de Alfredo Ceschiatti, por Evaristo Sá/AFP (11. fev. 2007) TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial deste livro ou de quaisquer umas de suas partes, por qualquer meio ou processo, sem a prévia autorização do Editor. A violação dos direitos autorais é punível como crime e passível de indenizações diversas. ______________________________________________________

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Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política (2. : 2015 : Belo Horizonte, MG) Direitos fundamentais: proteção doméstica e internacional / organizadores: Thomas Bustamante, José Adércio Leite Sampaio,Leandro Martins ZAnitelli. - Belo Horizonte : Initia Via, 2016. 203 p. – (Anais do II Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política, v. 4) ISBN 978-85-64912-91-5 (Volume 4) ISBN 978-85-64912-87-8 (Coleção) 1. Direito constitucional - Congressos . 2. Filosofia do direito – Congressos. I. Bustamante, Thomas. II. Sampaio, José Adércio Leite Sampaio. III. Zanitelli, Leandro Martins. IV. Título. CDU: 340(061.3)

Programas de Pós-Graduação Stricto Senso da Universidade Federal de Minas Gerais e da Escola Superior Dom Helder Câmara Apoios institucionais: Capes e Fapemig https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V04

COMISSÃO ORGANIZADORA Thomas da Rosa de Bustamante (Presidente) Bernardo Gonçalves Fernandes José Adércio Leite Sampaio Élcio Nacur Rezende Igor de Carvalho Enríquez Evanilda Nascimento de Godoi Bustamante João Víctor Nascimento Martins Ana Luisa de Navarro Moreira Grégore Moreira de Moura Ludmila Lais Costa Lacerda Christina Vilaça Brina Deivide Júlio Ribeiro Beatriz Souza Costa Cácia Rita Stumpf Francisco Haas Lucas Azevedo Paulino Adriano Souto Borges Renan Sales de Meira Franklin Vinícius Marques Dutra

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SUMÁRIO

Liberdade de expressão e tolerância como fundamentos da democracia constitucional Harley Sousa de Carvalho Joshua Gomes Lopes Liberdade de expressão, imunidades parlamentares e o discurso de ódio no plenário do Lesgislativo Mariana Oliveira de Sá Vinícius Silva Bonfim “Hate speech” versus liberdade de expressão: considerações acerca do direito comparado na garantia da dignidade da pessoa humana Francisco Gaspar de Lima Junior

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Liberdade de expressão e discurso de ódio: notas sobre o debate entre Jeremy Waldron e Ronald Dworkin Renan Sales de Meira

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A ineficácia da garantia constitucional da liberdade de expressão diante da invisibilidade social de minorias Gabriel Mendes Fajardo

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A fé nos novos sentidos: tributos, religião e linguagem Guilherme da Franca Couto Fernandes de Almeida Rodolfo Assis Dimensões de igualdade a partir do pensamento liberal igualitário: a racionalidade das ações afirmativas: João Daniel Daibes Resque

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A importância dos tratados internacionais de direitos humanos no constitucionalismo global Célia Teresinha Manzan

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“Ius gentium”: a pretensão de universalidade do ideal de integridade João Víctor Martins

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“Jus cogens”: cláusulas pétreas da ordem pública internacional Ludmila Mazoni Andrade Almeida

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Uma nova ordem mundial para o século XXI Rafel Sales Pimenta

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A teoria do poder constituinte a partir da justiça de transição Almir Megali Neto Emilio Peluso Neder Meyer

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Energia limpa e inesgotável: hidrelétricas e o brilho brasileiro que consome o ambiente ecologicamente equilibrado Lucas Augusto Tomé Kannoa Vieira

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A não constitucionalização do direito processual penal brasileiro: uma análise do PLS 402/2015 179 Ramon Alves Silva Adalberto Antonio Batista Arcelo A constitucionalização do processo civil brasileiro em face das três ondas de acesso à justiça Mateus Leite Cavalcante

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A FÉ NOS NOVOS SENTIDOS: TRIBUTOS, RELIGIÃO E LINGUAGEM Guilherme da Franca Couto Fernandes de Almeida1 Rodolfo Assis2

Introdução A interpretação jurídica, especialmente quando ocorre no âmbito constitucional, apresenta questionamentos quanto à mudança de sentido ao longo do tempo. Essa mudança de sentido é positiva para a aplicação do Direito Constitucional? Susan Haack pensa que sim. Em artigo recente que trata da interpretação em geral, e que menciona alguns casos julgados pela Suprema Corte Americana, a autora discute o fenômeno de alteração semântica ao longo do tempo, especificamente quanto ao direito. Ela o faz através de casos em que tribunais extrapolam o conteúdo semântico de normas em razão do surgimento de novas situações. E argumenta que essa alteração de sentido é capaz de trazer “maior racionalidade” ao direito, tornando-o mais compatível com as necessidades e contingências da realidade que regula. Pretendemos oferecer argumentos para sustentar a tese de que, embora eventualmente o desenvolvimento de alterações semânticas ao longo do tempo possa trazer efeitos benéficos, essa “maior racionalidade” não é necessária, mas sim contingente. Muito embora em um determinado conjunto de casos as consequências da abertura linguística das normas possam ser claramente positivas, em outro conjunto de casos esse mesmo fenômeno pode trazer prejuízo a valores morais tradicionais do direito, como coordenação Guilherme da Franca Couto Fernandes de Almeida. Mestrando em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Graduado em Direito pela UFRJ. Brasil. Email: [email protected]. 2 Rodolfo Assis. Mestrando em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Graduado em Direito pela UFJF. Brasil. Email: rodolfoassisferreira@gmail. com. 1

https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V04_A54

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e eficiência. Para tanto, trataremos de Everson, para identificar o que Haack entende como mudança de sentido, confirmando em linhas gerais a maior racionalidade. Porém, como contraponto, analisaremos o Recurso Extraordinário 325822, que, como Everson, trata da liberdade religiosa e laicidade. Esse último pode demonstrar a possibilidade de resultados “menos racionais” através da referida ampliação de sentido.

1. Direito e Sentido O argumento apresentado por Haack diz respeito ao fenômeno da alteração de sentido de uma determinada norma. Muito embora Haack não seja precisa com relação ao que é alterado ao longo do tempo, é certo que seu argumento depende de que algum sentido exista em um termo inicial qualquer. Qual é esse sentido inicial? A questão é controversa. Pode-se falar em atribuição de sentido, em constituição de sentido, entre outras possibilidades. Textualistas, como Sinnot-Armstrong (2005) e Slocum (2015) defenderiam que o significado de um determinado texto é dado, preponderantemente, pelas regras do uso ordinário da linguagem. Segundo essa definição, não é problemático admitir que a linguagem, de fato, muda de sentido ao longo com o tempo, basta que as regras que regem o seu uso ordinário mudem ao longo do tempo. Em outra linha, intencionalistas3 diriam que o que determina o sentido de um texto normativo é a intenção do autor do texto. Se esse for o caso, parece difícil admitir a tese de que textos mudam de sentido ao longo do tempo. Afinal, a intenção do autor de um texto permanece constante; não podemos voltar no tempo e alterar as intenções, por exemplo, das pessoas que elaboraram a Constituição dos EUA. Ainda assim, parece possível que, de certa forma, ocorra mudança de sentido quando, por exemplo, a intenção do autor era delegar poderes ao judiciário (Alexander e Sherwin 2008, p. 151). Por fim, a popular teoria da adjudicação favorecida por Ronald Dworkin (1982) nos daria ainda outra resposta. Dworkin Ver Fish (2005), Alexander e Sherwin (2008), Alexander e Prakash (2004), Knapp e Michaels (2005. Para críticas: Sinnot-Armstrong (2005).

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propõe que o significado de uma determinada regra ou de um determinado princípio varia em função da melhor posição moral, bem como pela capacidade que esta regra ou princípio tem de se encaixar (“fit”) na história institucional de um determinado ordenamento jurídico (Dworkin 1982, p. 168). Se imaginarmos que um dos fatores que determinam o significado de um determinado texto é a consideração sobre a sua validade moral e também que a moral pode variar de acordo com o tempo, segue-se trivialmente que o significado também pode alterar-se ao longo do tempo. Haack infelizmente não se posiciona de maneira clara sobre as teses acima. Isso se afigura um problema, posto que, em alguns casos, a análise sobre se o significado de uma determinada norma, lei ou conceito jurídico mudou ou não irá variar em função de qual posição tomamos com relação à questão do significado. Se o texto normativo TN foi promulgado com a intenção de dizer X, mas com uma linguagem que, à época da promulgação, poderia ser interpretada como Y, temos duas correntes sobre o significado de TN: textualistas dirão que o significado de TN é Y, enquanto intencionalistas dirão que o significado de TN é X. Se nenhum desses casos for moralmente o melhor possível, outros dirão, ainda, que o significado de TN é Z.

2. Susan Haack e o Direito Haack fala da alteração do direito ao longo do tempo como algo que surge da variação no contexto social: A legal system is not, as a scientific discipline is, primarily engaged in inquiry into some aspect of the world; its core business is finding ways to settle the disputes that inevitably arise in human communities. Rather than growing, like scientific concepts, as part of a process of adapting language to correspond to real kinds of thing and stuff in the world, legal categories shift and adapt in the search for livable resolutions of disputes in ever-changing social circumstances (Haack 2009, p. 18).

Pode-se tanto pensar em algo relacionado ao conceito de direito quanto a modelo de tomadas de decisões, e especificamente quanto a esses últimos, pode-se entender que Haack alega que em-

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bora juízes apliquem critérios pré-estabelecidos, também atribuem novos sentidos e conotações a esses critérios. Isso não poderia ser controlado por métodos lógicos, sempre existindo um aspecto decorrente da experiência. The crucial point is that judges are not simply cranking out algorithms:all legal provisions and precedents will leave some room for interpretation; and no formal-logical apparatus, however powerful, could tell us how best to interpret or extrapolate these provisions and precedents so as to handle the new kinds of dispute that arise in new, unforeseen and perhaps unforeseeable circumstances (Haack 2009, p. 19).

As considerações que Haack faz sobre o direito e sobre a impossibilidade de reduzir a atividade dos juízes a um método formal têm a influência expressa e assumida de Oliver Wendel Holmes, no sentido de que sistemas jurídicos são altamente adaptáveis, respondendo a mudanças sociais através da atividade jurisdicional informada pela experiência. Nas palavras de Holmes: “the life of the law has not been logic; it has been experience” (Holmes, 1881). Ademais, juízes adaptam o conteúdo do direito a partir de sua experiência. Essas adaptações podem se dar de forma brusca, mas em geral ocorrem lentamente (Haack 2008, p. 172-173). Essa adaptabilidade é uma característica sistêmica que atinge conceitos, já que esses ‘‘alteram-se e mudam, adquirindo novos significados e perdendo conotações antigas enquanto adaptam-se às circunstâncias em alteração’’. É o que acontece com conceitos como privacidade, liberdade, direito (Haack 2009, p. 177). Essa postura de juízes seria, em tese, oposta às perspectivas formalistas de tomada de decisão (Haack 2008, p. 178). Isso porque a tomada de decisão jurídica, apesar de ser descrita como o resultado de operações lógicas, seria parcialmente determinada pela experiência prática dos juízes4 (Haack 2008, p. 179). Isso poderia ser evidenciado facilmente na aplicação de conceitos jurídicos indeterHaack, até onde pudemos vasculhar, não é clara com relação às consequências da abertura do direito à experiência. Em certos momentos, parece que o foco da discussão é levantar questões a respeito do conceito de direito. Na maior parte da obra analisada, porém, e em particular nos argumentos sob discussão, parece que Haack está preocupada em discutir a tomada de decisão jurídica. Por esse motivo, focaremos nessa interpretação.

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minados, bem como no caso de conceitos jurídicos que se alteram para abarcar novas tecnologias e arranjos sociais, ou quando mudanças na sensibilidade moral alteram precedentes (Haack 2008, p. 180). O problema não é descrever isso, mas sim tratar essa adaptabilidade como algo positivo, que não torna as decisões jurídicas arbitrárias, podendo, inclusive, torná-las melhores (Haack 2009, p. 20). É nesse aspecto que o argumento se torna problemático, já que decisões que ignoram certos aspectos formais em busca da produção do melhor resultado no caso concreto podem, eventualmente, gerar resultados melhores, mas também podem produzir resultados piores que a aplicação formal do direito. Em outras palavras, os benefícios dessa adaptabilidade são contingentes. Esse ponto é um dos cernes desse ensaio e será abordado com mais foco adiante.

3. Everson v. Board of Education Antes de evidenciar o ponto problemático acima descrito, é importante delinear melhor um dos exemplos que Haack utiliza. Para demonstrar que mudanças efetuadas por juízes com relação aos conceitos e aos institutos legais podem ser boas, ela apresenta um julgado da Suprema Corte dos Estados Unidos, Everson v. Board of Education. Inicialmente, a Primeira Emenda da Constituição Americana evitaria o estabelecimento de uma igreja nacional. Porém, ao longo do tempo, a cláusula alterou-se, vindo a abarcar várias outras hipóteses (Haack 2009, p. 21). A partir do referido caso, a separação entre estado e igreja passa a ter contornos diferentes. Em Everson, um conselho de educação do estado de New Jersey realizava o reembolso de passagens de transporte público pagas para crianças quando elas frequentassem escolas públicas ou escolas católicas (Everson v. Board of Education, p. 01). Tal reembolso, mesmo que autorizado por lei, foi questionado por violar a proibição de estabelecimento de religião, constante da Primeira Emenda. Após ser julgado nas devidas instituições locais e regionais, o caso chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos. O primeiro voto, de Black, vencido, foi no sentido de negar o pedido. Black sustentava que o referido reembolso não seria um privilégio ou benefício de uma religião, ou o estabelecimento de uma religião, pois

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realizaria um interesse público geral, relacionado à educação como um serviço público. O reembolso seria análogo ao fornecimento estatal de serviços como o policiamento do tráfego para a segurança das pessoas, sejam elas católicas, protestantes ou sem religião (Everson v. Board of Education, p. 10). Entretanto, esse entendimento foi vencido pelos votos de Jackson e Rutledge. O primeiro argumentou que o programa de reembolso não seria um serviço público em geral, mas sim uma discriminação, pois haveria reembolso somente para escolas públicas e para escolas católicas (Everson v. Board of Education, p. 16). Ademais, não seria justo que o contribuinte subsidiasse escolas confessionais, e especialmente as católicas, já que essas têm uma tradição de, além do ensino, realizarem a doutrinação e promoção de uma religião específica (Everson v. Board of Education, p. 19; 21). Rutledge, em voto semelhante ao de Jackson, afirmou que a proibição de estabelecimento de religião seria uma clausula vaga, mas que teria o propósito de realizar uma ‘‘completa e permanente separação das autoridades civil e religiosa’’ (Everson v. Board of Education, p. 24). Esse é provavelmente o ponto fundamental para se reconhecer a alteração do direito posto em razão de novas exigências e condições sociais. De mera proibição de estabelecimento de uma religião oficial, passa-se a pensar que o Estado e crenças religiosas devem manter-se rigorosamente separados. Com essa exigência mais abrangente, além da proibição de religião oficial, a referida clausula proibiria o estado de promover ou financiar religiões de qualquer forma ou grau, tornando ilícito qualquer uso de fundos públicos para finalidades religiosas (Everson v. Board of Education, p. 25). Assim, o reembolso, enquanto uso de fundos públicos para finalidades religiosas (sendo utilizado como forma de encorajar o ensino de uma religião em particular), seria proibido pela establishment clause (Everson v. Board of Education, p. 30). A partir de Everson, várias alterações na amplitude da Primeira Emenda surgiram, aplicando-se a referida cláusula a várias outras situações antes não abarcadas, o que de certa forma demonstra que o seu sentido foi alterado. Isso se deu não só ante ao surgimento de novas situações e circunstâncias, mas também porque a população desejava essa mudança (HAACK, 2009, p. 23). Esse exemplo, para a autora, demonstra que a mudança nos

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conceitos foi um mecanismo do sistema legal para se adaptar às necessidades de uma sociedade cambiante, e que essa mudança é uma contribuição para a racionalidade. It is part of my argument, however, that the gradual, untidy, sometimes jerky evolution of the meaning of the Establishment Clause –now in the direction of more government accommodation of religion, now in the direction of less government entanglement with religion– is one way our legal system has adapted as it tries to cope with the needs and demands of an ever-changing society; and that this process of ongoing adaptation is not necessarily an impediment, but can be a contribution, to rationality (Haack 2009, p. 24).

Estabelece-se, com isso, que a mudança de sentido pode ser algo bom. Mas isso não é necessário. Conforme já mencionado, pode ser que determinadas mudanças, adaptações e ajustes sejam muito prejudiciais.

4. Mudança de sentido no direito: alguns problemas e distinções Como vimos, o exemplo eleito por Haack para expor a sua ideia de mudança de sentido no direito envolve a apreciação judicial de um caso específico. Nele, juízes, com base em considerações não-linguísticas, decidiram que a amplitude da “cláusula de estabelecimento” deveria ser alterada para comportar o caso do subsídio público das passagens de ônibus para uma escola católica. A questão que se pretendia responder não era, definitivamente, se o uso ordinário da expressão “é proibido o estabelecimento de uma religião” incorporava ou não o caso Everson. A decisão claramente não se limita a declarar uma mudança no sentido ordinário de uma determinada palavra. Isso faz toda a diferença com relação à legitimidade e desejabilidade moral da mudança de sentido. Textualistas, como Sinnot-Armstrong (2005) e Slocum (2015), diriam que, no caso Everson, o que ocorreu não foi a mudança de sentido do texto constitucional, mas sim a criação de uma nova regra, com base em razões extra-linguísticas. Claro que, em certo sentido, a interpretação dotada de autoridade realizada por uma corte constitucional pode ser vista como de fato alterando o sentido de uma determinada provisão constitucional. Mas é impor-

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tante percebermos que existe uma distinção possível entre esse tipo de mudança de sentido, que não reflete exatamente as propriedades linguísticas de uma determinada norma, e aquele que ocorre em virtude de uma mudança do uso de um determinado termo ao longo do tempo. Suponhamos, por exemplo, que uma lei diga que são proibidos veículos no parque (Hart 1983, 1994, ver também Slocum 2015 e Schauer 2008). Muito tempo depois da promulgação dessa lei, são inventados skates e surge uma dúvida: será que skates são veículos (Marcondes e Struchiner 2015)? No início, as pessoas em geral não sabem ao certo se skates são ou não veículos, mas pode ser que, ao longo do tempo, se solidifique um consenso com relação à essa questão. Em um determinado momento, se você perguntasse para uma pessoa qualquer, ela lhe responderia sem dúvidas: skates são veículos. Um juiz, ciente dessa situação, pode vir a julgar um caso onde se pergunta se um grupo de jovens pode ou não andar de skate no parque. Digamos, ainda, que, até aquele momento, a jurisprudência que existia sobre essa questão havia se dado naquele momento onde não se sabia ao certo se skates eram veículos ou não. É perfeitamente possível que esse juiz mude a jurisprudência, dizendo que skates são veículos e que, portanto, não devem ser permitidos no parque. Ele pode argumentar que houve uma mudança no sentido do termo e aquilo que em um momento não estava sob a abrangência linguística do termo passou a estar. Esse exemplo é diferente de Everson em sentidos relevantes. Se quisermos sustentar a tese de que a mudança de sentido nesse caso trouxe resultados positivos, lançaremos mão de argumentos muito diferentes daqueles necessários para defender Everson. Poderíamos dizer, por exemplo, que é importante que os jurisdicionados saibam qual é o conteúdo das leis e que utilizar um termo com um sentido diverso daquele por eles entregados seria algo ruim. Também podemos dizer que não houve discricionariedade no caso. O juiz simplesmente constatou um descompasso entre o sentido da linguagem ordinária e aquele da linguagem do direito. Nenhum desses argumentos serve a Everson. Casos onde a mudança de sentido é feita com base em argumentos morais (como o que recorre ao fato de que parte da educação oferecida na escola era confessional) dão muito poder a juízes. Schauer (2008, pp. 158-

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162), replicando argumento tradicional na filosofia do direito (Marcondes e Struchiner 2015, p. 167), diz que parte da razão pela qual nos utilizamos e devemos nos utilizar de regras é a alocação de poder. O legislativo elabora as regras e os juízes as aplicam. Nenhum dos dois, portanto, é dotado de poder desmedidamente grande. Se, por outro lado, consideramos lícito que juízes mudem o conteúdo prescritivo de regras com base em considerações substantivas e chamarmos isso de “mudança de sentido”, estamos enfraquecendo a divisão dos poderes, transformando juízes em figuras potencialmente muito mais poderosas do que legisladores. E essa alocação de poderes nos juízes é problemática do ponto de vista da legitimidade e da produção de bons resultados através do julgamento. Superficialmente levantando uma razão para isso, decisões desse tipo tomadas por juízes retiram da maioria dos atingidos a possibilidade de influenciar diretamente o resultado, além de não ter garantias de ser mais bem informadas que decisões tomadas previamente pelo legislativo em contextos de desacordos (Waldron, 2006). Ou seja, há objeções de legitimidade política quanto a esse tipo de poder atribuído a juízes.

5. Um contraexemplo a Everson: separação do Estado e da Igreja no Brasil Será que todos os casos como Everson trazem, de fato, resultados positivos? É possível pensar em um contraexemplo brasileiro, onde uma mudança similar do sentido do direito trouxe resultados que, se avaliados sob o mesmo padrão que Everson, são claramente negativos. O caso é o RE 325822-2. No referido caso o Supremo Tribunal Federal analisou se as imunidades tributárias religiosas abarcariam ou não imóveis dados em locação, lotes vagos e outras propriedades, e não somente o templo, como assentado na jurisprudência pré-existente. Em outras palavras, era discutido se todos os bens relacionados às finalidades institucionais das entidades religiosas seriam protegidos pela imunidade presente no art. 150, VI, b e §4º do mesmo artigo ou se somente os templos teriam direito a essa proteção. Nos debates, o relator Ministro Ilmar Galvão entendeu que a imunidade religiosa acobertaria qualquer bem relacionado à finalidade religiosa (e não somente o templo), mas não acobertaria

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lotes vagos e prédios comerciais dados em locação. Sem argumentos diferentes, o Ministro Carlos Veloso acompanhou-o. De maneira ainda mais contida, o Ministro Sepúlveda Pertence alegou que a imunidade abarcaria somente os templos, pois a imunidade estaria relacionada à proteção da liberdade de culto, não devendo se transformar em um incentivo à religião. Entretanto, essa não foi a tese vencedora. Com outra conclusão, o Ministro Gilmar Mendes entendeu que o §4º do art. 150 fez uma equiparação de entidades religiosas a partidos políticos e entidades de assistência social, sendo acobertada pela imunidade a entidade e não o local de realização da atividade essencial, e, portanto, lotes vagos e prédios comerciais seriam imunizados pela cláusula. Foi acompanhado pelos Ministros Nelson Jobin, Maurício Corrêa, Moreira Alves e Marco Aurélio. Tratando especificamente do RE acima mencionado é possível dizer que operou-se uma mudança no sentido do direito, onde juízes, utilizando-se mais de sua experiência que de normas subsuntivas, causaram um resultado que é claramente pior do que aquele previsto pela aplicação “lógica” da norma. A Constituição de 1946 conferiu imunidade aos templos, sendo essa imunidade mantida na Constituição de 1967 e, posteriormente, na Constituição de 1988. Ou seja, a decisão do Supremo Tribunal Federal transformou uma imunidade que histórica e textualmente representava uma proteção contra a tributação do templo enquanto espaço físico em uma imunidade dos entes religiosos e todas as suas atividades, desde que tudo que o fruto dessas seja revestido em fins religiosos. A solução dada está sujeita a diversas críticas. A decisão, por exemplo, não estabelece mecanismos para estabelecermos o que conta como reinvestimento na finalidade religiosa. Isso dificulta, por exemplo, regular e prever os critérios de fiscalização. Em razão disso, determinados fiscais podem ser lenientes demais, outros excessivamente zelosos e invasivos quanto ao que é reinvestimento na finalidade essencial. Da mesma forma, é possível que essa mudança de sentido possa facilitar que vários fatos econômicos, alheios ao exercício de atividade religiosa, sejam acobertados pela imunidade. Com isso, toda e qualquer atividade desempenhada, todo e qualquer patrimônio da entidade religiosa, a grosso modo, poderia ser conside-

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rado imune. Nessa linha, lotes vagos, imóveis dados em locação, emissoras televisivas e rádios que operam atividade econômica, enfim, todo tipo de atividade poderia ser considerado imune, desde que o dinheiro obtido fosse reinvestido na atividade religiosa. Nesse aspecto, a referida decisão não considerou adequadamente as consequências que acarretaria, pois pode ser aduzido que não foi levado em conta que tal abrangência da imunidade funcionaria não somente como proteção à atividade religiosa, mas sim como promoção/incentivo ao crescimento de religiões de maneira maciça e intensa, criando problemas para um estado laico e o desenvolvimento de uma democracia tolerante. Além disso, pode-se dizer que houve a alteração de sentido da prescrição constitucional através do judiciário, que é um órgão com legitimidade pelo menos duvidosa para realizar esse tipo de operação na maioria dos casos (para alguns, não tem legitimidade para tal em nenhum dos casos).

Considerações finais Parece que antes de atribuir a noção de mudança de sentido em sede de julgamentos judiciais como algo que pode ser bom é preciso definir primeiro o que seria mudança de sentido. Isso não ficou claro em Haack. Tomamos como ponto de partida que a ideia de mudança de sentido, para a autora, estava muito menos relacionada à mudança de sentido dos termos presentes nas fontes legais em razão de considerações linguísticas e muito mais às avaliações morais sobre qual é a melhor decisão para um determinado caso concreto. Como o foco do principal artigo sob comento era justamente a avaliação do caso Everson, optamos por considera-lo representativo do tipo de abertura semântica defendida pela autora e identificamos um contraexemplo brasileiro cujo tema e a forma da tomada de decisão consideramos suficientemente próximos de Everson para questionar as conclusões extraídas por Haack. Os dois casos que analisamos são normativamente incompatíveis: a decisão em Everson avança o Estado laico, aumenta a separação entre o poder estatal e o poder religioso e veda qualquer instituição religiosa de receber um tratamento especial do Estado. A decisão em Everson avança o Estado laico, aumenta a separação entre o poder estatal e o poder religioso e veda qualquer instituição

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religiosa de receber um tratamento especial do Estado. A decisão do RE 325822-2 é frontalmente contrária a esses valores morais. Alguns dos votos são impregnados de linguagem religiosa e referências à autoridade divina; o resultado operado foi uma proliferação de atividades religiosas ou pseudo-religiosas que se viram livres de suas obrigações tributárias para com o Estado, diferenciando as instituições religiosas de todas as outras existentes no Brasil. Se tudo isso é verdade, então não resta dúvida alguma sobre a conclusão adequada: a mudança de sentido, em especial quando operada por juízes, não traz resultados morais necessariamente positivos. Sim, é verdade que certas decisões, a depender dos valores que cada um considera os mais importantes, trarão resultados positivos, mas essa não é uma consequência necessária. É bem verdade que a própria Haack formula suas conclusões e hipóteses de maneira suficientemente fraca a ser facilmente defendida dos argumentos que apresentamos. Ela parece mais preocupada em afirmar, talvez contra Waldrom, que a mudança de sentido operada por juízes não é necessariamente algo ruim, do que em defender uma tese normativa que prescreva um papel mais ativo da magistratura. Parece, porém, implícito ao longo dos artigos que analisamos, que a autora acredita que a abertura da linguagem jurídica é algo quase sempre positivo. De toda forma, nossa preocupação é mais atacar um argumento possível e implicitamente endossado pelo senso comum teórico do que oferecer uma descrição exegética dos argumentos defendidos por Susan Haack.

Referências Alexander, L. e Prakash, S. 2004. “Is That English That You’re Speaking?” Why Intention Free Interpretation is an Impossibility. San Diego L. Rev. 41, pp. 967-996. Alexander, L. e Sherwin, E. 2008. Demystifying Legal Reasoning. Cambridge University Press: Cambridge. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 325822-2. Relator: Ilmar Galvão. Relator do Acórdão: Gilmar Mendes. Data de Julgamento: 18/12/2002. Disp. em:http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=2608 Acesso em 13/10/2015.

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