A Ferida Invisível: Um Estudo sobre o Abuso Sexual e suas consequências nos Relacionamentos Amorosos

July 26, 2017 | Autor: Patricia Jacob | Categoria: Trauma, Abuso Sexual, Psicotraumatologia, Terapia De Casal
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CENTRO DE ESTUDOS DA FAMÍLIA E DO INDIVÍDUO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM TERAPIA DE FAMÍLIA E CASAL

A Ferida Invisível: Um Estudo sobre o Abuso Sexual e suas Consequências nos Relacionamentos Amorosos

Patricia Jacob

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Cuiabá 2009

Patricia Jacob

A FERIDA INVISÍVEL: Um Estudo Sobre o Abuso Sexual e suas Consequências nos Relacionamentos Amorosos

Monografia apresentada ao Programa de Especialização em Terapia de Família e Casal do CEFI – Centro de Estudos da Família e do Indivíduo, como requisito para a conclusão do 3º ano, sob orientação da Profª. Maria de Fátima G. Rosa.

Cuiabá 2009

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Canção para a menina maltratada Não, não será com métrica nem com rima. Uma coisa sem nome violentou uma menina. Ação barata sem a prata do pensamento o ouro do sentimento o dia da empatia. Noite. Uma coisa. Não era o lobo nem o ogro nem a bruxa, era a fúria do real sem o carinho do símbolo. Stop, a poesia parou. Ou foi a humanidade? Stop nada, a menina sente e segue com métrica, rima, graça, vida. Onde está tua vitória, ignomínia? Uma prosa continua poética como era saltitante o bastante para não perder a poesia. A coisa (homem?) é punida como um lobo no conto de verdade. E imprime-se um nome na ignomínia. A menina liberta expressa ri e chora, volta a ser qualquer (única) menina. Pronta para a métrica pronta para a rima pronta para a vida (canto de cicatriz), pronta para o amor a dois, à espera, suave, escolhido. Celso Gutfreind (extraído do documentário Canto de Cicatriz)

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................. 7 2 DESENVOLVIMENTO .................................................................................................................... 7 2.1 Conceito .......................................................................................................................................................... 7 2.2 O legado do abuso ...................................................................................................................................... 7 2.2.1 Efeitos no desenvolvimento infantil ......................................................................................... 7 2.2.3 Fatores agravantes ............................................................................................................................ 7 2.2.4 Vítimas masculinas ........................................................................................................................... 7 2.3 Os custos e as consequências para o amor: a ferida invisível............................................... 7 2.3.1 Distúrbios psiquiátricos e psicológicos................................................................................... 7 2.3.2 Dificuldades no relacionamento amoroso ............................................................................. 7 2.3.2.2 Revitimização ............................................................................................................................. 7 2.3.3 Dificuldades na sexualidade ......................................................................................................... 7 2.3.3.1 Disfunções e problemas sexuais........................................................................................ 7 2.3.3.2 Compulsão sexual ..................................................................................................................... 7 2.4 Parceiros como colaboradores no processo de terapia ........................................................... 7 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................. 7 4 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................................... 7

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1 INTRODUÇÃO

“Em algum lugar, bem no fundo de cada um de nós, está a criança que era inocente e livre e que sabia que a dádiva da vida era a dádiva da alegria.” (Alexander Lowen)

O presente trabalho tem como objetivo fazer um estudo e trazer uma reflexão sobre como o abuso sexual contra crianças e adolescentes afeta os relacionamentos íntimos futuros. O curso de Formação em Terapia Familiar e de Casais do CEFI “tirou meus óculos escuros”, como dizia a Profª Mara Lins, em relação à complexidade do tema abuso sexual. O conteúdo apresentado no segundo ano do curso trouxe descobertas de extrema importância tanto para minha vida pessoal, quanto para a profissional. E com o atendimento de casais no terceiro ano, pudemos acompanhar e observar com alguns casos - que infelizmente tiveram desistência e duraram somente uma ou duas sessões como são grandes os prejuízos para os relacionamentos afetivos quando algum dos membros foi vítima de abuso sexual. O desejo de conhecer mais sobre o assunto somado à ressonância em minha vida pessoal foram essenciais para a escolha do tema. O abuso sexual é um tema que choca. É um ato praticamente desumano que traz feridas profundas, porém muitas vezes ‘invisíveis’ aos olhos dos terapeutas. No atendimento psicológico tanto individual quanto de casal, muitos terapeutas tendem a focar na queixa principal trazida pelo paciente sem explorar suficientemente para determinar se este tem uma história de abuso. Devido à dificuldade de falar sobre o tema, muitos pacientes se silenciam e ficam na espera que o terapeuta traga o assunto, ou não associam seus sintomas com o acontecido e então não acham importante relatar sua experiência abusiva. Há também a situação em que o paciente vem à terapia especificamente para tratar dos sintomas do abuso, e o terapeuta falha em não investigar o funcionamento do relacionamento amoroso e como a situação de abuso pode estar influenciando nesta área de sua vida também. Muito tem sido pesquisado, estudado e falado sobre o tema nos últimos anos. Estudos e pesquisas sobre as conseqüências, a epidemiologia e os possíveis tratamentos

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para o abuso têm acontecido no mundo todo. No entanto, a maioria das pesquisas foca na relação entre o abuso e sua sintomatologia intrapsíquica, mas ainda há pouco material sobre as consequências deste para os relacionamentos interpessoais. Pela dificuldade em encontrar literatura específica sobre o tema no Brasil, como referência bibliográfica utilizei em sua maioria artigos de revistas e periódicos internacionais que pude encontrar em uma extensa pesquisa em sites de artigos científicos. Por conta desta atenção ainda limitada aos sintomas interpessoais, a maior parte da literatura específica em relação a isso descreve mais observações clínicas de atendimentos feitos com vítimas de abuso, do que pesquisas. Além disso, a maioria dos trabalhos -principalmente as pesquisas- tem como sujeito de estudo as mulheres e os efeitos do abuso na vida emocional feminina dentro de relacionamentos heterossexuais. Por esta razão, muitas vezes a descrição dos resultados de pesquisas virão mais tarde no desenvolvimento do trabalho considerando vítimas femininas e abusadores masculinos somente e casais heterossexuais. Gostaria de frisar que isso não se trata de preconceito – tanto em relação aos homens, quanto a relacionamentos homossexuais, mas sim uma dificuldade em encontrar dados referentes a essa parcela da população. Espero que este trabalho ajude a “tirar os óculos escuros” de muitos outros terapeutas de casal em relação ao tema e que traga um conteúdo a somar no entendimento dos casais que procuram por nossa ajuda.

2 DESENVOLVIMENTO

O erotismo é uma interrogação e sempre será, o que quer que diga qualquer determinação futura. Por um lado, ele pertence à

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natureza animal primitiva do homem, que existirá sempre enquanto o homem tiver um corpo animal. Por outro lado, porém, ele é aparentado às formas mais elevadas do espírito. Mas ele só floresce quando espírito e instinto estão na sintonia correta. Quando falta um desses aspectos, ocorre um dano, ou pelo menos uma unilateralidade, um desequilíbrio, que pode facilmente desembocar em algo doentio. (JUNG, 2005, p. 31) A violência sexual é uma violência contra a vida. Como sabiamente coloca Lowen (1997, p.147) “o abuso sexual é a forma mais hedionda da traição ao amor, posto que a sexualidade é normalmente uma expressão de amor.” Esta dissociação entre o aspecto instintivo e o aspecto espiritual do erotismo, citada por Jung acima e fortemente estimulada pela sociedade ocidental atual, faz com que a sexualidade fique cindida, expressando-se mais como uma ação mecanizada do pênis e da vagina e uma descarga pulsional, do que como um encontro entre dois seres buscando intimidade. A sexualidade vivenciada dessa forma cindida torna-se assim uma expressão de pulsão de morte e a distanciando do que de verdade deveria ser: pulsão de vida, ligada ao amor e à busca de estabelecer ligações. As vítimas de abuso sexual ficam marcadas pelo resto de suas vidas por esta ação destrutiva, o que inevitavelmente traz consequências muito sérias para seus relacionamentos amorosos, onde normalmente ‘descarregamos’ parte de nossos traumas interpessoais. O trauma fere e feridas precisam de tratamento – por melhor tratadas que sejam, as muito grandes deixam cicatrizes para a vida toda.

2.1 CONCEITO Encontramos vários conceitos de abuso sexual infantil na literatura específica sobre o tema, no entanto a que consideramos a mais abrangente, envolvendo toda a complexidade do ato abusivo é a definição acatada pelos centros de atendimento a crianças vitimizadas, citada por Habigzang e Caminha (2004): O abuso sexual é definido como todo ato ou jogo sexual, relação hetero

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ou homossexual, cujo agressor esteja em estágio de desenvolvimento psicossexual mais adiantado que a criança ou o adolescente. Tem por finalidade estimulá-la sexualmente ou utilizá-la para obter estimulação sexual. Essas práticas eróticas e sexuais são impostas às crianças ou aos adolescentes por violência física, ameaça ou indução de sua vontade. Pode variar desde atos em que não existam contatos físicos, mas que evolvem o corpo (assédio, voyeurismo, exibicionismo), a diferentes tipos de atos com contato físico, sem penetração (sexo oral, intercurso interfemural) ou com penetração (digital, com objetos, intercurso genital ou anal). Engloba, ainda, a situação de exploração sexual visando ao lucro, como a prostituição e a pornografia (p. 25).

Entre adultos, podemos considerar uma definição mais simples, no qual o abuso sexual é definido como todo relacionamento interpessoal aonde a sexualidade é veiculada sem o consentimento válido de uma das pessoas envolvidas (FAIMAN, 2004). A maioria dos autores ainda sugere que deva haver uma diferença de idade de quatro ou cinco anos ou mais entre a vítima e o abusador, quando a criança é menor de doze anos. E no caso de adolescentes entre treze e dezesseis anos, a diferença deve ser de dez anos ou mais. Todavia, o uso de força, intimidação ou abuso da autoridade, deverá ser considerado sempre uma conduta abusiva independente da diferença de idade. (HABIGZANG e CAMINHA, 2004; FAIMAN, 2004) Com relação ao incesto entre irmãos, há que se considerar também a diferença de idade. Um irmão bem mais velho que a vítima pode estar em uma posição parental, e o mais novo em uma posição de dependência e imaturidade, o que caracterizaria um abuso. Por outro lado, o contato sexual entre irmãos com idades próximas não pode ser caracterizado como abuso e sim exploração sexual natural entre similares (FURNISS, 1993). O mesmo se aplica às brincadeiras sexuais entre amigos de idades próximas na infância ou adolescência. Cabe aqui frisar que nem sempre o abuso sexual envolve violência física. Sempre que uma parte induz a outra a aceitar ou ao menos não se opor a um ato sexualizado pelo convencimento no qual utiliza seu poder na relação, já se caracteriza um abuso. Outra situação de indução pode ocorrer através da sedução. Faiman (2004) define a sedução como sendo abusiva quando envolve uma interação em que uma pessoa estimula sentimentos e sensações sexuais na outra, que consente com o ato, pois também se encontra sexualmente estimulada, no entanto em um tipo de relacionamento em que “a erotização do vínculo consiste no próprio abuso” (p. 28). Uma mãe que

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erotiza seu vínculo com o filho, por ex., mesmo que através de um olhar, está sendo abusiva. Os abusos sexuais podem ser intrafamiliares ou incestuosos (quando o agressor é membro da família nuclear ou de origem) e extrafamiliares (conhecidos da família, amigos ou desconhecidos). No entanto, de acordo com Habigzang e Caminha (2004), a maioria dos estudos mostra que grande parte dos abusos sexuais contra a infância e adolescência são cometidos por pessoas muito próximas, dentro do ambiente familiar e que têm papel de cuidador em relação à vítima. Habigzang e Caminha (2001) citam várias pesquisas que apontam que um quarto das meninas e um oitavo dos meninos são vítimas de abuso sexual antes dos dezoito anos. A maior parte dos abusos sexuais são intrafamiliares e os principais abusadores são o pai e o padrasto.

Na maioria dos casos idade em que os abusos começam se

encontra entre cinco e oito anos e a mãe é a pessoa que as vítimas mais procuram por ajuda ou para a revelação, a qual normalmente acontece mais de um ano depois do início do abuso. No entanto, esses podem ser dados desonestos devido à subnotificação e devido à dificuldade de identificação gerada pela falta de preparo dos profissionais envolvidos no assunto.

2.2 O LEGADO DO ABUSO

A gravidade das consequências do abuso em termos da organização psíquica são quase sempre muito sérias mesmo que a vítima não tenha consciência disso, pois é muito comum que o abusado negue ou reprima os sentimentos decorrentes do ato abusivo. No entanto, é importante salientar que as características citadas neste tópico são consequências possíveis e observadas nos estudos e nos atendimentos de pessoas vitimizadas pelo abuso, no entanto não são similares nos diferentes casos. Algumas pessoas conseguem, através de uma capacidade elaborativa maior, apresentar um mundo mental mais integrado que outras. 2.2.1 Efeitos no desenvolvimento infantil

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É sabido que é durante a infância que o ser humano desenvolve sua base emocional. É quando ele se forma fisiologicamente e se coloca socialmente. A noção de ‘self’ da criança se molda através de seus relacionamentos com as outras pessoas. Apesar de as experiências alterarem o comportamento de adultos, elas podem literalmente moldar uma criança (MCGREGOR, 2001). O abuso sexual, principalmente o que se instala sem violência e sim com sedução, traz sensações fisiológicas de excitação que a criança não tem estrutura para elaborar psiquicamente. Isso gera uma hiperexcitação que pode se transformar em ansiedade ou hipersexualização. No abuso sexual da criança esta não pode evitar ficar sexualmente estimulada e essa experiência rompe desastrosamente a sequência normal da sua organização sexual. Ela é forçada a um desenvolvimento fálico ou genital prematuro, enquanto as necessidades desenvolvimentais legítimas e as correspondentes expressões mentais são ignoradas e deixadas de lado (ANNA FREUD apud FURNISS, 1993, p. 14).

Qualquer vivência cuja elaboração e assimilação internas não são possíveis se caracteriza como um trauma. Com esse entendimento, podemos considerar o abuso sexual como um evento traumático para a grande maioria de suas vítimas, pois se trata de uma vivência com uma dimensão absolutamente profunda e complexa, que abarca a sexualidade da criança, suas referências, suas fantasias. Uchitel (2001 apud FURNISS, 1993) descreve como essenciais para a instalação de um trauma o desamparo, a excitação excessiva, a clivagem no interior do ego e a ausência de representação na fantasia. Todos esses aspectos comumente fazem parte de uma experiência de abuso. Os sintomas mais comuns apresentados por uma criança vítima de abuso sexual, de acordo com vários autores (FURNISS, 1993; GREEN, 1995; HABIGZANG e CAMINHA, 2004; LOEB e WILLIAMS, 2002; MCGREGOR, 2001) são:  Transtorno de stress pós-traumático: é citada como a psicopatologia mais frequente relacionada ao abuso sexual.

Seus sintomas mais usuais são

hipervigilância, lembranças ou imagens intrusas com vivência de muita angústia, dificuldade de concentração, paralisia na iniciativa, irritabilidade, dificuldades para dormir e pesadelos, lapsos de memória, sentimentos de desamparo e

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resposta exagerada de sobressalto;  Transtorno de ansiedade: Lipp (2000) explica que uma das causas mais frequentes geradoras de ansiedade na criança é a “sensação de desamparo causada pelo sentimento de desproteção diante de situações perigosas ou sentidas como difíceis demais para lidar” (p. 30) assim como vividas no abuso sexual. Uma criança exposta a situações estressoras demais, não conseguem adquirir estratégias de enfrentamento adequadas e com isso desenvolvem transtornos de ansiedade mais facilmente.  Depressão: juntamente com o stress pós-traumático, é considerada o sintoma mais comum decorrente de abuso, tanto na infãncia, quanto na adolescência. É decorrente de sentimentos de desesperança, desespero, desamparo, impotência e auto-acusação.

A visão de mundo da criança fica distorcida e alguns casos

apresentam inclusive ideações suicidas já na infância.  Dificuldades interpessoais: incluindo retraimento, isolamento social, dificuldade em confiar e relacionamentos superficiais.  Raiva e hostilidade reprimidas: que podem trazer irritabilidade constantes ou ‘explosões’ de raiva ou atos agressivos trazidos pela inabilidade em lidar com tais sentimentos;  Episódios dissociativos: momentos de desconexão com a realidade, que podem durar de alguns segundos a várias horas. Essa ruptura acontece pois a experiência é assustadora demais para que o ego consiga integrá-la, que então se dissocia da vivência para se proteger (LOWEN, 1997);  Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade;  Queixas somáticas: dentre os quais sensação de mal estar geral, falta de ar e problemas gástricos são os mais comuns. Encoprese e enurese são comuns em crianças menores, principalmente se sofreram penetração anal;  Dificuldades no sono: recusa em se deitar, insônia ou pesadelos principalmente quando o abuso ocorreu no meio da noite;  Comportamento sexual anormal: as crianças e os adolescentes podem apresentar condutas hipersexualizadas (masturbação compulsiva, introdução de dedo ou objetos na vagina e no ânus, conhecimento sexual inadequado para a idade,

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pedido de estimulação sexual, excitação por mero contato social e, na adolescência, promiscuidade) ou reações fóbicas e extrema inibição relacionada à sexualidade (reações fóbicas às pessoas do sexo do abusador, evitação em se trocar em vestiários de escola, ou recusa em ir à piscina, pois a nudez total ou parcial os remetem à situação abusiva);  Transtornos alimentares: anorexia nervosa ou bulimia (esta última mais comum na idade adulta);  Baixo aproveitamento escolar: decorrente da depressão ou da dificuldade de concentração e memória;  Medo: pode aparecer de várias formas e em várias intensidades representando o medo da repetição do trauma.  Culpa e vergonha: sentimentos típicos em vítimas de abuso independentemente do grau de cooperação da criança no ato. A criança assume equivocadamente a responsabilidade pelo abuso e generaliza o sentimento, levando a se culpar por qualquer situação negativa que possa ocorrer em sua vida. O abuso como “síndrome do segredo” (FURNISS, 1993), a auto-condenação por ter experimentado algum prazer físico durante o abuso e a vergonha por não ter conseguido evitar o abuso são as raízes desses sentimentos. A criança também pode supor ser responsável por ser desejada pelo agressor, idéia que muitas vezes é confirmada pela família quando da revelação (PERRONE e NANNINI, 1998).  Baixa auto-estima: com relação à auto-imagem, Perrone e Nannini (1998) comentam que a vítima do abuso carrega a sensação constante de que, haja o que houver, será sempre indigna, suja e depreciável pela situação que sofreu.  Revitimização: a incapacidade de dizer ‘não’ já presente como traço de personalidade da criança abusada, que a tornou vítima ‘fácil’, ou tal incapacidade criada pela paralisia trazida pelo trauma (há divergências entre os autores em relação a essas duas idéias), traz uma dificuldade em se proteger e a criança pode novamente se ver vítima de abuso. De conformidade com McGregor (2001), se não houver nenhuma ou pouca

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intervenção logo após o abuso sexual, os efeitos podem se tornar duradouros. A falta de intervenção adequada também pode fazer com que os efeitos do abuso piorem ao longo do tempo. Estamos diante de uma situação em que o passar do tempo sem tratamento adequado não reduz a intensidade dos sintomas (HABIGZANG e CAMINHA, 2004; GREEN, 1995). Com o abuso, as crianças adquirem um senso de self distorcido, que pode trazer sentimentos de culpa e desvalia. As crianças tendem a se culpar por tudo o que acontece a elas com muita facilidade. Mesmo estando assustadas ou tendo sido machucadas no ato do abuso, elas frequentemente não contam a ninguém e pedem ajuda por medo de ser responsabilizadas, ou por terem sido ameaçadas caso contassem. Assim, elas ficam sozinhas para lidar com sentimentos difíceis como traição, medo, culpa, vergonha, confusão e raiva e isso pode alterar seu desenvolvimento e todos os seus relacionamentos futuros (MCGREGOR, 2001). Esta solidão na vivência do abuso força a criança a ter que lidar com efeitos do stress pós-traumático e com isso desenvolver habilidades de enfrentamento inadequadas ou primitivas que vão tender a ser utilizadas nas situações de dificuldade no futuro, tais como dissociação, comportamentos autodestrutivos ou fóbicos.

2.2.3 Fatores agravantes

Os efeitos do abuso sexual podem se manifestar de várias formas, várias intensidades e podem se manifestar em qualquer idade. Algumas crianças apresentam sintomas graves enquanto outras apresentam somente efeitos míninos. Em alguns casos os sintomas aparecem desde o início do episódio abusivo, mas é possível também que os sintomas apareçam somente após algum tempo (meses ou anos), normalmente engatilhado por algum evento posterior que traga o abuso à memória consciente ou inconsciente. McGregor (2001) chama esses efeitos de “efeitos adormecidos” (p. 7). De acordo com Furniss (1993) são sete os fatores que mais provavelmente fazem a diferença no dano psicológico do abuso sexual na criança:

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 A idade de início do abuso sexual;  Quanto tempo durou o abuso (se episódico ou crônico);  O grau de violência ou ameaças utilizadas no abuso;  A diferença de idade entre o perpetrador e a vítima;  O grau de vinculação entre o abusador e o abusado;  O apoio recebido pelas figuras parentais e apoio social;  O grau de segredo envolvendo o abuso. Habigzang e Caminha (2004) também citam como possíveis fatores a saúde emocional anterior da criança, o tipo de atividade sexual cometida, a reação dos adultos após a revelação da criança e a dissolução da família decorrente da descoberta, nos casos de abuso sexual intrafamiliar. McGregor (2001) inclui ainda outras condições prejudiciais, como contato constante com o abusador, incluindo tensão e medo constantes de que o abuso vai se repetir; ter sido seduzido a aceitar o assédio e o abuso, o que traz sentimento de culpa posterior; vários abusadores e abusos; sadismo explícito envolvido no abuso; coexistência de abuso emocional ou físico e impossibilidade de evitar o abuso de irmãos. Outro fator de grande importância para os possíveis danos emocionais é a vulnerabilidade pessoal da criança abusada. De acordo com Lipp (2000): Algumas pessoas possuem uma hiper-reatividade fisiológica em face de demandas psicossociais, a qual pode ser gerada por uma hipersensibilidade do sistema límbico. Tal hiperatividade resulta na produção excessiva de catecolaminas, testosterona e cortisol, o que tornaria essas pessoas mais vulneráveis ao stress (p. 32).

Além dos danos psiquiátricos e dos danos no nível básico de formação do psiquismo, há também pesquisas que mostram alterações cerebrais em resposta a um quadro de abuso crônico. Teicher (2001) em seu estudo sobre os efeitos do abuso na neurobiologia infantil, cita várias pesquisas que trazem evidência claras de que a exposição precoce a um alto nível de stress como as crianças vítimas de abuso vivem, pode provocar alterações cerebrais permanentes. Alguns autores explicam essa

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mudança como se o stress fosse um agente ‘tóxico’ que altera o desenvolvimento cerebral da criança exposta a ele precocemente. Teicher prefere a explicação de que as mudanças observadas na formação do cérebro destas vítimas sejam uma forma adaptativa “que prepara o cérebro adulto a sobreviver e a se reproduzir num mundo perigoso.” (TEICHER, 2001, p. 6). Quando pensamos no legado da violência sexual, é importante salientar a enormidade do impacto que o abuso incestuoso traz para a vida de suas vítimas, em comparação com os outros tipos de abuso sexual (FAIMAN, 2004; HABIGZANG e CAMINHA, 2004; MCGREGOR, 2001). Nas palavras de Forward & Buck: O incesto é poderoso. Sua devastação é maior do que a das violências sexuais não incestuosas contra a criança, porque o incesto se insere nas constelações das emoções e dos conflitos familiares. Não há um estranho de que se possa fugir, não há uma casa para onde se possa escapar. A criança não se sente mais segura nem mesmo em sua própria cama. A vítima é obrigada a aprender a conviver com o incesto; ele abala a totalidade do mundo da criança. O agressor está sempre presente e o incesto é quase sempre um horror contínuo para a vítima (FORWARD e BUCK apud HABIGZANG e CAMINHA, 2004, p. 30).

2.2.4 Vítimas masculinas

Praticamente tudo o que é dito sobre os efeitos do abuso sexual vale para ambos os sexos. No entanto, há alguns efeitos específicos para os meninos vitimas de abuso que devem ser levado em consideração. Milne (2001), Furniss (1993) e Loeb et al. (2002) citam alguns deles:  Homofobia: quando o menino é abusado por um homem, pode ficar confuso em relação à sua identidade sexual e uma das perguntas que o persegue como pano de fundo ao longo de sua vida é ‘Será que me tornei gay em decorrência do abuso?’. Essa crença pode gerar pânico ou enojamento de si próprio, além do que já é sentido normalmente pelo abuso em si.  Banalização: nossa sociedade machista banaliza o abuso do menino quando o

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abusador é uma mulher. Este é visto normalmente como tendo sido “sortudo”, o que é uma visão absolutamente distorcida e gera, além de idéias errôneas e preconceituosas, uma contradição para o menino: se ele gostou da experiência, então não pode ser considerado abuso e se ele não gostou, então é homossexual. Vale salientar aqui que mesmo não percebendo a experiência como tendo sido abusiva, os meninos apresentam sequelas a curto e longo prazo.  Solidão: ainda fruto de nossa sociedade machista e dos estereótipos masculinos, os meninos mais velhos podem achar que seu pedido de ajuda é sinal de fraqueza e achar que as pessoas esperem que ele saiba lidar com o assunto sozinho.  ‘Síndrome do Vampiro’: assim é chamada por alguns autores a possibilidade de um menino vítima de abuso sexual tornar-se abusador. Este certamente é um risco que tem que ser levado em consideração e levado a tratamento, pois muitos meninos vítimas realmente se tornam perpetradores. No entanto a realidade é que somente uma pequena proporção dos meninos abusados torna-se abusador, e se essa informação for levada de uma forma determinista, pode impactar a vítima interna e externamente. Muitos homens temem tornarem-se abusadores e isso pode gerar uma fobia tão grande ao ponto de evitar contato com crianças ou trazer o risco de suicídio. O preconceito pode vir também da própria família após saber do abuso, rejeitando-o por medo da repetição. Há risco de meninas também tornarem-se perpetradoras, no entanto, como o número é significativamente menor (LOEB e WILLIAMS, 2002), fala-se muito pouco sobre essa possibilidade.

2.3 OS CUSTOS E AS CONSEQUÊNCIAS PARA O AMOR: A FERIDA INVISÍVEL

Eles podem não parecer intocáveis; de fato, podem parecer muito atraentes. Mas muitas pessoas sentem-se intocáveis; por dentro, estão famintas de aceitação e amor. (VANSTONE e LUTZER, 1995, p. 67).

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O abuso sexual tem um efeito negativo -tanto para o homem quanto para a mulher- na habilidade de estabelecer e manter relacionamentos íntimos saudáveis na vida adulta. Trata-se de uma violência que envolve uma ação humana, diferente de um trauma não-interpessoal como os traumas decorrentes de doença ou acidente natural. Por se tratar de uma violência interpessoal, o abuso sexual pode trazer conseqüências profundas e prolongadas na forma da vítima se relacionar futuramente e em suas percepções e respostas a relacionamentos de autoridade e poder. É uma ferida na emoção, uma ferida no amor, originadas no profundo sentimento de desconfiança no ser humano em geral. Com isso, “as vítimas de abuso sexual não conseguem entregar-se ao corpo e ao amor” (LOWEN, 1997, p. 147), o que significa que sua entrega amorosa e sexual fica comprometida e com isso diminui grandemente as chances de se realizarem afetivamente em suas vidas. Mesmo abusos extrafamiliares que não envolvem pessoas de vínculo próximo podem deixar feridas nas relações interpessoais, nos casos em que a criança se sente negligenciada pelos cuidadores que a deixaram exposta ao abuso (quer esta seja uma percepção real ou não), ou até mesmo quando estes não percebem os sintomas de que ela está sendo abusada, situação em que a criança pode inferir que eles aceitam a situação ou que não a amam suficientemente para cuidar adequadamente delas ou notar os sinais da violência (MCGREGOR, 2001).

2.3.1 Distúrbios psiquiátricos e psicológicos

Os distúrbios psiquiátricos e psicológicos, apesar de serem sequelas intrapessoais que afetam diretamente a vida emocional pessoal da vítima, acabam por ter efeitos indiretos interpessoais, afetando os relacionamentos amorosos.

É nos

relacionamentos íntimos mais próximos que vivenciamos toda a gama de sentimentos presentes na afetividade humana, e se um dos membros apresenta algum transtorno que afete sua organização emocional, certamente sua relação amorosa será afetada também.

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Whiffen et al (1999 apud ORLY e HUNSLEY, 2001), no entanto, encontraram dados em suas pesquisas que mostram que a inabilidade da vítima em estabelecer relações de apego saudáveis com seus parceiros é que traz como consequência a depressão, e não a história de abuso por si só. Com esse entendimento, eles sugerem que relacionamentos íntimos estáveis e acolhedores podem proteger os sobreviventes contra os sintomas na vida adulta. Os sintomas básicos na criança vítima de abuso e no adulto sobrevivente, de acordo com Green (1995), são parecidos. No entanto diferem no sentido de que o adulto está menos conscientemente preocupado com o evento traumático pelo tempo transcorrido, pela falta de perigo real atual e pela aquisição de defesas emocionais mais eficientes. Novos sintomas aparecem ao longo da adolescência e vida adulta, tais como drogadição, transtornos alimentares e distúrbios de personalidade. Estas são consideradas tentativas mal adaptadas de se lidar com o trauma do abuso e com as memórias conscientes ou não que tendem a vir à tona mais facilmente diante do estabelecimento de relacionamentos íntimos e sexuais na vida adulta. Os sintomas mais comuns encontrados na vida adulta são:  Transtorno de Ansiedade: sobreviventes de abuso sexual infantil, de acordo com McGregor (2001), têm cinco vezes mais probabilidade de desenvolver algum tipo de desordem de ansiedade tais como ansiedade generalizada, fobias, transtorno do pânico e transtorno obsessivo compulsivo.  Transtorno de stress pós-traumático complexo: os sintomas de stress póstraumáticos tão frequentes na infância de crianças abusadas, transformam-se em transtorno de ansiedade generalizada na vida adulta, ou podem reaparecer a qualquer momento como transtorno de stress pós-traumático complexo e grave quando alguma situação de similaridade com o abuso engatilha os sintomas (GREEN, 1995; DILILLO e LONG, 1999).  Depressão: alguns autores (GREEN, 1995; DILILLO e LONG, 1999; MCGREGOR, 2001) citam a depressão como o sintoma mais comum na vida adulta decorrente de um trauma de abuso. Aparece seguido de baixa auto-estima, sentimentos de alienação e isolamento e auto-imagem negativa. Herman (1981 apud GREEN,

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1995) em suas pesquisas demonstrou que 60% das mulheres vítimas de incesto relatavam uma auto-imagem negativa, comparadas com 10% do grupo de controle sem história de incesto.  Auto-agressão e ideação suicida: um estudo de Van der Kolk et al. (1991 apud MCGREGOR,

2001)

mostrou

que

79

por

cento

de

indivíduos

com

comportamentos auto-agressivos relatavam histórico de abuso sexual na infância. Mullen et al. (1993 apud MCGREGOR, 2001) encontrou resultados nos quais os sobreviventes de abuso sexual apresentaram comportamentos suicidas de 20 a 70 vezes mais que o grupo controle.  Dissociação: de acordo com Green (1995), o abuso sexual e o abuso físico muito intensos na infância são os maiores fatores de predisposição para o desenvolvimento de transtorno dissociativo na vida adulta. McGregor (2001) cita casos em que o transtorno dissociativo desenvolve-se de forma tão intensa que pode ser confundido com esquizofrenia.  Transtorno de personalidade borderline: está fortemente associado ao abuso sexual. É como se houvesse uma incorporação gradual dos sintomas primários do trauma do abuso tais como depressão, labilidade emocional, impulsividade, ambivalência, ansiedade de separação, cisão da personalidade, dificuldade em confiar nas pessoas e medo de intimidade na estrutura de personalidade (GREEN 1995; DILILLO e LONG, 1999). Trippany (2006) cita vários estudos relacionando abuso sexual na infância e o transtorno de personalidade borderline e frisa a maior ocorrência de tais sintomas em casos de abuso que incluíram negligência de cuidados adequados por parte dos pais (ou quando os mesmos foram os abusadores). A inconsistência de cuidados primários é um precursor da vinculação emocional inconsistente exibida em adultos com transtorno borderline.  Sintomas histéricos: Freud (apud GREEN, 1995) considerava o abuso sexual infantil como a maior causa de sintomas histéricos na vida adulta. As vítimas que reprimem a memória do trauma podem tê-las emergindo do inconsciente na forma de sintomas histéricos.  Abuso de substâncias: é uma sequela comum entre vítimas de abuso na infância,

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que normalmente aparece durante a adolescência ou na vida adulta. O abuso de álcool ou drogas pode vir para anestesiar a ansiedade advinda dos primeiros contatos sexuais na adolescência que trazem a memória do abuso, ou para aliviar os sintomas complexos de ansiedade e depressão que tais pessoas vivem (GREEN, 1995; DILILLO e LONG, 1999). Carnes (1991) também relata em seus estudos, uma constatação de que quanto mais alguém sofreu abusos na infância, maior é o número de suas dependências depois de adulto –não só dependência química, mas também alimentar, sexual, etc.  Somatizações: estas vêm como uma forma de deslocamento da ansiedade e da dor trazidas pela experiência de abuso. Aparecem como dores somáticas e doenças psicossomáticas. Muito comum entre as mulheres vítimas de abuso é a dor pélvica crônica sem causa fisiológica (GREEN, 1995; LOEB e WILLIAMS, 2002) e candidíase crônica (MCGREGOR, 2001).  Distúrbios alimentares: a literatura (DILILLO e LONG, 1999; GREEN, 1995; MCGREGOR, 2001) mostra uma forte relação entre mulheres bulímicas e anoréxicas e o abuso sexual. A anorexia pode aparecer como uma forma de evitar a identidade sexual adulta, fazendo com que haja um atraso no aparecimento de sinais físicos e psicológicos da sexualidade feminina. Já a os episódios de vômito relacionados à bulimia podem simbolizar o clima de segredo relacionado ao abuso e a obesidade aparece também como uma barreira contra a sexualidade. Muitos dos sintomas acima acabam por se tornar egossintônicos e considerados como traços de personalidade, ficando assim dissociados do evento do abuso, não sendo mais considerados sintomas do trauma. Isso normalmente dificulta o diagnóstico em psicoterapia de adultos sobreviventes de abuso na infância.

2.3.2 Dificuldades no relacionamento amoroso

As conseqüências do abuso sexual discutidas nesse tópico, diferente das anteriormente tratadas acima, são sutis e encobertas. São feridas invisíveis que podem

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passar despercebidas como sendo sintomas de um trauma vivido anteriormente, mas ao mesmo tempo são os efeitos mais penetrantes e significativos do abuso sexual na infância. Ser violentado por outro ser humano pode trazer consequências para todos os relacionamentos futuros. No entanto, neste trabalho iremos focar o relacionamento de casal, que é certamente a interação interpessoal mais desafiadora para um sobrevivente de abuso. Follette (1991) reporta pesquisas que mostram que mulheres vítimas de abuso sexual apresentam maior probabilidade de se divorciar e que seus relacionamentos são frequentemente ‘tempestuosos’ e vistos como infelizes. Tais resultados são reforçados por investigações feitas por DiLillo e Long (1999) e DiLillo (2001): sobreviventes de abuso relataram menor satisfação nos relacionamentos, habilidades de comunicação mais empobrecidas e menor grau de confiança em seus parceiros, trazendo dificuldades em dividir confidências e discutir preocupações pessoais dentro do relacionamento. Em estudos feitos por Kernhoff et al. (2008), mulheres vítimas de abuso relataram conflitos interpessoais mais frequentemente que o grupo de controle. Por fim, Orly e Hunsley (2001) trazem em seus estudos pesquisas que apontam que mulheres abusadas têm mais probabilidade de nunca se casarem do que as não abusadas. Também mostram dados de que os indivíduos abusados são mais moderadamente introvertidos e com estilos de vida mais isolados em comparação com o grupo de controle. Outras pesquisas apontadas por eles (TSAI e WAGNER, 1978 apud ORLY e HUNSLEY, 2001; LINDBERG e DISTAD, 1985 apud ORLY e HUNSLEY, 2001) trazem relatos de falta de envolvimento emocional e um sentimento de isolamento em relação às pessoas, um senso de alienação e introversão social. A experiência de trauma sexual na infância pode levar a vítima a construir uma representação interna de mundo que é caracterizada por sentimentos de ameaça, traição e violência. Essa representação de mundo inevitavelmente será levada para seus relacionamentos amorosos criando expectativas constantes de violência, traição e rejeição. Devido a essa representação interna, os sobreviventes de abuso desenvolvem um padrão de apego inseguro na vida adulta. Os dois estilos de apego inseguro desenvolvidos por vítimas de abuso sexual são: apego ansioso (associado à ansiedade, confusão, dependência, ciúme e medo de ser abandonado ou de não ser amado) e apego

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evitativo (associado ao medo de intimidade, inibição social, falta de assertividade, e uma combinação de traços de evitação com preocupação) (Orly e Hunsley, 2001). O estilo de apego ansioso pode trazer uma tendência exagerada da vítima de abuso em focar suas atenções mais para o universo da relação do que nas suas experiências pessoais. Com isso, ela diminui seu sentido de identidade própria e cria uma hipervigilância nos relacionamentos, como se estivesse constantemente procurando por sinais de perigo de abandono ou traição. Esta hipersensibilidade é muito prejudicial ao relacionamento levando a vítima a interpretar as mudanças e nuances naturais de qualquer relação como extremamente significativas (Follette, 1991; McGregor, 2001). Já a pessoa que desenvolve o apego evitativo apresenta sérias dificuldades de envolvimento emocional, e muitas vezes não se mostra capaz de um contato afetivo. Quem convive com estas pessoas tem a sensação de que a intimidade e a afetividade delas é absolutamente inacessível, vestindo uma máscara de frieza e endurecimento, que no fundo é uma defesa psíquica despertada pela violência interpessoal operando como forma de sobrevivência e defesa contra o sofrimento vividos (FAIMAN, 2004). Na observação clínica normalmente nos deparamos com uma maior tendência a encontrar mulheres apresentando um padrão de apego ansioso e homens apresentando apego evitativo. Muito comum também é nos defrontarmos com o casal típico em que um mostra um padrão ansioso e dependente e o outro se mostra evitativo. Não é difícil imaginarmos a enormidade dos problemas e conflitos que um casal com esse funcionamento tem que enfrentar. Outro aspecto importante a citarmos é que o abuso sexual, por gerar fortes sentimentos de desamparo e impotência na vítima, cria um profundo senso de fragilidade em suas vítimas. A forma mais comum desses sentimentos se manifestarem, tanto no homem quanto na mulher que experienciaram abuso sexual na infância, é através do desenvolvimento de um comportamento controlador.

Tal forma de

comportamento pode se tornar o padrão de funcionamento da pessoa, trazendo também sérias dificuldades no relacionamento afetivo. Tais pessoas são vistas como egoístas, mandonas e controladoras, quando na verdade estão tentando se proteger. Vítimas de abuso incestuoso podem também transferir dificuldades vividas em

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sua família de origem para seu relacionamento atual. Como nos relembra Follette (1991), nas famílias incestuosas há uma dificuldade em se estabelecer fronteiras firmes entre os subsistemas familiares e como consequência disso, a pessoa abusada entra no relacionamento adulto com pouca ou nenhuma noção de como é um funcionamento familiar e de casal saudáveis. Finalmente, outro aspecto digno de nota é a ansiedade desenvolvida por muitas mulheres vitimizadas a fim de encontrar um parceiro. Na verdade essa ansiedade se torna muitas vezes uma busca desesperada de parceiros que possam magicamente suturar o vazio deixado pela experiência traumática. Em relação a isso, Lowen comenta que: Enquanto essas mulheres continuarem obcecadas por sua busca por um homem que as ame e proteja, serão usadas e sofrerão abuso. Seus relacionamentos com os homens não podem dar certo. Os homens reagem a elas como objetos sexuais, não como pessoas sexuais, porque essas mulheres não se consideram como pessoas. Seu senso de identidade está seriamente comprometido pelo abuso sexual. (LOWEN, 1997, p. 153)

Isso gera e mantém o fenômeno da revitimização que discutiremos no tópico a seguir.

2.3.2.2 Revitimização

A revitimização se define como o ato de um indivíduo ser vítima de algum tipo de agressão interpessoal em dois ou mais momentos de sua vida, sendo as experiências separadas pelo tempo e perpetradas por agressores diferentes (RIVERA-RIVERA et al., 2006). A situação de revitimização mais observada nos consultórios psicológicos são os casos de mulheres que experienciam abuso sexual na infância e novamente no casamento sob forma de abuso sexual, físico ou emocional, sendo o perpetrador o próprio marido. Consideramos abuso sexual dentro do casamento três situações

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diferentes: a) quando o parceiro exige a relação sexual; b) quando este usa de força física para obter o sexo; c) quando há ameaça de sair com outras mulheres caso esta não ceda. Um dos entendimentos possíveis para a revitimização é vê-la como uma compulsão à repetição. Esta consiste em uma tentativa do inconsciente de elaborar uma situação traumática que foi além da capacidade de elaboração do indivíduo (FREUD, 1923 apud FAIMAN, 2004). Importante lembrar aqui que a busca pela repetição é consequência do traumatismo, se situando fora do campo do desejo (PERRONE e NANNINI, 1998). Neste movimento de repetição, os adultos vítimizados na infância, podem sentir-se atraídos a pessoas consideradas semelhantes à personalidade do molestador, porém sem a consciência disso e evidentemente tornam-se vítimas tanto de abuso sexual, quanto físico e/ou emocional novamente. Uma segunda explicação possível é que possam repetir a paralisia e a submissão vivenciadas pelo trauma no abuso original e com isso ‘permitir’ a revitimização. Outra razão que pode explicar o fenômeno da revitimização é a possibilidade de que o paciente vitimado pelo abuso, como forma de sobrevivência, muitas vezes “suprimiu a capacidade de ver a verdade emocional muito mais do que a maioria das pessoas, pois, nos anos iniciais de sua formação, esse tipo de visão era percebido por ele como extremamente perigoso.” (SCHWARTZ-SALANT apud VITALE, 2004, p. 203). Assim, a vítima acaba por banalizar as situações de violência e aceitar a perversidade do mundo como sendo normal (LOWEN, 1997). Vários pesquisadores relatam pesquisas que mostram que mulheres abusadas na infância são mais propensas a sofrerem estupro ou viverem situações de violência física e sexual no relacionamento conjugal (DILLILO, 2001; FOLLETTE, 1991; GREEN, 1995; LOEB e WILLIAMS, 2002; RIVERA-RIVERA et al., 2006). Infelizmente, essa mesma dinâmica e a força da transgeracionalidade podem trazer consequências para os filhos de vítimas também, que apresentam um risco maior de serem abusados. Como mostra McGregor (2001), os efeitos do abuso podem dificultar com que a vítima desenvolva adequadamente seu papel parental e com isso não consiga ser protetor para evitar essa repetição. Outra possibilidade é que, por conta de suas dificuldades, pode inconscientemente evitar perceber sinais de que seus filhos possam estar sendo abusados.

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2.3.3 Dificuldades na sexualidade

O abuso sexual na infância é um dos fatores que mais colaboram para a dificuldade de se manter uma vida sexual saudável. Vítimas de violência sexual infantil podem desenvolver na vida adulta repulsa e medo de contatos sexuais, ou moverem-se ao outro extremo e se tornarem compulsivas sexuais ou apresentar uma tendência a hipersexualizar os relacionamentos sociais (DILILLO, 2001; GREEN, 1995; MCGREGOR, 2001). O potencial de sensualidade e erotização latentes em qualquer criança desperta de forma muito intensa em decorrência do abuso e com isso a criança vítima de violência sexual é privada da possibilidade de desenvolver sua sexualidade de forma progressiva e com isso desenvolver uma sexualidade saudável.

2.3.3.1 Disfunções e problemas sexuais

Mulheres sobreviventes de abuso sexual na infância experienciam uma gama de disfunções sexuais, incluindo falta ou diminuição de desejo, dificuldades de lubrificação, anorgasmia e vaginismo. Muitas também vivenciam ‘flashbacks’ da situação de abuso durante a interação sexual (FOLLETTE, 1991; LOEB e WILLIAMS, 2002). As mulheres vítimas de abuso podem ter medo de se ver como atraentes, femininas e saudavelmente sexualizadas. Isso pode trazer problemas na aceitação delas como mulheres. Podem rejeitar sua feminilidade, inclusive tentando evitá-la ganhando ou perdendo muito peso, para não serem vistas como atraentes. Segundo Loeb e Williams (2002), nos homens com história de abuso na infância, as disfunções sexuais mais encontradas são ejaculação precoce, disfunção erétil e diminuição de desejo. Também são comuns excessivas queixas urogenitais e fortes impulsos sexuais na forma de masturbação compulsiva e comportamento e linguagem

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erotizados em lugares inadequados. Homens sobreviventes de abuso também relataram a erotização da dor e a inclusão de experiências dolorosas em seu repertório sexual. Noll et al (2003) em uma pesquisa científica que comparava mulheres vítimas de abuso na infância com mulheres não abusadas encontrou resultados significativos: as participantes abusadas eram mais preocupadas com sexo, iniciaram sua vida sexual mais precocemente, eram mais propícias a engravidar na adolescência e se engajavam menos em métodos de controle de natalidade, apresentando maior comportamento sexual de risco e múltiplos parceiros. Estes resultados são também reforçados pelas pesquisas de Loeb e Williams (2002), que explica esses comportamentos como resultantes da hipersexualização e de fatores psicológicos, incluindo tentativas de resgatar auto-estima, atenção e sensação de poder e controle e uma habilidade rebaixada de resistir a uma solicitação sexual. Além disso, é fato que as mulheres vítimas de abuso têm afetada sua habilidade de se proteger e de preservar sua saúde sexual por conta dos sentimentos de vergonha e vulnerabilidade trazidas pelas intervenções ginecológicas (LOEB e WILLIAMS 2002). Outros pesquisadores (EARLS et al., 1990 apud LOEB e WILLIAMS, 2002) relatam uma alta prevalência de abuso sexual na infância de profissionais do sexo, tanto masculinos quanto femininos. Pesquisas indicam ainda que abuso incestuoso perpretado pelo pai biológico pode estar associado à maior aversão e ambivalência sexual (KERNHOFF et al., 2008; NOLL et al., 2003). Para estas pessoas, a excitação sexual que muitas vezes é uma forma natural de resposta do corpo a uma estimulação quando do abuso, é muito difícil de integrar e compreender, levando-as a associar excitação como algo ruim. O dano que isso provoca é imenso, pois altera toda excitação sexual futura que possam experimentar, mesmo que dentro de um relacionamento amoroso e saudável. Tal confusão cria conflitos internos que muitas vezes impossibilita às vítimas de gozar do prazer que o contato sexual deveria trazer. Estas pessoas têm roubadas as emoções naturais em mais poderosas que o corpo humano foi desenhado para experimentar, rejeitando suas sensações, seus corpos e encontrando formas de evitar sensações sexuais, normalmente bloqueando senão todas, as mais intensas sensações durante o ato sexual. Alexander Lowen (1991) falando sobre mulheres vítimas de abuso comenta que:

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Muitas mulheres sentem vergonha de sua sexualidade porque não lhes foi permitido desenvolvê-la como uma expressão de amor. E, no entanto, a sexualidade é uma expressão de amor, um desejo de estar próximo e unido com outra pessoa. Infelizmente, esse amor é geralmente misturado com seu oposto – a hostilidade (Lowen, 1991, p.153).

Tal bloqueio pode se instalar também através da dissociação entre afeto e sexualidade, levando as vítimas a tratar seus corpos de forma perigosa, através de compulsão sexual, ou simplesmente procurando contato sexual desconectado de relacionamentos amorosos, ou ‘vendendo’ seus corpos anestesiados pelo abuso em troca de algum carinho. Outro aspecto da sexualidade comumente encontrado entre abusados na prática clínica é a tendência ao sexo violento ou ao sexo sadomasoquista. O abusado pode assumir a posição sádica, aonde o que excita é o sentimento de poder sobre o outro, vivenciando assim uma troca de papéis em relação ao abuso vivido (este aspecto é mais observado nos homens). Ou pode assumir a posição masoquista ou de submissão, que remove temporariamente a culpa que bloqueia a entrega sexual (mais observado entre as mulheres).

2.3.3.2 Compulsão sexual

Pode ser difícil compreender como uma pessoa que tenha vivido uma ou várias situações de violência relacionada à sexualidade pode desenvolver um comportamento hipersexualizado ou uma compulsão sexual, quando o esperado seria que gerasse uma aversão. Nestes casos deve-se lembrar que tais pessoas provavelmente apresentam uma cisão em suas personalidades, desenvolvendo assim uma sexualidade superficial, assim como outros sentimentos. Lowen (1997) relata como a vítima de abuso sexual pode corporificar a sexualidade sem ser uma pessoa sexual, representando um papel sexual sem estar

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integrada com ele num nível adulto. Estas pessoas mostram uma máscara de pessoa adulta, sexualizada e sofisticada, mas por trás escondem uma criança aterrorizada e enraivecida pela violência sofrida e seus atos sexuais são meras performances, não uma entrega ao amor. Há uma aparente liberdade em seu comportamento sexual, mas tal liberdade é somente externa e não interna: “uma liberdade para agir, mas não para sentir.” (p.16) Carnes (1991) em um estudo sobre compusão sexual encontrou números altamente significativos que a relacionam ao abuso sexual na infância: 81 por cento dos dependentes sexuais reportaram terem sido abusados quando crianças. O número de relato de abusos emocionais também foi grande (97 por cento), levando o autor a pensar na hipótese de que a coexistência dos dois tipos de abuso tragam uma probabilidade maior de um indivíduo desenvolver a compulsão sexual. Ele conceitua a dependência sexual como uma obsessão com o sexo trazendo um descontrole sexual que chega a ameaçar a própria existência. Estas pessoas fazem do sexo sua razão de viver, o que traz complicações significativas para a própria saúde física e emocional, além de trazer dificuldades no estabelecimento de relacionamentos duradouros. A compulsão sexual também pode aparecer na forma fantasiosa: o indivíduo não tem contato sexual real com parceiros, mas passa uma boa parte do seu dia fantasiando relações sexuais ou se masturbando compulsivamente com ou sem o uso de pornografia. Um dos tipo de abuso descrito por Carnes (1991), e que este acredita estar relacionado com a dependência sexual fantasiosa é o chamado incesto oculto. O incesto oculto ocorre quando um dos pais provoca a sexualidade da criança sem chegar a ter um contato físico sexual com ela, apresentando algum comportamento impróprio que gera uma influência erótica nociva. Alguns exemplos de incesto oculto podem ser: uma menina que cresce em um ambiente familiar cercada de muita sexualidade, como por exemplo tios ou outros parentes que ficam fazendo comentários sobre seu aspecto físico, ‘brincam’ de abraçar, ou fazem cócegas em áreas sensualizadas, ou tocam nas áreas próximas ao seio, etc; um menino que cresceu ouvindo as fantasias sexuais da mãe desde pequeno, sentindo-se excitado sem ter escape para tal excitação; ou o pai que conversa sobre o crescimento dos seio de sua filha pré-púrbere para se excitar. A filha se sente incomodada e faz o

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possível para mudar de assunto, mas o pai insiste. Ele não chega a tocá-la, mas a atençaõ ao desenvolvimento físico explora sua vulnerabilidade.

2.4 PARCEIROS COMO COLABORADORES NO PROCESSO DE TERAPIA

Como já foi dito anteriormente, somente recentemente os terapeutas têm explorado de forma mais profunda o impacto do abuso sexual nos relacionamentos amorosos. A maioria dos estudos ainda foca nas consequências para as vítimas, mas raros são os estudos que falam de como pode ser difícil a experiência de ser parceiro de uma vítima de abuso. É muito comum encontrarmos na prática clínica casais em que os dois parceiros viveram experiências de abuso sexual na infância e tal fato pode ser explicado pelo movimento das escolhas inconscientes de parceiros com feridas afins. Sabemos também que um grande número de mulheres sobreviventes de violência sexual se envolve com homens abusivos e nesse caso a terapia de casal é indicada para ajudá-los a romper o ciclo de abuso.

Outras mulheres acabam por se envolver em relacionamentos de

característica oralizada, nos quais ela busca um parceiro cuidador que possa sanar seus sentimentos de vazio e dor. Um parceiro que não tenha tido a experiência de abuso na infância pode precisar de ajuda e apoio para compreender os efeitos do abuso em seus/suas parceiros (as) e para lidar com o sofrimento trazido à relação. Chauncey (1994) explora os vários aspectos do trabalho necessário com o parceiro da vítima, a partir de uma experiência de grupo de apoio oferecido a parceiros masculinos de vítimas femininas de abuso sexual na infância. Algumas dessas dificuldades foram descritas também por parceiros de mulheres abusadas em algumas pesquisas estudadas por Orly e Hunsley (2001). Na vivência desses homens, as maiores preocupações e queixas apresentadas são:  Conflito de necessidades: um sentimento muito comum entre estes homens era como expressar e ter atendidas suas próprias necessidades de apoio, suporte e

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individualidade diante de tanto sofrimento apresentado pela parceira.  Dificuldade com intimidade: a maioria tem como queixa a frustração e a dor decorrente das tentativas de aproximação emocional ou física com suas parceiras. Eles se sentem ‘escanteados’ pelas parceiras o tempo todo ou periodicamente. Mesmo compreendendo a necessidade de fechamento de suas parceiras em conseqüência do trauma, a vivência de dor e tristeza pela falta de aproximação é constante. Aqui vale frisar que apesar de inconscientemente esses homens também poderem apresentar medo de intimidade, que ficam projetados na parceira, a experiência consciente deles é de muita dor.  Dificuldade em ser espontâneo: os parceiros sentiam-se “pisando em ovos” com medo de que algum gesto deles pudesse trazer memórias do abuso, como abraçála por trás sem aviso.  Raiva, culpa e vergonha: para alguns, a raiva natural que acabam sentindo por não ter as próprias necessidades satisfeitas e pelas parceiras estarem sempre muito fragilizadas, acaba trazendo sentimento de culpa e vergonha.  Sexualidade: a maioria dos homens queixa-se de falta ou pouca freqüência de relações sexuais, que também traz o conflito entre a compreensão das causas da dificuldade sexual de suas parceiras e o sentimento de rejeição pela incapacidade de demonstrarem seu afeto através da proximidade física e a frustração por não terem suas próprias necessidades satisfeitas.  Sentimento de impotência e questionamento em relação à melhora: muitos dos parceiros afirmam conseguir suprimir suas próprias necessidades para ajudar na recuperação de suas parceiras, mas frequentemente se perguntam até quando suportarão essa situação. O sentimento de impotência por não saberem como ajudar as esposas também apareceu.  Dificuldade com parentes: muitos citam como sendo torturante ter que conviver com o perpetrador do abuso nos casos de abuso incestuoso em que a vítima e a família mantêm segredo sobre o ocorrido. Chauncey (1994) propõe que o

parceiro

pode tornar-se um apoio

importantíssimo na melhora dos sintomas da parceira. No processo de terapia, tanto de

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casal quanto individual, oferecer ajuda, suporte e orientação ao parceiro podem ter um efeito indireto e importante na melhora da vítima. Mostrar-se empático aos seus sentimentos pode ajudá-los a desenvolver maior resiliência no enfrentamento dos desapontamentos vividos na relação, a corrigir as distorções que possam apresentar em relação ao problema da parceira e ajudá-los a conseguir buscar suas próprias necessidades dentro da relação. É um trabalho de extrema importância para a melhora da qualidade do relacionamento. Por último, é importante ressaltar a possibilidade de a vítima experimentar por parte de seu parceiro uma situação que Follette (1991) chama de “acusação benevolente” (p. 64). Enquanto o parceiro compreende e dá suporte para a vítima, ele pode ao mesmo tempo responsabilizá-la por todos os problemas da relação, abdicando de sua participação para a qualidade do relacionamento. Para evitar que tal situação aconteça durante a terapia conjugal, o terapeuta deve focar sempre no casal e no relacionamento e não em como o parceiro pode ajudar a ‘curar’ o membro vítima de abuso.

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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos concluir através do conteúdo expresso neste trabalho que há largas evidências de que o abuso sexual da criança e do adolescente se trata de um trauma interpessoal agudo. Tal trauma encerra uma profunda violação de limites físicos e psicológicos e traz consequências gravemente negativas para a vítima ao longo de seu desenvolvimento cognitivo, afetivo, comportamental e social, e principalmente para os seus relacionamentos interpessoais futuros. Com a vivência do abuso, o indivíduo perde a espontaneidade e naturalidade de sua sexualidade e fica privado de sua inocência. Isso o leva à culpa. E a culpa destrói a alegria da vida. Com a vivência do abuso, o indivíduo não consegue entregar-se de forma plena ao amor. Por isso não podemos deixar de conhecer e considerar toda essa gama de situações e consequências que o abuso envolve, tanto nas terapias individuais, quanto nos atendimentos de casal. No entanto, o assunto está longe de ser esgotado e é importante reforçar que cada caso é único e, portanto o entendimento para cada processo terapêutico deve sempre levar em conta as individualidades e ocorrer sem posicionamentos pré-definidos. Por fim, gostaria de manifestar meu agradecimento às professoras Adriana Zilberman, Mara Lins e Maria de Fátima Rosa por toda a dedicação e empenho mostrados durante os três anos da formação. Foram três anos de muito aprendizado e muito crescimento, tanto pessoal quanto profissional, e devo isso a elas.

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