A ferro e fogo: tiro, porrada e bomba

June 25, 2017 | Autor: Adriana Facina | Categoria: Favelas, Baile Funk, Funk Carioca
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A ferro e fogo: tiro, porrada e bomba Adriana Facina, Carlos Palombini e Mariana Gomes Em 1980, um amigo, filósofo analítico, hoje em uma de nossas principais universidades públicas, dedicava-se a entender de que modo o mundo se desintegrara na Viena de Wittgenstein, de Webern e de Freud. Creio que ele lesse Viena fim-de-século, de Carl Schorske, mas não tenho dificuldade em encontrar ideias análogas em Oswald Spengler, Theodor Adorno e Susan McClary. Em O declínio do Ocidente, publicado em 1918, Spengler afirma: Somos gente civilizada, e não pessoas do Gótico ou do Rococó. Temos de levar em conta os fatos duros e frios de uma época tardia, cujo paralelo encontra-se não na Atenas de Péricles, mas na Roma dos Césares. De grande pintura ou grande música não há mais possibilidade para o europeu ocidental. Suas potencialidades arquitetônicas exauriram-se nos últimos cem anos. Restam apenas possibilidades extensivas. E todavia não vejo desvantagem alguma em que uma geração vigorosa e cheia de esperanças ilimitadas descubra às vezes que algumas dessas esperanças devam dar em nada. E que sejam as esperanças mais altas: quem valha alguma coisa superará o fato.

Em “O envelhecimento da música nova” Adorno dizia, em 1955: A “estabilização da música”, o perigo da segurança, perceptível desde 1927, tornou-se ainda mais intenso após a catástrofe mundial. Efetivamente, reza o clichê, de modo algum o mosto deu em vinho doce e maduro. Nenhuma realização válida, nenhuma obra-prima consumada tomou o lugar dos excessos de certos seguidores do Sturm und Drang. A luta por obras-primas é parte daquele conformismo ao qual a Música Nova renunciou.

A poucos meses de sua morte, em 1969, ele encerrava assim a palestra “Sobre o problema da análise musical”: A crise da composição hoje — e gostaria de concluir por aqui — também é uma crise de análise. Procurei mostrar por que. Talvez não seja exagerado dizer que toda a análise musical contemporânea — da música tradicional ou da recente — tem ficado aquém do nível da consciência musical contemporânea em composição. Caso a análise possa subir a tanto sem recair numa obsessão vazia com a coleta de fatos musicais, provavelmente seja então capaz de, por sua vez, agir criticamente sobre a composição e afetá-la.

Para Adorno, ainda no ensaio de 1955: O conceito de Música Nova é incompatível com todo o som afirmativo, com a confirmação do que é, ainda que se trate da própria “Existência” querida. Quando a música chegou a duvidar de tudo isso pela primeira vez, tornou-se Música Nova. O choque que causou na audiência em seu período heroico — à época da primeira execução das Canções de Altenberg de Alban Berg ou da Sagração da primavera de Stravinsky em Paris — não se pode simplesmente atribuir ao desconhecimento e à estranheza, conforme desejaria a apologia simpática; ele é mais o resultado de algo verdadeiramente aflitivo e confuso. Quem o negue e pretenda que a arte nova seja tão bela quanto a tradicional presta-lhe real desserviço; ele gaba o que essa música rejeita ao seguir, resoluta, seu próprio ímpeto.

Adorno já sabia que “a indústria cultural” ameaçava adquirir todas as ações da Música Nova para transformar-se em proprietária exclusiva. Se ela era capaz de fazê-lo com a música em 1955, o que não faria, em 2015, com a filosofia? Vladimir Safatle pede à música nova que desempenhe “um papel de alta relevância”; que mostre “o caminho da ideologia cultural nacional”; que mantenha “a linha de frente do debate cultural”; que siga os “exemplos paradigmáticos” de VillaLobos e Mário de Andrade; que efetue “a junção entre Estado, nação e povo”; que se alce em “linguagem de construção do espaço social e de reconciliação das populações como unidade”; que nos deixe “mais próximos da origem e da autenticidade”; que nos orgulhe enquanto “expressão maior da espontaneidade bruta de nossos sentimentos e modos de pensar”; que sirva de “modelo de convivência possível entre camadas sociais distintas e distantes”; que se alie ao ferro e ao fogo para construir “este país”. Nobilíssima tarefa! Mas o filósofo se coloca ao nível da consciência musical contemporânea e age criticamente para afetá-la? Não. Ele a recusa pura e simplesmente, o que o dispensa de qualquer esforço de análise crítica. Diante da crise da análise, o teórico declara o fim da música. E promove seu loteamento: o pagode é do PSDB; o sertanejo e o funk são do PT. Depois disso, não se sabe o que esteja por vir ainda, mas Safatle tem um partido e uma teoria, que não se entende com a realidade. Ele lembra assim aquele tio que, à mesa, encerra a discussão ao anunciar, com modéstia triunfante: “Eu tenho uma teoria!” Essa teoria — desnecessário dizê-lo — não constitui “ciência de ponta”, mas variações hiperbólicas floridas sobre uma espécie de senso comum acadêmico. Ela se esquece de levar em conta que o mundo mudou nos anos 1990. Que ao ruir do muro de Berlim e da Guerra Fria ergueram-se outros muros e encetaram-se outras guerras. Aqueles mesmos que ele gostaria de ver construírem este país a ferro e fogo têm seus filhos mortos pelo ferro das Forças Armadas e seus domicílios incinerados pelo fogo do Estado — mórbida ironia! Para Safatle, eles não têm cultura. Mas não era Adorno quem, em “O envelhecimento da música nova”, dizia: “As únicas obras de arte autênticas que se produzem hoje são aquelas que, em sua organização interna, se medem pela experiência mais completa do horror”? E mais adiante: As medidas brutais tomadas pelos estados autoritários, medidas que controlam a música e atacam qualquer desvio como decadente e subversivo, fornecem evidência tangível do que acontece de modo menos nítido em países não totalitários, do que se passa até no interior da arte, bem como no interior da maioria dos seres humanos. Diante de um estrago tão profundo, a maior loucura é moralizar.

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Safatle lamenta que a ideologia, traduzida na Folha de S. Paulo em croûtons de filosofia, já não sirva de compensação simbólica para a expropriação real de explorados e oprimidos, que seguem a fazer música como bem entendem, a fazer pouco de seus altos princípios, e a ganhar, como ele, seu dinheirinho. Se percorresse num sábado qualquer os becos e vielas de alguma favela brasileira ouviria uma complexidade de sons e sentidos, os pobres em suas performances a insistir em reinventar a vida diante do genocídio cotidiano. Às balas que não são de borracha, o funk responde com sons de tiros tornados percussão eletrônica, a narrar, de um ponto de vista que não aparece nos jornalões, a sobrevivência nas periferias de nossas grandes cidades. Tornar tiro som, fazer da morte música, festejar a vida em meio ao extermínio: a criação estética de sobrevivência é situacional, aposta num entrelugar onde nada é fixo, onde qualquer referencial que se pretenda universal é desconstruído, e as missões civilizatórias ruem meio que ridiculamente, a testemunhar a impotência da crítica. Analisar culturas de sobrevivência exige deslocamentos epistemológicos que permitam pensar a différance no sentido de Derrida: irredutível a consensos que silenciem conflitos. Negociação e tradução permanentes, hibridismos que desconstroem qualquer busca por pureza ou autenticidade, porque afirmam a performance como lugar da criação cultural. É preciso descolonizar o pensamento. Nas palavras de Homi Bhabha: Os termos do embate cultural, seja através de antagonismo ou afiliação, são produzidos performativamente. A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de laços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. O “direito” de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que estão “na minoria”. O reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição. Esse processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou a uma tradição “recebida”. Os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso.

Essas nossas considerações seriam apenas um debate de ideias não fosse o cenário sinistro em que se dão. Como nos ensinou Marx, ideias não vivem no vazio ou em algum lugar atemporal ou ahistórico. O que significa denominar regressão às formas musicais fruidas e produzidas por boa parte dos três mil mortos pela Polícia Militar em 2014, em sua maioria pobres, pretos e periféricos? Paul Gilroy afirma que a música é a  

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biblioteca da diáspora africana. Cada “livro” importa, pois a música performatiza uma história de invenção de vida num Atlântico de dor e sofrimento. A surdez que impede que se ouça essa história de longa duração tem implicações que se contam em cadáveres. A palavra “regressão”, se repousada sobre as mãos daqueles que aplicam teorias evolucionistas à cultura, pode significar, entre outras acepções, um estágio anterior na escala evolutiva. Ora, se pensamos a cultura como processos, práticas e produções de sentido, não cabe enxergarmos a ideia de regressão a não ser com propósito pejorativo. Neste sentido, o que aconteceu com aqueles de culturas “menos evoluídas” — ou mesmo aos “sem cultura” — em uma breve análise do percurso histórico da humanidade? Escravidão, expropriação, genocídio, silenciamento. Perversidades que se justificam a partir desta lógica. Se o termo “regressão” pode ser interpretado como uma forma de apontar um valor inferior à cultura produzida por certos grupos, o caminho a que esta análise nos leva é o da desumanização. Como nos diz Chimamanda Adichie, embora histórias tenham sido usadas para expropriar e desumanizar, também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Assim, neste árduo exercício de pensar o peso dos discursos e das histórias fixadas através deles, é importante que, neste circuito de afetos que o próprio Safatle propõe, não reproduzamos o que se diz daqueles a quem o poder dominante pretende subjugar. Mas não por pena ou “covardia crítica”. Não por ausência de critérios e/ou ferramentas analíticas. E sim por lançarmos mão de uma interpretação que leva em consideração um olhar não-universal sobre a cultura. De fato, o sentido antropológico da ideia de cultura não parece ser considerado na interpretação adotada pelo autor. Mesmo assim, é preciso questionar: quem é este sujeito universal produtor desta “narrativa do povo”? Que narrativa é esta? Quem é este povo? Esta colonial-modernidade, que presume um sujeito único, universal, de costumes e gostos fixos e “naturais” que se sobrepõe a toda e qualquer outra possibilidade de vivência, que barbariza a diferença, está em xeque. E é nesta ótica que argumentamos a favor da necessidade de chaves de leitura, vocabulários e epistemologias que desloquem a essência deste sujeito homem, branco, colonizado e heteronormativo. Não será a partir dos critérios deste sujeito da colonial-modernidade que construiremos análises relevantes sobre a cultura em 2015. Safatle também afirma que os que apontam elitismo em análises como as dele aplicam “um esquema tosco de luta de classes ao campo da cultura”. Pois diríamos que é exatamente por não incorrer neste equívoco que sinalizamos o elitismo circunscrito em

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seu diagnóstico sobre a música. Não é a Marx que recorremos para sustentar este ponto. E sim a Pierre Bourdieu, que defende que cultura é questão de gosto, e os gostos são construções sociais. Como toda construção social, a formação do gosto não é um evento ao acaso, mas sim discursivo. É também atravessado por questões de classe, raça, gênero, território, e afetos — sobre os quais Safatle teoriza — entre outros inúmeros pertencimentos que perpassam as teias às quais os sujeitos estão conectados. Desse modo, Bourdieu argumenta que um dos mais poderosos mecanismos de distinção que atuam na subjugação de determinados grupos, classes, etnias etc. é a hierarquização valorativa da cultura. Se em 2015 a música morreu, morreram com ela, portanto, algumas das possibilidades de problematização de questões de gênero e sexualidade no campo da cultura. O disco do Dream Team do Passinho, lançado em 2015, traz duas canções que discutem a heteronormatividade na música. “Batom com batom” e “Kiss me” narram, respectivamente, um caso de amor entre duas meninas e o relacionamento entre dois meninos. O que Safatle chama de “regressão” causou nos últimos dois anos acalorados debates no campo do feminismo. Valesca Popozuda, entre outras funkeiras, protagonizaram com seu papo-reto-quase-descompromissado e com seus corpos descolonizados um embaralhamento do dualismo colonial/moderno. Foi também em 2015 que a carreira do rapper Rico Dalasam, primeiro gay assumido da cena hip hop, deslanchou. Dalasam fala de amor entre homens, racismo, sobre o cotidiano de se saltar sobre o sangue que escorre nas favelas paulistas e, principalmente, sobre o que chama de fervo. Para Dalasam, o fervo é protesto. Em suas músicas, ele reconhece que a performatividade tem seu papel subversivo em uma sociedade machista e homofóbica. A que regressão Safatle se refere então? De que morte ele fala? Em 1914, escandalizado com a apresentação do Corta-Jaca nos salões presidenciais, Rui Barbosa discursou no Congresso Nacional. A dança, sensual para os padrões da época, com os dançarinos a evoluírem de corpos colados, e a música de Chiquinha Gonzaga apavoraram a missão civilizatória que nos queria mais europeus e menos africanos. Eis um trecho do acalorado discurso: Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile o programa de recepção presidencial em que, diante do corpo diplomático, da mais fina sociedade do Rio de Janeiro, aqueles que deviam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o cortajaca à altura de uma instituição social. Mas o corta-jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o

 

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corta-jaca é executado com todas as honras de música de Wagner, e não se quer que a consciência deste país se revolte, que as nossas faces se enrusbesçam e que a mocidade se ria!”

Nossa “miséria musical” vem de longe, podemos perceber. “Contaminada” pelos tambores da diáspora negra, a música popular urbana no Brasil teve a morte decretada desde seu nascimento. Felizmente, quem sobrevive não morre fácil.

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