A FESTA NO CASTELO –UMA EXPERIÊNCIA LITERÁRIA PERIFÉRICA EM TEMPOS DE DITADURA MILITAR OU O PERIGOSO JOGO DA LITERATURA

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A FESTA NO CASTELO –UMA EXPERIÊNCIA LITERÁRIA PERIFÉRICA EM TEMPOS DE DITADURA MILITAR OU O PERIGOSO JOGO DA LITERATURA

(...) a ligação entre a literatura e a sociedade é percebida de maneira viva quando tentamos descobrir como as sugestões e influências do meio se incorporam à estrutura da obra de modo tão visceral que deixam de ser propriamente sociais, para se tornarem a substância do ato criador. Antonio Candido

Deu-se, entretanto, uma espécie de disparate [...]: uma pequena elite intelectual separou-se notavelmente do grosso da população, e, ao passo que esta permanece quase inteiramente inculta, aquela, sendo em especial dotada da faculdade de aprender e imitar, atirou-se a copiar na política e nas letras quanta coisa foi encontrando no Velho Mundo, e chegamos hoje ao ponto de termos uma literatura e uma política exóticas, que vivem e procriam em uma estufa, sem relações com o ambiente e com a temperatura exterior. Sílvio Romero

I Em pouco mais de 500 anos de história, o Brasil já passou por inúmeros projetos de modernização que não se concluíram e foram substituídos em fases políticas seguintes por outros novos planos. A cada nova etapa a modernização inconclusa se reinicia a partir do nada, ou seja, o Brasil é o país que não esgota seus projetos políticos e logo já está trilhando uma nova fase. Esse esforço de constante atualização e desprovincianização, segundo palavras de Roberto Schwarz1, ocorre em todos os campos e, principalmente, na vida intelectual, inviabilizando a construção de um caminho contínuo de reflexões. Assim é que, no período de 1945 a 1964, dá-se no país o fortalecimento dos sindicatos e dos movimentos populares na luta pelos direitos políticos e sociais. Essa evolução rumo à construção de uma hegemonia baseada no interesse das maiorias é interrompida, por meio da força, pelo golpe militar de 1964, ao qual se seguiram mais de vinte anos de regime de exceção. Em todos os momentos históricos da vida brasileira, a literatura esteve participando dos projetos político-sociais. Assim como o escritor do período do Romantismo brasileiro achava-se empenhado na construção de um projeto nacional literário, um número significativo de escritores brasileiros demonstrou mais uma vez esse empenho após o golpe militar de 1964. Por isso, esse 1

SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: Que horas são?, p. 30.

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tema é recorrente da literatura dos anos 70/80 e ainda hoje repercute artisticamente em obras que se detêm no registro do fracasso de um projeto de evolução social e política. Cada obra desse período traz uma versão do pesadelo que trouxeram os anos de regime autoritário, cujas conseqüências são atuais, já que o Brasil que vivemos hoje é, em grande parte, produto da ditadura militar, conformação do regime da força que emperrou em vinte anos o avanço mental e cultural e deteve o aperfeiçoamento das instituições democráticas no país. Por outro lado, a literatura, que sempre participa nas experiências drásticas da história humana, possibilita que o homem, ao vivenciar uma situação crítica e tendo saído dela fortalecido, possa emergir de suas violentas tensões com o mundo por meio do registro desses momentos trágicos. Pela expressão literária, o indivíduo transcende sua experiência singular e constrói um espaço viável, onde suas angústias e inquietações ganham vida e se manifestam, constituindo o texto uma experiência política, mas, antes de tudo, essencialmente humana. E, no caso do escritor gaúcho Moacyr Scliar, a experiência literária da realidade brasileira durante o período da ditadura militar fixou-se como, além de conteúdo, forma literária, conforme ocorre no romance A festa no castelo, publicado em 1982. Nesse ofício vital, Moacyr Scliar reconhece que fazer literatura é, para ele, antes de tudo contar boas histórias2, mas sua construção de um mundo onírico está intimamente colada ao contexto sócio-histórico brasileiro. A palavra literária apresenta nesse autor um forte conteúdo político e social, um poder dialético de adesão/transgressão, além de uma ficção impregnada pela História. No romance ora estudado, articula-se um jogo entre História e ficção, que leva à reflexão sobre o papel e o comportamento de cada instância da sociedade, desde a família, o trabalhador, a escola e a do intelectual brasileiro durante os chamados anos de chumbo. Com o sentimento que o torna “homem do seu tempo e do seu país”, que, segundo Machado de Assis3, é o que dá importância ao escritor, Moacyr Scliar traz para a obra o elemento externo, que, por sua vez, passa a ter seus desdobramentos na maneira ambígua de narrar, fazendo da forma social a forma literária e, a partir daí, em uma relação oposta, a forma literária muito diz do momento histórico. Scliar constrói um texto sobre uma base dialética, como o faz no conjunto de sua obra.

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SABINO, Mário. Paraísos artificiais. Veja, p. 11. ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Instinto de Nacionalidade. In: COUTINHO, Afrânio. Caminhos do pensamento crítico, p. 345. 3

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II Diante do papel em branco a escrita que se impõe como um objeto de desejo passa a ser motivo de incômodo na consciência bifurcada do narrador – da qual deriva a estrutura ambígua da obra. A convicção de que sua história não será uma suave narrativa que possa embalar o sono do leitor leva o narrador-personagem Fernando a escolher um caminho de mão dupla, ao ver-se diante de um dilema que soluciona/não soluciona integrando as duas histórias que compartilham sua imaginação, através da superposição de duas linhas narrativas. Duas fábulas, uma construção formal, uma consciência dividida entre o vivido na história que quer contar e a alegoria da festa no castelo, invocando a situação de opressão vivida no Brasil na década de 1960 a 1980. Se a escrita literária é uma forma de reconstrução da memória, o narrador, Doutor Fernando, advogado agora já maduro, faz clara sua intenção de recuperar e compreender seus anos de juventude através da palavra e acaba por construir, inevitavelmente, uma versão da memória do Brasil no período da ditadura militar. O mote que se repete “não era essa a história que eu queria contar” expõe seu inconformismo de ter que também narrar uma história que não é a que precisa contar. Trata-se de uma simulação, um jogo de linguagem, já que essa história, quase abortada, revela-se, ao final do romance, a de uma bem sucedida sabotagem e rebelião popular, liderada pela atriz Lina Però e pelo então jovem guerrilheiro Nicola, atual sapateiro e mentor intelectual de Fernando. Com a chave da obra na mão, vê-se que aquela história está não apenas na memória do narrador, mas em diálogo com sua história pessoal. Aquele mote mostra um narrador perseguido por uma obsessão ou por uma profunda obrigação íntima de falar algo, como se estivesse sendo pressionado a fazê-lo. A repetição faz com que o próprio texto vá se encaminhando para uma situação de desconforto, beco sem saída, reforçando a idéia de censura, de opressão, de tortura. No entanto, à medida que o narrador insiste na negativa e tenta descartar a história que perturba sua escrita biográfica – tanto que ela se constitui como uma fábula periférica à história principal e só adiante vai adquirir sentido –, ela vai se manifestando ainda mais forte em sua memória, como um eco que ressoa em sua consciência. Assim, sua narração divide-se entre duas histórias fantasmagóricas que lhe perseguem: a daquela noite em que se realizou a festa no castelo italiano - “Uma noite na Idade Média” – numa alusão ao estado de trevas e barbárie que caracteriza as épocas – e seu testemunho de uma época de trevas que também não pode ser apagada das memórias dos sobreviventes.

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Agir como não se deseja é, nos tempos de arbítrio e repressão, parte de um processo que não se dá apenas na criação literária. A coação – fosse ditada por um desejo interior, fosse imposta pelos aparelhos repressores de estado – caracterizava o contexto do autoritarismo. Assim, a coação a que o narrador se vê sujeito, obrigando-se a narrar algo que não deseja – ainda que isso se constitua num jogo de linguagem – provém do medo que silencia, do medo que ronda as casas, o país, a palavra. Medo esse que se encontra como marca registrada da tirania e “princípio de ação, ou seja, o medo que o povo tem pelo governante e o medo do governante pelo povo”, ao lado do “poder arbitrário, sem o freio das leis, exercido no interesse do governante e contra os interesses dos governados”4. Mas se as restrições à liberdade de expressão do indivíduo estão internalizadas na obra, também está internalizada a resistência do criador. Não obstante precise falar do que não se deseja – para isso tendo que aludir a assuntos, remotos no tempo e no espaço, que dialogam com sua realidade atual –, persiste narrando o que deseja: seu passado. Insiste nas duas histórias, até o ponto em que narrador e leitor possam atar a ponta de uma à outra. Assim, ele está falando de sua formação política, enquanto fala da história de seu mentor intelectual e da história de dois espaços histórico-geográficos imersos em desigualdades sociais e luta de classes. Nesse aspecto, as duas vão convergindo e, a partir da página 50, os elementos de uma história vão sendo inseridos na outra até que se percebe que a história de Nicola faz parte da história do narrador e, no final, há a convergência das duas. Da ficção que não quer contar – mas acaba contando – sai a personagem Nicola, que a ela retorna para uma liderar a revolução. Assim, a festa no castelo é a ficção de uma ficção, em que a luta de classes se dá abertamente e termina, sob a ótica da multidão que invade o castelo, bem sucedida. Com uma linha narrativa já em andamento, na 3ª pessoa do singular, o narrador, até então aparentemente distanciado, quebra o fio narrativo e se coloca como o enunciador de uma narrativa indesejada, imposta pelo subconsciente. Recupera-se então o consciente e o narrador se envolve, se expõe e assume a narrativa. Explica, então, o objetivo de sua opção de se transformar em personagem e escrever sua própria história. Após os dois parágrafos iniciais, o narrador-observador sai de cena e quebra a crença do leitor “ingênuo” no pacto ficcional, momento em que assume sua subjetividade e seu poder como voz narrativa. Nesse ato, expõe a literatura pelo seu avesso, como um jogo de linguagem em que o narrador é o ponto-chave, que narra segundo uma conveniência técnica, no entanto, seus desejos, seus interesses e sua cosmovisão sempre predominam sobre os demais aspectos. Mesmo 4

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo, p. 513.

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a obra se iniciando com a história do castelo, a história particular do narrador é a que vai dominar a narrativa, revelando a onipotência do poder do discurso do narrador, que representa o discurso do poder nas obras literárias, já que interfere não só no desenrolar dos acontecimentos, como também na sua apresentação ao leitor, sendo que as duas histórias podem ser lidas separadamente, o que é facilitado pela fonte em itálico como marca de enunciação. Mas se a literatura é, portanto, pura matéria verbal disposta à vontade e segundo interesses de um narrador, e aí leia-se também autor, é, ao mesmo tempo, um perigo, um desafio, já que o homem que escreve não pode se despojar de suas vestes ideológicas, de sua roupagem de ser histórico e social para oferecer apenas uma ilusão ao seu leitor. A partir do momento em que o narrador emerge e se expõe na narração, percebe-se que sua narrativa não vai prosseguir nos moldes tradicionais. Narrar torna-se uma problemática: o que se deve contar e o que se deseja contar. Na história do castelo, a missão de narrador é a de contador de uma história, o que constitui uma “forma artesanal de comunicação” – como nos fala Walter Benjamin5 –, mas a situação histórica que Fernando viveu está próxima a qualquer ficção que se possa imaginar. Só que, em um plano imaginário, na história aparentemente tradicional, a questão social é, finalmente, solucionada, com a tomada do poder pelos operários. Na moderna história de Fernando, cuja relação é direta com a realidade social do país, a obra termina com o início dos tempos mais duros de repressão. A transformação que se opera em Nicola acaba por ocorrer com o próprio Fernando que, no fim de sua narrativa, assume ter esquecido sua própria história, após entrar para a faculdade e passar a se preocupar com questões miúdas e muito particulares, como a despesa de seu carro. Toda aquela historia que já passou importa ao jovem burguês como uma experiência de juventude, que terminou longe de trazer qualquer vitória para a causa do povo pelo qual o jovem pensava defender e lutar. A crítica à burguesia dos anos de juventude se arrefece e se dissolve ao tempo da narração. Nesse momento, Fernando articula sua consciência de homem letrado com a ingenuidade de seus tempos de amadurecimento político. Se, quando garoto, desfere as críticas à burguesia e ao sistema capitalista, agora pertencer à burguesia e movimentar-se bem no interior do sistema não mais o incomoda; ao contrário, soa como vantagem: “Aprendi muitas outras –

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BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: _____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, p. 205.

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certos macetes em termos de investimentos, de transações bancárias – mas isso não vem, ao caso agora” (FC, 14)6.

III Para simular o impasse que persiste por toda a obra, o narrador finge narrar uma história tradicional nos moldes das matrizes narrativas ocidentais. Entretanto, essa história que se passa no castelo italiano vai se construindo como alegoria do que se passa no Brasil da época e culmina com uma situação inversa ao que ocorreu com o golpe militar de 1964. Para isso, inicia a narrativa com a apresentação de um tempo cronológico por si só sugestivo em relação à memorável data do golpe militar de 1964 (“Na gélida noite de 31 de março de 192...”, FC, 7), porém o cenário europeu aristocrático onde se distribuem as personagens nobres, a “nata da sociedade européia” (FC, 7), situa a fábula em outro espaço e tempo histórico, forma encontrada pelo autor-implícito para falar do mesmo falando do outro. Em contraposição à nobreza em festa no interior do castelo, descendo de seus confortáveis automóveis, símbolo da modernidade que chegava no início do século XX, a multidão de operários, artesãos e camponeses, se aglomera diante do castelo. No entanto, vê-se impedida de penetrar nele seus olhos ávidos por conhecerem os mistérios de uma classe tão distante social e economicamente, misteriosa em seus hábitos sofisticados. A partir dessa oposição dos espaços fora/dentro do castelo, vão se estabelecendo novas oposições que constroem a dinâmica da narrativa. A dicotomia inicial do espaço próprio/alheio, que no fim da fábula sofre uma invasãoinversão, revela-se, no desenrolar do fluxo narrativo, em muitos outros aspectos. Para exemplificar, basta que se recorde a oposição entre a figura do pai, amoroso e conservador, e a de Nicola, responsável pelo segundo nascimento de Fernando, como ser humano e político. No entanto, esse tutor liberal acaba mostrando também sua dubiedade na transformação de arraigado defensor do regime socialista em bem-sucedido empresário capitalista. Já no segundo parágrafo da narrativa se expõe a contradição que vai perpassar toda a obra: a profunda distância que existe entre as classes sociais. Nota-se, todavia, ali, entre os nobres e um industrial, a presença de dois personagens que destoam: a atriz e cantora Lina Però e o escritor inglês Francis L. Francis. Até então a multidão é passiva espectadora do que ocorre no

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A sigla FC será utilizada doravante sempre que se fizer uma citação ou referência à obra A festa no castelo.

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castelo. Lina Però é a personagem que encarna a transgressão e, infiltrando-se no ambiente aristocrático, representa o intelectual que pertence a dois mundos. Utiliza, no entanto, sua condição de artista, que lhe dá a prerrogativa de freqüentar o castelo, para facilitar a invasão do castelo pelo povo. E, então, a obra vem expor as contradições de uma sociedade que comporta, num mesmo espaço social, duas situações tão desiguais. Representar a postura alienada dos operários da fábrica de sapatos implica contrastá-la, depois do choque inicial que sofre o narrador, à atitude doutrinadora de seu discurso. Quando mostra a realidade do país, o narrador ao mesmo tempo a escamoteia, expondo perfidamente que o esclarecimento político da classe intelectual não é alcançado pelo operário. Por outro lado, reafirma-se a divisão entre trabalhador intelectual e braçal: ao primeiro cabe refletir e iniciar as mudanças na sociedade; ao segundo, seguir o caminho aberto pelas provocações daquele. A narração também sugere que o país não se mostrou solo adequado para a revolução socialista, sendo este um discurso apropriado por uma elite burguesa que, ao confrontá-lo com a situação política nacional, se depara com sua impropriedade. Enquanto representação do mundo burguês, do qual o intelectual participa e inevitavelmente assume os valores, a obra literária vem reproduzir sua visão de mundo. Assim, a consciência do escritor se divide entre esse mundo próprio – e a partir do qual extrai seus parâmetros de elocução – e o desconforto diante das deficiências desse mundo. Totalmente desvinculadas da realidade local, as idéias revolucionárias de Nicola e do estudante Fernando apresentam-se mal ajustadas à época e lugar, quando contrastadas com a alienação do trabalhador em sua pacata vida diária. Essa inadequação mostra o desejo de uma burguesia de forjar na sociedade brasileira um sistema político alheio aos processos sociais no Brasil e denuncia o caráter postiço dessas idéias. Tal situação provoca na obra uma postura igualmente ambivalente e, por fim, ao confrontar-se a posição do intelectual sintonizado com as últimas idéias sobre o socialismo marxista com a do trabalhador envolvido com a busca da sobrevivência diária, vivendo em estado de completa penúria material e mental, revela-se o sentimento de que a elite intelectual vive “entre instituições e idéias que são copiadas do estrangeiro e não refletem a realidade local”7. De um lado, um avançado projeto político do socialismo marxista, parte de um projeto internacional para a América Latina, sustentado pela burguesia e visado pelos setores 7

SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: Que horas são?. p. 39.

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conservadores da sociedade civil e militar e, de outro, os próprios trabalhadores, destinatários desse projeto e seus executores finais, alienados não apenas das idéias e teorias marxistas, mas de sua própria condição de cidadãos capazes de articular suas reivindicações, seus protestos contra as condições fantasmagóricas em que viviam e trabalhavam. O texto registra o abismo entre as idéias de implantação de um regime socialista e o desconhecimento dessas idéias por parte da classe operária, aquela a quem caberia construir a revolução. O intelectual cria uma expectativa de ação por parte do operário, esperando dele uma certa gama de atitudes e comportamentos, à qual este não corresponde. Essa inadequação das idéias à ordem social de que participa configura-se o que Fábio Lucas chama de ideologia da dependência, que consiste em receber uma informação bem como a forma de produzi-la, no entanto não podem ser transplantadas as condições materiais de produção8. O trabalhador brasileiro que o narrador vai encontrar em uma fábrica de sapatos vive em estado de miséria e alienação e sequer imagina que possa haver proposta naquele momento de qualquer melhoria de suas condições de sobrevivência. Alienado, não questiona sua existência nem se posiciona politicamente, e, por essa situação, o narrador, enquanto membro de uma elite letrada, assume sua parcela de culpa: “como é que a gente podia chegar ao socialismo sem dialogar com a classe trabalhadora?” (FC, 59). O intelectual fala sobre o trabalhador e o objeto de seu discurso permanece-lhe velado, opaco, intangível e, por isso, ele se assusta ao se deparar com aquele ser até então desconhecido. Ante uma realidade surreal, o próprio narrador pergunta-se, num misto de surpresa, decepção e desdém: Seria possível construir o socialismo com uns tipos como aqueles? E se a gente os substituísse por elementos jovens, ideologicamente firmes, ainda que não afeitos ao trabalho físico... Uma coisa que se teria de ponderar bem, a questão dos recursos humanos para a fábrica socialista. (FC, 44).

Em outras palavras, o narrador sugere que o socialismo é luta da burguesia e que a gente brasileira não possui o perfil de trabalhador socialista. A obra evidencia a distância entre a teoria, o projeto de uma revolução socialista e sua real possibilidade de efetivação, ainda que o narrador manifeste seu sentimento de pertença a seu tempo e, mais ainda, o dever com seu país: “O Brasil se preparava para o confronto final e eu tinha de estar na linha de frente” (FC,35). Segundo se deduz do texto, o desejo de implantação

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LUCAS, Fábio. Vanguarda, história e ideologia da literatura, passim.

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do sistema socialista não se ajusta à realidade brasileira e vem representar uma imposição ideológica externa que, naquele momento, era alheia à sua realidade. Divididos entre a realidade e o sonho, o conhecimento teórico e a impossibilidade de atualizá-lo na prática, o militante político não consegue que sua palavra chegue ao operário ao qual ela se destina. O narrador ironiza essa dificuldade de comunicação levando-a ao extremo e criando uma situação em que sua abordagem aos operários provoca desconforto e estranheza (FC, 83). Esse conflito revela a consciência do intelectual que faz com que ele se aproxime, num esforço para superar a penúria intelectual de seu país, e queira conhecer aquele do qual ele fala. Situação que remete a um novo tipo de realismo, aquele em que o operário inculto passa a ser mostrado, sob uma ótica burguesa, como elemento exótico na paisagem. As personagens operárias não chegam a ser construídas como personagens: são apenas texto. Elas são mostradas como o são os objetos e as máquinas – pessoas indiferentes, frias, insensíveis. No trabalho da fábrica, e também no espaço textual, figuram apenas como meros componentes do cenário, misturando-se às máquinas velhas e barulhentas e agindo como autômatos (FC, 43). Sempre em seus lugares e, curiosamente, de cabeças baixas – numa postura típica e representativa do homem humilhado. A visão que o narrador constrói desse povo, aqui representado na figura meramente ornamental dos operários no texto, coloca-os em perversa situação de inferioridade. Obtém-se assim a personagem sem força, sem lastro psicológico, completamente dominada pelo texto, pela linguagem que a constrói. Uma significativa importância assume o olhar dos operários, pois é algo que preocupa o narrador: eles não olham (FC, 58), ou apenas alguns olham (FC, 52) ou olham “de um ângulo de no máximo 45 graus” (FC, 52). Se ver exprime um ato espiritual e significa compreender, o olhar limitado dos operários está sempre ali remetendo à idéia de visão parcial, de visão alienada, da consciência obliterada do processo sob o qual submergem. À medida que o narrador vai adentrando a realidade do operário, aprofundam-se as contradições e o disparate entre a forma social e a forma literária. Então, vem à tona a grande descontinuidade entre a condição do intelectual em um país periférico e as condições de vida do povo desse país. Repercute a voz de um narrador que narra a partir do ponto de vista do homem politicamente fracassado, ainda que, em relação à periferia da qual ele fala, ele represente a visão de um centro modernizador. O operário, representado como excluído do processo político brasileiro, não poderia, pela estado completo de alienação em que se encontra, ser agente de nenhuma transformação social. Se de um lado o narrador expõe a condição alienada do trabalhador

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brasileiro, por outro ele se posiciona segundo uma visão conformista e burguesa em relação a esse trabalhador, reforçando o que Antonio Candido chama de “consciência catastrófica de atraso” do intelectual brasileiro9. O narrador procura pontuar o sentimento de uma classe intelectual de “viverem entre instituições e idéias que são copiadas do estrangeiro e não refletem a realidade local” 10. Isso equivale a dizer que há uma profunda distância entre a produção, transmissão e veiculação das idéias no país, as quais são, muitas vezes, impostas e não produzidas a partir das contradições da vida social, ainda que essas contradições não sejam exclusivamente nacionais. Quando se choca ao se descobrir diante do que é, para ele, a barbárie, Fernando assume uma visão daquele que não se reconhece no sofrimento alheio e, do lado de fora, idealiza esteticamente a cena tétrica dos trabalhadores fechados no sombrio pavilhão: Um pintor do século dezenove, um pintor realista, mas já tendendo para o surrealismo, um pintor que sentisse em si toda a indignação despertada pela crueldade do capitalismo em ascensão no implantar a revolução industrial, um pintor de preferência tísico – esse pintor, digo, encontraria na cena motivo de inspiração para uma tela passível de figurar depois no Louvre ou museu similar. Que cena tétrica. Que cena de confranger o coração (FC, 59).

A miséria e o isolamento do trabalhador brasileiro nos muitos pavilhões sombrios da literatura acaba por envolvê-los em uma aura de lirismo e estetizar a violência a que estão diariamente submetidos. Estetização que leva o bom burguês a reconhecer no operário o outro, ao qual dirige o sentimento paternalista da “onda de simpatia e ternura” (FC, 53) que envolve o narrador e revela o sentimento do intelectual que escreve sobre o povo, mas o distanciamento se mantém, pois a obra não dialoga com esse povo de que fala. Dessa forma, o texto de Scliar confirma que a obra de arte é – segundo a conhecidíssima postulação de Walter Benjamim – enquanto documento de cultura, também documento da barbárie. Sua consciência de homem letrado burguês lhe confere sua parcela de culpa na situação de desigualdade social, não apenas como homem do seu país, mas como cidadão do mundo. Se ele representa a burguesia, como burguês se vê membro de uma classe social que, explorando o trabalho e a miséria alheia, se mantém no poder e que, de certa forma, vive bem à custa da miséria alheia. Ao mesmo tempo, escamoteia um narrador que, sem nenhuma culpa, se exclui do contexto em que vive – ainda que se sinta ligado às grandes tragédias mundiais e assuma sua parcela de responsabilidade por elas:

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CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento, em A educação pela noite e outros ensaios, p. 142. : SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: Que horas são?, p.39.

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e já estava suspeitando, com muita angústia de que um oculto nexo ligava meu destino ao das pobres criancinhas que morriam de fome na África (África, me pergunto agora. Por que África? Onde fica a África? Existe África, fora das notícias de jornal? África. É boa. África)” (FC, 15).

Assim sendo, o capitalismo, onde quer que ele ocorra, é sempre uma coisa só e os países capitalistas são parte de um mesmo sistema. Nesse ponto, o narrador integra o Brasil na ordem mundial capitalista, com a qual tem como ponto comum o apetite voraz de exploração do homem pelo homem. Se a obra traz a “consciência catastrófica” do escritor que se depara com a total alienação e pobreza do trabalhador brasileiro, ela também busca as origens para esse estado de penúria mental e moral no “cruel processo de exploração a que [esses trabalhadores] tinham sido submetidos ao longo de décadas, talvez” (p. 54). A atitude doutrinadora do narrador, bem como a subserviência dos operários – sempre de cabeça baixa – mostram a tensão entre as duas classes sociais antagônicas, tensão que se atualiza quando o narrador se depara com um operariado cujas atitudes não demonstram interesse pelas questões políticas que lhe afligem. Por isso, o comportamento dos trabalhadores destoa das preocupações político-existenciais que esse narrador julga compartilhar com eles. E aqui cabe indagar em que medida a classe operária brasileira estaria, naquele contexto que a obra representa, ansiosa por uma revolução socialista, e se esse não seria senão um projeto do intelectual brasileiro. O intelectual, que projeta uma imagem mental e verbal da classe operária organizada em sindicatos, nos moldes do que ocorre então na Itália, sofre um choque quando se vê frente aos operários de uma fábrica, frente à realidade brasileira de que fala e, no entanto, até então não conhece. As perguntas em série e repetidas jorram da boca do narrador-personagem e são lançadas furiosamente aos operários, como a exigir respostas urgentes: “alguém tem idéia do que vem a ser classe em si e classe para si?”; “Vocês sabiam que a história da humanidade é a história da luta de classes?”; “será que vocês não sabem que estão sendo alienados do produto de trabalho de vocês?”; “Será que vocês não sabem que estão sofrendo um processo de reificação?” (FC, 83). As interrogações só fazem emudecer ainda mais os operários que se entreolham atônitos, revelando a impossibilidade de uma resposta. A atitude de estranheza diante daquele discurso exótico provoca um sentimento de vazio, de incompreensão, isto é, de algo fora do lugar, tal qual a presença da figura de Lina Però na festa do castelo. A diferença é que a presença da atriz, como uma transgressão ou ameaça na narrativa italiana, tem um sentido bem demarcado naquele contexto e atinge um objetivo, enquanto na história brasileira, as questões sem resposta reafirmam o disparate do discurso do narrador em relação à realidade vivida pelos operários.

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Em algum momento, o narrador tenta minimizar os antagonismos da ordem capitalista e procura se livrar de sua culpa em poder gozar os prazeres intrínsecos à sua classe social e da angústia exposta na correspondência entre o par miséria/progresso trazida pela modernização: De repente tive minha atenção despertada por um garoto que nos espiava pela janela. Era um guri magro e sujo, de cabelos revoltos e olhar comprido, como costumam ser os guris que espiam por restaurantes, especialmente os das regiões mais progressistas, onde, mediante tais espiadelas, conseguem admirar belas postas de carne (FC, 63).

Esse sentimento Roberto Schwarz define como a “dificuldade da classe dominante em conciliar moralmente as vantagens do progresso e do escravismo ou sucedâneos” 11 e o narrador percebe e tenta dar a solução burguesa ao problema do menino miserável, segregado, posto do lado de fora do restaurante, entregando-lhe seu prato de comida (FC, 63). Ao resolver o problema que se apresenta naquele momento, a culpa de sua consciência nas desigualdades sociais se atenua. Ato contínuo, a narrativa resgata a história do castelo e ironiza o agressivo contraste entre o desejo do garoto de rua pelo esplêndido bife e a náusea do Duque de Fleurus ante a carne sangrenta do javali. O elogio à carne servida na ceia palaciana consagra a falsidade e a conveniência das relações sociais, que servem como passaporte na obtenção de vantagens econômicas a partir daquele encontro. Quando se dá a revolta de Pedro, o operário da fábrica, sua voz é anulada no espaço narrativo, sendo retirado da engrenagem produtiva e internado como louco. Quando fala ou age, sua voz e ação são limitadas a uma atitude de submissão, que reforça a idéia de que cada coisa deve ficar em seu lugar, reforçando a dialética patrão-empregado. Agindo assim, o narrador oblitera a voz do excluído. Ele não cede espaço à fala do operário e, quando esse fala, está louco e, assim, seu discurso, considerado obra da loucura, é invalidado (FC, 79), máxima alienação do indivíduo na sociedade capitalista moderna. Sua loucura consiste na tomada de consciência da situação de oprimido em que vive e, com ela, ocorre a total ruptura com a lógica dominante. Como louco, deve ser isolado até para que sua loucura, transgressão contra o sistema que o oprime e devora, não contamine os seus pares. Novamente, a narração utiliza-se de uma circunstância trágica para idealizar uma obra de arte, estetizando a tragédia, o desespero humano: Poder-se-ía esperar uma rebelião, os trabalhadores marchando para o escritório com Pedro braços (a imagem seria melhor se ele estivesse morto; mas louco também servia, desde que 11

SCHWARZ, Roberto - Nacional por subtração. In: Que horas são?. São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 47.

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imóvel, catatônico)num mudo protesto passível de ser imortalizado por um engajado artista pintor, fotógrafo ou cineasta (FC, 79).

Encarnando a própria modernização, que aparece também no discurso em voga na época, o sapateiro Nicola defende os ideais liberais de justiça, igualdade, fraternidade e prega contra a tirania, a opressão, a exploração do homem pelo homem. Ele é, na história do castelo, a própria resistência e revolução. No entanto, mudando-se sua situação e aparecendo a oportunidade, ele se rende ao poder do capitalismo. Como Nicola, Fernando acaba por se entregar, esquecendo sua experiência de combatente pelo socialismo. Sabe que sua luta é imprescindível, mas, percebendo-a inócua, abandona o campo de batalha e busca a escrita como forma de exorcizar seus fantasmas. Imediatamente após dirigir-se para a cadeira do patrão na fábrica recém-adquirida e passar a ocupá-la, Nicola, mesmo ali estando para erguer seu projeto de fábrica socialista, passa a se comportar como os mesmos capitalistas que criticava e contra os quais lutava. Assumindo completamente uma feição capitalista, chega mesmo a esquecer seus planos de fundação de uma fábrica do povo. A figura da velha cadeira de espaldar velho simboliza a ascensão ao posto de comando na sociedade capitalista e as transformações que o poder opera na essência do ser humano. No caso de Nicola, chega mesmo a tornar-se outro homem, momento em que o seu passado de militante pelo socialismo se apaga. Ao assumir o papel de empresário, Nicola passa a agir dentro dos princípios da ordem capitalista. Nesse texto está representada a morte dos sonhos, a impossibilidade de se acreditar em uma nova ordem social e em uma real transformação da sociedade. Incapaz de mudar a situação dos socialmente desfavorecidos, o narrador recorre à escrita em busca de uma saída viável, e o que encontra é um espaço de conflito. O jovem Fernando enquanto representa seu fracasso, sua impotência como agente de transformação social e jovem visionário, revela a incapacidade de sua geração, castrada politicamente, em um momento em que nada mais pôde acrescentar à construção da sonhada nova sociedade. O país retrocedeu politicamente e os ideais de um Brasil moderno foram esquecidos junto com os sonhos daquela geração: “Esqueci Nicola, esqueci o que tinha acontecido” (FC, 100). Se, de um lado, a obra resiste como peça de registro de um momento histórico lancinante e que deixou profundas seqüelas naqueles que viveram e sofreram as seqüelas da ditadura, também nela se mostra o próprio descompasso entre a atitude dos intelectuais burgueses e das massas em nome das quais se lutou e se pretendia fazer uma revolução. Nisso culmina o jogo do

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narrador, que se apresenta cúmplice de toda a experiência que narra: o que ele quis dizer e disse, e também o que talvez não tenha querido dizer, porém o fez sem nenhuma culpa consciente.

IV À medida que os dados históricos vão sendo puxados para o real ficcional, cria-se uma porta para a discussão sobre as fronteiras entre real/ficção e história /ficção, cujos limites não podem ser fixos, pois toda história tem sua ficcionalidade e toda a ficção baseia-se na historicidade. Assim, essa construção literária é também, em muitos momentos, “uma forma de representação histórica”12, já que seus componentes são calcados em fatos observados e recortados de um tempo e espaço concretamente definidos. Impregnado visceralmente pela História, o mundo ficcional é pleno de coerências com o contexto brasileiro e internacional dos anos 70 deste século, o que só vem valorizar a obra, pois as grandes obras de ficção – se Roman Jakobson estiver certo – em geral não versarão apenas sobre o seu assunto presuntivo, mas também sobre a própria linguagem e a relação problemática entre linguagem, consciência e realidade – inclusive a própria linguagem do escritor13.

Em meio à história de Fernando, vão sendo ocasionalmente lançadas frases que vão lembrando e reforçando a conexão entre a história do castelo e a do próprio narrador, além de esclarecer o leitor sobre as idéias do socialismo marxista. Nessas ocasiões, dá-se a perceber a presença do autor textual, a organizar e distribuir as informações no interior da narrativa. Em épocas de autoritarismo, o inimigo está em toda parte. Informantes infiltrados nas instituições e em muitos locais, como o homem de óculos escuros no ônibus, personificam o inimigo invisível que representam a vigilância e a perseguição, espalhando o terror. Disfarçado de um passageiro comum dos ônibus, o homem espia o vaivém de Fernando, suscitando a desconfiança e o medo.. Na casa de Fernando, seu pai mantém-se vigilante aos seus atos. Entretanto, perturbado com suas próprias ações, denuncia sua mesma apreensão: “muito tenso”, carregava a palavra Confidencial impressa em papéis e envelopes, e passam a não mais falar em família. À medida que a narrativa flui, a tensão aumenta, na história do castelo e na história de Fernando, do que se

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WHITE, Hayden. “As ficções da representação factual”. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura, p. 143. 13 Idem.

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constitui um sintoma o falar em código – “O tomate está maduro, quase podre” (FC, 48) –, estágio posterior ao silêncio, ao emudecimento. Se a literatura constrói esteticamente o social e esse social participa da estrutura da obra, a censura e a repressão não são somente tema na obra, mas explicam sua forma ambígua, evidenciando a consciência de um narrador contrariado, angustiado e perseguido por fantasmas do passado. A voz narrativa assume as agruras de uma sociedade oprimida pelas conseqüências de um regime de exceção, quando “os contatos políticos entre os homens são cortados (. . . ) e as capacidades humanas de ação e poder são frustradas”14. O clima de censura, perseguição, opressão é obtido pelas descrições do cerceamento que Fernando sofre quando seu pai impede seus contatos com Nicola, proíbe a leitura de livros e impõe-lhe o isolamento em seu quarto. Na vida do narrador, o autoritarismo do momento político é vivenciado por meio da repressão e das restrições impostas pela figura autoritária do pai. Esse autoritarismo do pai vai contrastar com a figura de Nicola, que também lembra o pai, aqui na acepção daquele que inicia politicamente o garoto, daquele que lhe transmite as idéias de liberdade, justiça, fraternidade.

V Com efeito, a crise do narrador revela o questionamento do mundo burguês, que se representa no romance, e da própria literatura, enquanto revelação e fruto desse mundo, mas também sua escamoteação. A festa no castelo apresenta-se como obra em que os dois gumes da literatura, de que fala Antonio Candido15, agem afiadamente. Se o narrador condena, investido de uma postura ideológica de vanguarda, a perversidade do sistema dentro do qual vive, por outro lado o legitima. Sendo a voz que detém o poder da palavra literária, por si só já segregadora, ele encarna um ponto de vista e constrói personagens que não passam de peças decorativas, que não verbalizam sua posição, suas vontades ou idéias (FC, 52). O caráter emancipatório do texto se dá a conhecer no choque criado na consciência do narrador, enquanto jovem da classe média e militante esquerdista, ao se deparar com os trabalhadores, alvo de sua luta e de seu desejo de construção de um país justo e solidário, em lastimável estado de ignorância política. Uma vez

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ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo, p. 526. Candido, Antonio. Literatura de dois gumes. A educação pela noite & outros ensaios, p. 165-6.

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que seu esforço pára por aí, o texto não tem como, ao mesmo tempo, fugir ao seu aspecto instrumentalizador. Ainda que o narrador se assuma como membro de uma elite letrada que detém a posse de um discurso e o poder da fala, quando desvela as contradições que constituem a cultura de seu país ele está representando a “consciência diferencial, a negatividade do sujeito subalterno (“uma singularidade cultural”)”16. Reconhecer-se como uma consciência que fala do ponto de vista periférico é o primeiro passo para fazer valer um discurso que possa ser significativo no sistema literário mundial. .

VI Mostrando que literatura é texto estético e histórico, a obra pontua as peculiaridades da vida no Brasil sob o regime da repressão. Ainda que a sociedade brasileira estivesse vivenciando um momento histórico crítico, a prolífica produção cultural da época é um pungente arquivo que resgata a memória desse tempo de censura e repressão. No entanto, a liberdade da criação transcende às limitações materiais humanas, superando as interdições e resgatando, em construções da ficção literária, as vozes socialmente seqüestradas, expondo as mazelas de um tempo de violência e dor sem precedentes na história brasileira. Inevitavelmente haverá na obra uma auto-representação e uma discussão sobre os limites do criador literário. Na pergunta “Não é a história que eu queria contar, mas a gente nem sempre faz o que quer, faz?” (FC, 100), o narrador se justifica perante o narratário, atribuindo sua escolha formal às interdições externas à obra. Mas nela a impossibilidade, a censura, o desejo irrealizado do narrador e, por que não, do próprio escritor, vivendo sob um regime de exceção, torna-se razão maior da escolha de uma forma dúbia de narrar. A dialética perpassa todo o texto em sua forma ambígua de estruturação. A figura da ironia participa dessa ambigüidade, pois, quando se diz alguma coisa querendo dizer outra, há um jogo com dois sentidos de uma mesma palavra, como, por exemplo, a fábrica arruinada e fracassada vende os sapatos da marca Vencedor. Se em determinada altura, Nicola, a personagem socialista metamorfoseada em empresário capitalista, enuncia: “o povo sabe das coisas. A gente pensa que o povo não sabe, mas o povo sabe, o povo não diz o que sabe, porque o povo não é ouvido” (FC, 40), adiante o povo, encarnado pelos operários, é mostrado como ignorante, alienado e passivo.

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MCNEE, Malcolm K. Alegorizando as periferias: pontos de articulação entre a crítica cultural de Fredric Jameson e Roberto Schwarz.

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A resposta que Scliar dá em A festa no castelo a essa dificuldade de se produzir ficção em um país periférico em um período de censura e repressão, eivado por tantas mazelas sociais, aponta para uma estrutura textual que registra o inconformismo, a resistência, a ambigüidade, o desconforto em se fazer literatura. Falar da situação política era, naquele contexto, um movimento de autodestruição. Todavia, é esse mal-estar que instiga esteticamente o artista, impelindo-o a buscar novas e autênticas formas de criação, a buscar saídas que burlem a censura, o comodismo, o previsível. Salvo engano, as épocas em que os homens vivenciam as maiores dificuldades, são, coincidentemente ou não, as em que melhor se saem em suas soluções estéticas. No entanto, isso não significa que a arte possa ser justificada por qualquer tipo de opressão ou sofrimento humano. O narrador, aqui seria cabível falar em autor-textual ou autor-implícito, traz para a obra o contexto histórico, não apenas como pano de fundo para os acontecimentos da época, mas, sobretudo, como elemento formal da obra. Já o engajamento estético-social da obra aponta para a impossibilidade de se produzir cultura sem a estreita relação com o contexto histórico e sem a tentativa de resgate da história do país em um momento de tantos entraves e cerceamentos para o intelectual. As interdições, a censura e o cerceamento à liberdade de expressão naquele momento crítico se mostram a partir do título da obra – que não vem a ser o título da historia principal e sim o da historia periférica. A narrativa brota de uma situação periférica e não da central - que é a da ditadura brasileira – e o título funciona também como um elemento de ligação entre as duas narrativas. As festas em castelos remetem ao ambiente mágico dos contos de fadas. Assim, ao mesmo tempo em que serve como um disfarce e uma forma de burlar a censura, o título constrói um jogo de ironia, relacionando a uma festa exatamente o seu contrário, ou seja, uma situação funesta por que passa o país. O final da narrativa aponta para a saída possível. A história termina com o narrador tendo contado mesmo a história que desejava, mas também a que não desejava, expondo a inevitabilidade de o romance, a ficção da ficção e, segundo Hegel, a epopéia da classe burguesa, representar o que a classe dominante gostaria de ver representado, mas também o que não gostaria de ver nele exposto. A festa no castelo é a alegoria da história que no fundo ele queria contar: que é a história da vitória da classe dominada. Se essa história persegue a memória de Fernando, a ponto de lembrar-se mais dela do que de sua própria história, é talvez porque, mesmo a tendo esquecido, se vê no dever de contar sua história, apesar de a história do castelo, a que não quer contar, encaminhar-se para um final mais aceitável para ele.

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A obra possui um grau maior de impregnação ideológica na medida em que o autorimplícito assume um compromisso com a doutrina marxista, ainda que exponha as contradições entre teoria e experiência brasileira. Esse ideário socialista justifica a própria obra e, nesse universo, o narrador funciona como um escudo onde o pensamento socialista bate e volta, mas volta reforçado. Assim sendo, o papel desse narrador não se reduz a um mero contador de histórias. Contar essas histórias pressupõe um jogo perigoso, de tomada de decisões de profundas implicações ideológicas. A festa no castelo apresenta uma construção formal autêntica, que não sabe como fugir a um contexto de atraso, de barbárie – como sempre o é o dos regimes de exceção – e isso é que dá força à obra. Os componentes do mundo exterior, o cerceamento à liberdade de expressão, a censura e a repressão, dialogam com a construção formal da obra e a oclusão ideológica dá o tom, pois “há uma relação necessária entre a organização interna da obra (conhecida como “texto”) e algo exterior que lhe fornece a matéria, o elemento constitutivo, que é o seu tema e representa sua âncora na realidade do mundo, da personalidade, das idéias”17. A dificuldade de se fazer literatura em condições adversas resulta, em A festa no castelo, em uma fissura formal, que se parece com “uma falha geológica que divide história e discurso, mundo e visão de mundo”, ou seja, “a visão de mundo tenta assimilar esse fato e a todo o instante perde o equilíbrio”18. O escritor Moacyr Scliar, que se considera contador de histórias, começa sua obra com uma possível “boa” história, a partir de uma ficção solapada pela realidade que viveu e que influencia visceralmente seu presente. Então, o que narra é a frustração dos ideais, o desengano, a impossibilidade e a descrença em um mundo ideal e justo. Esse texto internaliza o fracasso da luta revolucionária no Brasil e o fracasso do narrador enquanto agente de transformação da sociedade, cujos ideais se esgotaram em si próprios. Conta também do fracasso do escritor nos anos de regime autoritário, enquanto construtor de uma obra literária que partisse de uma vontade própria, cerceado que vivia pela censura e repressão. A força e o vigor com que a história do castelo vem à sua memória – a ponto de invadir seu desejo e sua própria escrita – revela um narrador que não domina sua vontade. Revela, ainda, um narrador que se olha no espelho e se depara com a dificuldade de relembrar sua própria história, o que pode estar revelando, inconscientemente, o desejo de esquecê-la em seus aspectos mais intoleráveis.

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Candido, Antonio. Literatura, espelho da América. In: Remate de Males, p. 113. MORETTI, Franco. Conjeturas sobre a literatura mundial. In: Novos estudos CEBRAP, p. 179.

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Como a mensagem da garrafa, que o narrador já não pode encontrar, seu passado também está quase apagado, e esse apenas a palavra literária pode resgatar e preservar. No entanto, para além do compromisso explícito com uma subjetividade e com a realidade histórica da época, ess’A festa no castelo traz uma reflexão atual sobre a situação da literatura e da política em um país periférico e ainda dependente como o Brasil.

Bibliografia: ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Instinto de Nacionalidade. In: COUTINHO, Afrânio. Caminhos do pensamento crítico. Rio de Janeiro: Editora Americana, 1974. BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ____Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. CANDIDO, Antonio. Literatura de dois gumes. In: A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. . Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. . Literatura, espelho da América. Remate de Males. Número especial, 1999. LUCAS, Fábio. Vanguarda, história e ideologia da literatura. São Paulo: Ícone, 1985. MORETTI, Franco. Conjeturas sobre a literatura mundial. In: Novos estudos CEBRAP. 58, nov./ 2000. SABINO, Mário. Paraísos artificiais. Veja, São Paulo, 28/5/1997. SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: Que horas são?. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. SCLIAR, Moacyr. A festa no castelo. Porto Alegre: L&PM, 1982. WHITE, Hayden. As ficções da representação factual. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. de Alípio Correia de França Neto. São Paulo: Edusp, 1994. MCNEE, Malcolm K. Alegorizando as periferias: pontos de articulação entre a crítica cultural de Fredric Jameson e Roberto Schwarz http://www.geocities.com/ail_br/alegorizandoasperiferias.htm, acessado em 20/08/2002

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